Histórico
A História do
Caminho Do Século
I ao Século V
Diz a tradição que Jesus escolheu doze companheiros para serem
seus discípulos mais próximos, segui-lo e com ele aprender uma nova filosofia
que veio a ser o Cristianismo. Estes companheiros foram, após a morte de Cristo,
chamados de apóstolos, palavra que em grego significa "enviados". Pois os doze
foram enviados aos quatro cantos do mundo para transmitir os ensinamentos
cristãos.
Entre estes doze apóstolos, havia dois com o nome Tiago. Um
deles, filho de Zebedeu, é também chamado Tiago Maior (para distingui-lo
do outro, filho de Alfeu, o Tiago Menor). Seis anos após a morte de Cristo, este
Tiago, o Maior, viajou para a península Ibérica, onde passou vários anos
divulgando sua mensagem, na região que hoje é a Galícia, talvez chegando até
Zaragoza. Embora muito poucos dos habitantes locais tenham se convertido ao
Cristianismo, Tiago deixou plantada nestas terras distantes a primeira semente,
que viria a florescer pelos séculos futuros. Retornando a Palestina, o apóstolo
morreu como mártir no ano 44, decapitado, por ordem do rei Herodes Agripa. Seu
corpo insepulto, jogado aos cães por ordem do rei, foi recolhido por seus
discípulos Teodoro e Atanásio.
Tiago havia manifestado o desejo de ser enterrado em terras
ibéricas, e diz a lenda que seu corpo foi transportado por seus discípulos para
a Espanha em uma nau de pedra guiada por anjos. É mais provável que tenha sido
levado em um navio mercante comum, porém já em seu ataúde de pedra, daí ter
nascido esta antiga crença. O apóstolo foi então sepultado na cidade de Iria
Flavia (assim denominada em homenagem ao imperador romano Flávio
Vespasiano), atualmente nos arredores da cidade de Padrón., próximo à
costa ocidental da Galícia. Esta região era chamada pelos romanos de Finis
Terrae, isto é, os confins da Terra, por ser o ponto mais ocidental da Europa,
além do qual nada mais há que o Oceano.
Há evidências que sugerem ter havido peregrinações esparsas ao
local desde os primeiros séculos da era cristã. Porém com as invasões bárbaras,
a queda do Império Romano e, posteriormente, com as invasões muçulmanas, o
túmulo acabou sendo "esquecido", ou perdido.
A
história do Caminho Do Século VI ao Século X
No ano 813, um monge chamado Pelayo, retirou-se para viver como
eremita no bosque de Libredón na colina circundada pelos rios Sar e Sarela.
Neste local havia duas antigas necrópoles (cemitérios) abandonadas, uma romana e
outra visigótica. Avistando uma chuva de estrelas que parecia cair sobre um
determinado ponto, e interpretando esta visão como um sinal divino, Pelayo foi
examinar o local e ali encontrou o velho sepulcro. Informou então ao bispo
galego Teodomiro o que havia achado em um "campo de estrelas", isto é, em um
campus stellae, em latim, origem da palavra Compostela.
O bispo, pelas inscrições no sepulcro, confirmou que se tratava
do túmulo do apóstolo Tiago que, segundo a secular tradição havia sido sepultado
naquele local, a beira do rio Ulla, próximo a uma antiga estrada romana. Foram
também identificados os túmulos de Teodoro e Atanásio, os dois discípulos, que
estavam sepultados ao lado do mestre.
O rei de Astúrias, Alfonso II, o Casto, (791 – 842), ao
tomar conhecimento da descoberta, nomeou São Tiago como patrono oficial da
Espanha e ordenou a construção de uma capela de pedra sobre o sepulcro, o que
foi realizado no ano 829. Os primeiros documentos históricos que relatam a
existência de peregrinações ao "campo de estrelas" datam do ano 840, e o local
aos poucos tornou-se um centro de devoção reconhecido pela Igreja.
Na batalha de Clavijo, no ano 842, as tropas cristãs de
Astúrias e León, apesar de sua grande inferioridade numérica, derrotaram os
árabes do reino da Andaluzia. Nasceu então a lenda de que São Tiago, montado em
um cavalo branco, lutando bravamente, havia participado pessoalmente da batalha.
O santo foi visto por muita gente, e a fama de Santiago Matamoros ("mata
mouros"), com sua espada invencível, espalhou-se rapidamente por toda a Europa.
O culto ao apóstolo passou a ser a partir de então o foco espiritual e o símbolo
de resistência que deu energia à Reconquista (a luta contra os muçulmanos).
Desde então, e até hoje, a espada com o punho em forma de cruz é um dos símbolos
do apóstolo Tiago.
No ano 950 Gotescalco, bispo de Le Puy (na França), tornou-se a
primeira grande autoridade a visitar Compostela como peregrino, dando um exemplo
que foi seguido inúmeras vezes pelos séculos futuros.
O rei de Astúrias, Alfonso III, o Grande, (866 – 910),
ordenou então que fosse construída no local uma igreja maior que a anterior. No
ano 997 o antigo templo sobre o túmulo foi destruído e incendiado pelos mouros
sob o comando de Abu Amir al-Mansur, conhecido pelos espanhóis como Almanzor,
primeiro-ministro do Califado de Córdoba.
A
história do Caminho Do Século XI ao Século XV
A partir do século X, com o progresso da Reconquista, e o
crescimento dos territórios cristãos na península Ibérica dando origem a novos
reinos que se unem em torno da causa comum, a peregrinação tornou-se mais segura
e o número de estrangeiros dirigindo-se a Santiago gradualmente cresce.
Sancho III, o Grande, rei de Navarra (992 – 1035),
trouxe para a Espanha a ordem de Cluny, e com ela a arte românica. Este estilo
arquitetônico, com construções gigantescas representando o ideal cristão, está
presente em numerosas igrejas do Caminho. Os monges ocuparam todo este
território devastado por séculos de guerra, construindo mosteiros e
hospitales (albergues) ao redor dos quais nasceram novos burgos.
Ramiro I, o primeiro rei de Aragão (1035 – 1066), filho de Sancho III da
Navarra, criou a infra-estrutura para a rota que vinha de Somport, denominado
Caminho Aragonês. Alfonso VI, o Bravo, rei de Castela e León (1065 –
1109), forneceu também proteção real ao Caminho, dando todo apoio a Santo
Domingo para conservar as estradas no território castelhano.
No ano 1064 Don Rodrigo Díaz de Vivar, El Cid, o herói
da luta contra os mouros, chega a Compostela como peregrino. Onze anos depois
iniciam-se as obras para a construção da atual catedral compostelana, terminada
em 1128.
Em 1119 o papa Calixto reconheceu Compostela como um dos três
centros cristãos de peregrinação. O primeiro Ano Santo, em que foi dado o
perdão aos peregrinos, foi 1126. Os fiéis que iam a Roma eram denominados
"romeiros" (de onde nasceu a palavra "romaria", o ato de ir a Roma), os que iam
a Jerusalém eram os "palmeiros" por levarem uma folha de palma, símbolo de sua
caminhada, e os que iam a Compostela eram chamados de "peregrinos", isto é, os
que atravessam o campo (per + agro). Em 1179 o papa Alexandre III tornou
permanente o Ano Santo
O sacerdote Aymeric Picaud, de Poitou peregrinou a Santiago em
1139, e com base em suas observações escreveu o primeiro guia do Caminho,
conhecido como o "Codex Calixtinus", que foi, por muitos séculos e
até hoje, a base de todos os outros guias.. Com o aumento no número de
peregrinos, junto com os fiéis vieram também ladrões, salteadores de estradas e
todos os tipos que, com sua esperteza, abusavam da boa fé dos andarilhos. Para
manter a segurança do Caminho, criou-se em 1170, em Cáceres, a Ordem dos
Cavaleiros de Santiago cujos cavaleiros eram encarregados da vigilância da
rota através da Espanha. A Ordem dos Templários, um pouco mais antiga, e com a
mesma finalidade de proteger os lugares santos, veio também mais tarde proteger
o Caminho.
Nos séculos XIII, XIV e XV o fluxo de peregrinos chegou a
atingir cerca de quinhentos mil caminhantes por ano. Entre estes vieram São
Francisco de Assis em 1213, a princesa Ingrid da Suécia em 1270, Santa Isabel de
Portugal em 1326, Alfonso XI de León e Castela em 1332, Santa Brígida da Suécia
em 1340, o pintor holandês Jean Van Eyck em 1430, os reis católicos Fernando de
Aragão e Isabel de Castela em 1488, Hugo IV duque de Borgonha, Eduardo I da
Inglaterra, Carlos I e Felipe II em 1554. Foi nesta época que a rota principal a
partir de Puente la Reina, pelo grande número de estrangeiros (franceses ou
vindo até este caminho através da França), passou a ser conhecida como Caminho
Francês.
