O CENTRO DO CAMINHO II

05/04/2004 - Em Lourdes, defronte à Brasílica do Rosário

01- “Uma história e suas lições só se tornam úteis, quando compartilhadas” (Dan Millman)

A manhã apresentava-se fria e brumosa. Uma fina e incessante garoa deixava o ambiente envolto numa estranha névoa branca. Era uma terça-feira, dia 06/04/2004.

Eu me encontrava defronte a Gruta de Massabielle, em Lourdes/França, pronto para iniciar minha peregrinação rumo ao Santuário de Santiago de Compostela/Espanha. E, não sei porque, no meio de tanta gente, sentia-me sozinho, angustiado, como que perdido no meio daquela amplidão.

Já assistira à missa, e fora abençoado pelo padre capelão. Urgia partir, pensei. Incontinenti, fui acometido por um aperto no coração e uma sensação de desconforto, intraduzíveis. Porque se tratava de um momento de êxtase, exatamente o clímax de uma aspiração de toda a vida.

Lembrei-me, então, dos meses consumidos em pesquisas, estudos e planejamento que antecederam minha viagem. Uma preocupação perene em minha cabeça: como realizar meu intento, com sucesso? 

É claro que não se pode prever todos os detalhes numa empreitada desse porte, ficando sempre alguma coisa por conta da surpresa e do improviso. 

Certamente, eu sabia, não seria um Caminho de facilidade e conforto, mas, sob a força e o aguilhão das dificuldades e desafios. Eram essas elucubrações que oprimiam meu espírito, naquele momento decisivo.

Flébil, com os olhos fixos na imagem encravada entre socalcos rochosos, fiz minha derradeira prece a Nossa Senhora. Depois, resoluto, voltei-me para leste e movimentei meu corpo.

Tenso e emocionado, ao imprimir a passada inicial, sabia que depois dela viriam, ainda, outros 2,4 milhões de passos que eu necessitaria dar, para que eu pudesse atingir meu objetivo final. 

Talvez, por isso, no instante em que a bota tocou o chão daquele lugar impregnado de singular energia, senti o dedão do meu pé direito anestesiado, como se um projétil tivesse sido disparado em direção ao infinito. 

Neste momento, um arrepio percorreu minha espinha, pois, estava dada a largada!

02- “É preciso ser aquele tipo de pessoa que ouve com clareza uma voz em seu interior e decide segui-la, mesmo que para isso seja preciso enfrentar alguma, ou muita dificuldade” (Kendy Scott)

Minha aspiração em conhecer Lourdes, remonta a década de 60, quando, ainda seminarista, tive um sonho premonitório que me lembra esse lugar sagrado.

Contudo, a ideia de partir de lá, a pé, em direção à Santiago de Compostela, consolidou-se somente no final do ano de 2.003, quando vislumbrei a chance concreta de retornar ao Caminho. No entanto, meus anseios esbarravam sempre na exigüidade de tempo que dispunha para cumprir a longa jornada.

14/04/2004 - Finalmente em Puente de la Reina

Quando, por fim, decidi empreender minha odisséia, dimensionei a aventura, para cumpri-la no prazo máximo de 34 dias, já que não poderia extrapolar meu período de vacância profissional. Sem dúvida, um risco considerável, porquanto, os dados coletados, mensuravam 40 dias como sendo o tempo ideal para vencer o trajeto. 

A distância exata entre os extremos do Caminho, também era motivo de ampla polêmica. Os dados que, exaustivamente, coligi, através de mapas e guias espanhóis, estimavam o percurso total em 963 quilômetros. 

Entretanto, um "site" francês especializado em trilhas européias, que consultei certa ocasião, preconizava ser de 1.044 quilômetros, a extensão correta.

Ante tal divergência, consciencioso, optei pela média aritmética. Assim, salomonicamente, estabeleci em 1.000 quilômetros como o espaço total a ser percorrido. Dessa forma, para que eu pudesse levar a bom termo minha empreitada, eu necessitaria caminhar, diariamente, em média, 33 quilômetros, vez que planejava descansar um dia, quando estivesse próximo ao “meio” da jornada, exatamente em Burgos, a maior cidade que o Caminho atravessa, para conhecer, com detalhes, sua magnificente Catedral. 

Sobrepujar tal desafio exigiria de minha parte, sensatez, pertinácia, disciplina, e muita disposição. Além de contar com a sorte, pois estaria à mercê das intempéries e vicissitudes inerentes ao clima reinante, mormente, por se tratar de início da primavera européia.

Frente essa heterogênea gama de fatores a influenciar minha epopéia, entendi que somente ao completar a metade do percurso, teria uma radiografia completa de minha situação, qual seja, se meus devaneios estavam a se concretizar tal qual, adredemente, programara. 

Então, com geodésica precisão, demarquei onde ocorreria esse evento. Curioso e afoito, constatei, através dos mapas, que o quilômetro 500 seria vencido quando ultrapassasse a pequena vila de Rabé de las Calzadas, povoação situada 11 quilômetros depois da cidade de Burgos.

