20ª etapa: VILLAFRANCA DEL BIERZO à O CEBREIRO – 24 quilômetros

20ª etapa: VILLAFRANCA DEL BIERZO à O CEBREIRO – 24 quilômetros

 

Era 6 horas, quando deixei o local de pernoite, sob cerração e um vento frio, que varria as ruas vazias e praças silenciosas da urbe.

Primeiramente, eu descendi por uma grande escadaria, e saí, mais abaixo, na “calle colegiata”, por onde discorre o caminho.

Assim, girei à direita e, cem metros depois, fleti à esquerda, atravessei o rio Burbia por uma ponte metálica e, na bifurcação dos roteiros, optei em seguir pela esquerda, e desta vez não me arrependi.

"Andadero" à beira da rodovia.

Eu prossegui algum tempo pelo leito da rodovia N-006A, até próximo da Autovia Nacional, quando iniciou-se um andadero lateral, paralelo à carretera, mas separado desta por uma mureta, que dá segurança e proteção ao peregrino.

Uma hora depois, passei por Pereje, minúscula povoação, onde não avistei vivalma.

Prosseguindo, mais quatro quilômetros vencidos, adentrei em Trabadelo, um povoado maior, onde pude ver alguns peregrinos tomando café num bar, e já se preparando para a jornada do dia. 

Trabadelo fica às margens do rio Valcarce, que acompanha o peregrino por um largo período dee tempo (cerca de 13 quilômetros), para aqueles que optam em seguir pela margem da estrada (N-VI), hoje quase desativada, rumo ao Cebreiro.

Possui uma modesta população com cerca de 170 habitantes e tem boa estrutura para pernoite, pois conta com albergues (3), bares e hostais (2).

No Caminho, próximo de Trabadelo.

O peregrino encontrará pelo Caminho milenares castanheiras e carvalhos, que dão a sombra necessária para uma caminhada tranquila, antes de aportar à essa cidade.

Historicamente, ela foi um castro pré-romano, e suas terras pertenceram à Igreja de Santiago, como doação do rei Alfonso III, no ano de 895.

Contava com o castelo de Autares, do qual só restam ruínas, e num passado distante, os peregrinos passavam por esta zona com extrema precaução, pois, no castelo abandonado, se escondiam bandoleiros que os assaltavam com frequência.

Possui uma igreja, onde se destaca sua fachada marcada por um campanário coroado.

E, como em todos os templos rurais, evidencia seu aspecto maciço, pois desempenhava também uma função defensiva em caso de ataques.

Disso resulta seu interior escuro, o que evidencia um ambiente misterioso, em consonância com as características da cultura galega.

 

A rua principal de Trabadelo.

Eu ultrapassei o povoado e segui caminhando ainda à beira da rodovia por um “andadero” lateral, até que este terminou e, na sequência, prossegui diretamente sofre asfalto, utilizando uma rodovia vicinal.

Nessa toada, passei pelos pequenos povoados de La Portela, Ambasmestas, e depois de 15 quilômetros percorridos, três horas de marcha intensa, aportei em Vega de Valcarce, onde fiz outra pausa para hidratação e ingestão de uma banana.

 

Adentrando em Vega de Valcarce.

É o povoado mais importante de todo o vale do Rio Valcarce, e o que oferece o maior número de serviços ao peregrino.

Tem dois albergues, dois hostais, restaurantes, bares, e “tendas”.

E, embora o peregrino ainda se encontre na província de Leon, a proximidade com a Galícia faz com que a vida e os costumes de sua gente sejam mais galegos que castelhanos, por isso ela é a capital do vale e o último município de certa importância para os leonenses.

O povoado se situa entre dois velhos castros: o de Veiga e o de Sarracin.

O caminho segue pela rodovia que atravessa a cidade de Vega de Valcarce.

O primeiro serviu, desde o século IX, como refúgio aos arrecadadores do “Portazgo”, que era o imposto pago para quem passasse por estas terras, representando um pedágio simbólico para se entrar na Galícia.

O segundo, do qual se conservam as ruínas do castelo, foi fundado no século XI, pelo conde de Astorga, chamado Sarracino, que é citado em um documento de Alfonso III, sobre a cessão da terra à sede compostelana.

Sua economia depende fundamentalmente da produção e extração das castanhas, e do turismo rural, face à beleza da flora e fauna local.