A
história do Caminho Do Século XVI ao Século XX
No século XVI decaiu o interesse pela peregrinação. Os
exploradores portugueses e espanhóis viajavam por todo o mundo, descobrindo
novos oceanos e novas terras. Atrás deles iam não só colonos, mas também
comerciantes holandeses e corsários ingleses. E os corsários saqueavam não
apenas as terras recém descobertas no Novo Mundo, mas também as costas da
Europa.
Em 1589 ocorreu um episódio que veio romper a paz de
Compostela. Sir Francis Drake, o mais famoso dos corsários britânicos sitiou a
cidade de La Coruña. Os sacerdotes que cuidavam do túmulo de São Tiago,
assustados com a notícia de que os ingleses já haviam desembarcado nas costas
galegas, ocultaram cuidadosamente as relíquias sagradas. E o fizeram de tão
secretamente que ninguém mais soube de seu paradeiro por quase três séculos.
Durante a realização de algumas obras no subsolo da catedral de
Santiago em 1879, as relíquias do apóstolo foram reencontradas, e desde então
permanecem expostas ao público. Entre 1946 e 1959, novas escavações descobriram
o sepulcro do bispo Teodomiro, do século IX. Mais tarde foram descobertos os
restos da antiga necrópole do século I, e as sepulturas de Teodoro e Atanásio,
discípulos de Tiago.
Gradualmente o interesse pela peregrinação foi se reativando.
Em 1982 o papa João Paulo II tornou-se o primeiro papa a peregrinar a
Compostela. Três anos depois, em 1985, a UNESCO declarou Santiago de Compostela
como "Patrimônio da Humanidade". Na mesma ocasião, o Caminho de Santiago recebeu
o título de "Primeiro Itinerário Cultural Europeu".
Em 1988 o governo de Navarra passou a zelar oficialmente pelo
Caminho, proibindo o tráfego de veículos motorizados na rota histórica, e a
proibindo qualquer construção a menos de trinta metros do trajeto. O fluxo de
peregrinos aumentou de maneira mais intensa nos últimos anos. Em 1989 o papa
retornou a Compostela e, fazendo um apelo à juventude, conseguiu reunir
quinhentas mil pessoas nos arredores da cidade.
Em 1990 foram 4.918 peregrinos, em 1991 foram 7.224. Este
número subiu para 9.764 em 1992 e continua crescendo.
A
origem do Ano Santo
No ambiente cultural e social da Idade Média européia, a
consciência da realidade do pecado e a necessidade de liberar-se de sua culpa
eram sentimentos bem mais concretos e presentes na mente da população do que
hoje. Na época medieval eram concedidas indulgências, isto é, o perdão dos
pecados, aos fiéis que participavam das Cruzadas, aos que ajudavam a construir
um templo, e também a todos aqueles que peregrinavam a um santuário para cultuar
as relíquias de um santo. Entretanto havia algumas bulas papais que davam
permissão a que pessoas de classes mais altas enviassem alguém para peregrinar
em seu lugar. Obtinham assim o perdão "por procuração", sem precisar realizar
pessoalmente a caminhada.
O papa Calixto II elevou a cidade de Santiago de Compostela à
dignidade metropolitana (sede de um arcebispado) e, em 1119, outorgou à Catedral
de Santiago o privilégio do Jubileu Pleníssimo ou Ano Jubilar, mais conhecido
como Ano Santo. Calixto II tinha fortes
ligações com a Espanha: era cunhado de Dona Urraca, influente e poderosa rainha
de León e Castela. Dona Urraca era filha do rei Alfonso VI, e mãe do rei Alfonso
VII, dois monarcas espanhóis que muito apoio deram às peregrinações a
Compostela.
Além de conceder o Jubileu, o papa declarou a Peregrinação
Compostelana como uma das chamadas peregrinações maiores, juntamente com as de
Roma e Jerusalém. O primeiro Ano Santo, no qual foi dado o perdão aos
peregrinos, foi o ano 1126.
O papa Alexandre III, em 1179, decretou perpétuo o Jubileu de
Santiago de Compostela. Seu objetivo foi prestigiar o santuário e proporcionar
aos fiéis peregrinos um meio de obter o perdão de seus pecados. E em 1332 o papa
João XXII, em Avignon, editou uma bula concedendo indulgência também às pessoas
que ajudassem os peregrinos compostelanos com hospedagem ou esmolas.
É considerado Ano Santo Compostelano todo aquele em que o
dia 25 de Julho, dia do martírio de São Tiago, cair em um domingo. Além
destes, em ocasiões especiais, pode ser declarado um Ano Santo Compostelano
extra, como ocorreu em 1885 e em 1938.
O Ano Santo Compostelano, portanto, não só é mais freqüente,
como é mais antigo que o Ano Santo Romano, que foi decretado pela primeira vez
no ano 1300. Tradicionalmente, durante o Ano Santo Romano estão suspensas todas
as outras indulgências não ligadas diretamente à cidade de Roma, exceto o Ano
Santo Compostelano.
Esta é a relação dos Anos Santos dos séculos XX e XXI:
1909 1915 1920 1926 1937 1943 1948
1954 1965 1971 1976 1982 1993 1999
2004 2010 2021 2027 2032 2038 2049
2055 2060 2066 2077 2083 2088
2094
O
"Codex Calixtinus"
No século XII, o papa Calixto II, já reconhecendo a importância
desta peregrinação e as dificuldades enfrentadas pelo viajante da época,
encarregou o sacerdote francês Aymeric Picaud de escrever o primeiro guia do
Caminho de Santiago. Este livro, surgido em 1131, tornou-se conhecido como
Codex Calixtinus (por causa do nome do papa). Picaud descreve então, pela
primeira vez, os detalhes da viagem, passo a passo. Tece comentários sobre as
diferentes regiões, as cidades e o povos ao longo do Caminho, e orienta como
superar os obstáculos e as dificuldades da peregrinação. Fornece-nos um rico
relato que, após mais de oito séculos, continua sendo citado como um livro de
inestimável valor histórico que pode ser lido pelo moderno leitor com prazer e
curiosidade. A obra é até hoje a base de todos os outros guias publicados sobre
o Caminho.
O livro é uma enorme, erudita e variada compilação, realizada
em honra ao apóstolo Tiago. Para sua composição o autor reuniu todos os textos
que encontrou, que tivessem algo a ver com o São Tiago, sua vida, seu martírio,
seu culto, e seu templo em Compostela. A estes textos acrescentou muitos trechos
de sua própria criação. A seguir, revisou e adaptou o conjunto resultante para
transformá-lo em um texto uniforme, como se fosse obra de um só autor e não uma
heterogênea coletânea.
O texto foi publicado sob a égide do papa Calixto II, e
dedicado ao Arcebispo Diego Gelmírez, de Compostela, e ao patriarca Guillermo,
de Jerusalém. Provavelmente a obra tenha sido encomendada pelo próprio arcebispo
de Santiago. A construção da catedral, nesta época, encontrava-se quase
terminada, e a obra de Aymeric Picaud buscava ir além da construção de um
monumento arquitetônico. Seu objetivo foi estabelecer um corpo de doutrina que
se constituísse em um monumento litúrgico e literário ao apóstolo, buscando
assim fixar e enaltecer e imortalizar a devoção ao santo.
A obra foi preparada e composta entre os anos 1125 e 1130.
Durante sua elaboração a idéia inicial ampliou-se, e o texto cresceu muito mais
que o previsto. Sua publicação final e completa deu-se em 1160. Dela
participaram os melhores escritores, teólogos, fabulistas, poetas, músicos e
copistas da época, representando o mais seleto ambiente cultural da Espanha e da
França.
Ao seu final a obra tornou-se conhecida como Liber Sancti
Jacobi, isto é, "Livro de São Tiago". A primeira parte, mais extensa que
todo o resto, é de caráter litúrgico e trata de todos os textos religiosos,
ritos, orações, hinos e cantos relacionados às festas e ao Culto a São Tiago. A
segunda parte é o "Livro dos Milagres" em que são relatados vinte e dois
milagres ocorridos em várias regiões do mundo, atribuídos ao santo.
O Santo
e seu Nome
O santo cultuado em Compostela, patrono da Espanha, é Tiago,
filho de Zebedeu, também chamado de Tiago Maior. Nascido na Galiléia, Tiago foi
desde o início um dos apóstolos mais chegados a Cristo. Foi o primeiro mártir
cristão e o único apóstolo cujo martírio é relatado na Bíblia. Ele e seu irmão,
o apóstolo João, eram cognominados boanerges, isto é, "filhos do trovão",
talvez por seu inflamado fervor espiritual. Ele e João foram, com Simão (Pedro)
e André, os quatro primeiros discípulos escolhidos por Jesus e os que mais de
perto acompanharam todos os seus passos. Tiago foi decapitado por ordem do rei
da Judéia, Herodes Agripa I, (descendente do rei Herodes que perseguiu Jesus
logo após seu nascimento), no ano 44 de nossa era.
