Em outubro de 2019 eu percorri o Caminho do Mar em Portugal, um roteiro maravilhoso, que une Lisboa a Fátima, num total de 240 quilômetros de extensão, que venci em 8 etapas. Conforme adredemente planejado e depois de revisitar todo o enorme e carismático complexo que abriga o Santuário, eu, inicialmente, embarquei num ônibus e, posteriormente, num trem que, finalmente, me levou à cidade de Ponferrada, situada no Caminho Francês, “Marco Zero” do Caminho de Inverno.
De se ressaltar que o O Caminho de Inverno é a rota jacobeia que une Ponferrada a Santiago de Compostela pelo vale do rio Sil, através do qual cruza ou rodeia a serra oriental galega, por cotas mais baixas que o Caminho Francês. Daí a origem do seu nome, pois além desse caminho ter sido utilizado, historicamente, por legiões romanas, arrieiros medievais e pelas tropas napoleônicas, também servia de passagem aos peregrinos em épocas invernais, que objetivavam evitar como nevas de O Cebreiro, habituais nos meses mais frios, e pelos frequentes transbordamentos do rios que compõem o vale de Valcárce. Com 270 quilômetros de traçado, esse roteiro se apresenta como uma grande alternativa ao Caminho Francês, ainda que sua extensão seja, aproximadamente, 60 quilômetros maior. E, desde sua bifurcação em Ponferrada, seu traçado não volta a confluir com o itinerário Francês, apenas, entronca-se em Lalin-A Laxe, com a Variante Sanabresa da Via de La Plata. Ademais, além de seu passado milenar, ele é também uma rota de grande futuro, porque apresenta fatores chaves, como sua proximidade de Santiago (desde Ponferrada podemos chegar a Compostela em apenas 9 jornadas), uma massificação crescente dos outros caminhos, assim como os atrativos paisagísticos e culturais que oferece. O número de peregrinos que elege esse caminho, aumenta ano após ano, sobretudo, por aqueles que já realizaram o Caminho Francês e querem cambiar de paisagens, ou reincidentes que desejam evitar o bulício das rotas mais concorrentes. Assim, apesar de se tratar de um caminho ainda minoritário, é bastante comum encontrar outros peregrinos nesse roteiro.
Bem, o clima na Espanha no final do outono, via de regra, é extremamente inconstante, tanto que na noite anterior à minha saída de Ponferrada, choveu torrencialmente e, quando parti de manhã, ainda caía uma fria garoa. O tempo alternou pancadas de chuva e sol nos dias sequentes, porém havia previsão da chegada de uma intensa frente fria, acompanhada de tempestades, em breves dias.
Assim, no final da 5ª jornada, com o tempo já transmutando, eu pernoitei na cidade de Chantada, onde cheguei integralmente ensopado, após enfrentar uma fortíssima pancada de chuva nos 3 quilômetros derradeiros; e o mau tempo prosseguiu à tarde e noite afora.
No dia seguinte, deixei o local de pernoite às 6h30, sob um clima frio, neblinoso e chuvisquento. Inicialmente, segui caminhando pelo acostamento de uma rodovia, contudo 900 metros adiante, eu deixei o piso asfáltico e adentrei à esquerda, onde acessei uma larga estrada de terra, num trajeto fresco, plano e neblinoso, que me levou até a cidade de Penasillás, onde cheguei depois de percorrer 7 quilômetros, por um itinerário que ascendeu desde a minha partida, mas, sempre lentamente.
No local há comércio, porém encontrei tudo fechado e só me restou seguir em frente, ainda por estradas rurais, mas já em forte aclive, contudo, a cada outeiro superado, sempre surgia um pequeno planalto, onde eu aproveitava para recuperar o fôlego e as forças.
E sem grandes novidades, percorridos mais 3 quilômetros, o caminho se nivelou e eu passei a caminhar sobre uma rodovia vicinal asfaltada, pela qual prossegui em lenta ascensão até o topo da serra de Faro, onde cheguei depois de caminhar 14 quilômetros. Esse lugar, situado a 1.153 m de altitude, fica junto a um grande conjunto de torres captadoras de energia eólica e que faziam um grande barulho quando por ali passei, posto que ventava forte.
Edificada a 400 m desse local, encontra-se a ermida de Nossa Senhora de O Faro, que me aguardava como a milhares de peregrinos que ao longo dos séculos a ela acudiram pedindo seus favores e sobre esse local, João de Requeixo, em suas cantigas medievais, no século XIII, menciona os milagres atribuídos a esse templo de origem românica.
