08º
dia: VIDAGO à CHAVES – 22.640 metros A etapa desse dia seria novamente de pequena extensão. Contudo, eu sabia que os primeiros 5 quilômetros seriam em forte e constante ascenso. Porém, o restante do percurso seria bem mais tranquilo, sempre em meio a natureza bruta. Então, como a chuva havia cessado na noite anterior, deixei o local de pernoite às 7 horas, e retroagi pela N2 até o centro da cidade. Ali, me reencontrei com as flechas de sinalização, girei à esquerda, e segui em ascenso por ruas empedradas frias e silenciosas. Já saindo da cidade, num amplo largo, as flechas simplesmente desapareceram. Eu procurei com afinco a sinalização, pois havia 3 ruas se bifurcando em várias direções, porém não encontrei as benfazejas setas amarelas. Não estou dizendo que elas não existem, apenas não estavam visíveis, porque não as vi, debalde o intenso esforço desenvolvido nesse sentido. Na verdade, em minha humilde opinião, a sinalização por plaquinhas estilizadas não é a ideal, porque eventualmente elas podem cair ou ser levadas por alguma pessoa como souvenir, deixando o peregrino totalmente perdido como no caso em comento. Pior, sem ter como indagar a ninguém, pois não havia trânsito de pessoas ou veículos naquele horário. Por isso, sou favorável que a sinalização seja sempre feita por flechas amarelas pintadas, seja em postes, chão ou árvores, porque essas ninguém pode roubar ou apagar. Mas, por coincidência, bem à minha frente, nascia um caminho em terra, estilizado nas cores amarelas e vermelhas, com sinalização recente, e que ascendia a montanha por uma estrada de terra. Como não sabia para que lado ir, confuso, inferi que o CPI e esse roteiro coincidiam nessa etapa, por isso não estava encontrando as tão almejadas setas amarelas. Assim, por logicidade, decidi seguir esse Caminho que, por sinal, estava estupendamente bem sinalizado. O roteiro se mostrou maravilhoso, sempre em meio a natureza agreste ou por imensos bosques de pinheiros. Nesses, vi sacos acoplados ao seu caule, para fins de extração de resina. Muitas flores no topo do morro. Melhor clarificando, a resina do pinheiro é um líquido viscoso, que é excretado pelo pinheiro, para selar e proteger qualquer ferida no seu tronco. É de uma cor amarelo acastanhado e em contato com o ar torna-se duro, formando uma crosta quebradiça e pegajosa. Ela é utilizada para a produção de aguarrás e pês. O aguarrás serve para diluir e dissolver tintas e vernizes, em graxa de sapato e lacre, bem como é também juntada a muitos produtos de limpeza, devido as suas propriedades antissépticas e o seu perfume. O pês é utilizado em cola de papel e na fabricação de sabão, vernizes e tintas, e talvez a utilização mais conhecida seja para os arcos de instrumentos musicais de corda, como o violino. A vulgar resina de pinheiro era no passado utilizada nas embarcações de vela para as impermeabilizar. Contudo, ela também tem propriedades medicinais, como se sabe é anti-patogênica (isto é, a função principal para o pinheiro), e foi durante anos utilizada para esfoladelas e feridas, como tratamento contra piolhos, misturada com gordura animal para massagear o peito, ou para inalar, contra doenças nasais e de garganta. Sendo que no passado ela era aplicada em cubos de açúcar ou em mel, como tratamento contra parasitas intestinais e remédio geral para tudo. Além disso, ela é também estimulante, diurético, adstringente e antiespasmódico. Ou seja, uma gama imensa de aplicações para esse produto. Ao longe, e à esquerda, eu avistava a N2. Prosseguindo, sempre em dura ascensão, num local mais arejado, olhando à minha esquerda pude ver, bem abaixo, no sopé do morro, a rodovia N2, a derradeira salvação em caso de me perder. Depois de vencidos aproximadamente 4 quilômetros, e já transpirando bastante, o roteiro acabou por sair numa rodovia vicinal. Então, para minha surpresa, ele girou à direita, e principiou a descer pelo asfalto, contrariando totalmente o rumo inicial, ou seja, em termos de direção, eu estava voltando ou regredindo, tanto fazia. O local onde me encontrava era integralmente deserto e até aquele momento, não vira ou ouvira nenhum som humano. No entanto, sabia que mais abaixo existia uma aldeia, porque eu a avistara desde o topo