Entre os doze apóstolos de Cristo houve dois com o nome de
Tiago. O segundo foi Tiago, filho de Alfeu, também conhecido como Tiago Menor.
Este Tiago era também o pai de Judas Tadeu (outro dos apóstolos) e morreu como
mártir, provavelmente na Pérsia.
Houve ainda um terceiro Tiago que também tornou-se um santo da
Igreja Cristã, cognominado de "Tiago, o irmão do Senhor", talvez (segundo São
Jerônimo) por ser primo de Jesus. Foi um dos líderes da Igreja de Jerusalém no
século I e é considerado seu primeiro bispo. Morreu apedrejado no ano 62 por
ordem do sumo-sacerdote judeu.
O nome Tiago encerra uma longa história, e talvez seja o nome
masculino que mais variações apresenta nos diferentes idiomas dos países
ocidentais.
De Jacob ou Jacó em hebraico, veio o nome
Jacobus em latim. E da expressão latina Sanctus Jacobus, vieram os
adjetivos jacobeojacobeu, freqüentemente encontrados pelo
peregrino em referências a aspectos ou características do Caminho de Santiago.
Em latim as letras I e J tinham praticamente o mesmo som, e era
muitas vezes indiferente o uso de uma ou de outra. Portanto o JacobusIacobus, que mais tarde virou Iago ou
Yago. Da fusão da expressão Sanct’Iacobus ou Santo Iago, nasceu a
palavra Santiago, que posteriormente quebrou-se em San Tiago, origem do
nome Tiago ou Thiago. E o nome alterou-se também, ao longo dos
séculos, em castelhano para Diego e, em português, para Diogo. Em
italiano, idioma em que o J sempre transforma-se em G, o latim
Jacobus transformou-se em Giacomo. ou
transformou-se em
Na Inglaterra o nome Tiago alterou-se para James,
posteriormente aportuguesado para Jaime, enquanto na França sua alteração
foi para Jacques. Por este motivo, a concha do peregrino é
tradicionalmente conhecida como coquille de Saint Jacques, isto é,
"conchinha de São Tiago". Por estas variações no nome do santo, o peregrino que
desejar consultar livros em inglês ou francês deve sempre lembrar-se de procurar
referências a Saint James ou a Saint Jacques, respectivamente.
Se incluirmos nesta relação os apelidos Jim,
Jimmy, Jack, os derivados Jackson, Jameson, os
femininos Jacqueline, Jacobina, etc, a confusão sem dúvida
aumentará ainda mais.
Vale recordar que os Jacobinos da Revolução Francesa receberam
este nome pelo fato de suas reuniões serem realizadas em um antigo mosteiro dos
dominicanos localizado na Rue Saint Jacques, em Paris.
As
Diversas Rotas
O Caminho de Santiago termina geograficamente na cidade de
Santiago de Compostela, porém não há oficialmente um ponto de partida, e o
peregrino começa sua caminhada onde quiser. As diferentes rotas vêm de locais
muito distantes Algumas têm origem na Europa Oriental, na Itália ou nos Países
Baixos, atravessam a França e, como rios, vão lentamente confluindo, até se
tornarem um só caminho. Há quatro rotas principais vindas da França, que se
fundem em apenas duas, antes de entrar na Espanha.
A primeira é a Via Tolosana ou Caminho de
Somport, vem de Arles, no sul da França, passa por Montpellier, Toulouse,
Oloren, Somport, e continua-se na Espanha pelo Caminho Aragonês. Esta é a rota
mais ao sul, e é a utilizada pelos peregrinos que vêm da Itália. A Segunda, a
Via Podense, inicia-se em Le Puy, passa por Moissac e finalmente chega a
Ostabat. É a utilizada pelos peregrinos que vêm da Suiça e da Áustria. A
terceira, a Via Turonense, nasce em Vezelay e, passando por Saint-Amand,
Limoges, Périgueux, atinge também Ostabat. Esta é a utilizada pelos peregrinos
vindos da Alemanha. A última, a Via Limosina, mais ao norte, vem de
Orléans, e passa por Tours, Lousignon e Bordeaux até unir-se às outras duas em
Ostabat. Esta é a rota empregada pelos caminhantes que vêm de Paris, da Holanda
e da Bélgica. De Ostabat todas continuam juntas até
Saint-Jean-Pied-de-Port.
O Caminho Navarrês ou
Caminho Real Francês deixa a França pela cidade de
Saint-Jean-Pied-de-Port, a 14 km da fronteira, cruza os Pireneus e entra
na Espanha na cidade de Roncesvalles, 8 km além da fronteira. A cidade de
Puente La Reina, onde os caminhos Navarrês e Aragonês se unem, situa-se a
64 km. Esta é, por motivos históricos, a rota mais tradicional, e quase tudo o
que se fala sobre o Caminho costuma ser referência a este trajeto.
O Caminho Aragonês, mais ao sul, continuação da Via
Tolosana, vem da cidade de Somport, na fronteira entre a França e a
Espanha. Bem mais longo que o ramo Navarrês, este caminho atinge Puente La
Reina após 152 km de caminhada. É importante que o peregrino não se confunda
esta com outra cidade com o mesmo nome, situada 100 km antes da que é ponto de
encontro de ambas as rotas.
O Caminho Cantábrico, menos tradicional, vem de Bayonne,
no sul da França, e cruza a Espanha paralelamente ao primeiro, porém seguindo a
linha costeira, beirando o mar Cantábrico ou baía de Biscaya. É separado dos
caminhos anteriores pela cordilheira Cantábrica, as montanhas que o peregrino
tradicional avista do lado norte ao longo de todo o trajeto. Logicamente, o
peregrino que vai pela costa avistará estas montanhas ao sul de seu caminho.
Esta rota passa por Bilbao, Gijón e La Coruña antes de chegar a Santiago. Como
alternativa o peregrino pode deixar o litoral na altura de Ribadeo, e unir-se ao
Caminho Francês na cidade de Arzúa, a um dia de caminhada até Compostela.
Há duas outras rotas, menos conhecidas, ambas vindas do sul, e
empregadas principalmente pela população local. Uma vem de Portugal, o
Caminho Português, iniciando-se na cidade do Porto e, passando por Braga
e Padrón, atinge Santiago chegando pelo Oeste e não pelo Leste como as outras. A
outra, o Caminho de Salamanca, vem do oeste da Espanha, da província de
Estremadura, inicia-se em Salamanca, passa por Zamora, ou entra em Portugal,
passando por Bragança, antes de chegar a Santiago de Compostela.
Roncesvalles a 736 km de Santiago
Esta pequena aldeia, chamada Orreaga pelos bascos, com não mais
que um punhado de habitantes e escondida no meio dos Pireneus, está longe de ser
um local abandonado e decadente. É um dos locais mais vivos e mais luminosos do
Caminho. Aqui, de uma maneira única e mágica,ocorre um sincretismo histórico e
mitológico em que se mesclam a imortal tradição jacobea da Espanha, com o
inesquecível ciclo carolíngio da França. A presença de Carlos Magno dá força e
prestígio ao culto de São Tiago, enquanto a presença do apóstolo engrandece e
santifica o imperador dos francos.
Um pouco antes, fica Valcarlos, o vale onde Carlos Magno
acampou enquanto seus guerreiros combatiam em Roncesvalles. Na igreja de
Valcarlos encontra-se a rocha partida ao meio por Rolando com a sua espada
Durandal, e na baixada do vale está o Bosque de las Lanzas, que nos traz a lenda
das cinqüenta mil donzelas que deram a vitória ao imperador dos francos.
No alto, em Ibañeta, de onde se avista a Espanha a Oeste, a
França a Leste, e o "mar Britânico" ao norte, encontra-se a antiga Cruz de
Carlos Magno. Diz a lenda que o imperador, à frente de seu exército, abrindo
caminho pelas florestas dos Pireneus, aí chegando, ajoelhou-se em direção à
Galícia e rezou a Deus e a São Tiago. Os peregrinos, seguindo a tradição também
se ajoelham, rezam ao apóstolo, e cravam uma cruz, onde já há com certeza muitas
centenas delas. Embora a batalha de Roncesvalles tenha sido travada no ano 778,
trinta e cinco anos antes da redescoberta do sepulcro de São Tiago, naquela
época já era forte o culto ao santo que morreu na Galícia. A veracidade da
história pode talvez ser posta em dúvida, porém o caráter sagrado destas rochas
banhadas pelo sangue dos guerreiros, e o peso histórico do lugar, fazem com que
ao longo dos séculos as lendas permaneçam vivas no coração do peregrino. Pois
por este passo nas montanhas atravessaram os povos da Idade do Bronze, as
migrações celtas, os legionários romanos, as tribos bascas, as hordas de
vândalos, de suevos e visigodos, os guerreiros indo à luta da Reconquista, os
reis exilados de Pamplona, a artilharia de Luís XIV, os refugiados da Guerra
Civil, e os eternos peregrinos em busca de Santiago.
