A VINGANÇA

A VINGANÇA

Certa ocasião, há mais ou menos 25 anos, eu me interessei em adquirir um papagaio que fosse manso e conseguisse falar, porque meus filhos ainda eram crianças.

Após tomar informações, por indicação de um amigo, me dirigi a uma dessas casas que vendiam ração, gaiolas, e demais produtos inerentes a animais domésticos e que, com discrição, comercializasse tal tipo de “artigo”.

Em contato com o proprietário do estabelecimento, fiquei sabendo que, como essa ave encontrava-se em extinção, seu comércio era proibido pelo IBAMA, porém, como ele tinha vários contatos na cidade, iria tentar me arranjar um exemplar.

Assim, me garantiu que sempre apareciam pessoas lhe oferecendo esse tipo de ave pelas mais diversas razões, tais como: reclamação de vizinhos por excesso de barulho, agressividade demasiada, mudança para outro local, etc..

Apenas comentou que, como se tratava de um “material” difícil de ser encontrado, seu preço seria também bastante elevado.

De minha parte lhe afiancei que pagaria o montante justo, desde que fosse uma ave mansa, palradora, e que estivesse com aparência saudável, sinal de que estava sendo bem tratada, o que, certamente, inibiria traumas futuros em sua conduta.

Num belo dia, algumas semanas depois, eu fui contatado pelo Sr. Carlos, o proprietário da loja, me avisando que havia recebido um belo exemplar de macho, falante, lindo de plumagem e, melhor de tudo, mansinho de poder carregar no dedo.

Disse, ainda, que o animal era tão dócil, que não havia necessidade de prendê-lo numa gaiola apropriada, apenas um poleiro horizontal seria suficiente para que ele não fugisse, acessório que ele também tinha para vender e a preço especial.

No dia seguinte, animado, compareci a loja e, enquanto aguardava a presença do Sr. Carlos, visto que ele se encontrava no escritório cuidando de outros negócios, conversei com um funcionário a respeito do referido papagaio.

Sobre a ave, ele me confidenciou que se encontrava presa nos fundos do estabelecimento, depois me confessou que era a terceira vez, que depois de vendida, ela retornava àquele local, porém não sabia o motivo de tais devoluções.

Meio ressabiado, fui conduzido a um quartinho discreto e, depois de formalmente cumprimentar o Sr. Carlos, me apresentaram o belo e avantajado pássaro.

Foi, confesso, amor a primeira vista, posto que o louro era efetivamente lindo, possuía uma enorme cabeça amarelada e altaneira, asas com penas verdes e vermelhas e, o melhor, falava pelos cotovelos, se é que papagaio tem cotovelo.

Fiquei sabendo que o dono do animal precisara se apartar dele porque estava de mudança para um apartamento e o pobre bichinho não poderia acompanhá-lo no novo lar.

Aliás, era com dor no coração que estava se desfazendo do animal.

O preço estipulado era exorbitante, mas como achei que o louro satisfazia plenamente as exigências que eu havia imposto, paguei sem questionar a veracidade das informações prestadas, e adquiri o magnífico exemplar.

À época, eu já possuía outro papagaio em casa, e se tratava de um pássaro bastante selvagem, pouco falante, e que, por questões de segurança, ficava preso num viveiro.

Dessa forma, entendia que com a presença do novo amigo, ele sentiria um alento e sua língua, finalmente, se destravaria.

Ademais, em sendo da mesma espécie, a convivência entre ambos deveria ser das melhores.

Ledo engano!

Porquanto, foi só o novo inquilino chegar e tiveram início as provocações.

Até para mim, que providenciava a limpeza e reposição de alimentos aos dois animais, no início, tudo correu às mil maravilhas.

No entanto, com o passar dos dias, aquele que aportara à minha residência, mansinho e carinhoso, se tornou agressivo e raivoso, e quando eu menos esperava, levava uma violenta bicada na mão, fruto do ciúme doentio que ele sentia do rival.

Com isto, fui ficando mais precavido e evitava carregá-lo em meu dedo, embora, diariamente, lhe servisse pão molhado no leite diretamente na boca, guloseima que ele sorvia com enorme deleite.

E, ele, realmente, era um animal inteligente, pois falava sem parar e tinha facilidade em aprender novas palavras.

Contudo, com o passar do tempo, ele foi ficando cada vez mais agressivo, um risco enorme, posto que meus filhos eram pequenos e ainda não tinham noção do perigo.

Apenas eu transportava seu poleiro de manhã e, também, quem o guardava à noite, porém mantinha distância segura de seu bico, coisa que meus filhos não conseguiam, por não terem braços longos ou, mesmo, por puro receio.

Eu já estava pensando seriamente em vendê-lo ou devolvê-lo de quem havia comprado, mas ainda mantinha uma tênue esperança de que com o tempo tudo se acertasse.

Até que num sábado ocorreu o “incidente” definitivo.

Eu havia passado o dia no clube com os amigos e, como de praxe, tinha ingerido algumas cervejas.

Naquele dia, antes de ir à sauna, retornei à minha residência apenas com o intuito de guardar as duas aves, pois já estava escurecendo e, minha família, havia viajado.

Desse modo, com aquele que estava preso no viveiro, tudo correu normalmente.

Porém, ao colocar o poleiro no ambiente fechado onde dormiam, me distrai por um segundo, talvez, fruto da lentidão de meus reflexos.

Foi o suficiente para levar uma terrível bicada, que provocou um grande corte em meu dedo, sendo que seu bico ficou preso na carne.