do morro, onde poderia eventualmente tomar informações sobre o roteiro, embora naquele já estivesse me sentido inseguro e desanimado. Na realidade, estava me sentido particularmente exposto, talvez por estar sozinho, talvez pelo céu cinza que deixava tudo ainda mais sombrio. Bem, eu descendi por aproximadamente 300 metros quando, para minha surpresa e alegria, encontrei uma flecha do CPI em sentido inverso, afixada num poste. Então o roteiro seguia por ali, pensei, embora não o tivesse encontrado lá embaixo, em seu nascedouro. Prontamente fiz meia volta e segui em ascenso, até quase o tope do morro onde, surpreendentemente, encontrei uma flecha amarela me remetendo para um caminho de terra, à esquerda. Feliz da vida segui adiante, em meio a outro bosque de pinheiros. Porém, trezentos metros à frente o roteiro se bifurcou, mas, cadê a sinalização? Observei cuidadosamente o entorno e localizei numa das “pernas”, a da direita, uma fita branca amarrada num arbusto, o que parecia ser o lado correto, pois esse expediente é muito utilizado em locais onde não existe possibilidade de pregar ou pintar as setas. Prossegui no “escuro”, sem visualizar sinalização de espécie alguma, num local ermo, onde a possibilidade encontrar alguém era remotíssima. E, para meu azar, 300 metros adiante, eu desaguei em outra estrada, onde também não vi sinalização alguma. E agora, para que lado ir, indaguei já desesperado e confuso? Acostumado a manter todas as variações de minha vida sob controle, chocava-me constatar que estava novamente à mercê do acaso. Pelo meu raciocínio, o correto era seguir à esquerda, paralelo à rodovia N2, mas não encontrei nenhuma sinalização nessa direção. Então, já desanimado, para não dizer, revoltado, retroagi e segui à direita, mas também sem sucesso, pois não localizei nenhuma seta amarela. Não posso afirmar peremptoriamente que elas não existiam, mas eu não as visualizei como, por exemplo, nas etapas anteriores, onde a sinalização estava perfeita. Para tentar dirimir minhas dúvidas, consultei o GPS que portava, contudo ele só marcava os quilômetros percorridos, porque em termos de localização, ele precisaria estar conectado à internet, o que não era o caso. Bem, eu estava sozinho e desamparado, além disso, me faltavam várias etapas para completar meu périplo, e seguir em frente, sem ter certeza da direção, certamente iria me fazer pedir socorro, mas para quem? Meu celular não tinha sinal, estava mudo, então como eu seria resgatado? Triste e desalentado, me dei por vencido. e resolvi me agarrar a única tábua de salvação que me restava, qual seja, acessar a N2. Isto decidido, segui à esquerda, em forte descenso, por estradas bem delineadas até que, já no plano, adentrei numa povoação que logo identifiquei numa placa afixada no chão: estava em Vilarinho das Paranheiras. Mais adiante, pedi informações a uma senhora que enchia um galão de água numa fonte e, depois de mais 500 metros, encontrei minha salvação: a rodovia N2. Um “mojón” fixado em sua lateral esquerda, me informava que restavam 13 quilômetros até aportar à Chaves. Então, tranquilo, fiz uma pausa retemperadora para me acalmar, aproveitando o ensejo para ingerir uma banana. Um bom tempo depois, já recuperado, reiniciei minha caminhada, agora pelo acostamento da rodovia, no sentido inverso ao tráfego de veículos. Intimamente me sentia decepcionado, afinal, eu não viajara 11.000 quilômetros de avião para caminhar no asfalto, porquanto isto poderia ser feito a qualquer tempo no Brasil. Eu ansiava pelo contato com a natureza, transitar em meio a bosques, comungar comigo mesmo, usufruir da introspecção, mas tudo isso fora frustrado nesse dia pela ausência de sinalização no roteiro. Oras, quem oferece um caminho ao peregrino, deveria ter ao menos a ombridade de lhe assegurar um rumo adequado e seguro, sob pena de ter que resgatá-lo depois, quando perdido. E fora o que ocorrera nessa etapa, por isso me sentia triste e decepcionado, ao ser vilipendiado em meus propósitos. Mas, como peregrino contumaz, sabia que nem tudo sai como se imagina, então, o melhor é se conformar com a realidade e seguir em frente. Nesse ínterim, me lembrei de uma frase de Nietzsche, famoso filósofo alemão, que assim diz: “O