Em Roncesvalles tudo é História. Aqui morreram Rolando,
Oliveros, o rei Marsílio e quarenta mil guerreiros, mouros e cristãos. E aqui
foi fundada em 1132 a Real Colegiata de Nuestra Señora de Roncesvalles. Em 1209
foi erigida a igreja, por iniciativa de Sancho, o Forte, que nela foi sepultado.
O chamado Silo de Carlos Magno, com sua antiga cripta que serviu como ossário de
peregrinos, remonta ao século XII. Assim, a velha cruz de pedra, do século XIV,
parece "moderna" para os padrões de Roncesvalles.
Pamplona a 694 km de Santiago
Neste local já havia um antiqüíssimo povoado quando os romanos
aí construíram uma aldeia fortificada no ano 75 de nossa era. A cidade foi
fundada durante uma campanha militar, por Pompeu, o rival de Júlio César, e
denominada Pompeiopolis ou Pompaelo. Foi quase abandonada após as
invasões mouras, e foi invadida pelas tropas de Carlos Magno em 778. No início
da Idade Média, a povoação havia se dividido em três burgos, cercados por
muralhas independentes: Navarreria, habitado pela população local, San
CernínSan Nicolás, ambos habitados por francos e outros
imigrantes. Em 1423 o rei Carlos III, o Nobre, rei de Navarra, demoliu seus
muros e unificou os três no interior de uma só grande muralha. Em 1512 Pamplona
foi invadida e incorporada ao reino de Castela pelo rei Fernando II, o
Católico. e
A cidade foi cristianizada por San Cernín ou São Saturnino de
Tolosa. Sua catedral, românica, do século XII, foi reconstruída no século XV no
estilo gótico e domina o centro histórico da cidade. Pamplona foi transformada
em capital do reino de Navarra no início do século XI pelo rei Sancho III, e é
hoje a capital da província de Navarra, na região basca da Espanha. A cidade é
denominada Iruña no idioma basco.
Embora a cidade tenha sofrido grande influência do Caminho de
Santiago, sua festividade mais importante e famosa nada tem a ver com o
apóstolo. É a festa de San Fermín (o primeiro bispo de Pamplona), em que touros
bravos são soltos nas ruas, e a população corre na frente dos animais tentando
com grande habilidade escapar de seus perigosos chifres. As comemorações duram
uma semana, de 6 a 14 de Julho, e são uma concorrida atração
turística.
Puente
la Reina a 672 km
de Santiago
Esta cidade, chamada de
Gares pelos bascos, é cercada de um significado simbólico e profundo para o
peregrino, pois é onde "todos os caminhos a Santiago tornam-se um só", onde
finalmente se fundem o Caminho Navarrês e o Caminho Francês. A partir daqui a
rota é uma só até Santiago.
Puente La Reina, antigamente denominada
Ponte Regina, foi o primeiro centro urbano a crescer sobre o eixo da
peregrinação. A majestosa ponte, com seus seis arcos de pedra cruzando o rio
Arga, foi construída por ordem de Doña Mayor, esposa do rei Sancho, el Mayor, no
século XI. A ponte foi construída especialmente para que os peregrinos a caminho
de Compostela atravessassem com segurança o largo rio.
O afluxo de viajantes era tão grande que
foram estabelecidas normas limitando sua estadia na cidade. Do século XII ao
século XV a cidade foi governada pela ordem dos Templários, que receberam do rei
Garcia VI também o dever de acolher gratuitamente os peregrinos que viajassem
"guiados pelo Amor a Deus".
Ainda hoje o peregrino pode ouvir ao cair
da noite as tradicionais quarenta badaladas, lembrança do velho costume medieval
de avisar aos viajantes que as portas da cidade seriam fechadas ao
escurecer.
Pouco antes de Puente la Reina passa-se
pela vila de Obanos, onde até hoje celebra-se a memória de uma antiga lenda. A
princesa Felícia da Aquitânia, após fazer a peregrinação a Compostela, no
retorno da viagem, decide aqui retirar-se do mundo. Seu irmão, o príncipe
Guilherme, tentou em vão fazê-la mudar de idéia. Não o conseguindo, em um acesso
de cólera, descontrolou-se e a matou. Para conseguir o perdão por seu crime, ele
próprio decide peregrinar a Compostela. E, no retorno, mudou de vida e tornou-se
um santo. A lend de São Guilherme e Santa Felícia é uma das mais célebres do
Caminho.
Estela a 648 km de Santiago
Situada às margens do rio Ega, Estela foi fundada em 1090 por
Sancho Ramírez, para favorecer o assentamento dos franceses que faziam a
peregrinação. No século XIX foi a sede do movimento carlista na Espanha. É hoje
a sede da sociedade "Los Amigos del Camino de Santiago", a mais
importante e mais ativa das instituições ligadas ao Caminho.
Em 1270, um humilde peregrino grego faleceu em Estela, em
conseqüência dos males advindos da extenuante caminhada. Foi sepultado, como era
costume, no claustro da igreja de San Pedro de la Rúa (construída no século
XII), onde havia na época um cemitério para peregrinos. No entanto, misteriosos
clarões atraíram a atenção das pessoas sobre seu túmulo. Ao se reabrir o
sepulcro, descobriu-se que o anônimo andarilho era o bispo de Patras, que levava
uma sagrada relíquia do apóstolo André, como doação a Santiago. Desde então,
Santo André é o patrono de Estela, e a oferenda do bispo está até hoje guardada
em um grande relicário de prata, nesta mesma igreja. No primeiro domingo de
Agosto, são animadamente celebradas as festividades em honra a Santo André,
consideradas de importante interesse turístico.
Pouco depois de Estela, o peregrino atravessa a aldeia de
Ayegui, e chega ao Monasterio de Irache, de Nuestra Señora la Real, nas encostas
do Montejurra, um dos mais antigos mosteiros da Navarra. Sua origem remonta
provavelmente à época visigótica, sendo um pouco mais recentes seu Hospital de
peregrinos, do século XI, e sua igreja, do século XII.
Próximo ao mosteiro, estão suas "bodegas", que reservam ao
peregrino uma das mais fantásticas surpresas desta viagem tão cheia de
surpresas: a fonte de vinho. Sim, uma autêntica e real fonte, com duas bicas,
uma das quais jorra água, enquanto a outra jorra um bom vinho navarrês, vindo
direto da vinícola de Irache.
Acima da fonte uma grande saudação:
Peregrino! se quieres llegar a Santiago com fuerza y
vitalidad de este gran vino echa un trago y brinda por la Felicidad.
Ao lado da fonte a suave advertência:
Normas de uso A beber sin abusar te invitamos com
agrado. Para poderlo llevar el vino a de ser comprado.
Impossível não se lembrar neste momento do maná que caiu do céu
alimentando os que buscavam a Terra Prometida. Tomamos um copo de vinho e,
revitalizados, continuamos a caminhada, rumo a Los Arcos.
Viana a 609 km de
Santiago
Pouco tempo após sair de Los Arcos, o peregrino já pode avistar
Viana. Não por estar próxima, como pode parecer, porém por situar-se sobre uma
alta colina que domina toda a região. Na verdade o peregrino deve enfrentar uma
longa caminhada de algumas horas, por locais totalmente desertos e sem recursos.
E, ao chegar a Viana, ficará na dúvida se compensa a penosa subida até a cidade,
ou se é melhor continuar caminhando diretamente até sair da Navarra e chegar à
cidade de Logroño, já na província de La Rioja. Na verdade Viana tem pouco a
oferecer. Há restaurantes com boa comida, mas o albergue é muito precário e o
único ponto de interesse é a majestosa catedral gótica de Santa Maria, do século
XIII.
Viana foi fundada em 1219 por Sancho, o Forte, rei de Navarra,
como baluarte na fronteira com o reino de Castela. Tornou-se tão importante que,
no século XV, os herdeiros do trono de Navarra recebiam o título de Príncipe de
Viana.
A quem aprecia marcos históricos, é interessante saber que
nesta igreja está sepultado César Bórgia, uma das figuras políticas mais
importantes e influentes da Renascença italiana. César nasceu em 1475, sendo
irmão de Lucrécia Bórgia (a envenenadora), e filho do cardeal Rodrigo Bórgia,
que mais tarde, em 1492, tornou-se o papa Alexandre VI. Sendo um militar
competente, César ajudou seu pai a recuperar o enfraquecido poder dos Estados
Papais na Itália e enfrentou as invasões francesas em território italiano em
fins do século XV. Sua ligação com a Espanha provém do fato de ter se casado com
Charlotte d’Albret, irmã do rei de Navarra. Quando seu pai, o papa, morreu em
1502, César foi preso e levado à Espanha, onde passou a servir no exército real.