A dor foi tamanha, cuja reação após o covarde ato foi imediata e, ao mesmo tempo, surpreendente para a ave, pois, com o objetivo de fazê-lo soltar meu indicador, apliquei-lhe um forte empurrão, com as costas da mão esquerda.

E, em razão de meu desespero, minha força extrapolou, desequilibrando-o e levando-o a bater a cabeça numa prateleira de madeira, que existia ao lado.

Com o choque, a ave caiu ao chão e, fruto do impacto, desmaiou, vez que após a inusitada queda, externava apenas débeis sinais de vida.

Imediatamente, arrependido de minha estupidez me recriminava em altos brados pelo cruel ato que praticara, porque acabara jogando no lixo a enorme quantia que desembolsara para adquiri-lo.

Ato contínuo, eu tentei reanimá-lo de todas as formas: assoprei seu bico, coloquei sal debaixo de suas asas, gelo em sua cabeça e, até mesmo, joguei um pouco de água fria em seu corpo, para que criasse ânimo.

No entanto, embora consciente, a ave se mostrava apática, reflexos abalados, apenas tentava se reerguer, sem lograr êxito em seu intento.

Então, me lembrei de uma experiência que já havia vivenciado, e resolvi aplicar o derradeiro recurso, para ver como ele reagiria.

Fui buscar minhas cachorras na parte fronteiriça da casa e aticei-as contra a ave, na certeza de que nada de mal iria lhe acontecer, pois elas não teriam coragem de enfrentar suas terríveis garras.

E, como intui, sua reação foi fulminante, pois a ave recobrou plenamente a consciência e automaticamente preparou para se defender, mostrando suas unhas afiadas, eriçando as penas do pescoço e gritando em alto som.

Aproveitando um momento de sua distração, rapidamente envolvi minhas mãos com um pano grosso e cautelosamente a agarrei, depositando-a em seguida no poleiro, onde permaneceu ainda um tanto abatida.

Durante alguns dias o bichinho ficou calado, e não me atacou mais.

Contudo, transcorrido uma semana, ele readquiriu a saúde plena e, por conseguinte, todos os vícios anteriores.

Precavido, tornei-me outra vez extremamente cauteloso quando me aproximava do seu poleiro, para trocar água e colocar ração e frutas.

Ele até que tentava me agradar para que eu chegasse mais perto: dizia meu nome, imitava o cachorro, assoviava, me oferecia o pé, como a pedir para eu carregá-lo, etc..

Eu achava sua atitude bonita e amistosa, sem imaginar que tudo isso ele fazia enquanto aguardava a hora da vingança.

De se ressaltar, que o papagaio é uma ave extremamente interessante, dotada de invulgar inteligência, e que consegue repetir com facilidade aquilo que aprende apenas ouvindo.

Conhece as pessoas que convivem com ele, adora passear, porém como os humanos, são temperamentais e tem um humor extremamente variável, passando de um momento para outro, a irritadiço e perigoso.

Ai, então, de quem lhe dirigir palavra ou tentar um agrado: no mínimo levará uma bela bicada.

Fiz esse arrazoado, apenas para explicar o que aconteceu comigo.

Pois bem, um belo dia eu estava fazendo a limpeza do poleiro do bichinho e, como amiúde, bastante cuidadoso e atento.

Contudo, num breve momento de distração, a ave atirou-se sobre mim e, certamente, seu objetivo central era me acertar os olhos.

Meus reflexos apurados, à época, acabaram por me salvar, pois consegui desviar, ainda que levemente do golpe: seu bico adunco e afiado como navalha acertou a um centímetro do meu olho esquerdo, de onde extraiu um belo pedaço de carne, além de me arranhar todo o rosto.

Defendi-me como pude, mas não o suficiente.

Assim, depois que tudo se acalmou e de devolver a ave ao seu poleiro, fui conferir no espelho o estrago que havia sofrido: meu olho estava roxo e inchado, mas, por milagre, ainda intacto.

Em meu pescoço notei a existência de um corte sangrando, além de profundas marcas de unha no meu pescoço.

Após fazer curativos, colocar compressas no rosto, e matutar sobre o caso, depreendi que a ave estava apenas se vingando do “empurrão” que levara naquele fatídico sábado.

De há muito devia estar aguardando o momento de “dar o troco” e, quando este finalmente surgira, não vacilara: a dor que ainda sentia pelos ferimentos era a prova cabal de que sua vingança premeditada surtira o efeito desejado.

Tanto assim, que ao mirar a ave em seu poleiro, pareceu-me vê-la alegre e satisfeita: olhava para mim, depois gritava e assoviava toda lépida.

Deu-me até a impressão de estar felicíssima com o inusitado acontecimento.

Diante disso, tomei a decisão largamente procrastinada, pois compreendi que estava definitivamente na lista legra do “Paco”, este era seu nome.

Assim, resolvi dar um novo destino ao animal, com urgência, pois não teria mais sossego, muito menos meus filhos.

E o revendi para o dono da mesma loja, onde o havia adquirido, inclusive, com poleiro e tudo, pela metade do preço pago originalmente.

Ficou, no entanto, uma lição deste episódio: por mais manso que seja um animal ou uma ave, como o papagaio deste caso, nunca deveremos nos olvidar que se trata de um exemplar selvagem.

E, por isso mesmo, sujeito a variações repentinas de humor, às quais devemos respeitar para não nos arrependermos mais tarde, muitas vezes com sequelas gravíssimas, como no caso presente.

 

Oswaldo Buzzo - Outubro/2013