Para visitar na localidade, há as ruínas do castelo de Sarracin, situado no alto da colina chamada de Castro Martín.

Igreja matriz de Vega de Valcarce.

Dele se conservam ainda os muros da edificação, de planta retangular irregular, e torres com seteiras para defesa da cidadela, além de um pórtico elevado na parte sul.

No entanto, há indícios que anteriormente havia uma construção atribuída aos Templários, nos primórdios do século XI.

A igreja existente na vila está dedicada a Santa Maria Magdalena, padroeira dos pecadores e penitentes, e atesta a característica peregrina deste pueblo.

Muito verde e ar puro no caminho.

Na margem da estrada N-VI ficava o albergue Nossa Senhora da Aparecida – tipicamente brasileiro – que oferecia boa acolhida e ótima comida, inclusive um farto café da manhã, sob a administração do goiano Itabyra e da hospitaleira Joana, uma holandesa/paraense, que se tornara uma ótima opção para repouso antes da subida ao Cebreiro.

Atualmente, o albergue está sob a gestão da hospitaleira Ângela (a mesma de Fonfria, do albergue A Reboleira), que prepara o legítimo sanduíche Bauru.

 

Paisagens bucólicas ao lado rio Valcarce, à esquerda.

Prosseguindo, mais acima, por um túnel, eu transpus a Autovia Nacional, e ainda por asfalto, transitei por Rutelán e, logo em seguida, por Las Herrerias, este sim, um povoado de média dimensão, onde avistei vários bares e restaurantes.

 

Finalmente, Las Herrerias,

Neste pequeno povoado de apenas 80 habitantes, tem realmente início o ascenso em direção ao Cebreiro, onde os peregrinos, que vão a pé, abandonam definitivamente a estrada N-VI, saindo de uma altitude de 675 metros, para chegar a 1.296 metros, numa distância de 8,5 quilômetros.

O nome do povoado deriva das indústrias de ferro que existiam no local, sendo que seus moradores e trabalhadores aproveitavam a força da corrente do rio Valcarce para mover os martelos hidráulicos e, assim, poder trabalhar o metal.

Curiosamente, existem no pequeno povoado dois bairros: Herrerías, na entrada do pueblo, e o Inglês, na saída.

As últimas casas recebem o nome de “hospital inglês”, por ter sido este construído nos tempos da dinastia Plantagenet, destinado a atender os súditos ingleses.

Na bula de Alejandro III (1178), se menciona esta localidade como “Hospital dos Ingleses”, e no mesmo documento, cita a existência de uma igreja.

Las Herrerias, o último povoado antes do acesso ao Cebreiro.

A igreja atual, como todos os templos rurais, apresenta um aspecto maciço, com escassos vãos abertos, destacando-se o seu campanário e sua espaldana, sendo sua construção em pedra, e bem menos elaborada que as igrejas urbanas.

No povoado há um bar que atende as necessidades básicas dos peregrinos, tem ainda albergue privado, bons hostais, e casas rurais, em função da exuberância de sua natureza.

Nesse trecho, avistei vários peregrinos caminhando à minha frente, porém alguns deles fizeram uma pausa num bar, antes de enfrentar o grande desafio prestes a se iniciar.

Eu prossegui meu périplo, e logo alcancei um grupo de 4 pessoas, todos espanhóis, que caminhavam com uma pequena mochila às costas, pois um carro lhes dava apoio.

Prossegui conversando com Javier, o mais jovem e disposto do grupo, e ele me contou que haviam partido de Pamplona.

Local de bifurcação do Caminho: para a direita, seguem os ciclistas.

Não demorou muito e logo chegamos a uma bifurcação: os ciclistas prosseguem pela rodovia, enquanto os peregrinos adentram à esquerda, e já encontram um leve ascenso, que paulatinamente vai se acentuado.

Subindo o Cebreiro: Javier à minha frente.

Por sorte, o piso se encontrava seco, visto que não chovia há vários dias, então, foi possível sobrepujar esse desafio com relativa velocidade, embora, em alguns trechos, o aclive seja extremamente íngreme.

Subindo o Cebreiro, um aclive duríssimo!

Bastante cansados, aportamos em La Faba, onde o Javier adentrou num bar para aguardar os companheiros, que haviam ficado bem para trás.

La Faba é um povoado de passagem dos peregrinos já cansados da subida forte, pois a diferença altimétrica vencida em apenas 3,5 quilômetros é de quase 250 metros.