Morreu em batalha nos arredores de Viana, em 1507, combatendo os rebeldes que
lutavam contra seu cunhado, o rei de Navarra.
César Bórgia foi o modelo que inspirou Maquiavel a escrever
"O Príncipe", e assim foi a origem da palavra "maquiavélico". Talvez por
isso, seu túmulo hoje vazio (pois o corpo desapareceu) pareça tão perdido e
deslocado em meio de um Caminho onde reina a paz e não as intrigas
políticas.
Logroño a 600 km de Santiago
Logroño, uma das mais populosas cidades do Caminho, às margens
do rio Ebro, pouco oferece de interesse ao peregrino. Aqui eram impressas as
Indulgências que eram fornecidas aos caminhantes que chegavam a Compostela.
Entra-se em Logroño pela antiga ponte de pedra construída no
século XI, por ordem de Alfonso VI, rei de León e Castela, e posteriormente
mantida e reformada por Santo Domingo (de la Calzada) e San Juan (de
Ortega).
Pouco antes da ponte, o peregrino é invariavelmente
surpreendido por duas senhoras que ali residem e permanecem de prontidão durante
todo o dia esperando os andarilhos com doces e frutas. Oferecem então um enorme
livro de atas para que o peregrino ali registre suas impressões, comentários e
emoções. Dentro de casa já há uma verdadeira "enciclopédia", com numerosos
livros onde estão carinhosamente arquivados os registros de muitos anos de
peregrinações.
Nos arredores de Logroño, a apenas dezessete quilômetros da
cidade, no sopé de uma colina sobre a qual ainda se avistam as ruínas de um
antigo castelo, situa-se a pequena aldeia de Clavijo. Embora, situada fora da
rota de peregrinação, foi ali que ocorreu um dos fatos mais importantes da
história do Caminho. No ano 844, o rei Ramiro I, de León, derrotou o califa
mouro Abd ar-Rahman II, na famosa batalha de Clavijo.
Diz a lenda que esta vitória só foi possível porque São Tiago,
em pessoa, ajudou as tropas cristãs, montado em um cavalo branco. Desde então
nasceu o mito de Santiago Matamoros ("mata mouros") que rapidamente espalhou-se
pela Europa. Todo dia 23 de Maio, aniversário da batalha, realiza-se em Clavijo
uma pitoresca e folclórica romaria presidida pelas imagens de São Tiago e da
virgem de Ten Tu Día. No domingo seguinte a esta festa, celebra-se a missa ao
lado do castelo, acompanhada por uma representação alegórica da lenda das cem
donzelas, com dançarinas vindas da vizinha aldeia de Albelda.
Nájera a 573 km de Santiago
Como lembrança do domínio muçulmano, Nájera conserva seu nome
que, em árabe, significa "lugar entre rochas. Antiga capital da província de La
Rioja, Nájera já foi também sede da corte de Navarra, entre os anos de 918 e
1076. No século XI, por iniciativa de Sancho III, o Maior, rei de Navarra,
Nájera foi incorporada no trajeto do Caminho de Santiago, que antes passava ao
largo da cidade. Porém a partir de 1076, seu território foi incorporado ao reino
de Castela pelo rei Alfonso VI.
Em meados do século XI, Don García de Nájera, governador da
região durante o reinado de Sancho III, saiu certo dia para caçar com seu falcão
nos campos dos arredores. A ave, perseguindo uma pomba, penetrou então em uma
gruta. Don García, indo atrás do falcão, ali encontrou uma imagem de Nossa
Senhora com uma coroa de lírios a seus pés, iluminada por uma lâmpada na qual
pousara a pomba.
Inspirado por este fato simbólico, construiu ali uma igreja,
que é o Mosteiro de Santa María da Real, e fundou a Ordem de la Terraza, a mais
antiga ordem de cavalaria da Espanha. Tanto a igreja, como a imagem de Santa
María e a lâmpada bizantina, foram conservadas e podem até hoje ser vistas pelo
peregrino. O mosteiro foi entregue por Alfonso VI, de Castela, aos monges
beneditinos. Em seu Panteão Real estão sepultados os reis, rainhas e príncipes
que ali viveram do século X ao século XII.
Saindo de Nájera, o caminhante atravessa a Puente de los
Peregrinos, sobre o rio Najerilla, construída pelo famoso San Juan de
Ortega.
Santo
Domingo de la Calzada a 549 km de Santiago
Domingo nasceu no ano 1019, na pequena cidade de Viloria, na
província de Burgos, a duas horas de caminhada da cidade que hoje leva seu nome.
Levou uma vida de eremita, totalmente dedicada à manutenção e construção de
pontes, e à abertura de veredas e novos trechos do Caminho, por toda esta
região. Domingo, que posteriormente tornou-se Santo Domingo de la Calzada, teve
como um de seus grandes colaboradores, Juan, que posteriormente tornou-se San
Juan de Ortega. Também o rei Alfonso VI, de León e Castela, deu-lhe toda a ajuda
e colaboração nesta sagrada missão. Santo Domingo viveu noventa anos, e no local
em que morreu, foi erigida uma igreja, mais tarde transformada em catedral da
cidade que floresceu a seu redor.
Duzentos anos mais tarde, no fim do século XIII, uma família de
peregrinos, vindo da Alemanha, chegou a Santo Domingo de la Calzada. A filha do
estalajadeiro encantou-se com o filho do casal, Hugonell, então com dezoito
anos. Ele, porém, recusou o amor por ela oferecido. Resolvida a vingar-se da
desfeita, a donzela escondeu um cálice de prata na mochila do jovem peregrino, e
o acusou pelo roubo. O infeliz viajante foi então preso, condenado e
enforcado.
Algum tempo após o enforcamento, os pais do jovem receberam uma
mensagem divina dando-lhes a convicção de que o filho estava vivo. Procuraram
então o juiz, pedindo que perdoasse o rapaz, e os autorizasse a retirar o corpo
ainda vivo que continuava pendurado na corda. O juiz, com sarcasmo, interrompeu
seu almoço, e respondeu que era tão certo estar vivo o enforcado como aquela
galinha que ele estava prestes a comer. Diz a tradição que a galinha levantou-se
imediatamente do prato, cantou, e fugiu ante o olhar estarrecido do incrédulo
juiz.
Desde então, há mais de setecentos anos, há uma enorme gaiola
sobre o altar da catedral de Santo Domingo, onde são mantidos uma galinha e um
galo brancos, como símbolos vivos do milagre ocorrido.
É indescritível e a experiência de estar sentado solitário no
início da manhã, em um banco da igreja ainda deserta, meditando sobre o caminho
percorrido e o longo caminho ainda percorrer, e ouvir subitamente o silêncio ser
rompido pelo sonoro cantar do galo, ecoando pelas impassíveis paredes de pedra
da velha catedral. Talvez o assombro do peregrino seja então tão grande quanto o
do juiz que viu seu almoço escapar e dar origem ao tradicional refrão:
"Santo Domingo de la Calzada, donde cantó la gallina después
de asada".
San Juan de Ortega a 502 km de Santiago
Este fantástico edifício,
que se ergue solitário no alto das montanhas, entre Belorado e Burgos, é muito
mais que uma igreja. É um conjunto complexo formado por duas igrejas, dois
mosteiros, um Hospital de peregrinos, e algumas residências.
San Juan nasceu (como Juan Velázquez) em
1080 na pequena aldeia de Quintanaortuño, nesta mesma província. Tendo realizado
a peregrinação a Jerusalém, ao retornar, decidiu dedicar-se a proteger os
peregrinos que iam a Compostela.
Retirou-se para um local denominado Ortega,
nos montes de Oca, onde construiu uma ermida consagrada a San Nicola de Bari e o
Hospital de peregrinos. Além disso, dedicou o resto de sua vida à manutenção,
reconstrução e aprimoramento do Caminho de Santiago. Foi ele quem construiu todo
o trecho que leva a Atapuerca, além de pontes em Nájera, Logroño e Santo Domingo
de la Calzada. Morreu em Nájera em 1163, e foi enterrado na ermida que havia
construído em Ortega. Apesar de reformada e ampliada, a velha ermida existe até
hoje. São Juan de Ortega foi contemporâneo, companheiro e colaborador de Santo
Domingo, o de la Calzada.
Sete anos após sua morte, o local passou a
abrigar um mosteiro da ordem de Santo Agostinho, que a partir do século XV
(1432) passou à ordem de São Jerônimo. Hoje em dia o conjunto abriga o mais
amplo albergue de todo o Caminho, com capacidade para receber centenas de
peregrinos.
