2024 - CAMINHO DE SANTIAGO FRANCÊS – PAMPLONA a SANTIAGO DE COMPOSTELA: 730 QUILÔMETROS EM 28 DIAS
2024 - CAMINHO DE SANTIAGO FRANCÊS – PAMPLONA a SANTIAGO DE COMPOSTELA: 730 QUILÔMETROS EM 28 DIAS
O Caminho de Santiago tem o poder mágico de encantar as pessoas, talvez pela sua história, ou, então, pelo contato direto com outros peregrinos, que provém de todas as partes do mundo. Um roteiro místico que, em seus 800 km, percorre 5 grandes cidades e inúmeros povoados, cada um com sua própria gastronomia e tradições. Dessa forma, ele nos oferece variados atrativos, envolvendo catedrais, muralhas, natureza preservada, plantações de trigo e vinhedos a perder de vista, e um povo acostumado a receber bem e respeitar os peregrinos. Talvez por essas razões, resolvi retornar novamente ao Caminho no ano em curso, final de setembro e, confesso, foi uma das melhores decisões que já tomei em minha vida.
No global, foram 28 dias caminhando, e uma coisa é certa: mesmo que você seja ateu, é impossível percorrer esse itinerário a pé e não sentir uma energia diferente, pois, incrivelmente, há uma força mística que te insuflará e o acompanhará durante todo o percurso. Algo, evidentemente, muito forte!
Na jornada inaugural você conhece muitas pessoas, contudo, como cada um tem seu ritmo, ao longo dos dias acabamos nos encontrando e nos desencontrando de muita gente, das mais variadas nacionalidades. Mas, em minha opinião, o que realmente marca os peregrinos é a introspecção. Ainda, a maioria deles se sente fragilizado emocionalmente depois de vários dias longe de seus familiares, e é inevitável essa lembrança, sempre acompanhada de intensa saudade.
É certo que as pessoas que estão no caminho o fazem por objetivos diferentes, mas de uma forma ou de outra entendem esse significado maior que, “no frigir dos ovos”, é comum a todos. Assim, rapidamente, descobrimos que os quilômetros são esclarecedores. Enquanto caminhamos, passamos por uma verdadeira imersão de valores, pois só precisamos nos preocupar com o local onde vamos pernoitar e as nossas refeições. O restante do tempo é dedicado a pensamentos e reflexões. Nesse diapasão, a sensação de absoluta liberdade e desconexão do mundo é maravilhosa, e vivemos apenas o momento presente.
Uma coisa muito legal que aconselho, é despachar a mochila. Há um serviço disponível que passa todas as manhãs nos albergues e hotéis, apanha as bagagens e as transporta para o seu próximo destino. Assim, você não precisa carregar tanto peso e pode curtir e contemplar o trajeto com maior acuidade.
A Catedral de Pamplona, século XIII.
O MEU CAMINHO
Premido pela escassez de tempo, desta vez eu parti de Pamplona que, cercada por um conjunto de muralhas do século XVI, honra o status de primeira grande cidade do percurso, pois nela habitam mais de 200 mil almas. Sob o sugestivo nome de “Alto del Perdón”, o principal marco entre Pamplona e Puente la Reina abriga um grande parque eólico em seu cume. Sofri um pouco na subida e muito na descida, face à imensidão de pedras soltas que encontrei nesse perigoso trecho. Estella, meu destino do no segundo dia de caminhada, foi o mais importante pouso para peregrinos no século XI. Em Los Arcos, me permiti novamente me embasbacar com a abundância de ouro no altar da igreja de Santa Maria. Mais à frente, após transitar por Sansol, Torres del Rio e Viana, logo adentrei à Província de La Rioja, cuja capital é Logroño. Uma cidade que encanta por suas esquinas de ângulos retos, ruas com arcadas e catedral portentosa. Situada 4 dias depois de Pamplona, novamente outra cidade grande (155 mil habitantes), mas com verve acolhedora.
Transpondo o "Alto del Perdón."