De imediato, tal localidade revestiu-se, para mim, de capital relevância. Afinal, como estaria o cronograma de viagem, quando lá aportasse? Fisicamente, estaria bem de saúde? E, psicologicamente, como estaria me sentindo? Enfim, essas questões, eu só saberia responder, efetivamente, quando superasse os percalços desse grandioso empreendimento.

Ainda, nessa época, enquanto arquitetava esse projeto, vicejava a expectativa, posto que, imaginava receber nesse lugar díspar, uma graça ou uma mensagem do Santo Apóstolo, notoriamente, quanto aos desígnios que me estariam reservados até o término de meu périplo. 

Para, também, num bosquejo rápido, delinear-lhe meus anseios.

É certo que eram meras suposições, calcadas em muita esperança, todavia, essa latente possibilidade vivificava meu fervor e infundia-me descomunal energia para a consecução de meu sonho.

Nesse contexto, novamente, o “Centro do Caminho”, transvestiu-se, como um ponto nevrálgico, um local estratégico e curial para repensar e reavaliar meus objetivos na viagem em curso.

03- “Passamos a maior parte da nossa vida, temendo coisas que jamais acontecerão.” (C.W.Braun)

Pesquisar, buscar o conhecimento sobre algo que julgamos importante, esmiuçar livros, mapas e guias, folhear atentamente cada página, sabendo que pode estar ali uma informação valiosa.

Isso é muito interessante e necessário, enquanto definimos nossa rota. Todavia, no momento em que encetamos a aventura, passamos da teoria para a prática: tudo, então se torna realidade. 

Muitas vezes, apesar de basilar desvelo, planos diligentemente elaborados podem num minuto se esboroar, como, por exemplo, diante de uma simples gripe, ou mesmo, de uma queda inesperada. Visto que, apesar de não se admitir, sabe-se que o vigor físico é uma dádiva aleatória atribuída pela natureza em consignação e confiscável sem aviso prévio.

Em meu caso, também, não foi diferente e, em várias ocasiões, precisei realizar correções, alterando o rumo, em face às surpresas que o Caminho reserva ao peregrino. 

Assim é que me perdi logo no primeiro dia, caminhei sob a chuva em algumas etapas, enfrentei forte nevasca ao transpor os Pirineus, sofri as limitações da língua estrangeira e outros reveses menos traumáticos.

Todavia, por graça e obra divina, as forças cósmicas conspiraram a meu favor, de forma que no 15º dia de viagem, superando minhas expectativas mais otimistas, pernoitei em Villafria, pequena vila operária, situada a apenas 21 quilômetros do “Centro do Caminho”.

04- “Toda travessia exige confiança no risco.” (Frei Beto)

No dia seguinte, caminhei por duas horas e cheguei no centro histórico de Burgos, essa que é chamada de Escudo da Castilha, região de El Cid, e antiga capital provisória do rebelde Movimento Nacional de Franco.

Sem sorte, naquele dia, o céu estava cinzento, as nuvens deslizando frenéticas com a ameaça de muita chuva. Rapidamente, registrei minha estadia num Hostal, depois saí para explorar a soberba Catedral Metropolitana de Santa Maria, o “ponto alto” de minha viagem. Porque, aquela era a edificação gótica mais importante e monumental que eu encontraria em meu percurso. 

A construção erguia-se, absoluta, no centro da arquitetura medieval da cidade, rodeada pelas casas, igrejas e palácios medievais feitos do mesmo arenito branco que o tempo e a poluição tinham tornado cor de chumbo.

Arcos pontiagudos, agulhas de torres rendilhadas, torreões, frisos e pináculos ornamentados se elevavam em direção ao céu. Só as gárgulas olhavam para baixo. Cada superfície de pedra foi entalhada, esculpida, polida, pesada e contrabalançada para formar um elemento vital num todo improvável, quase miraculoso. Apesar da massa acumulada, o templo parecia flutuar.

Curiosamente, os arquitetos responsáveis pela construção da Basílica, considerado um dos mais singulares monumentos do final do período gótico, foram um francês do século XIII e um alemão do século XV. 

O fundador da catedral, o Bispo Maurice (Mauricio) de Burgos, era inglês. Em 1218, ele viajou a Paris para o casamento do Fernando III, “El Santo”. 

Ao se deparar com a brilhante visão branca da Notre-Dame sendo erguida na Íle de la Cite, Maurice soube imediatamente que uma original arquitetura estava sendo concebida para dar forma a uma nova maneira de pensar, uma novel liturgia, “um novo homem”.

Três anos depois do seu encontro com o gótico em Paris, Maurice colocava a pedra angular na catedral de Burgos. Não surpreende que a construção tenha se inspirado na Notre-Dame, embora em escala menor, mais modesta. 

Infelizmente, a pureza arquitetônica original do edifício foi eclipsada por alterações e acréscimos posteriores mais ou menos no estilo rococó.

No interior do templo, aconcheguei-me num dos bancos e voltei meu olhar para o alto, em direção à estonteante cúpula mudéjar. Postei-me sobre as lousas tumulares de El Cid. Subi e desci a Escadaria Dourada. Senti-me estupefato com o esplendor elisabetano da Capela do Condestável, e esgueirei-me até a sacristia onde pude admirar a belíssima obra prima, de Leonardo da Vinci, “Maria Madalena”. 