No dia do equinócio um raio de sol,
penetrando por um pequeno orifício, ilumina a imagem da Anunciação esculpida no
capitel de uma das colunas da igreja. O fato reveste-se de um significado
especial quando se recorda que o equinócio de primavera (21/22 de Março) ocorre
nove meses antes do nascimento de Cristo, portanto na suposta data da real
Anunciação..
A hospitalidade em San Juan de Ortega é
inesquecível. É o único refúgio no caminho que ainda conserva a secular tradição
de o pároco oferecer sopa de alho ao peregrino que pernoita. Entre as inúmeras
pessoas que marcam de maneira indelével a alma do peregrino, nenhuma encarna de
maneira mais viva o espírito do Caminho que o padre José María, responsável há
muitos anos pelo local. É um digno sucessor do próprio San
Juan.
Burgos a
481 km de Santiago
A cidade de Burgos nasceu no
ano 854 às margens do rio Arlanzón, como um pequeno povoado que cresceu ao lado
de um antigo castelo. A vila desenvolveu-se sob a iniciativa do conde Diego
Rodríguez Porcelos para defender a região da invasão moura, e já no ano 920,
adquire o título de cidade. Um século depois, em 1035, Fernando I, rei de
Castela, a torna capital de seu reino.
Burgos foi historicamente a cidade mais
importante do Caminho, e chegou a contar com trinta Hospitais de peregrinos.
Entre eles destacava-se o Hospital del Rey, o considerado o melhor Hospital da
Espanha, situado ao lado do mosteiro de las Huelgas e de um antigo cemitério
para peregrinos.
A catedral, uma das mais antigas
construções góticas da Espanha (sua construção iniciou-se em 1221) abriga o
sepulcro do herói nacional don Rodrigo Díaz de Vivar, conhecido como El Cid, e
sua esposa, doña Jimena. El Cid peregrinou a Compostela no ano 1064. Esta igreja
é considerada pela UNESCO como "Patrimônio Cultural da Humanidade".
Um monge clunicense francês, chamado Lesmes
(ou Adelmo) fez a peregrinação a Compostela no século XI. No trajeto de volta,
passando por Burgos, a rainha Constanza de Bragança, esposa do rei Alfonso VI de
Castela, convenceu-o a permanecer na cidade para estabelecer ali a nova liturgia
romana. São Lesmes foi a partir de então um grande protetor dos peregrinos,
construindo mosteiros e Hospitais para acolher os caminhantes. Morreu em 1097,
está sepultado na igreja de São Lesmes, em Burgos, e é o patrono da cidade. Em
1968, seu sepulcro foi aberto durante as obras de restauração da Igreja, e
descobriram-se os restos do santo, intactos após quase novecentos
anos.
Castrojeriz a 439 km de Santiago
Castrojeriz foi fundada na
época visigótica, nas encostas de uma colina isolada no meio da imensa planície,
em cujo cimo ainda se vêem os restos do antigo castelo. O nome da cidade deriva
de Castrum Sigerici, isto é, castelo de Sigerico, nobre que ali viveu no ano
760, época em que a região começou a ser repovoada pelos cristãos.
Diz a lenda que no século XI, o filho de um
senhor importante foi acometido por uma grave doença, conhecida na época como
"fogo de Santo Antônio" ou "fogo sagrado". Esta era uma moléstia que se espalhou
pela Europa no século X, e manifestava-se com gangrena progressiva, bastante
dolorosa, sendo muitas vezes incurável. Tendo invocado o auxílio de Santo
Antônio, a doença logo desapareceu e seu filho curou-se rapidamente.
A partir de então a ordem dos Monges de
Santo Antônio, fundada no ano 1093, difundiu-se pela Europa e tornou-se muito
conhecida. A ordem fundou em 1146 seu mosteiro espanhol nas proximidades de
Castrojeriz, onde não só ajudavam os peregrinos, como curavam os enfermos
portadores de "fogo de Santo Antônio". Um antigo peregrino francês nos deixou um
relato informando que estes monges amputavam os braços e as pernas dos seus
pacientes, e os penduravam nas portas do Hospital.
Com a ampliação das dependências do
mosteiro no século XIV, a estrutura de colunas e arcos que se apoiava em suas
paredes, foi construída passando por cima da antiga estrada dos peregrinos.
Entretanto o trajeto da estrada não foi alterado, e até hoje passa sob os
gigantescos arcos em ruínas do que foi um dia o átrio ocidental da igreja já
destruída.
Desde que Carlos III, rei da Espanha,
aboliu esta ordem em fins do século XVIII, o mosteiro foi abandonado. Hoje em
dia nada mais resta que suas ruínas fantasmagóricas. O peregrino que cruza seus
silentes arcos de pedra ao fim da tarde, sente um calafrio inexplicável. Apenas
o assustador latir dos cães quebra o pesado silêncio. Pois se há algum lugar no
Caminho em que o misticismo emana de cada arbusto e de cada pedra, este local é
sem dúvida San Antón.
Sahagún a 357 km de Santiago
O curioso nome desta cidade,
que era chamada Camata pelos latinos, deriva San Facundo ou Sant Facund ou San
Fagún, mártir cristão dos antigos tempos do Império Romano.
Conta-se que aqui o imperador Carlos Magno
combateu os muçulmanos comandados pelo rei Aigolando. Diz a lenda que os
guerreiros francos, vitoriosos, fincaram as lanças dos soldados cristãos mortos
ao lado de seus corpos caídos, "para glória do Senhor". No dia seguinte, neste
local, às margens do rio Cea, as hastes de suas lanças haviam se tornado verdes
e florescido.
O Monasterio de los Santos Facundo y
Primitivo foi fundado no ano 872 pelos monges de Cluny, por incentivo do rei
Alfonso III Magno, de Castela. Este mosteiro sempre foi um dos mais importantes
do Caminho e chegou a ser a principal abadia beneditina na Espanha. Aí está
sepultado o rei Alfonso VI de Castela, um dos grandes protetores dos
peregrinos.
Com jurisdição religiosa sobre toda a
região, seu poder gerou também animosidades. O mosteiro acabou em ruínas e a
cidade lentamente perdeu sua antiga grandeza. Sua entrada principal, entretanto,
não foi demolida, nem mesmo quando construiu-se a moderna estrada
asfaltada.
As ruínas da antiga abadia ainda imponentes
sobre a entrada da cidade, formando um enorme arco de pedra sobre a estrada, são
consideradas "Monumento Nacional da Espanha".
León a
303 km de Santiago
Há mais de dois mil anos, em
79 a.C., aqui, na confluência dos rios Bernesga e Torio, situava-se o
acampamento militar dos legionários romanos pertencentes à Legio VIIa
Gemina Pia Felix. Ao redor do acampamento a o centro urbano foi crescendo ao
longo dos séculos, e de legionis, nasceu seu nome León. A região tornou-se
subitamente despovoada com as invasões muçulmanas. Porém, com a Reconquista, o
rei Ordoño I, repovoou a região, e no ano 914, o rei Ordoño II elevou a cidade a
capital do reino de León. Apesar da rivalidade com o reino vizinho de Castela,
pois "León teve vinte e quatro reis, antes que Castela tivesse leis", os dois
reinos se uniram definitivamente em 1230.
Sobre os restos de um templo romano
dedicado ao deus Mercúrio, ergueu-se a antiga igreja de Santo Antônio, que
depois converteu-se no Panteón Real, Esta construção está unida à milenar abadia
conhecida como Real Basílica de San Isidoro. Neste local estão sepultados trinta
e cinco reis, rainhas e infantes, e pará lá foram levados também, há mil anos,
os restos de São Isidoro, trazidos de Sevilha em 1063, por iniciativa do rei
Fernando I.
Em 1161 foi fundada em León a Ordem dos
Cavaleiros de Santiago de la Espada. O mosteiro de São Marcos, cuja construção
iniciou-se em 1513, foi sede da Ordem, cujos cavaleiros tinham a missão de
cuidar do Caminho de Santiago e defender os viajantes. Em sua fachada, sobre a
porta principal, há uma imponente escultura de Santiago Matamoros.
Posteriormente o mosteiro transformou-se em um Hospital de peregrinos, e hoje é
um luxuoso hotel cinco estrelas.
Hospital de Órbigo a 269 km de Santiago
A ponte de Órbigo,
construída no século XIII, na entrada da vila denominada Hospital de Órbigo
tornou-se famosa pelo episódio tradicionalmente conhecido como "Passo Honroso".
Em 1434, ano santo compostelano, o legendário cavaleiro leonês Don Suero de
Quiñones peregrinou a Compostela com mais nove heróicos companheiros. Com a
autorização do rei Don Juan II, de Castela, os dez cavaleiros postaram-se sobre
a ponte para desafiar aqueles que por ela desejassem passar.
