1º dia: DIAMANTINA à SÃO GONÇALO RIO DAS PEDRAS - 36 quilômetros

 A jornada seria bastante longa, assim, levantei-me às 4 h 30 min, preparei-me vagarosamente, fiz minhas orações e, depois ingeri apenas um espesso e perfumado café no refeitório do hotel. Parti exatamente às 5 h 30 min, sob intenso frio.

Em seguida, contornei a estação rodoviária e desci extensa ladeira em direção à saída da cidade. 

Embora fosse um sábado, várias pessoas já circulavam pelas ruas da cidade, de forma que não me senti desamparado e, quando em dúvida sobre o caminho, ia confirmando a direção correta com os transeuntes madrugadores.

Depois de 2 quilômetros percorridos, logo após passar defronte à Pousada dos Garimpos, reencontrei o primeiro marco da Estrada Real.

Então, sempre descendo, passei na frente da Igreja da Consolação, caminhei pela Rua da Palha, atravessei uma ponte e acessei larga e plana estrada de terra.

O dia se apresentava nublado, frígido e espessa cerração cobria o derredor, deixando o ambiente propício para a caminhada. 

Eu seguia de coração leve, o espírito alheio às preocupações da vida, feliz como uma criança ao começar o recreio, depois de longas horas de aula e estudo. 

Na verdade, estava iniciando mais uma odisséia e, como sempre, sentia pulsar nas veias a excitação do desafio. 

Assim, segui matutando, como me sentia afortunado. 

Pois, novamente, teria um grande percurso a devassar pela frente, com todas as suas promessas de emoção, interesses humanos e culturais, além da inconteste satisfação que sentiria quando aportasse à Ouro Preto, se meu objetivo se coroasse de sucesso. 

O Caminho estava muito bem sinalizado e às 7 h passei diante da entrada que conduzia ao aterro sanitário de Diamantina. 

Conversei com o porteiro, Sr. Anderson, batemos fotos, clarifiquei incertezas, obtive mais algumas informações sobre o roteiro e prossegui em frente.

A paisagem mostrava vegetação típica do cerrado, com a presença de muito quartzo no solo, que me encantava a cada quilômetro percorrido. 

Naquele lugar os veículos eram raros e somente o barulho do vento e dos pássaros quebravam o silêncio.

Mais adiante, pós vencer grande declividade, transpus uma ponte, sobre um tranquilo riacho, curiosamente, denominado “Ribeirão do Inferno”. 

Um morador local que caminhava em sentido contrário, a quem indaguei o motivo de tão radical epíteto, desculpou-se pela ignorância, pois não sabia a resposta. 

No entanto, mais à frente, conversei com um senhor que roçava à beira da estrada, que me relatou a respeito de um incidente ocorrido à época da escravidão. 

Segundo o qual, havia próximo dali havia uma mina com cerca de 150 escravos trabalhando na mineração do diamante, quando houve um desmoronamento de terra, deixando-os presos no subsolo, num local conhecido como Portão de Ferro.

 Quando vencia já no lado oposto forte aclividade, um carro parou ao meu lado e seu condutor me ofereceu carona até Serro. 

Agradeci-lhe pela gentileza, expliquei que estava caminhando pela Estrada Real e, como forma de encerrar o assunto, disse-lhe que pretendia vencer todo o percurso a pé, pois, estava “pagando uma promessa.”

Disse aquilo sorridente e meio sem pensar nas consequências. 

Porém, o motorista, teimoso e inconformado, quis saber o santo de minha devoção para merecer tamanho sacrifício e, ainda, qual graça eu havia alcançado.

Sem saber como sair do imbróglio em que me metera, afirmei-lhe que fora, particularmente, aquinhoado com uma conquista pessoal, de suma importância. 

E, como prova, mostrei-lhe um pequeno "bóton" que levava preso em minha camisa, onde estava incrustada a imagem de Nossa Senhora Aparecida.

Pude perceber que ele não se mostrou muito convencido ante minhas explicações, mesmo assim, despediu-se com um muxoxo e partiu em grande velocidade, pois, certamente, tomou-me por um doidivanas, ou alguém com uma certa aura de insanidade.

