27 - CAMINHO TORRES: O DIA EM QUE QUASE CONGELEI!

Em junho de 2018, um peregrino português, o meu grande amigo Aurélio, percorreu o Caminho Torres, desde seu início em Salamanca até Santiago de Compostela, num total de 600 quilômetros e, praticamente, me intimou a imitá-lo, provendo-me de valiosas informações, pois trata-se de um itinerário extremamente ermo e silencioso, bem do tipo que eu gosto.


Na verdade, o traçado inaugurado em 2010 buscou retratar o mais fielmente possível o roteiro percorrido em 1737 por Dom Diego de Torres Villarroel, um professor de matemática que lecionava na Universidade de Salamanca, e que, face à sua ebulição interior caminhou ao lado de um amigo “escolhido a dedo” e demorou 5 longos meses para atingir seu objetivo.


Este homem dos mil ofícios (escritor, poeta, dramaturgo, médico, matemático e professor) deu nome ao percurso – daí Caminho de Torres –, partiu de Salamanca com criados e muares, mas chegou a Braga praticamente sem calças e descalço, e no fim do trajeto, considerou que esta teria sido, sem dúvida, a prova mais penosa da sua vida e escreveu o livro Peregrinación al glorioso Apóstol Santiago de Galicia, onde descrevia todo o itinerário.


Bem, já eu, vivendo em uma época mais moderna e onde há outras facilidades, segui despojado e viajando escoteiro, me preparei para completar o trajeto em 23 dias, meta alcançada com sucesso.


Contudo, imprudentemente, eu viajei na primeira semana da primavera à Europa, pouco tempo depois da Península Ibérica ser assolada por um longo período de chuvas e, quando lá aportei, uma massa de ar estava enregelando o clima em todo o continente, tanto que ao desembarcar do trem em Salamanca, às 13 h, fui recebido com rajadas de vento, temperatura na casa dos 13°C e já em franco descenso.

Em Salamanca, na véspera de iniciar minha aventura.

No dia seguinte eu levantei bem cedo e me preparei adequadamente para a jornada, depois, animado e expectante, às 5 h 30 min, sob um ar frígido, temperatura na casa de 2 ºC, deixei Salamanca, o “Marco Zero” desse roteiro e a cidade de Don Diego de Torres Villarroel, e, em descenso, transitei por ruas ventosas e vazias.


O frio revigorante logo infiltrou-se por todos os vãos desprotegidos de minha indumentária peregrina e com o primeiro arrepio a aventura começou de verdade,


Mais abaixo, quase deixando a urbe, eu atravessei o majestoso rio Tormes por sua ponte romana, cuja construção data do ano 100 d.C, época do governo do imperador Trajano, na certeza de que meu predecessor seguira esse mesmo itinerário, no ano de 1737.


Nesse sentido, os primeiros quilômetros transcorreram insossos, pois foram trilhados sobre piso duro, e passariam em branco, não fosse por um detalhe funesto, ocorrido próximo da urbanização Peñasolana, quando parei ao lado de um zorro (raposa) atropelado há pouco, e percebi que suas costas estavam rachadas de ponta a ponta, a penugem tremia ao vento e o sangue era fresco no piso asfáltico.


Isto me fez pensar na morte de forma genérica, pois não fazia muito tempo ele ainda estava vivo e poderia ter sido eu em seu lugar, já que éramos os elos fracos da cadeia de seres na estrada.


A exposição era nossa fragilidade, mas também era nossa força, presente no sentido de alerta constante que nada mais é um tipo de amor à vida, por isso, senti um misto de tristeza e de respeito por sua morte.


Seguindo em frente, depois de caminhar 12 quilômetros e transpor a rodovia A-62 por uma passagem elevada, pude desfrutar de todo o esplendor da Cañada Real, um caminho ancestral, utilizado para o pastoreio de gado que, como era habitual nesse tipo de via, não perpassa em zonas habitadas.

Pelo caminho, longos retões silenciosos e vazios.