que não provoca minha morte, faz com que eu fique mais forte”. E lentamente minha indignação foi se aquietando, e senti minha alma relaxar. Na verdade, não gosto de me estressar diante dos pequenos problemas, prefiro encará-los como ironias do destino, contratempos que mais tarde servirão apenas para reflexão, talvez escrever sobre eles, contar aos amigos nossas peripécias. Nesse sentido, resolvi curtir a paisagem circundante e, como não precisava mais buscar setas amarelas, abrandei meu ritmo e segui despreocupadamente adiante, por uma estrada que apresentava inexpressivo trânsito de veículos. Então, em sequência, eu passei pelo povoado de Vilela do Tâmega, depois, pelo de Bóbeda. E não me sentia mais frustrado, pois o entorno era maravilhoso, com imensas pastagens, onde pude visualizar e fotografar rebanhos de ovelhas serenamente a pastar. Finalmente, quase no final da jornada, passei por Vila Nova, uma povoação de razoável dimensão, onde existe uma calçada lateral, por onde segui em segurança. Mais dois quilômetros vencidos, ultrapassei uma rotatória e adentrei em zona urbana. Logo adiante, me reencontrei com as flechas amarelas do CPI, seguindo por uma avenida retilínea, em direção ao centro da cidade de Chaves, minha meta para aquele dia. Uns dois quilômetros adiante, depois ultrapassar o belíssimo Jardim Público da cidade, encontrei o marco zero da rodovia N2. Nesse local, a avenida se bifurcou e segui à direita, em direção ao albergue de peregrinos que, na verdade, está localizado no Quartel dos Bombeiros Voluntários. A partir desse local, as flechas simplesmente desapareceram e, sem ter a quem indagar, fiquei novamente perdido. Depois, precisei dar uma imensa volta, utilizando um calçadão localizado ao lado de uma magnífica e larga avenida, para conseguir acessar o centro da urbe, o que “engordou” em aproximadamente 2 quilômetros a jornada desse dia. O correto, na bifurcação, seria seguir à esquerda, ultrapassar a ponte romana para transpor o rio Tãmega e, 300 metros depois, já adentraria ao centro histórico de Chaves. Eu me hospedei em pleno “casco viejo” da cidade, no confortável Residencial Bem Estar, onde paguei 25 euros por um quarto individual. Para almoçar, utilizei o restaurante situado no andar térreo do estabelecimento, onde despendi 7 euros por uma excelente refeição, com direito a consumir uma garrafa de vinho, de que tanto necessitava para aplacar minha mágoa e frustração com a jornada desse dia. Depois, lavei roupas e deitei para descansar. Jardins floridos e bem cuidados. A presença humana na região do concelho remontam ao Paleolítico, conforme inúmeros testemunhos de Mairos, Pastoria e de São Lourenço, dentre outros locais, e das civilizações proto-históricas, nomeadamente nos múltiplos castros situados no alto dos montes que envolvem toda a região do Alto Tâmega. À época da invasão romana da península Ibérica, os romanos instalaram-se no vale do rio Tâmega, onde hoje se ergue a cidade e, construíram fortificações pela periferia, aproveitando alguns dos castros existentes. Para defesa do aglomerado populacional foram erguidas muralhas e, para a travessia do rio, construíram a ponte de Trajano. Fomentaram o uso das águas quentes mineromedicinais, implantando balneários termais, exploraram minérios, com destaque para filões auríferos, e outros recursos naturais. Tal era a importância desse núcleo urbano, que foi elevado à categoria de Município no ano 79 d.C., quando dominava Tito Flávio Vespasiano, o primeiro “capit” da família Flávia, de onde advém a antiga designação “Aquae Flaviae” da atual cidade de Chaves, bem como o seu gentílico — flaviense. Calcula-se pelos vestígios encontrados, que o núcleo e centro cívico da cidade se situava no alto envolvente da área hoje ocupada pela Igreja Matriz. Ainda hoje lembra a presença romana, com o Fórum, o Capitólio e o “Decúmanus”, que seria a rua Direita. Foi nessa área que foram e ainda são (2006) encontrados os mais relevantes vestígios arqueológicos expostos no Museu da Região Flaviense, como o caso de uma lápide alusiva a um combate de gladiadores. O auge da dominação romana verificou-se até ao início do Século III, quando da chegada gradual dos vulgarmente apelidados bárbaros, ou seja, os