A CIDADE DE POTIM/SP: UM GRANDE OBSTÁCULO NA VIDA DOS PEREGRINOS!

 

(Por: Oswaldo Buzzo, caminhante reincidente e autor do livro "O Peregrino de Aparecida")

 

O caminhante que inicia o Caminho da Fé em Águas da Prata, logo na primeira etapa, até Andradas, já é premiado com paisagens incomuns, onde sobressaem bosques silenciosos, verdes pastagens, vistas surpreendentes das montanhas circundantes e, diga-se de passagem, isto é apenas um “tira-gosto” das maravilhas do Criador que o aguardam ao longo do itinerário.

Contudo, mimado por esse primeiro trecho de belezas e de natureza exuberante, o peregrino pode também ser tomado por uma falsa esperança e pensar que o Caminho lhe oferecerá tais favores durante todo o percurso. Deixemo-lo sonhar: o tempo virá muito em breve indicar que lhe será necessário atravessar bairros decrépitos, enfrentar sol abrasador, estradas empoeiradas e chuvas intermitentes, percorrer rodovias asfaltadas e sem acostamento, e descender ladeiras íngremes, onde um simples passo mal dado, poderá resultar em quedas e lesões.

O caminhante, ao fim de algumas horas/dias, percebe outra presença importante: a de seu corpo. Este instrumento de praxe silencioso começa a ranger. Diversas corporações que compõem essa complexa administração se apresentam ruidosamente uma após a outra, começam a reivindicar e acabam berrando todas ao mesmo tempo. A digestão é a primeira a se manifestar com suas bem conhecidas armas: a fome, a sede, a barriga roncando, as tripas se torcendo, impõem uma parada... A musculatura vem em seguida. Não importa o esporte que se faça habitualmente, nunca se treinam os músculos certos. O desportista que abordou o Caminho com a arrogância daquele que já viu de tudo será o primeiro a se surpreender de, apesar de tudo, sentir dor em todo canto. A pele que, em geral, sabe se fazer esquecer se fará lembrar ao caminhante em todos os lugares nos quais algo inche, coce, irrite, fure. Os órgãos desprezíveis, as necessidades, as contrariedades, sobem das profundezas do corpo e acabam ocupando os andares nobres. Interrompem a alegre sarabanda das imagens e dos sonhos, aos quais o peregrino tinha se abandonado no início.

O peregrino, então, age com autoridade. Para afastar as exigências subalternas – às quais, todavia, é forçado a dar respostas práticas -, decide obrigar-se a pensar. Isto se chama refletir. Verifica, então, enquanto vai vencendo as distâncias, que o Caminho é um caminho, só isso. Ele sobe, ele desce, ele é escorregadio, ele provoca sede, ele é bem ou mal sinalizado, ele acompanha estradas ou se perde nos bosques, e cada uma dessas circunstâncias apresenta vantagens – e muitos inconvenientes, também. Em resumo, ao sair do campo do sonho e da fantasia, o Caminho aparece brutalmente como é: uma longa fita de esforços, um recorte do mundo comum, uma prova para o corpo e para o espírito.

Contudo, eufemisticamente, ele também é uma alquimia do tempo sobre a alma. Um processo que não pode ser nem imediato, nem mesmo rápido. Pois o peregrino que encadeia semanas a pé constrói uma experiência com isso. Para além do orgulho um pouco pueril que pode sentir por ter realizado esse esforço considerável, ele percebe uma verdade mais humilde e mais profunda: uma curta caminhada não basta para corrigir hábitos. Conformado, ele intui que o Caminho é duro, mas às vezes tem a bondade de realizar os desejos mais íntimos. Para isto, é preciso saber perseverar.

No entanto, também se dá conta que após calçar as botas, afivelar a mochila e se pôr a caminhar, ele não é mais ninguém, apenas um pobre e modesto peregrino. Aliás, talvez seja essa uma das motivações da partida. De qualquer maneira, este já foi o meu caso quando comecei a peregrinar. Pois à medida que a vida o amolda e carrega-o com responsabilidade e experiências, fica cada vez mais difícil tornar-se outro, abandonar a pesada roupa que seus compromissos, seus sucessos e seus erros recortaram para você. Incrivelmente, o Caminho realiza esse milagre.

De se enfatizar que um peregrino jamais chega a algum lugar. Ele passa, é só. Ao mesmo tempo ele está imerso no local onde se encontra, pois sua condição de pedestre o põe em contato direto com o lugar e seus habitantes, mas ele está terrivelmente afastado deles, pois seu destino é não permanecer. Sua pressa em partir, mesmo que se preocupe em andar devagar, está inscrita em toda a sua aparência. Ele não chega a ser um turista, aquele que visita monumentos, já que a razão da presença do peregrino reside em procurar em outra parte, ao fim de sua busca, a imagem da MÃE MARIA, inserida no átrio do maior templo mariano do mundo: a CATEDRAL BASÍLICA DO SANTUÁRIO NACIONAL DE NOSSA SENHORA APARECIDA.

Dia após dia, o caminhante aprende a conhecer seu velho companheiro, o Caminho. Sabe que ele é humilde, discreto, atropelado pelo mundo moderno. Não é um fanfarrão; acaricia, ao passar, as velhas casas de alvenaria, desce os declives carregando sua cota de lama. O Caminho não tem orgulho, apenas dignidade; não tem presunção, apenas memória. Ele é estreito, sinuoso e perseverante, como uma vida humana.