Pude conhecer, deslumbrado, nos interiores, suas 19 capelas, que deixam os visitantes pasmos com tanta beleza. O ouro foi perdulariamente espalhado pelas paredes, colunas, capitéis, sacrários e nas guirlandas de flores que emolduram os altares. Mais maciçamente, ainda, nos resplendores e coroas, algumas até, cravejadas de preciosos diamantes.

Os cimácios, os florões, as volutas e caulículos dos capitéis, as absides da abóbada, as escapoles, os filetes, astrágalos e colaretes das molduras refletiam de mil formas os raios das centenas de lâmpadas que ornamentam a fantástica Catedral.

Não quero ter a pretensão de descrever a “féerie”, o deslumbrante espetáculo, que me tirou uma exclamação de espanto e me deixou por longo tempo de lábios entreabertos, com a respiração quase suspensa. Confesso, apenas, que três horas mais tarde, empós profícua visita, satisfeito, ao deixar o magnífico templo, estava atônito e realizado. 

À tarde, após, proveitoso almoço, saí para cortar o cabelo e comprar um cajado novo.

Mais à noite, depois de jantar, voltava lentamente ao local de pernoite, quando, apreensivo, ouvi na televisão a notícia de uma nova frente fria que chegava. 

Como se a referendar tal informação, o céu, rapidamente, se ensombrecera de escuras nuvens baixas. Respirava-se na atmosfera a tensão que prenuncia as trovoadas e, para confirmá-lo, o primeiro relâmpago rasgou os ares no momento preciso em que adentrava ao meu quarto. Logo em seguida, o temporal abateu-se, com violência.

Preocupado, pus-me a tergiversar sobre o que me estaria reservado para o “amanhã”, tão aguardado. Obviamente, pensei, o “encontro” tão ansiado, sob chuva, não se revestiria do mesmo brilho. Assim, demorei a dormir, e os últimos pensamentos da véspera foram os primeiros que acudiram ao despertar no dia seguinte.

Na madrugada, acordei ao som de respingos batendo na vidraça. Quando olhei pela estreita janela do apartamento, torrentes de água desciam pelo telhado vizinho. Lá fora, estendia-se uma paisagem urbana envolta numa névoa opaca e sem sombras. Esse, infelizmente, era o verdadeiro início da primavera na Espanha.

Diante desse quadro, às 6 h da manhã, parti sob um chuvisco leve, que logo cessou. As pedras do calçamento estavam brilhantes e escorregadias, porém tudo o mais, as fachadas das lojas, o céu, as pedras das edificações medievais, tinha ficado de um cinzento insípido.

Caminhei pelo “Paseo del Espolon” e, mais à frente, cruzei a “Puente de los “Malatos” (Ponte dos Doentes) que une as margens do belo rio Arlanzón, curso d’água que corta toda urbe. Logo em seguida, adentrei pelo portão senhorial, ao imenso Parque El Parral.

Uma belíssima alameda conduziu-me a uma grande clareira, entre altas árvores, onde se encontra instalado o albergue municipal. O conjunto se constitui em duas casas de madeira e alguns contêineres de aço. Tudo se encontrava escuro e silencioso.

Assim, segui em frente e, meia hora depois, deixei a zona urbana, em direção às planícies e as mesetas da Província de Castilla e León.

21/04/2004 - Monumento ao peregrino em frente à Catedral de Burgos

05- “É inerente a toda intenção e a todo desejo, o mecanismo da sua realização.” (Deepak Chopra)

Nuvens altas, viajando rumo ao ocidente, céleres algumas e mais lentas outras, deixavam a descoberto pequenos trechos de céu. A incipiente luz do dia, chegando sem pressa, foi apagando a Via Láctea, fulgurante de estrelas, que estava desenhada sobre minha cabeça. 

Uma hora mais tarde, ultrapassei a cidadezinha de Villalbilla. Ali, muitos jardins e árvores floridas adornavam casinhas sonolentas. O sol ainda não apontara, mas uma faixa mais clara, de um cinza azulado, colocava em evidência as silhuetas dos bosques, formando uma admirável moldura onde a paisagem dos campos em colinas suaves, apareciam em relevo como se fosse uma fotografia estereoscópica.

No momento em que eu passava defronte ao prédio, um peregrino deixou o albergue local no afã de iniciar sua jornada diária. Polidamente, cumprimentou-me. Depois, indagou meu nome e procedência. Feitas as apresentações, descontraídos, seguimos em frente, conversando.

Julio era um espanhol de meia idade, alto e encorpado, que residia em San Sebástian, capital do País Basco. Sua voz era forte e estimulante, e sua mente trepidava com um milhão de pensamentos.

Conforme me confidenciou, já fora investigador, profissão com a qual, não se compatibilizara. Desgostava-lhe, lembrar seus dias na polícia civil, quando cometera inúmeros erros. Disse-me, que havia um fator de perdão, um cânone de seu passado, que nunca o deixara por completo.

Atualmente trabalhava como vendedor de insumos agrícolas. Enquanto discorria sobre sua vida e hábitos, olhava incessantemente para o firmamento. Um pouco à frente, calcado em sua vasta experiência sobre o clima local, prognosticou que enfrentaríamos uma tempestade em breve.