A partir desse ponto, só encontrei 3 grandes fazendas de exploração agropecuária, cujas sedes situavam-se bem longe da estrada e nesse intermeio, pude desfrutar de quietude e ermosidade, enquanto eu transitava entre suas extensas pastagens, onde abundavam as encinas, árvores típicas da região.


Seguiram-se, durante todo o trajeto, grandes estirões retilíneos, integralmente desertos e silenciosos, que fui vencendo sem maiores atropelos, enquanto o piso, quase sempre em terra e com poucas pedras, passava agradavelmente sob meus pés.


Infelizmente, fazia muito tempo que não chovia na região, então, encontrei, salvo raras exceções, tudo muito seco, já que a primavera ainda não se fazia presente, com flores e verdes em muitos matizes e, embora o sol brilhasse forte a partir das 8 horas, o clima prosseguiu frio, ideal para minha expectante caminhada.


Finalmente, às 13 h, depois de percorrer 34 quilômetros, eu cheguei a Robliza de Cojos, uma agradável vila, onde o “Ayuntamiento” habilitou um local para os peregrinos se alojarem em uma velha escola, vizinha à antiga residência do médico.


Dona Concha, uma das voluntárias e administradoras do improvisado “refúgio”, me levou até o local de pouso, onde encontrei somente 2 colchões colocados sobre toscos estrados de madeira, além de três banheiros, porém não havia calefação, cobertores, lençóis, travesseiros, cozinha, água quente e nem duchas para banho.

O local onde pernoitei nesse dia. Bastante despojado..

Já sabendo de antemão o que me aguardava e como nos demais albergues sequentes eu encontraria todos os acessórios necessários para uma boa noite de sono, eu não levara meu “saco de dormir”, apenas, portava 2 pequenas mantas de lã, uma para forrar o colchão e a outra para me cobrir, muito pouco, confesso, para enfrentar o rigor da temperatura que se avizinhava.


Assim, indaguei à empedernida hospitaleira se não poderia me emprestar um cobertor, como forma de amenizar meu desconforto térmico, porém ela respondeu negativamente, enfatizando que já não utilizava tal anteparo em sua moradia, pois lá dispunha de eficiente calefação e, isto dito, virou as costas e disparou de volta à sua residência.


Depois de um banho improvisado, onde só foram lavados os itens extremamente necessários, caminhei 1.500 m até um Posto de Gasolina 24 horas, edificado junto à rodovia A-62, onde há um restaurante e outros serviços como “cafetería” e uma “tienda”, e foi ali que almocei nesse dia um delicioso “menú del dia”, por 10 Euros, além de ter acesso à internet.


E o que me deixou terrivelmente preocupado, foi saber que a meteorologia previa que à noite a temperatura chegaria a 3ºC em Robliza de Cojos, exatamente, o lugar onde eu me encontrava.


De volta ao meu “apartamento”, deitei para descansar, porém 2 horas mais tarde eu acordei tremendo de frio, embora estivesse vestido com todo o vestuário de que dispunha, inclusive, com meias e um gorro improvisado.


Sabendo que na pequena vila havia um bar situado próximo das piscinas municipais, que oferecia um cardápio de lanches variados e só abria depois das 15 h, para lá me dirigi, contudo o simpático atendente disse que naquela semana não poderia preparar nada alimentício, pois sua patroa e a cozinheira do estabelecimento estava visitando uma irmã enferma.


Estimulado, sentindo receptividade e confiança no meu interlocutor, coração aberto e língua destravada por duas doses de conhaque, contei-lhe sobre o meu problema no albergue e falei-lhe de minha preocupação quanto ao frio e ele, após refletir um instante, sugeriu que eu fosse dialogar diretamente com o prefeito da cidade, inclusive, me forneceu seu endereço, localizado uma quadra abaixo.


Porém, quando lá cheguei, a esposa do nobre alcaide me informou que ele fora a um “pueblo” próximo a negócios, mas que ele me atenderia prontamente após às 19 h, assim que retornasse de sua urgente viagem.