Já no cimo, passei pela Fazenda Palmeiras, onde o Sr. Santo, acompanhado por sua fiel cachorra Nega, trabalhava próximo a uma linda cachoeira.

Conversamos alguns minutos e, depois, prossegui em minha jornada.

A partir dali, passei a caminhar pelo topo de grandes elevações, rodeado por uma bela paisagem de campo rupestre, sempre ladeado por uma imensidão de sempre-vivas e de pedras esculpidas pelo vento. 

Ao longe, no horizonte, o Maciço do Espinhaço levantava para o céu a barreira ondulante de sua cumeeira.

Prosseguindo, bem ao longe, do lado esquerdo, no quilômetro 13, pude divisar o majestoso Pico do Itambé, com seus 2.002 m de altitude, ponto de referência da região, principalmente para os bandeirantes, tropeiros e antigos viajantes que por ali transitavam.

Mais à frente, num local plano e arborizado, pude distinguir uma grande casa abandonada, em meio a mato alto, o que muito me intrigou. 

Uns quinhentos metros à frente, passei junto a uma singela cruz plantada à beira da estrada, perdida na imensidão de um descampado. 

A explicação, para tal fato, obtive depois, por um antigo habitante da região. 

Segundo ele, lenda ou fato verídico, tratava-se de ruínas da Fazenda Palmital, que antigamente fora próspera e possuíra muitos empregados. 

Ali se plantava de tudo e as colheitas eram abundantes. Também, havia intensiva criação de gado leiteiro.

Certo dia, continuou meu interlocutor, por ali passou uma senhora com um filhinho de meses no colo, estafada e exangue pelo esforço de caminhar muitos dias sem alimento, pediu ao proprietário um copo de leite, que lhe foi, veementemente, negado.

Pouco tempo depois, encontraram-na mais à frente, no ponto onde avistei a cruz, morta, com o menino mamando desesperadamente em seus seios secos. 

O garoto sobreviveu, foi entregue a parentes, e reside até hoje em Diamantina.

Já a fazenda, após esse episódio, passou por misterioso processo de declínio. 

As plantações secaram, o gado morreu e o proprietário, desesperado, mudou-se para a cidade com sua família. 

Hoje aquela herdade é administrada, à distância, por um influente senhor, que raramente aparece na região.

Segui adiante, e logo iniciou-se grande descida. 

Mais à frente, no quilômetro 23, passei defronte a Pousada do Valle, para alguns caminhantes, final da primeira etapa do caminho. 

Contudo, o tempo permanecia nublado, o clima fresco e eu me encontrava bastante animado. 

Assim, prossegui adiante.

A partir dali passei a caminhar num local bastante arborizado, plano e ladeado por fazendas de criação de gado. 

A paisagem ao derredor era, simplesmente, espetacular.

Às 10 h 30 min, adentrei ao povoado de Vau, um arraial bucólico, de pessoas simples e atenciosas, situado às margens do rio Jequitinhonha. 

Depois de atravessar diante de sua singela igrejinha, no bar do Zé Braga, nominado de “Primeiro Gole”, parei para descansar, comprar água, chocolates e bater papo. 

Quinze minutos depois, revigorado, segui adiante. 

O sol já crestava com violência e ofuscava minha visão, quando, no quilômetro 30, o táxi que levava meus amigos e a mochila, me alcançou. 

O motorista, gentilmente, me ofereceu carona, a qual prontamente recusei.

Ele ainda insistiu em seu propósito, argumentando que em breve eu enfrentaria terrível aclive, mas, mesmo assim, preferi continuar a pé, justificando tal recusa, como forma de testar meu condicionamento físico.

Depois que transpus o rio Jequitinhonha, sobre uma grande ponte, iniciou-se severa e íngreme ladeira, a qual fui vencendo, passo a passo. 

Finalmente, após dois quilômetros de intenso esforço, fatigado e sedento, adentrei à pequena vila de São Gonçalo Rio das Pedras.

Ali fiquei hospedado na Pousada “Refúgio dos 5 Amigos”, onde a proprietária, brasileira por adoção, desde 1.971, mas, de nacionalidade suíça, Sr. Anna Maria Kuhne, me tratou com muito carinho e gratificou-me com estupenda hospitalidade. 