Quando atravessávamos um grande túnel por debaixo da auto-estrada, ele optou por uma parada estratégica, com a intenção de vestir suas perneiras. Era uma intrincada operação que exigia desembaraçar-se da mochila, descalçar as botas e tirar as meias, de forma que, após despedir-me, resolvi seguir sozinho.

Nem bem havia deixado o local, recebi os primeiros pingos grossos de chuva que, como uma cortina cinzenta, me barrava a vista uns trezentos metros à frente. Retornei correndo, e me abriguei sob a passagem subterrânea.

Durou por volta de uns 20 minutos, se tanto, o tremendo dilúvio, e cessou repentinamente, quase sem haver diminuído de intensidade. O céu azul apareceu entre nuvens, e não fossem as enormes poças d’água que se formaram na trilha, não se poderia dizer que houvesse chovido. 

Mais meia hora de caminhada, e cheguei à Tardajos, histórica cidade, que foi edificada sobre antigos assentamentos romanos, e ficava à margem de uma das tantas vias calçadas que esse povo construiu, para interligar seus domínios conquistados.

Na entrada do povoado fiz uma pausa num bar para merecido descanso. Um senhor de idade atendia ao balcão com extrema cortesia. Sobre uma prateleira, num quadro, notei uma fotografia em sépia de um casal jovem e bonito e, apesar das fisionomias graves, presumi ser um retrato do casamento dele.

Primeiramente ingeri um café. Em seguida, para rebater o frio reinante e me acalmar, bebi um copo de inebriante vinho tinto. Já do lado externo do estabelecimento, resolvi mordiscar algo que levava. Os pêssegos que vorazmente degluti, estavam tão aprazíveis, que ainda retenho na mente o sabor e o aroma daquelas frutas deliciosas.

Segui, pela “Calle del Mediodia”, passando ao lado de magnífica igreja dedicada a Nossa Senhora de Assunção, uma construção majestosa, imponente, toda de pedra, numa praça cercada de árvores. 

Logo à frente, cruzei o rio Ubierna, por sobre a Ponte do Arcebispo, onde a história diz que o cavalo de Alfonso VI esteve a ponto de tirar-lhe a vida. E ali, o dia que se desenhava claro, voltou a nublar. Por conta disso, mais adiante, sombras imensas, caíam diagonalmente do alto das árvores, obscurecendo o caminho.

Um tanto receoso prossegui por uma estrada vicinal asfaltada. O tempo fechado entristecia os campos ao meu redor, mas, em compensação, auxiliava-me com uma temperatura fresca e úmida.

Intimamente, sentia-me excitado e um tanto hirto. A energia mágica do Caminho absorvida em grandes doses, nos dias precedentes, literalmente, me intoxicara. A inquietude vinha do fato de a aventura aproximar-se de seu ápice, e de não ter ainda recebido nenhuma “mensagem espiritual” do Santo Apóstolo.

06- “O que torna belo um deserto, é sabermos que ele esconde um poço em algum lugar.” (Saint Exupéry)

Vinte minutos depois, finalmente, avistei Rabé de las Calzadas, local onde, conforme a história, se uniam as vias romanas, daí a origem do nome. Segundo o Guia “El País”, a cidadezinha abarca uma extensão de apenas 11 km2 e conta com uma população de, aproximadamente, 180 pessoas.

O dia permanecia plúmbeo e sem sol. Algumas casas do povoado utilizavam-se de lenha para alimentar suas calefações. Nessas, a fumaça evolava das chaminés, placidamente, em espirais, cumulando o ar com um cheiro acre e uma névoa tingida de amarelo;

O sino da igrejinha dedicada a Santa Marina, obra do século XVII, repicou anunciado que era exatamente 9 h. O rítmico bimbalhar fez aflorar em meu íntimo certa melancolia, pois cada badalada entronizava-me a imagem e a saudade daqueles que singraram por aqueles recantos campestres, em tempos de outrora. 

Circunspeto, adentrei a povoação, seguindo as flechas amarelas. Ao mesmo tempo, procurei manter a mente e os sentidos em alerta, na expectativa de algum “recado”, objetivo ou subjetivo, que ali estivesse reservado para mim. Na verdade, buscava uma espécie de oásis sacro, capaz de revigorar-me e reorganizar minhas energias. 

Numa ruazinha tortuosa, fleti, à esquerda, em direção ao templo. Que, para minha decepção, se encontrava fechado. A pequena vila mais parecia um cenário fantasma, taciturna, sem vivalma na rua. 

Desconsolado, desvencilhei-me da mochila e, juntamente, com o cajado, depositei-os junto à porta da igreja. Depois, sentei-me no umbral pensativo. Imaginei que alguma luz iria se acender, ou alguma alma bondosa iria se materializar para me dizer algo.

Esperançoso, aguardei. Quinze minutos, uma eternidade, se passou. Nada aconteceu. “Ouvia-se”, apenas, um silêncio amargo e recalcitrante. O marasmo que imperava principiou a me asfixiar. Impaciente, deixei ali meus pertences e fui dar um giro pelas imediações. 