Na jornada sequente, próximo de Nájera, onde pernoitei, fui surpreendido por um temporal e cheguei ensopado à cidade. Nesse dia, por obra do acaso, quando fui almoçar, conheci o Carlos (Cali), um peregrino argentino que reside em Bariloche, e uma garrafa de vinho dividida, parcimoniosamente, selou nossa amizade. Destino da próxima etapa, de 22 km, Santo Domingo de la Calzada, que leva fama por sua catedral. No dia seguinte despertei animado e, depois de 24 km percorridos, cheguei em Belorado, ainda que sob um céu plúmbeo e chuviscos intermitentes. Nessa cidade, eu reencontrei o Cali, debutante em longas caminhadas, e após um franco diálogo e troca de experiências, pois era o meu 5º Caminho Francês, decidimos unir forças e seguir juntos dali em diante. Relativamente tranquilas, as etapas posteriores cruzam imensos bosques e plantações de eucalipto. Assim como em Pamplona, a chegada a Burgos (180 mil habitantes) é plena de muito verde, se feita às margens do Rio Arlanzón.
Monumento ao Peregrino, em Burgos.
Geograficamente, Burgos marca a entrada do Caminho dentro da região conhecida como Mesetas. Desnuda de vegetação e plana a ponto de receber este nome, varia entre 700 e 800 m de altitude. Árida e melancólica, esquenta muito no verão e esfria demais no outono e no inverno. Nesse intermeio, que monta 180 km até León, a Meseta nos recebeu com violência, pois, contrariando a famosa monotonia do trecho, fomos castigados por violentas rajadas de ventos e água que o céu vertia em abundância, fruto da passagem do furacão Kirk pela Europa Ocidental. Em Carrión de Los Condes, tive um pernoite pleno de comemorações, vez que neste local eu ultrapassei a metade do meu Caminho. Aquele momento brindei por um bom motivo: minhas pernas já haviam percorrido mais de 350 km. A chegada à cidade de León é um tanto desagradável, pois se cruza uma periferia industrial melancólica. Contraste absoluto com o centro dessa bela urbe de 130 mil habitantes, outra preciosidade do trajeto, fruto de sua majestosa catedral.
Diante da Catedral de León.
De León caminhamos até Hospital de Órbigos (33 km), sob um vento gelado, e no dia seguinte chegamos em Rabanal del Camiño (40 km), depois de transitar por Astorga. Subir sempre e, sob chuvas devastadoras, foi o mandamento para sair dos 1.155 m de altitude de Rabanal até o Alto del Altar, a 1.515 m. Até lá, fizemos algumas paradas quase obrigatórias, uma delas 6 km depois, já em Foncebadón, para tomar café. A vilazinha, que estava em ruínas quando ali passei pela primeira vez em 2001, renasceu e é boa alternativa de pernoite. Pouco menos de uma hora nos levou à famosa Cruz de Ferro, sobre um mastro de madeira de 5 m de altura. Ponto místico, está coberta por uma montanha de pedras e outras memórias trazidas por peregrinos. A tradição manda que se lance a pedra de costas, para simbolizar o que foi deixado para trás. Para o trecho seguinte, apenas uma frase: descer é pior do que subir. Sob um clima inóspito, de Manjarín, a 1.500 m de altitude, baixamos até Molinaseca, a 610 m, para passar a noite, onde aportei exausto e com dores excruciantes nos membros inferiores.
Na famosa Cruz de Pedra, sob frio e intensa chuva.
Deixamos o local de pernoite antes do amanhecer e após 8 km transitamos pela extensa Ponferrada, outra cidade grande (quase 70 mil habitantes), onde fotografei o grandioso e preservado Castelo Templário do século XII. O trajeto até Villafranca revela vinhedos extensos, que dão as boas-vindas à região de El Bierzo. Famosa, porém com algum exagero, a subida até O Cebreiro é complicada, mas factível. Fez diferença nós termos despachado as mochilas, o que se revelou uma ótima decisão. A subida propriamente dita levou cerca de 3 h em ritmo lento, com muitas pausas contemplativas, com a sensação de renascer, pela entrada na Galícia, e a minúscula aldeia mais parece cenário de filme. No dia seguinte, nós descendemos até Triacastela, e todo o cuidado com os joelhos é pouco, por isso seguimos devagar, atentos e, para piorar, sob uma garoa que não deu trégua. No trecho sequente, nós prosseguimos à direita, por San Xil, e fomos pernoitar em Sarria, uma cidade emblemática por ser o ponto de onde partem, em média, 50% dos peregrinos que recebem a “Compostela”, por estar situada a pouco mais de 100 km de Santiago, distância considerada mínima para ganhar o certificado de peregrinação.
Em Portomarín, diante da igreja de São Nicolás.