suevos, visigodos e alanos, provenientes do leste europeu, e que puseram termo à colonização romana. O domínio bárbaro durou até que os mouros, oriundos do norte da África, invadiram a região e venceram Rodrigo, o último monarca visigodo, no início do Século VIII. Com os árabes, também o islamismo invadiu o espaço ocupado pelo cristianismo, o que causou uma azeda querela religiosa e provocou a fuga das populações residentes para as montanhas a noroeste, com inevitáveis destruições. As escaramuças entre mouros e cristãos duraram até ao século XI, porém a cidade começou por ser reconquistada no século IX, por D. Afonso, rei de Leão, que a reconstruiu parcialmente. Foi então por volta de 1160 que Chaves integrou o país, que já era Portugal, com a participação dos lendários Ruy Lopes e Garcia Lopes, tão intimamente ligados à história da terra. Pela sua situação fronteiriça, Chaves era vulnerável ao ataque de invasores e como medida de proteção, D. Dinís (1279-1325), mandou levantar o castelo e as muralhas que ainda hoje dominam grande parte da cidade e a sua periferia. A 12 de março de 1929 Chaves foi elevada à categoria de cidade, contando atualmente com 20 mil habitantes. A história da igreja matriz de Chaves. Depois de um bom descanso, que também serviu para acalmar o meu espírito, fui até a igreja matriz de Chaves, dedicada à Santa Maria Maior, uma construção do século XII, reconstruída no século XVI, situada na Praça da República. Depois dei um passeio pelos Jardim do Castelo, onde estão os antigos canhões utilizados nas escaramuças ali realizadas. Dali se descortina uma vista fantástica do Castelo de Chaves, uma construção do século IX. O conjunto é marcado pelo castelo medieval, em posição dominante sobre a cidade, com planta retangular, compreendendo internamente a Torre de Menagem e, externamente, fortificações abaluartadas ao estilo Vauban. Elevada ao estatuto de monumento nacional a 22 de Março de 1938, a Torre de Menagem foi concluída no reinado de D. Dinis, mas a edificação primitiva remonta ao século IX. Desde 1978, a Torre de Menagem serve de instalações ao Museu Militar, que ocupa os quatro pisos do monumento, com a exposição de armas, uniformes, plantas militares, bandeiras e troféus, desde a Idade Média até a atualidade. No jardim circundante, limitado por muralhas construídas na altura da Guerra da Restauração, estão expostas algumas peças do Museu da Região Flaviense. Todo esse complexo encontra-se parcialmente envolvido por um jardim artístico, delimitado pelas muralhas. Posteriormente, fui até o Parque Termal, mais conhecido como Caldas de Chaves, em cujas nascentes brotam com temperaturas superiores a 70 graus. As suas águas, de propriedades terapêuticas, estão especialmente indicadas para tratar doenças do aparelho digestivo, reumáticas, musculares e esqueléticas. Mais tarde, fui carimbar minha credencial na Oficina de Turismo da localidade e, no caminho passei por belíssimas e modernas praças, todas muito bem cuidadas. Numa delas, pude apreciar um portentoso monumento em homenagem aos militares que morreram pela Pátria durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). No retorno, visitei a Praça de Camões, uma das mais elegantes da cidade, localizada no coração da parte antiga dessa magnífica urbe. Nessa grande esplanada formando quadrados, encontra-se a igreja matriz de Santa Maria, a Câmara Municipal de fachada nobre da era clássica e, apenas na frente da câmera, uma estátua de D. Afonso (1377-1461), primeiro Duque de Bragança. Próximo dali, localizei o marco do Caminho Português Interior de Santiago, informando que ainda restavam 209 quilômetros até Santiago de Compostela. Marco do CPI em Chaves: restam 209 quilômetros até Santiago. IMPRESSÃO PESSOAL: Uma etapa de pequena extensão, cujos primeiros cinco quilômetros seriam em ascenso, os demais planos ou em declive. Porém, a mais decepcionante dentre todas, em termos de sinalização. Para mim, foi um dia de imensa frustração, mas o peregrino deve se preparar para situações adversas e, ao final, se conformar. Foi o meu caso porque, apesar dos contratempos, consegui aportar ao meu destino sem maiores intercorrências físicas. |
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