Um carro trafegou lentamente a meu lado. Uma senhora cruzou a esquina de baixo, sobraçando um embrulho. Ouvi, à distância, subindo pela rua paralela, um grupo de jovens, álacres e irriquietos, gargalhando a miúdo. Certamente, rumando à Compostela.

Definitivamente, Santiago se esquecera de mim, ponderei, consternado. Também, raciocinei, não era sua culpa exclusiva, afinal, eu marcara encontro com ele ali, no 18º dia de minha jornada e, simplesmente, estava adiantado em 24 horas.

Decepcionado, resolvi partir. Antes, porém, ajoelhei-me na pequena escada que fronteava a ermida e fiz minhas preces. Compenetrado, orei por clareza e graça, e percebi, como nunca antes, que eu era uma alma necessitada. 

Em seguida, desenxabido, deixei vagarosamente o local, coração contrito ante as incertezas que me aguardavam até o término da peregrinação. Na verdade, intimamente, sentia-me sufocado pela amargura de meu desapontamento.

Creio que minhas feições externavam aflição e desalento, pois um senhor idoso me abordou na esquina, com ar de compaixão misturada com piedade. Ele examinou meu rosto atentamente, e talvez tenha visto nele a ambivalência de meus sentimentos.

O velhinho ostentava belos cabelos brancos e olhos de um azul-leitoso. Embora estivesse bem vestido, capote de lã e cachecol no pescoço, percebi que havia conhecido pesado labor no passado. A prova irrefutável de décadas de trabalho duro estava em suas mãos, esculpidas pelos duros ofícios, as mesmas que sustinham uma trabalhada bengala.

- “Bueno dias” peregrino! Que procuras? - Perguntou-me.

- Desejava conhecer a igreja. A que horas será aberta? - Inquiri-lhe.

- Infelizmente, apenas à noite, para a missa diária, respondeu-me. Durante o dia todo, somente nos finais de semana, complementou.

Estávamos numa sexta-feira, raciocinei, de forma que seria inviável aguardar. E, eu ainda tinha muito chão para vencer. Assim, agradeci ao amável ancião e segui em frente.

07- “Reconhece-O em todos os teus caminhos e Ele endireitará as tuas veredas.” (Provérbios 3:6)

22/04/2004 - Em Rabé de las Calzadas, ultrapassando o "Meio do Caminho" .

Ao dobrar a esquina, adentrei numa pequena praça. Atravessava-a, lentamente, quando um intrincado chafariz, instalado em seu centro, despertou vivamente minha atenção. Atabalhoado, me aproximei, perlustrando, detidamente, pois a construção afigurava-se familiar.

Verificando, “in loco”, constatei que se tratava de uma pequena fonte, porém suas formas requintadas e nada convencionais, destoavam com a sisudez, simetria e circunspeção do casario edificado à sua volta. 

Primeiramente, tentei colocar em ordem os pensamentos que insistiam em fugir do padrão metódico e organizado, aplicados em todas as minhas atitudes.

Depois, postei-me a mirá-la, fria e silenciosa, que, tal qual a esfinge, desafiava minhas reminiscências com seu mistério: decifra-me ou devoro-te, parecia dizer. Intrigado, quedei-me absorto, em meditativa contemplação.

Repentinamente, tudo aquilo, adquiriu contornos de crucial significância. Pois, aquele “enigma” inesperado, poderia, de alguma forma, desvanecer o auspicioso “encontro”, que eu tanto aguardava. Essas idéias rodopiavam a meu redor, arrastando-me por uma correnteza turbulenta.

Em silêncio, refleti sobre o que via, enquanto sentia as sinapses nervosas disparando feitos dominós, pela minha espinha. Depois, encasquetado, volteei lentamente ao seu redor, milhões de neurônios investigando ostensivamente os recônditos de minha imaginação, buscando resgatar lembranças fugidias. 

Por alguns instantes penetrei numa dimensão prescrita por leis fundamentalmente diferentes, e meu mundo e todos os seus parâmetros pareciam estar em outro universo.

Num átimo, caiu-me um raio na fronte. A memória cognitiva estava melhorando e as recordações não tardaram a emergir, trazendo-me flashes de fatos ali ocorridos. Eu estava literalmente voltando no tempo como se, inopinadamente, um portal estivesse se abrindo naquele instante. 

Minha cabeça estava rodando um pouco, como se eu tivesse recebido um transplante cerebral. E, graças à providencial “insight”, imagens como que congeladas, ganhavam vida. Porque, recordei-me de um livro que lera tempo atrás, em que o autor, com grande dose de hilariedade, relatava uma passagem ocorrida naquele preciso lugar. 

Que captara, sobremaneira, minhas acuidades, pela forma com que o formidável escritor, narrara minuciosamente, o hercúleo esforço de alguns habitantes da vila, para satisfazer simples desejo manifesto por um peregrino obcecado. 

Lembrei-me, nitidamente, do episódio em comento, porque, na época, rira desbragadamente ante a pormenorizada descrição dos fatos que confluíram para colimar tal incidente. 

Para confirmar minhas suposições, afastei-me um pouco para um lado, e pude observar que os pontos estratégicos lá mencionados conferiam, em exatidão, com os que observava naquele momento.