O esforço para ali chegar é recompensador, porque dali é possível contemplar uma das mais famosas vistas do Caminho do Inverno, com os sopés das quatro províncias galegas, formadas pelo maciço de Courel, os Ancares, Peña Trevinca, Cabeza de Manzanede e monte Farelo. Trata-se de um ponto geográfico que, além de fazer limite com as províncias de Ourense, Lugo e Pontevedra, tem a declaração de Lugar de Importância Comunitária (LIC).
Infelizmente, não encontrei placas ou indicações de onde estava tal capela e, para me desanimar, caía uma fina e fria garoa quando por ali transitei, bem como havia forte neblina ao redor do cume obstando minha visão do entorno, de forma que, após fazer uma pausa para hidratação numa área de descanso, onde há bancos e mesas de pedra, resolvi prosseguir adiante.
E o fiz em forte, fácil e contínuo descenso, primeiramente, por uma rodovia vicinal, depois, por uma larga estrada de terra cascalhada. Durante o longo declive, o clima melhorou e abriu-se uma paisagem de grande beleza, com espetaculares vistas panorâmicas, e me levou até uma ponte que cruza, rapidamente, esse corredor, para me introduzir, através das terras de Camba, no Concelho de Rodeiro.
Percorridos 20 quilômetros, passei pela povoação de Vilanova de Camba, depois, alternando trechos em terra com outros sobre piso asfáltico, transitei, sucessivamente e ainda em leve descenso, por A Ermida de Camba, A Feira e Mouriz, sendo que esta, no global, foi uma etapa plenamente rural e muito interessante, paisagisticamente falando, e o ascenso e posterior declive da serra de Faro, o teto do Caminho de Inverno marcam o transcorrer dessa jornada.
Sob um céu enfarruscado e após caminhar 28 quilômetros, eu aportei à cidade de Rodeiro, onde habitam, aproximadamente, 3 mil almas, e recebi imensa simpatia do povo ali residente. Num bar, onde fui tomar informações sobre o local de pernoite, o gentil proprietário, primeiramente, me ofertou um copo de água, depois me gratificou com uma taça de vinho, afirmando que agia dessa forma com todos os peregrinos.
A cortês proprietária da pensão onde me hospedei neste dia, me destinou um amplo apartamento localizado no 4º andar de um novel edifício e, além de me advertir sobre a frente chuvosa que deveria chegar à noite, me ofertou carona para o dia seguinte até Lalin, onde iria fazer compras, se a intempérie detivesse meus passos, pois não havia trem ou ônibus que trafegasse em direção à essa localidade, final de minha próxima etapa.
No centro de Rodeiro, uma escultura que homenageia o nome da cidade.
No supermercado, onde após o banho eu fui adquirir água e vinho, a conversa era sobre a aguardada mudança de clima, e o assunto era o mesmíssimo no Restaurante Casa Sánchez, onde almocei. Caía um chuvisco gelado quando deitei para descansar, porém às 16h30, ao me levantar, havia luz e intensa umidade, mas não garoava.
Animado, fui visitar o centro da cidade, onde se destaca a preciosa Casa do Conselho, antiga Fortaleza de Rodeiro (século XIV). Diante dela há uma bonita fonte de pedra, com quatro canos, e do outro lado a pequena igreja de São Vicente, românica de origem, do século XII, ainda que reformada posteriormente. A atual Casa Consistorial foi antigamente uma fortaleza: a Torre de los Camba. Próximo a ela, no meio de uma rotatória, há um monumento à roda, possivelmente, relacionado a origem do nome da vila.
Porém, meu objetivo principal era conhecer a Padaria Jesus, onde, desde várias décadas, o pão consumido pela “família real espanhola” sai desse estabelecimento situado no centro desta minúscula urbe. Toda semana são enviadas ao palácio de Zarzuela (Madri), ou ao palácio de Marivent (Malloca), durante as férias dos monarcas, uma embalagem com várias pítiças de 1,5 kg, cozidas em forno com lenha de carvalho, assim como, também, roscas, tortas de amêndoa caseira e empanadas feitas com panceta e linguiça. Os pães artesanais por eles fabricados são, nunca foi melhor dito, um “manjar dos reis”, ainda que ao alcance, também, dos plebeus e peregrinos.
Enquanto fotografava o decantado local, principiou a trovejar e eu, prudentemente, bati em retirada. Antes, passei no supermercado onde adquiri víveres para o lanche da noite e o café da manhã. E, claro, uma “botella” de um excelente vinho tinto. Depois, corri me albergar.
Por sinal, o apartamento onde fiquei alojado, além de espaçoso, continha uma imensa porta de vidro para acesso à sacada, oferecendo ampla visão do horizonte ao redor. Havia um sofá que posicionei diante desse lugar privilegiado, depois, abri a garrafa de vinho e coloquei meus acepipes à mão. Então, me sentei para apreciar o dantesco espetáculo que se desenhava, pois o vento fustigava raivosamente o topo das árvores, soprando velozmente no sentido oeste-leste, e eu estava situado, exatamente, ao lado desse corredor.