Don Suero, apaixonado por uma dama e
querendo mostrar seu valor e a força de seu amor, colocou um colar de ferro ao
redor de seu pescoço, e afirmou ao rei antes de partir: "É justo e razoável que
prisioneiros e pessoas privadas de seu livre poder desejem a liberdade. E, como
sou seu vassalo e estou na prisão de uma senhora há longo tempo, em sinal da
qual trago em meu pescoço este ferro, estabeleci como meu resgate trezentas
lanças rompidas por mim e por estes cavaleiros."
A partir do dia 10 de Julho daquele ano,
cada um deles enfrentou uma justa (combate a cavalo) por dia. Combateram às
vezes contra cavaleiros peregrinos que aceitaram seu desafio, porém mais
freqüentemente contra valorosos cavaleiros espanhóis, portugueses, franceses,
alemães e italianos, que vieram de longe especialmente para tentar vencê-los.
Lutaram durante trinta dias e derrotaram trezentos cavaleiros, obrigando a cada
um deles a reconhecer a superioridade de sua amada.
Cumprindo a façanha, libertou-se enfim dos
grilhões de ferro, e cavalgaram todos a Compostela. Chegando a Santiago,
ofereceram ao apóstolo um cinturão de ouro, que lá se encontra até hoje. O
episódio tornou-se tão famoso que é citado com admiração até por Don Quixote, na
obra de Miguel de Cervantes.
Astorga a 254 km de Santiago
A antiga povoação pré-romana
foi denominada Asturica pelos latinos, e cognominada Augusta pelo primeiro
imperador romano, Augusto, no século I. Centro de comunicações da região norte
da península Ibérica, de Asturica Augusta partiam nove estradas romanas. Nesta
época a cidade era cercada por uma grande muralha, parte da qual ainda é hoje
visível.
Desde os primórdios do Cristianismo,
aproximadamente no século III, Astorga tornou-se sede episcopal. Atualmente o
fantástico palácio episcopal, construído há cem anos pelo arquiteto catalão
Gaudí, foi transformado em Museo de los Caminos e é um monumento que vale a pena
ser visto.
A catedral, em estilo gótico, foi
construída no século XV ao lado da catedral mais antiga, do século XI, que
estava quase desabando. Em seu interior vale a pena observar a imagem de São
Tiago vestido como peregrino. Em seu exterior chamam a atenção as cegonhas
desafiando os fortes ventos em seus ninhos construídos sobre as pontiagudas
torres góticas da catedral.
Em Astorga unia-se ao tradicional Caminho
Francês, a antiga rota de peregrinação conhecida como Via de la Plata. Na época
áurea das peregrinações, a cidade chegou a contar com vinte e dois Hospitais
para acolher os peregrinos.
A proximidade de três monumentos
gigantescos, a muralha, a catedral e o palácio, lado a lado, em estilos
arquitetônicos tão diversos, representando três épocas tão diferentes da
história do Caminho, faz cair sobre o peregrino, de uma só vez, dois mil anos de
História.
Foncebadón a 228 km de Santiago
Cinco quilômetros antes de
Foncebadón o peregrino passa por Rabanal del Camino, antigamente denominada
Raphanellus. Esta cidade tornou-se famosa por Ter sido o local do casamento da
filha de um rei mouro com o cavaleiro andante Anseis de Cartago, da corte de
Carlos Magno. O fato foi imortalizado ao ser contado e cantado no poema épico
medieval "Crônica de Anseis".
Do antigo povoado de Foncebadón, que já foi
importante e famoso durante a Idade Média, nada mais resta que uma
cidade-fantasma, montes de ruínas abandonadas, e o antigo cruzeiro de
ferro.
Aqui começa a região conhecida como El
Bierzo, transição entre as províncias de León e Galícia.. Desde o século VI, em
El Bierzo floresceu o maior foco de eremitismo e monasticismo da Espanha, sob a
inspiração de São Fructuoso, natural desta região.
Em fins do século XI, um monge eremita
chamado Guacelmo fundou aqui uma igreja, um hospital e um refúgio para os
peregrinos que atravessavam esta deserta e inóspita região. Em reconhecimento
por sua dedicação e seu esforço, o rei Alfonso VI, de Castela e León, concedeu
ao monge o "senhorio" do lugar.
No alto do monte Irago, a dois quilômetros
de Foncebadón, sobressai no fundo azul do céu o alto cruzeiro de ferro plantado
por Guacelmo para orientar os peregrinos que se perdiam nas montanhas durante as
nevadas. A cruz de ferro, já oxidada, ergue-se sobre um poste de madeira com
cinco metros de altura. Cada peregrino que se dirige a Santiago, e cada
caminhante galego que por ali passa, atira uma pedra ao pé da cruz. Ao longo dos
séculos, os milhões de pedras ali aremessadas formaram uma colina artificial com
alguns metros de altura, que continua crescendo até hoje.
Ponferrada a 202 km de Santiago
Pouco antes de Ponferrada, o
peregrino passa por El Acebo, uma das poucas aldeias que ainda não se tornou
fantasma nesta abandonada região. Esta pequena aldeia foi privilegiada durante
muito tempo por ajudar os caminhantes. Pois seus habitantes eram isentos do
pagamento de impostos desde que mantivessem cravadas durante o inverno
quinhentas estacas ao longo do Caminho, para assinalar ao andarilho o trajeto
através das montanhas cobertas de neve.
Há sinais arqueológicos de que a região de
Ponferrada era habitada desde a época pré-romana. O local havia sido um centro
de mineração de ferro. Porém os primitivos aldeamentos haviam sido abandonados
há muito tempo quando em 1185, Fernando II, rei de León, repovoou a vila e a
entregou à Ordem dos Templários. Naquele tempo o local era ocupado apenas por
uma secular floresta de carvalhos
Nesta mesma época, em fins do século XII, o
bispo Osmundo, de Astorga, construiu sobre o rio Sil a pons ferrata ou puente
ferrada, isto é, a "ponte de ferro", que deu nome à cidade e substituiu a antiga
ponte de madeira. Na região de Ponferrada as cruzes que indicam a rota do
peregrino são todas de ferro.
Os cavaleiros Templários e sua ordem
militar foram banidos em 1312, porém a gigantesca fortaleza por eles construída
permanece inalterada até hoje. É um monumento imponente e impressionante, que
domina a parte alta da cidade. Suas muralhas com ameias, suas torres, a ponte
levadiça, tudo recorda ao peregrino as antigas histórias dos cavaleiros andantes
da Idade Média. Na verdade o castelo é própria imagem viva do modelo que
imaginamos como corte do rei Arthur com sua távola redonda.
Em 1498 os reis católicos, Fernando de
Aragão e Isabel de Castela, fundaram o famoso Hospital de la Reina para acolher
os peregrinos que chegavam a esta cidade.
O Cebreiro a 152 km de Santiago
O Cebreiro, no alto das
montanhas que separam as províncias de León e Galícia, foi um dos primeiros
refúgios a acolher os peregrinos que se dirigiam a Compostela. Seu templo é do
século IX, e pode ser considerado "moderno", se comparado às palhoças de pedra e
sapé, que são muito anteriores à Era Cristã. Este local é povoado desde 1500
a.C.
No ano 1072, o rei Alfonso VI, de León e
Castela, entregou seu Hospital do Cebreiro aos cuidados dos monges da abadia de
Saint Geraud d’Aurillac. O local esteve sob o controle dos beneditinos por oito
séculos, até que estes o abandonaram em 1854.
A história do Santo Milagre do Cebreiro é
uma das mais famosas do Caminho. No início do século XIV, um modesto camponês da
aldeia de Baixamaior subiu as montanhas para assistir a missa no Cebreiro. A
missa foi celebrada por um monge de pouca fé, que, apesar de ter sido um dia de
fortes ventos e chuvas, despreza o sacrifício do camponês. O sacerdote, ao vê-lo
chegar, murmurou "Que burrice! Fazer esta caminhada com este clima, só por causa
de um pouco de pão e de vinho." Porém, sob o olhar admirado de todos os
presentes, no momento da consagração, a hóstia transforma-se em carne, e o vinho
em sangue. Não em sentido simbólico, mas de maneira real e concreta. Os
peregrinos que assistiram o milagre com presteza incumbiram-se de divulgá-lo. O
fato, séculos mais tarde, inspirou um dos trechos da ópera Parsifal de
Wagner.
O cálice em que ocorreu o milagre é uma
peça de arte românica do século XII, e encontra-se exposto na igreja do Cebreiro
até hoje. Ao seu lado o peregrino pode ver o relicário que foi doado pelos reis
católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, quando fizeram sua
peregrinação a Compostela em 1488.