Para almoçar utilizei os serviços da própria Pousada e pude ingerir lauta e suculenta refeição, preparada pela Lúcia, cozinheira de mão cheia. 

   

À tarde, pós breve descanso, pude visitar a bela capela dedicada à São Gonçalo, padroeiro do distrito e, também, a de Nossa Senhora do Rosário. 

Na verdade, o minúsculo distrito, mais parece um presépio, com suas 300 casas típicas, ladeiras gramadas e calçamento rústico.

À tardezinha, no centro do povoado, após algumas indagações, contratei um mototaxista para levar minha mochila até a cidade de Serro, local onde pernoitaria na jornada seguinte. 

Numa mercearia local, aproveitei, também, para me prover de suprimentos que seriam consumidos durante a etapa posterior.

 Sentado numa calçada, papeando com amigos, surpreso, identifiquei o Sr. Laerte da Cunha, autor de interessante livro nominado “Ranchos, Tropas e Garimpos”, cujo exemplar, por coincidência, estava à venda na Pousada. 

Pudemos conversar alguns minutos, e a empatia foi enorme, tanto é que já nos sentíamos grandes amigos, como se nos conhecêssemos há muitos anos.

O escritor nasceu em São Gonçalo, entretanto, ainda jovem, migrou para São Paulo, onde trabalhou durante 35 anos. 

Como alegremente me confessou, a saudade falou mais alto, de forma que ao se aposentar, optou por retornar à região.

No agradável opúsculo, escrito de maneira coloquial, ele transcreve reminiscências de sua infância, quando acompanhava seu pai na lida de tropeiro, viajando por toda região, na entrega ou venda de animais e mercadorias.

Segundo voz corrente em São Gonçalo, à noite, as mulheres do povoado rezam na igreja do padroeiro, enquanto os homens se distraem na Venda do Ademil, um nativo bem-humorado e sempre pronto para tirar uma boa história da cartola. 

Além de servir saborosa comida caseira, arroz com feijão dos deuses e pinga “da boa”, para quem aprecia.

Assim, honrando a tradição, foi para lá que me dirigi, também, assim que escureceu. 

Primeiramente, mister salientar, que a decoração do estabelecimento é um caso à parte. 

O imperdível “botequim”, possui uma prateleira com aguardentes especialíssimos, no entanto, impossíveis de serem degustados, porque nas garrafas, embebidos no líquido, existem ofídios de várias espécies, como jararaca, jararacuçu, coral e urutu. 

Há, ainda, outros vidros com escorpiões de tamanhos variados, sapos, aranhas caranguejeiras e outros bichos. 

‘‘Não se impressione, pois isto é apenas ornamentação. 

Porquanto, aqui servimos vinho, licores e comida de verdade’’, explicou-me.

Ali, entre sucos e cerveja, travei contato com um senhor de nome Ratin Botelho, artista plástico, morador em Diamantina, que se encontrava à passeio com a namorada.

Por feliz coincidência, o “Ratinho”, como faz questão de ser chamado, havia cavalgado pela Estrada Real em 2.004, desde Diamantina até Parati. 

Foi um fugaz encontro, todavia, de grata recordação, pois, alegremente, em clima de cordialidade e descontração, pudemos nos conhecer e trocar impressões comuns sobre nossas aventuras.

Logo depois, retornei ao local de pernoite e, rapidamente me recolhi, já que a etapa seguinte ensejava preocupação em razão da distância e dificuldades atinentes.

IMPRESSÃO PESSOAL: Um percurso realmente cansativo pelo elevado grau de declividade a ser vencido, posto que o trajeto engloba uma ascensão total de 610 metros. Também, há de se precaver quanto à distância nesse percurso, vez que está catalogado no site oficial da Estrada Real, 33 quilômetros. Porquanto, na saída de Diamantina, mais especificamente, na Rua da Palha, existe uma placa mensurando 39 quilômetros. Posso afiançar, no entanto, que o odômetro do táxi que levou minha mochila, marcou, desde o Hotel Santiago até a Pousada onde pernoitei, o montante de 36 quilômetros. Assim, é necessário muito esforço físico, além de grande tenacidade para se vencer esse bruto e acidentado, porém, belíssimo trecho. 

2º dia: SÃO GONÇALO RIO DAS PEDRAS à SERRO – 30 quilômetros