Quem começa o Caminho Francês nos quilômetros finais até é brindado com belos cenários, como os plácidos bosques entre Sarria e Portomarín. O trecho de Portomarín a Palas de Rei em seu início, atravessa um grande bosque de “robles”, depois segue quase sempre em terrenos planos. Neste ponto, ficou nítido o aumento de caminhantes, formando uma imensa fila em vários momentos, com predominância de americanos e, surpreendentemente, para mim, de coreanos. Para os peregrinos calejados, um desconforto. Esperava-nos um longo trajeto de 30 km até Arzúa, o dia todo debaixo de chuva – um dos mais desagradáveis da caminhada. Depois do banho e um farto almoço, preparei-me mentalmente para a derradeira etapa. Assim, partimos bem cedo e de Arzúa até Santiago, caminhamos pelo interior de bosques e campos belíssimos, com poucos aclives. No trecho derradeiro, após Lavacolla, restando 10 km para chegar, melancólico, eu segui mentalizando uma compilação dos momentos mais importantes vivenciados no percurso.
Inúmeras são as reações dos peregrinos ao chegar a Santiago. Há quem grite, chore, se abrace diante da Catedral. Em plena Praça do Obradoiro percebe-se êxtase, alegria, alívio, superação. Santiago abriga os restos mortais do apóstolo Tiago após sua morte na Palestina – mas, para além disso, tem vida própria. Com 100 mil habitantes, politizada, universitária, jovem e histórica, a capital da Galícia pulsa. É mais que o fim do Caminho. Alguns, inclinados à espiritualidade, afirmam ser o começo. Seguindo a tradição, adentramos à Catedral e fomos abraçar o Santo Apóstolo e orar em seu túmulo.
Particularmente, eu estava chegando a pé em Santiago de Compostela mais velho e menos emotivo, porém a comoção que nos invade nesse momento é sempre a mesma. Então, à tarde, após o banho e um lauto almoço, fui buscar minha 18ª Compostela, um Diploma que, como os anteriores, guardarei com muito carinho. Por fim, um agradecimento especial ao amigo e peregrino Carlos, um companheiro valoroso, do qual jamais olvidarei.
Com o amigo Carlos (Cali) na chegada.
EPÍLOGO
O Caminho de Santiago é uma das principais ferramentas para o autoconhecimento. É um local maravilhoso onde cada um de nós tem mais possibilidade de encontrar-se com si mesmo, nos levando a vários momentos de transcendência, encaminhando as nossas reflexões, em longos períodos de caminhada a pé e, interiormente, ao verdadeiro sentido da vida de cada um.
Para finalizar, faço minhas as palavras do insigne jornalista e peregrino Ricardo Rangel, autor do livro “O Caminho é o Destino — Uma Crônica do Caminho de Santiago”, que assim se expressou:
“O Caminho de Santiago é o melhor lugar do mundo para quem quer refrescar a cabeça ou pensar. A liberdade é absoluta, cada um faz o que quer, não há decisões a tomar; a vida é simples, barata, descomplicada, escorre sem pressa, cada peregrino no seu ritmo. O Caminho físico é um só, mas cada um tem seu caminho interno, e ninguém dá palpite no caminho de ninguém.
É uma boa metáfora da vida propriamente dita. O começo é inseguro, hesitante, tememos o desconhecido, o esforço e a dor. Por mais gente que haja em volta, estamos sós: cada um tem seu ritmo, pondera questões que são só suas. Enfrentamos obstáculos pequenos e grandes, desfrutamos de breves alegrias e de momentos de elevação.
Fazemos amigos com quem dividimos prazer e dificuldades, que nos ajudam a seguir em frente, tornam a travessia mais fácil; há encontros alegres, ocasionalmente especiais, e raros são desagradáveis (nisto, o Caminho é diferente da vida). E, às vezes, o amor acontece: de curta duração e data certa para acabar, ele tem leveza, premência e entrega incomuns da vida normal.
A rigor, não entendemos o que estamos fazendo ali, mas sabemos que é preciso seguir em frente. A única certeza é que o Caminho vai acabar: se tudo der certo, termina em Compostela, mas pode finalizar a qualquer momento, sem aviso. No processo, erramos, nos perdemos, evoluímos. A experiência do Caminho é profunda e transformadora, e o que se aprende nele permanece como baliza para tudo o que se faz depois.
No começo do Caminho, o peregrino se pergunta, cheio de perplexidade, por que decidiu fazê-lo. Ao concluí-lo, a pergunta não é mais por que, mas quando ele fará o Caminho novamente.”
Bom Caminho a todos!
Outubro/2024
Meu 18º Diploma de Compostela.