Minhas dúvidas, ora dissipadas, corroboravam a sensação de que, através daquele anárquico epigrama, Santiago estava a me transmitir uma simples, porém, inequívoca “liturgia”. Restava-me, apenas, interpretá-la. 

Imediatamente, fui tomado por uma sensação de benção e paz, como se estivesse recebendo um abraço carinhoso. 

Recostei-me, então, na grade protetora da pracinha e, meticulosamente, fui reprisando, “pari passu”, os acontecimentos que ali tiveram palco, tempos atrás, numa longínqua manhã de junho. 

Para deleite e avaliação do leitor, transcrevo o texto elaborado com esmero, objetividade e clareza, pelo magnífico escritor peregrino Máqui Santér, inerente ao caso sobredito:

22/04/2004 - Em Rabé de las Calzadas, fonte no centro da cidade.

08- “Só uma coisa torna um sonho impossível: o medo de fracassar” (Paulo Coelho)

Capítulo 20: “DE BURGOS A CASTROJERIZ”

“Parti de Burgos pouco depois das sete horas da manhã, mas só achei a saída da cidade por volta das oito horas. Havia descansado o suficiente para que as bolhas não me incomodassem muito e felizmente a dor no tornozelo desaparecera. O ar da manhã ainda estava fresco, mas o céu, muito azul, prometia sol quente a partir das nove horas.

Eu estava sozinho e feliz. Perto de Tardajos, tirei a mochila e recostei-me numa pedra para saborear uma maçã e a solidão. Senti o gosto, mas só da maçã. Dois peregrinos espanhóis surgiram do nada e foram logo se apresentando e se instalando ao meu lado.

Eduardo e Eduardo são dois senhores barrigudos e corados, equipados com o que há de mais bizarro disponível nas prateleiras das lojas de artigos de camping. O mais gordo, que chamarei de Gordo, vestia calças jeans, um agasalho de lá – de um vermelho que deixaria qualquer touro de Madri louco de raiva – botas de caça e uma mochila pequena, provida de uma complicada armação de alumínio. Eduardo Magro usava um chapéu de turista americano, jeans, botas e mochila idênticas às do companheiro.

Depois das conversas habituais, insistiram muito para que fizéssemos juntos o trecho até Castrojeriz. Eu ainda tentei protestar, mas eles se mostraram irredutíveis.

- Fazemos questão de que vá conosco. Gostamos do Brasil e seria uma honra se nos acompanhasse, não é mesmo, Magro?

- É claro, Gordo. Seria mesmo uma honra.

Eles me lembravam Mutt e Jeff, o Gordo e o Magro, Dupont e Dupont e todas as outras duplas engraçadas. Eram gentis e afetuosos. Não resisti e concordei em abandonar a minha solidão mais uma vez. Em pleno Caminho de Santiago de Compostela, eu não conseguia ficar sozinho.

Os Eduardos são velhos companheiros, prósperos comerciantes de Pamplona e estavam decididos a percorrer o Caminho por pura diversão. Hospedavam-se em hotéis, comiam nos melhores restaurantes do percurso e, no dia seguinte, afivelavam as estranhas mochilas camufladas e se transformavam em peregrinos. Contaram histórias engraçadas de caçadas e notei que queriam me impressionar com um passo rápido, um ritmo extraordinariamente puxado para uma peregrinação. Eu tinha duas saídas: ou aceitava aquela maratona, mesmo pesado como estava, ou, simplesmente, parava para descansar e seguia o resto da viagem sozinho. Por patriotismo e vaidade, decidi prosseguir. Se desistisse, os Eduardos iam espalhar a notícia até Santiago que um rapaz brasileiro não tinha agüentado o passo firme de dois senhores mais idosos, duros caçadores espanhóis. Primeiro, eu os estimulei a falar, depois, à medida que meu corpo ia se aquecendo, comecei a aumentar as passadas. Por fim, criei um ritmo confortável para o tamanho das minhas pernas e assisti ao declínio da performance dos dois. Eu estava três vezes mais pesado que os dois juntos, mas era quinze anos mais moço, tinha botas melhores e estava caminhando desde a França. Depois de vinte minutos de pressão, Gordo e Magro já não desfilavam com o mesmo garbo de antes. Gordo mancava e Magro estava tristemente calado. Ficaram satisfeitos quando eu sugeri que parássemos um pouco na fonte de Rabé de las Calzadas. Francamente eu também não iria agüentar aquilo muito tempo, mas aquele trecho serviu para que eles vissem que eu não iria ser um estorvo. Pelas passadas longas e pelo ritmo que eu tinha imposto, apelidaram-me de Galgo.