Olhando à esquerda, ao longe, observei que o céu estava sendo invadido por nuvens escuras vindas do sul e que iam projetando no local as suas sombras móveis, como esquadrilhas de aviões ciclópicos. Uma enorme massa de “nimbostratus” repontava no horizonte, mais pretas, mais escuras, mais ameaçadoras, dessas que trazem no seu bojo a artilharia pesada de longo alcance. Calculo que até uns 300 m de altura havia calma e daí para cima já dominava o temporal, a julgar pela velocidade, e frequente mudança de direção das nuvens que iam progressivamente baixando de altitude ou talvez, tornando-se mais espessas, face à baixa pressão atmosférica vigente. A esse tempo, a ventania era furiosa na cidade. Curvava as árvores despindo-as das folhas que, rodopiando, eram lançadas sobre o asfalto. Na verdade, o início de mais um desses eventos inesperados, que nos confrangem o coração.
Na Europa, nessa época, normalmente, há luz até às 22 horas, porém, naquele dia, às 18 horas era noite fechada e raios ziguezagueavam riscando o céu, em todas as direções. O teto baixo das nuvens espalhava a tristeza de um crepúsculo amarelado sobre a paisagem outonal e a quietude outrora vigente, transmutara-se em pandemônio. O silêncio fora substituído pelo fragor do ciclone em gestação, naquele cenário, sob uma iluminação mortiça, precursora do cataclismo.
A Natureza executava, ante a cena exposta num palco infinito, a abertura de uma alucinante tragédia. Entes humanos, animais domésticos, a vegetação rasteira e as árvores que se torciam sob a fúria demoníaca do vendaval, sentiam o pavor das forças incoercíveis e cegas do universo. Nesse ínterim, endemoniados raios sulcavam os espaços e os trovões faziam tremer os alicerces das habitações.
E o sinal do gongo soou, meio segundo depois do relâmpago que rasgou o velário das nuvens como uma serpente de fogo, desde o zênite até uma grande árvore, situada a não mais de 200 metros. A explosão desfez o equilíbrio estático em que pairavam as nuvens e estas se desfizeram em cordões de água. Densa, violenta, cerrada, diluviando desde as alturas sob ritmo furioso, a tempestade atingiu a cidade com um rugido ensurdecedor. Veio subindo em minha direção, num dilúvio branco, aproximando-se em diagonal e as rajadas de vento jogavam-na em torrentes para a frente e para trás ao longo de sua trajetória.
A visão de poucas dezenas de metros era obstada pelo cerrado aguaceiro, que rodopiava invadindo as dependências das casas vizinhas, onde o fechar das janelas e o bater das portas, produziam estalos ou ruídos que arrepiavam a pele, fazendo vibrar meus nervos hiperestesiados.
Particularmente, estava amedrontado, ouvindo a água e o vento uivando pelas frestas. Porém, nada há de tão gostoso como encontrar-se perfeitamente abrigado numa noite tempestuosa. O intenso martelar dos pingos ressoando sobre a cobertura da sacada assumiam proporções musicais, e eu me sentia singularmente bem, por estar protegido.
Contudo, a tempestade pavorosa parecida não ter fim e às 20 horas quando fechei as cortinas e me deitei, ela ainda rugia como um animal turbulento. Um pavoroso estrondo me acordou às 23 horas e quando olhei para fora, pude ver que a tormenta prosseguia sem tréguas. Às 3 horas da madrugada, quando me levantei para ir ao banheiro, por incrível que pareça, a tempestade recrudescera de tal forma, que pensei não fosse cessar jamais.
Com o corpo dolorido de tanto permanecer na posição horizontal, me levantei definitivamente às 5 horas e, otimista, percebi que o tornado estava se esvaindo, pois o espoucar dos trovões, agora se situava bem longe, à minha direita.
Finalmente, rompeu a aurora, cinzenta, úmida e fria. E quando eu parti, às 7 h, foi sob uma renitente garoa, que vertia de um céu plúmbeo e ameaçador. Uma breve consulta na internet me clarificou que naquela região, nas derradeiras 12 horas, haviam sidos despejados mais de 100 mm de chuva.
Mas, vida de peregrino é assim mesmo, necessário defrontar os obstáculos, de forma que, obedecendo à sinalização, acessei uma rodovia que seguiu à esquerda e percorridos 1.600 m eu cruzei o volumoso rio Arnego por uma ponte, depois, trezentos metros à frente, finalmente, eu adentrei à direita e acessei larga estrada de terra, extremamente lisa e embarreada.
Prosseguindo sob intermitente garoa...