Todo dia 9 de Setembro, por ocasião da
festa do Santo Milagre, milhares de fiéis de toda a região reúnem-se no Cebreiro
para as festividades religiosas.
Triacastela a 130 km de Santiago
Seu nome, de origem latina,
significa "três castelos". A cidade cresceu ao redor de um mosteiro fortificado,
dedicado a São Pedro e São Paulo, construído no século IX, nas encostas do monte
Seiro, pelo conde Gatón, de El Bierzo.
Triacastela ainda conserva intacto o antigo
cárcere de peregrinos em cujas paredes podem ser vistas inscrições e desenhos de
galos feitos pelos prisioneiros de origem francesa.
Durante a Idade Média os peregrinos que
passavam por Triacastela levavam uma grande pedra calcária, mineral abundante
nesta região, porém raro no resto da Galícia. Esta pedra era carregada até
Castañeda, a cerca de quarenta quilômetros de Santiago, onde estavam situados os
fornos de cal que forneciam material para a construção da Catedral de
Compostela. Eram os chamados peregrinos petríferos.
Pouco além de Triacastela encontra-se a
milenar Basílica de Samos, uma das mais famosas do Caminho. Foi fundada no
século VI, quando a região era dominada pelos suevos, e seus monges seguiam as
regras de São Fructuoso. No século IX aqui passou sua infância e adolescência o
rei de Astúrias, Alfonso II, o Casto, e na época o mosteiro acolheu os monges
fugidos da Andaluzia invadida pelos árabes. No ano 934 a importância da abadia
foi renovada sob os monges beneditinos trazidos pelo rei Ordoño II, de León.
Logo tornou-se um dos maiores centros culturais da Europa medieval, e estendia
seu poder a centenas de vilas e aldeias.
O mosteiro incendiou-se em 1558, e
novamente em 1951, e em ambas as ocasiões perderam-se manuscritos e documentos
antigos de valor inestimável.
Após passar por Samos, chegando a Sarria,
ali morreu o rei Alfonso IX, de León, quando ia fazendo sua peregrinação a
Compostela em 1230.
Portomarín a 89 km de Santiago
Nos tempos do Império Romano o local era denominado Pons
Minei (Ponte do Minho) ou Portus Minei (Porto do Minho).
Nas crônicas dos séculos IX e X, já assume o nome de Locum
Portomarini. A antiga ponte que cruzava o rio Minho foi destruída por
Doña Urraca, de León e Castela, em suas lutas contra o ex-marido Alfonso I, o
Batalhador, rei de Aragão e Navarra. Pouco tempo depois, em 1120, a ponte foi
reconstruída por Pedro, o Peregrino, sobre o qual nada se sabe. Os principais
marcos históricos de Portomarín são a igreja de San Pedro, consagrada em 1182, e
a igreja de San Juan, também do século XII, construída no velho estilo românico
conhecido como igreja-fortaleza. Nos arredores da cidade está o mosteiro de
Vilar de Donas, onde eram sepultados os Cavaleiros de Santiago. Na margem
esquerda do rio erguia-se o antigo mosteiro de Santa Cruz de Loyo, dos
cavaleiros templários, de cujos vinhedos se obtém o tradicional aguardente de
Portomarín. No domingo de Páscoa era celebrado o "dia do aguardente", ocasião em
que a bebida era destilada na praça central, até o anoitecer.
Em 1962 a cidade histórica foi inundada pelas águas represadas
do rio Minho. Porém, antes que isto acontecesse, as igrejas de San Juan e de San
Pedro, os palácios do Conde de la Maza (do século XVI) e dos Pimenteles (do
século XVII), e a capela da Virgen de las Nieves, foram demolidos
cuidadosamente, suas pedras numeradas uma a uma, e a seguir reconstruídos, em um
trabalho de paciência infinita, pedra por pedra, onde hoje está situada a cidade
nova, em um ponto mais alto da margem do rio. Quando as águas baixam ainda se
vêem as casas da antiga cidade, os tocos das antigas vinhas e os restos da velha
ponte secular.
Saindo de Portomarín, o peregrino chegará a Palas de Rei ou
Palas del Rey, denominada Pallatium Regis pelos romanos, isto é,
"palácio do Rei". Provavelmente seu nome é referência ao rei visigodo Witiza
(701 - 709), que ali viveu há 1300 anos.
Santiago de Compostela
A chegada à catedral de Santiago se dá pela Avenida de los
Concheiros, onde antigamente os concheiros, ou seja, os artesãos que
fabricavam conchas de prata ou de latão, vendiam suas mercadorias aos
peregrinos. O trajeto continua até a Puerta del Camino ou
Porta Francigena, que tem este nome por causa dos peregrinos franceses, e
chega ao Crucero de Bonaval, local em que um peregrino
medieval, que iria ser enforcado por seus delitos, invocou Nossa Senhora
suplicando que sua morte fosse rápida e sem sofrimentos. Imediatamente o
peregrino caiu morto, escapando assim do enforcamento.
Chega-se finalmente à Puerta Santa, no fundo da
Catedral, datada de 1611, e que só é aberta no Ano Santo. Esta é uma das sete
portas menores da catedral, e era chamada antigamente de Puerta de San
Paio, depois Puerta de los Perdones, e
atualmente PuertaSanta. É a única que mantém sua originária
função. Abre-se no dia 31 de Dezembro que antecede, e permanece aberta até o dia
31 de Dezembro que encerra o Ano Santo. Embora não seja necessário passar por
ela para se obter a indulgência, este é um antigo costume que se mantém até
hoje.
No altar maior da catedral o peregrino encontra, lado a lado,
três imagens de São Tiago que ilustram as três facetas do culto ao apóstolo:
Tiago, o Mestre, Tiago, o Peregrino e Tiago, o Cavaleiro.
Caso a Puerta Santa esteja fechada, entra-se pela
frente, pelo Pórtico de la Gloria, verdadeira obra-prima da arte
românica, esculpida pelo Maestro Matteo (1168 - 1188). Segundo uma tradição
cujas origens perdem-se no tempo, o peregrino que chega a Santiago deve colocar
a mão direita no pilar central do Pórtico da Glória para agradecer o sucesso da
longa viagem. Este pilar representa esculpida a árvore genealógica de Cristo e é
o símbolo da origem humana de Jesus. Sobre seu capitel há uma imagem de São
Tiago e, em sua base, uma face esculpida, que acredita-se ser um "auto-retrato"
do próprio Maestro Matteo. Tradicionalmente o peregrino deve aí encostar sua
cabeça, para assim iluminar seus pensamentos.
Neste pilar, no local em que milhões de mãos peregrinas tocaram
a coluna expressando sua fé, ao longo dos séculos formou-se a impressão de uma
mão, em que se encaixam perfeitamente os dedos do peregrino. Estes infinitos
andarilhos que com seus pés esculpiram o Caminho e com seu suor esculpiram a
História de todo o norte da Espanha, com seus dedos e com a força de seu
espírito até hoje continuam escavando a forma de uma mão na rocha deste
pilar.
A Tradução da Compostella
O peregrino que chega a Santiago, ao completar sua caminhada,
recebe seu certificado na Oficina de Peregrinos da Catedral. Este
"diploma", conhecido como Compostella, é escrito tradicionalmente em
latim.
Por este motivo muitos peregrinos guardam com carinho seu
certificado, e apesar disto, ficam sem saber o que nele está escrito.
É esta sua tradução:
"O capítulo desta Venerável Igreja Apostólica e
Metropolitana Compostelana, guardião do selo do Altar do Bem-aventurado Apóstolo
Thiago, que a todos os Fiéis e Peregrinos vindos de todo o Orbe terrestre, por
sentimento de devoção ou por motivo de promessa, à morada de Nosso Apóstolo
Patrono e Protetor dos Espanhóis, São Thiago, fornece autêntico certificado de
visitação, a todos e a cada um que vier examinar esta presente, faz saber que
....................... visitou devotamente este sacratíssimo Templo por motivo
de fé. A ele confiro o presente documento como testemunho, munido do selo desta
mesma Santa Igreja.
Data de Compostela, dia ... do mês de .... do ano do Senhor
.... .
Secretário
Capitular"
E no selo do documento está escrito:
"Selo do Capítulo de São Thiago de
Compostella"
409 - Os suevos e vândalos invadiram a península
Ibérica. Os suevos fundaram o reino da Galícia e os vândalos o da Vandaluzia,
atual Andaluzia. 410 - Alarico, rei dos Visigodos saqueou Roma. 415 -
Ataulfo, chefe visigodo, cunhado de Alarico, invadiu a Espanha. 711 - Os
muçulmanos invadiram a Espanha. O líder visigodo Pelayo venceu os mouros em
Covadonga, iniciando a Reconquista (nas Astúrias) |