A pequena vila está situada próximo da divisa das Províncias de Lugo e Leon, no alto das montanhas.

Adentrando em La Faba.

Sua população de não mais de 20 habitantes é essencialmente agrícola, e aqui já se respira ares celtas.

Antigamente chamava-se Villa Ux ou Villa Oxi, e sob este nome suas terras foram cedidas por Alfonso IX, no princípio do século XIII, ao monastério de Carracedo.

Monjón informativo na saída de La Faba.

Conta com uma simples igreja, dedicada a San Andrés, e um castro romano.

Uma pequena cantina satisfaz a sede do peregrino em sua passagem pelo local, e para os que querem fugir do burburinho do albergue do Cebreiro, há nesse povoado um excelente albergue, que é administrado pela Associação de Amigos do Caminho de Santiago da Alemanha.

 

No Caminho, subindo em direção à Laguna de Castilla.

Eu ainda me sentia bem disposto, de maneira que prossegui ascendendo, agora por um caminho largo, provido em suas bordas de exuberante vegetação.

Paisagens preciosas se abriam à minha esquerda.

Do meu lado esquerdo lentamente ia se descortinando uma soberba visão do vale abaixo, onde eu avistava a cor verde em várias nuances.

Adentrando em Laguna de Castilla.

Ainda em forte ascenso, depois de mais 2 quilômetros vencidos, eu aportei em Laguna de Castilla, onde fiz uma pausa para me hidratar numa fonte, onde a água jorrava fria e cristalina.

Fonte de água potável, onde matei a minha sede.

Então, novamente animado, iniciei o ataque derradeiro ao cume do morro.

O Caminho prossegue em ascenso contínuo.

A dureza da subida prosseguiu, mas o corpo manteve-se anestesiado pelo esplendor que me rodeava, pois à medida que ia subindo, era brindado com maravilhosas paisagens sobre os montes em redor.

Mais uma bela visão, quase no topo do morro.

Diante de tanta magnificência, meu espírito como que flutuava.

Finalmente, adentrando à Galícia.

Mais acima, passei pela divisa, deixando a província de León para adentrar, definitivamente, na Galícia.

Fiz ainda um supremo esforço para sobrelevar o “tramo” derradeiro, e logo adentrava à pequena vila de O Cebreiro, um local mágico e dos mais emblemáticos do Caminho de Santiago.

Visual que se descortinava, desde O Cebreiro.

Rapidamente, me hospedei numa pensão, lavei minhas roupas, depois saí para fazer fotos, pois lá em cima, eu tinha uma visão privilegiada de todo entorno e, principalmente, dos locais por onde eu viera caminhando.

Paisagem fotografada, desde O Cebreiro.

Depois, fui almoçar e, por 10 Euros, pude degustar um sensacional “menú del peregino”.

Ao fundo, a igreja matriz do Cebreiro.

Depois de passar pela pequena vila La Laguna, último povoado de Castilla e Leon, o peregrino chega ao Cebreiro, local impregnado de magia e beleza.

Situado entre as zonas de Ancares e O Courel, o povoado foi utilizado pelos romanos como via de acesso às terras galegas.

Algumas simples vivendas pré-românicas (provavelmente celtas), chamadas palhoças, deram abrigo durante milênios a seus habitantes e viajantes, que nelas pernoitaram.

Palhoça celta recuperada.

Atualmente restam quatro delas, que pertencem ao patrimônio artístico, duas como museus e outras duas para fins comerciais.

O primeiro hospital de peregrinos data o longínquo ano 835, mas Alfonso VI, em 1072, deu grande impulso ao colocar à frente do hospital os monges franceses de Aurillac, que, atualmente, empresta o nome a um dos hostais do lugar.

O Cebreiro, no alto das montanhas que separam as províncias de León e Galícia, foi um dos primeiros refúgios a acolher os peregrinos que se dirigiam à Compostela.

Seu templo é do século IX, e pode ser considerado "moderno", se comparado às palhoças de pedra e sapé, que são muito anteriores à Era Cristã, visto que este local é povoado desde 1500 a. C.

No ano 1072, o rei Alfonso VI, de León e Castela, entregou seu Hospital do Cebreiro aos cuidados dos monges da abadia de Saint Geraud d’Aurillac, e o local esteve sob o controle dos beneditinos por oito séculos, até que estes o abandonaram em 1854.