Antes de ir ao Posto de Gasolina ingerir o repasto vespertino, passei pelo meu dormitório para vestir mais um agasalho e observei que defronte ao meu quarto existia uma sala fechada, porém, no molho de chaves a mim disponibilizado havia 3 peças diferentes e uma delas abriu o cadeado que trancava esse ambiente.


O local era utilizado para ministrar o “Jardim da Infância” aos “niños” da localidade e estava atulhado de cadernos, desenhos, material de pintura e outros acessórios, mas mantas ou mesmo toalhas, que pudessem abrandar minha inquietação, eu não encontrei.


No entanto, abusando da criatividade, separei 4 quadrados plásticos que estavam sobre o piso e serviam de anteparo para que as crianças não pisassem diretamente no chão, e os utilizei para forrar o meu estrado, já que assim o ar noturno que emanaria do piso não me atingiria diretamente.


Depois, observando com maior acuidade, vislumbrei um grande e empoeirado tapete enrolado num canto que, face ao seu alentado peso, custei a dobrá-lo, depois o levei até o meu dormitório e o testei como cobertor, colocando-o sobre a manta que eu levara de casa; e não é que ele foi aprovado para a sua nova função?


Porém, como ele era extremamente rígido e, praticamente, não dobrava, cobriu-me como uma tábua e anotei mentalmente que a cada vez que eu me virasse após deitar, eu precisaria segurá-lo, senão ele iria ao chão, por conta de seu precário equilíbrio.

A igreja matriz de Robliza de Cojos.

Mais tranquilo, desisti de importunar o atarefado prefeito com minhas mazelas, fui lanchar no bar do posto de combustíveis e, prudentemente, no retorno, adquiri uma garrafa de um encorpado vinho tinto que, já no albergue, sorvi com avidez, como forma de aplacar a aflição interior e me preparar para a glacial noite que sobreviria.


Deitei em seguida e tive um sono profundo e sem sobressaltos, contudo, durante a noite a temperatura caiu drasticamente e mesmo vestindo duas camisetas de lã, blusa de tactel, calça e meias, tiritei de frio durante a madrugada toda, apesar do peso que havia sobre o meu corpo, assim, às 4 h eu já estava em pé, doido para beber algo quente, como forma de aplacar o frio que sentia.


A meia hora sequente foi gasta em trotes pelo corredor, saltos simiescos, flexões, polichinelos e outros exercícios físicos variados que, em seu final, fizeram o sangue circular novamente pelas veias, devolvendo-me ao mundo dos vivos.


Na sequência e sob uma temperatura gelificante de, aproximadamente, 4ºC, caminhei 1.500 m em direção ao bar existente no Posto de Gasolina de Robliza, onde pude ingerir um substancioso café da manhã, que me deixou aquecido e reconfortado.


De volta ao abrigo, fiz uma faxina no ambiente, devolvi os pertences que havia utilizado aos seus respectivos lugares, depois, depositei um donativo na caixa de coleta ali existente e, bastante animado, às 6 h 30 min eu parti em direção a San Muñoz, o objetivo desse dia, distante 22 quilômetros na direção leste.


Consolei-me do infortúnio que vivera na antemanhã, recordando o pensador norte-americano Henry David Thoreau, árduo defensor de um estilo de vida simples em harmonia e proximidade com a natureza, que assim pontou: A maioria dos luxos e muitos dos confortos da vida não são apenas dispensáveis, são também impedimentos reais para a elevação da humanidade.


Assim, a minha segunda jornada no Caminho Torres iniciou-se com o perdão das falhas ocorridas do dia anterior, tanto da insensível hospitaleira que me atendeu, quanto de minha parte, por não portar a equipagem completa, pois toda a compaixão perde o sentido se não abraça também a nós mesmos.


E são essas recordações, quase sempre agridoces, que nos acompanham pela vida afora...


Bom Caminho a todos!