Rabé se parece com os outros povoados do Caminho, a não ser por um detalhe arquitetônico que acabou se transformando numa parábola. No centro da praça havia uma fonte que destoava completamente do estilo medieval das demais construções. Era uma fonte moderna, horrorosa, diria eu, imitando numa versão apressada e descuidada, os rebuscados ângulos da “art nouveau” e misturando isso com os ângulos arrojados das esculturas modernas. Um monstro sem estilo, o Frankenstein das fontes de praça. Magro sacou a câmera fotográfica e pediu que ficássemos em frente à fonte. Uma velha assistia a tudo da janela. Magro tirou uma foto, depois reclamou que ficaria mais bonita se a fonte estivesse ligada, jorrando água pela boca do que pareciam ser pequenos leões, anjos ou talvez, cinco macaquinhos de mãos dadas – esse é o problema das esculturas modernas. A velha ouviu o comentário e gritou para que esperássemos um instante. Saiu à rua com passos miúdos e, com as mãos trêmulas pela idade, tentou ligar o registro de água da fonte. Não aconteceu nada. Magro tentou, depois o Gordo e até eu tentei, mas as esculturas não cuspiam nem uma gota. A velha atravessou a rua e chamou duas senhoras que moravam em frente. As três examinaram cuidadosamente a fonte como faria em esquadrão antibombas. Nenhum registro foi esquecido, mas a fonte continuava seca feito o Saara. Eu já estava impaciente. Tínhamos perdido meia hora e nem era uma fotografia importante. Além disso, doía-me o coração ver a velha, de quase oitenta anos, de joelhos, tentando achar a chave mágica para a fonte.

- Gordo, diga que agradecemos e que já temos uma foto da fonte. Estamos dando muito trabalho para essa gente – protestei.

- Não é bem assim, Galgo. Acho que é difícil para você entender – Gordo se afastou e foi fazer a sua tentativa num dos registros.

Uma das senhoras foi chamar o fulano de tal, que era um verdadeiro especialista em fontes, mas voltou com a triste notícia de que ele tinha viajado para Burgos. Mas nem tudo estava perdido. Um outro fulano tinha sido chamado e já estava a caminho. Enquanto isso, o esquadrão antibombas prosseguia na sua análise, esquadrinhando cada centímetro daquela fonte que não tinha mais de dois metros de diâmetro. Os pequenos leões, anjos ou macacos de pedra assistiam impassíveis àquele esforço. Nenhuma gota.

Eu já tinha desistido. Recostado à sombra, sem a mochila, assistia àquela confusão sem acreditar que, por causa de um inocente comentário e um jorro de água, estávamos em Rabé havia quase uma hora.

O especialista suplente chegou. Vinha sem ferramentas o que indicava um intelecto superior, uma confiança absoluta na capacidade do cérebro. Com uma olhadela examinou os registros e sacudiu a cabeça como fazem os neurologistas ao examinarem a tela de um monitor de tomografia. Atravessou a rua e abriu um registro secreto, uma chave acessível só aos grandes iniciados. Então os anjos, leões ou macacos jorraram água em abundância. Eram cinco esguichos de um metro de altura, mas foram recebidos como se fossem petróleo puro. A sensação que eu tinha era de que aquelas senhoras iriam correr pelas ruas e badalar os sinos da igreja, convocando o povo para a festa, com banquetes, barraquinhas e fogos de artifício. A fonte finalmente jorrava.

Solenemente, Magro reuniu todos os participantes e tiramos uma fotografia. A posteridade podia ficar descansada. Aquele momento está documentado para sempre.

Nos despedimos do povo como se tivéssemos combatido e vencido juntos um terrível inimigo. Eu admirava aquilo tudo, mas francamente não conseguia entender a razão de tanto empenho.

- Gordo, por quê todo esse trabalho?

- Não sei como é no Brasil, Galgo, mas tudo isso é muito importante para essa gente. Eles tem orgulho da fonte. Não acontecem muitas coisa por aqui e tenho certeza de que falarão do dia de hoje pelos próximos três meses. Contarão que muita gente que vem de longe faz questão de fotografar a fonte de Rabé de las Calzadas. É como eles vivem, é como eles são.

Aprendi, Eduardos. É como eles vivem, é como eles são. 

Chegamos a um acordo quanto ao ritmo da caminhada e por volta das duas horas da tarde, estávamos em Hornillos del Caminho. Dali até Castrojeriz, o Caminho é difícil e segue longe da rodovia. Só em Hornillos, entendi a complexa armação de alumínio das mochilas dos Eduardos. Num passe de mágica, elas se transformam em confortáveis banquinhos camuflados. Como mochilas, são desconfortáveis e não guardam muita coisa, mas como banquinhos, são um sucesso. Tratei de uma bolha do Gordo e retomamos a caminhada, num passo mais lento, até Hornilos del Camino, por um trecho difícil que corta um planalto.

Em Hornillos, fica o Hospital de San Lázaro, lembrança medieval de um povoado que parece se manter intacto há muitos séculos. Há um refúgio, mas decidimos considerar a etapa terminada apenas em Castrojeriz. Quando o sol baixou um pouco retomamos o trabalho.

Em Hontanas, 11 quilômetros depois, fomos convidados a saborear o gosto da velha Espanha. Quatro senhores haviam instalado uma mesa junto a uma “cave” talhada na colina bem na entrada da cidade, e gritaram lá do alto, que faziam questão de nossa presença.

Hontanas não é nenhum povoado rico nem próspero, e aqueles senhores vestiam-se humildemente, mas ofereceram tudo o que tinha, desinteressada e generosamente. Provei todos os vinhos e bebi várias cervejas. Aprendi a usar o “porrón”, uma garrafa especial para se beber vinho, e comi carne o suficiente para deixar sem fala os meus amigos vegetarianos do restaurante Mandala. Não é exagero dizer que Hontanas nos recebeu com uma festa, um festival de hospitalidade e generosidade, o que acontece em poucos lugares do mundo.