Os trabalhadores que se movimentam ou residem ao longo do roteiro, presenteiam os caminhantes com frutas e, quase sempre, lhes rogam orações em Aparecida. Pois, incrivelmente, na era da televisão e da internet, o peregrino continua encarnando a circulação das ideias e dos seres humanos. Ao contrário do virtual e do instantâneo que a mídia representa e que provoca a desconfiança ou mesmo a incredulidade, o movimento do peregrino é incontestável. Ele é comprovado pela lama que cola em suas botas e pelo suor que molha sua camisa. Pode-se crer nele. Quando se trata de entregar parte da alma, de recomendar-se às entidades divinas que governam o mundo e nosso próprio destino, o peregrino continua sendo o único ser humano confiável.

Então, após vários dias caminhando, na penúltima etapa, ele atravessa o Horto Florestal de Campos do Jordão, um enclave onde a mata está integralmente preservada, o ar é puríssimo e o percurso extremamente belo e silencioso. Na sequência, após transitar diante da Pousada Santa Maria da Serra, ele principia a descer pela Estrada das Pedrinhas. Trata-se de uma formidável serra, que permite a visão de todo o panorama do vale abaixo. De vez em quando, um mirante se abre para uma imensidão de terras e montanhas, até o horizonte. E ele começa a compreender que as maravilhas do Caminho existem de fato, mas não são permanentes. É preciso procurá-las, alguns dirão merecê-las. Por sorte, se o tempo estiver claro e o sol radiante, será possível visualizar, ao longe, no final de uma longa planície, o Santuário de Aparecida, esmagado por um céu de azul intenso, algodoado de grossas nuvens brancas. Então, animado e esperançoso, o peregrino chega ao seu local de pouso e, expectante, aguarda pelo amanhã, já sonhando o encontro com a MÃE APARECIDA e o encerramento de sua profícua jornada. Mas, alguns entraves importantes ainda sobrevirão.

Na derradeira etapa, se ele pernoitou no distrito de Pedrinhas (Guaratinguetá/SP), o trajeto inicial é feito sobre terra, por uma estrada plana, dotada de uma paisagem circundante extremamente agradável e, marcada, agora, por antigos casarões de fazendas, pequenos sítios, criação de gado, áreas de pastagens entremeadas por alguns capões de mata nativa, e a presença de bares, igrejas e raras pousadas. Então, após percorrer 12 km e deixar a Capela da Misericórdia à direita, o caminhante gira à esquerda e acessa uma rodovia asfaltada excessivamente perigosa e atroz, pois não contém acostamento e nem belezas naturais. Nela, os veículos desenvolvem expressiva velocidade, colocando em risco máximo a integridade das pessoas. Nessa toada, caminha-se o tempo todo apreensivo com a segurança pessoal, porque o fluxo motorizado é intenso e produz inquietação. Também, o barulho ininterrupto vivenciado no percurso, faz com que nossa atenção se volte permanentemente para o exterior, desaparecendo, por conta disso, toda a introspecção e tranquilidade desfrutadas nas jornadas pretéritas.

Percorridos mais 5 km tensos e desgastantes, o peregrino adentra na área urbana da cidade de Potim/SP, mas o que encontra nesse intermeio doloroso, o entristece ainda mais. Porque o itinerário nesse trecho vai lhe parecer monótono e deprimente. Dito isto, o peregrino não é um turista, lembremos. Ele não tem o direito de exigir o sublime em estado permanente, e se algumas jornadas o mimaram com suas constantes belezas, não é motivo para acreditar no direito de reivindicar o mesmo de outras etapas. Porém, as ruas que se abrem à sua frente, parecem ter sido construídas, exclusivamente, para o motor e o pneu. As pernas e as solas não são bem-vindas nesse espaço.

Ali, cães abandonados, esses nossos pobres irmãos desamparados, vagueiam a esmo pelas ruas, deixando dejetos pelas imediações, um brinde que adere facilmente ao solado das botas/tênis de peregrinos distraídos. As calçadas, com pisos terrivelmente irregulares, um tormento para nossos pés, estão tomadas por sacos de lixo depositados ao léu e, quase sempre, abertos ou rasgados pelos animais livres, obrigando o caminhante a se desviar desses excrementos e acessar o leito da rua. Uma grande ameaça à sua segurança física, pois o trânsito urbano também é caótico e desordenado, com carros e motos trafegando em alta rotação, bicicletas transitando em direção contrária, etc... Tudo concorrendo para obstaculizar os passos apressados do peregrino que, esbofeteado em seus valores cívicos e morais, se sente grogue. Em seguida, conforma-se com seu destino e acelera a marcha, pois quer se ver o mais longe possível deste babélico cenário.

Porém, após encerrar seu trâmite por essa conturbada povoação, atravessar a ponte sobre o rio Paraíba do Sul e adentrar ao município de Aparecida, melhor sorte não o aguarda vez que, de pronto, ao tentar utilizar uma calçada lateral, à direita, que poderia minimizar os riscos que seus passos correm, a encontra matosa e eivada de entulhos. Então, o pobre caminhante, prossegue esmorecido e açoitado pelos ruídos citadinos, desviando-se de carros estacionados sobre calçadas públicas, rezando para não ser atingido numa esquina qualquer.