A história do Santo Milagre do Cebreiro é uma das mais famosas do Caminho.

No início do século XIV, um modesto camponês da aldeia de Baixamaior, subiu as montanhas para assistir à missa no Cebreiro.

A cerimônia foi celebrada por um monge de pouca fé, que, apesar do dia ser de fortes ventos e copiosas chuvas, desprezou o sacrifício do lavrador.

O sacerdote, ao vê-lo chegar, murmurou: "Que burrice! Fazer esta caminhada com este clima, só por causa de um pouco de pão e de vinho."

Porém, sob o olhar admirado de todos os presentes, no momento da consagração, a hóstia transformou-se em carne, e o vinho em sangue, não em sentido simbólico, mas de maneira real e concreta.

Os peregrinos que assistiram o milagre, com presteza se incumbiram de divulgá-lo, e esse fato, séculos mais tarde, inspirou um dos trechos da ópera Parsifal, do compositor Wagner.

O cálice em que ocorreu o milagre é uma peça de arte românica do século XII, e encontra-se exposto na igreja do Cebreiro até hoje.

Ao seu lado, o peregrino pode ver o relicário doado pelos reis católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, quando fizeram sua peregrinação à Compostela, em 1488.

Todo dia 9 de Setembro, por ocasião da festa do Santo Milagre, milhares de fiéis de toda a região se reúnem no Cebreiro para as festividades religiosas.

O templo pré-românico, que conserva o milagroso prodígio, foi reconstruído várias vezes, sendo a última restauração em 1962.

Diante da igreja de Santa Maria la Real.

Tanto o cálice como a patena são afamadas peças pré-românicas, especialmente o Santo Graal galego, que forma o escudo da Galícia, cuja lenda de estende por toda a Europa.

Também guarda em seu interior uma talha românica de Santa Maria La Real, virgem do Santo milagre, assim como os sepulcros do monge e do aldeão, em uma rústica capela dedicada a San Benito.

No local, vamos ouvir muita gaita galega, e comer bem nos diversos restaurantes típicos do lugar, que oferece um grande e único albergue, mas também diversos hostais e casas rurais, com bastante conforto.

É imperdível a degustação do caldo galego e a sobremesa, do “queijo do cebreiro” com mel, ou com doce de leite, geléia, ou “membrillo” (marmelada).

 

Igreja de Santa Maria, local onde ocorreu o famoso milagre.

Mais tarde, após merecido descanso, dei uma demorada volta pelas imediações, cumprimentei vários peregrinos com quem havia conversado no Caminho, depois fui ao albergue carimbar minha credencial.

Outra palhoça celta estilizada.

Na sequência, vagueei novamente pelas empedradas ruas da pequena localidade, admirando as suas reconstruídas palhoças, as ovais casas de pedra com tetos cônicos de palha, algo um tanto plástico e irreal, feito para turista admirar, mas ainda assim, uma visão agradável.

Outra das 4 palhoças celtas que restaram no Cebreiro.

Em seguida fui à pré-românica igreja Santa María la Real para assistir à missa e prestar a justa homenagem ao Padre Don Elias Valiña, que aqui está sepultado.

Escultura que homenageia o Padre Don Elias.

Para quem não sabe o Padre Elias foi, não só, um grande impulsionador do Caminho de Santiago, mas também o inventor das famosas setas amarelas (“Flechas Amarillas” no original castelhano), que conduzem os peregrinos até Santiago.

Foi ele, que em 1980, iniciou as tão valiosas marcações, para evitar que os peregrinos se perdessem no Caminho, e mais tarde se estenderam a todos os caminhos que levam a Santiago.

E por que são as setas amarelas e não de outra cor qualquer?

Simplesmente porque as primeiras a serem pintadas foram feitas com o resto da tinta de marcação de uma obra na estrada, que os trabalhadores ofereceram ao Padre Elias.

A rua principal do Cebreiro, um local místico e imperdível!

No retorno, encontrei o Javier e os demais componentes de seu grupo, que retornavam naquele momento do “Alto do Poio”, nove quilômetros à frente, para pernoitar ali, mas, no dia seguinte eles prosseguiriam daquele local, para iniciarem a jornada do dia.

Tomamos um copo de vinho juntos, depois me retirei, pois eu também tinha a intenção de fazer jornada dupla em minha próxima etapa.

21ª etapa: O CEBREIRO à SARRIÁ – 42 quilômetros