Chegamos a Castrojeriz por volta das sete horas da noite. Os Eduardos iriam para o melhor hotel e eu para o refúgio. Nos despedimos como fazem os bêbados e os velhos companheiros de armas e tenho certeza de que se não fosse por eles, meu Caminho não seria tão colorido e eu não teria aprendido uma lição importante na fonte de Rabé de la Calzada. 

(Capítulo 20, do Livro: “Guia do Peregrino do Caminho de Santiago” - fls. 112/117 – 3ª Edição – autor: Maqui – Editora Ground.”)

09- “Então, andarás confiante pelo teu caminho, e o teu pé não tropeçará.” (Provérbios 3:23)

Ao concluir minhas rememorações, sentia-me radiante e gratificado. Os duros momentos de decepção haviam trazido consigo uma lucidez diferente de tudo o que jamais sentira. Porque, me ocorrera algo surpreendente, entretanto, de uma lógica inabalável.

O episódio, como um todo, ensejava solidariedade, vitória, comemoração, alegria. Depois, a escultura em evidência, clarificava-se como um ícone sagrado. Exatamente, porque toda fonte é sinônimo de nascente, ou seja, imorredouro manancial de vida.

Assim, intuí, que me restava insofismável e alvíssara a figura do Santo a transmitir confiança e tranquilidade por todo o restante de minha jornada, mesmo que de maneira simbólica, através daquela singela obra de arte.

Ainda, de plano, emergia cristalino um epíteto que sobressaia em todo o “incidente” ali ocorrido: “Superação!” E, qual a conexão de tudo isso, perguntei? A “reverência” pela vida, depreendi.

Sim, porque aquela gente simples labutara incansavelmente, com um único objetivo: sobrelevar todos os obstáculos possíveis e inimagináveis para comprazer os equipáticos peregrinos, que por ali transitavam naquela agradável manhã primaveril.

Relembro vivamente aquele dia, visto que, com aquele abnegado gesto, eles estavam exercitando o elo afetivo que os unia, e comungando o sadio ideal de fraternidade.

Esse exemplo de dignidade saltava aos olhos como paradigma a acrisolar minhas convicções de ora em diante. Porquanto, as atitudes ali externadas, englobavam, além de atos, verdades adamantinas e incontestáveis. E eu tinha a intenção de professá-las.

Posto que, nenhuma história existe isoladamente. Elas às vezes se justapõem, como azulejos numa parede. Noutras mais, se superpõem, umas às outras, como pedras no leito de um rio. E, em meio à conturbada aventura que eu vivia, o Santo legara-me essa aprazível lembrança. Inesperada e bela, como uma flor em um cacto.

Depuradas as lições ali insertas, fui invadido por uma extraordinária sensação de serenidade e esperança, uma percepção tão nova e poderosa, que fazia valer a pena aceitar os desafios que, certamente, adviriam pela frente.

Ato contínuo, coração desoprimido, prossegui minha jornada. 

Cinquenta metros à frente, reencontrei-me com a segurança e o beneplácito das flechas amarelas. Em marcha célere, passei ao lado do minúsculo cemitério local e, em seguida, deixei a zona urbana rumo à extensão lisa e monótona do planalto espanhol.

Quinze dias depois, aportava à Compostela incólume, sem padecer de nenhum transtorno ou intercorrência.

10- “Não existe o esquecimento total: as pegadas impressas na alma são indestrutíveis.” (Michel de Quincey)

Em Santiago, após assistir e participar das cerimônias religiosas do Ano Santo, bem como cumprir as libações de praxe, finalmente, chegou a difícil hora do retorno à realidade. Momento doloroso, em que nos assomam uma cornucópia de sentimentos fortes e contrastantes.

Visto que, partimos com o recôndito atribulado cada vez que encerramos mais uma peregrinação, onde passamos deliciosas horas em contato com a natureza, no convívio irmanado com os outros peregrinos, longe das convenções hipócritas da sociedade, e esquecidos das contingências materiais da existência.

Antes, porém, de deixar a cidade, num requintado bar do “casco viejo”, ingeri um copo de vinho “caliente”, dourado e doce, que me instalou no estômago e na alma, uma impressão celestial.

Em seguida, sentei-me na Praça do Obradoiro, rosto crispado, em transe, querendo estereotipar em minha memória, a fantástica visão da Catedral Compostela. E já sentia saudades de tudo, nostalgia, tanto mais pungente, quando sabia, talvez, nunca mais voltar àquelas maravilhosas paragens.

Depois, fui despedir-me do Santo Apóstolo. Com o propósito de agradecer pelo imprescindível tempo disponibilizado para refletir e orar, propiciando-me uma compreensão mais profunda de minha fé hesitante e permeada de dúvidas. E, também, pelas inúmeras graças divinas auferidas ao longo do Caminho.

No amplexo derradeiro, a certeza de que era um adeus definitivo, e só nós dois sabíamos disso. Mas, não tinha nenhuma importância. Porque cada um carregaria o outro, para sempre, em local privilegiado, dentro do coração.

Bom Caminho a todos!

Março/Abril-2.006