Segui sempre entre pastagens, campos cultivados e extensos bosques nativos e nesse tramo cruzei, novamente, por duas vezes, o rio Arnego, em sua cota máxima, utilizando pequenas pontes. Então, percorridos 5 quilômetros, eu passei pela pequena vila de Penerbosa, depois, por outra estrada de terra, pela quarta vez nesse dia, ultrapassei o rio Arnego por outra singela ponte e logo cheguei em A Penela, outra povoação que não possui estabelecimentos comerciais. A chuva que caía em forma de garoa, recresceu de intensidade, e precisei me esconder sob um beiral oportuno, até ela amainar, o que ocorreu 15 minutos mais tarde.
Caminhados 10 quilômetros a duras penas, transitei por A Eirexe de Pedroso onde, como curiosidade, pude fotografar a entrada de um cemitério, cujos nichos dos túmulos dão para a rua. Em Puente de Pedroso, 1.500 m adiante, por uma ponte medieval, eu cruzei pela 5ª e derradeira vez o rio Arnego, extremamente encorpado e quase extravasando seu leito. Nesse local, há um grande monjón sinalizando a entrada em terras de Lalín, por onde se ascende a locais como Coto de Anta e Coto de Mamuela.
Na sequência, caminhando entre culturas de maiz e girassóis, enfrentei suaves ascensos e descensos, todos extremamente lamacentos e, quase no final de brusco declive, escorreguei com força e torci o joelho esquerdo, um acidente inesperado. Segui mancando e com muita dor até uma pequena vila à frente onde, em outro abrigo existente num ponto de ônibus, pude aplicar vigorosas massagens no local, utilizando uma pomada analgésica que eu carregava na mochila. Depois de proteger o local com uma joelheira, ingeri um relaxante muscular e me sentindo melhor, prossegui em frente.
O restante da jornada mesclou trechos silenciosos e desertos por estradas calçadas, com outros sobre piso asfáltico, mas por rodovias vicinais, onde não havia tráfego de veículos. Então, depois de transitar por Palmaz, percorri bosques nativos, mas logo adentrei em zona urbana e caminhando por uma calçada existente numa larga avenida, cheguei ao centro de Lalín, minha meta nesse dia. Na verdade, quase na entrada dessa simpática urbe, depois de um ligeiro descenso, se passa ao lado de uma fonte e, em seguida, se desvia à esquerda, por um caminho de terra, que segue até a igreja monarcal.
Bosques úmidos e sombrios nesse dia..
Antes, contudo, há uma praça, com uma fonte feita de pedra de canteria, um cruzeiro do século XVII e um grande portão que se abre na Casa de Moure. Nos arredores do antigo monastério, do qual só resta a igreja, é que teve início a povoação de Lalín, constituindo-se, na atualidade, em seu casco antigo. Eu passei por esses locais debaixo de forte chuva e não tive ânimo e nem condições físicas para intentar uma visita ao lugar.
Meu joelho estava inchado e dolorido, mas eu tinha certeza de que após repousar à tarde, uma boa noite de sono e massagens no local lesionado, tudo se resolveria e eu estaria melhor na manhã sequente, como de fato aconteceu. À tarde, apesar da chuva não dar tréguas, ainda consegui fotografar e conhecer a igreja matriz da cidade, bem como visitar a bela estátua que homenageia “O Porco”, existente na rua Colón.
Lalín é uma cidade com um pouco mais de 10 mil habitantes e seu monumento mais importante é a igreja de Lalín de Arriba, uma construção do século X, de origem românica, que formava parte de um conjunto monarcal e está situada na entrada da cidade, a 50 m do caminho, do lado esquerdo. Na cidade se celebra, anualmente, a famosa “Feira do Cozido” e, por conta disso, há uma escultura de bronze conhecida como “O Porco”, situada na rua Colón e ainda que não seja do gosto de todos os seus habitantes, se converteu no “souvenir” mais fotografado pelos turistas.
A escultura da rua Colón, que homenageia "O Porco".
À noite, bem alojado num quarto do excelente Hotel Palácios onde pernoitei nesse dia, recordei que 24 horas antes eu era espectador de um autêntico dilúvio pluviométrico, proporcionado pelas incoercíveis forças celestes. Por sinal, a chuva prosseguia lá fora e iria se alongar pelos próximos dias.
Então, me lembrei de uma sentença ditada por um famoso rei francês, com a qual concordo integralmente: “Femme souvent varie, bien fol est qui s’y fie...” Cuja tradução poderia ser assim: “A Natureza é bem feminina e louco é quem nela se fia...”
E apesar do joelho direito inflamado, 2 dias mais tarde eu aportei à cidade de Santiago de Compostela, pela 16ª vez a pé, e são essas doces recordações que nos perseguem pela vida afora.
Bom Caminho a todos!
Julho/2024