10ª etapa: BURGOS à CASTROJERIZ - 41 quilômetros

10ª etapa: BURGOS à CASTROJERIZ - 41 quilômetros

Deixei Burgos sob um vento constante e frio intenso, marchando, primeiramente, ao lado do belíssimo rio Arlanzón que, literalmente, banha e corta a cidade em toda da sua extensão.

Ainda estava escuro quando passei pela porta do “Hospital del Rey” e, mais adiante, acessei o Campus da Universidade da cidade.

Estátua de Santo Domingo, localizado próxima da Ponte de los Málatos.

Por ruas desertas, cruzei a cidade de Villalbilla que, praticamente, está umbilicada à Burgos, tudo isso ainda em zona urbana, caminhando ora sobre asfalto, ora sobre cimento, mas ainda provido pela iluminação urbana.

No caminho para Tosantos.

Finalmente, uma hora depois, seis quilômetros vencidos, adentrei numa larga e plana estrada de terra, por onde segui solitário, mas tranquilo, “sentindo” o lento despertar do dia, sob intenso pipilar dos pássaros que saudavam o amanhecer de mais um dia.

Muitas curvas e retrocessos no trajeto à Tardajos.

Verifiquei que novas obras rodoviárias foram executadas nesse trecho em relação ao traçado que me lembrava do ano de 2004, de forma que precisei fazer malabarismos no roteiro, para finalmente chegar à Tardajos.

Finalmente, adentrando em Tardajos.

Na verdade, o guia que eu portava não contemplava tantas nuances, já que houve momentos em que percebi retroceder em minha jornada, tamanho o número de volteios feitos, tudo para se evitar o contato do peregrino com rodovias ou ferrovias.

Acredito até que tantas idas e vindas tenham “engordado” esse primeiro trecho em, no mínimo, 2 quilômetros.

Um belo e centenário cruzeiro localizado na entrada de Tosantos.

Porém, duas horas e meia depois da partida, apenas 9 quilômetros percorridos, aportei à cidade de Tardajos, um pequeno povoado localizado nas proximidades da Puente de Arzobispo, às margens do Rio Ubierna, onde reza a lenda que um tropeço do cavalo do rei Alfonso VI, quase lhe custou a vida.

Caminho de Santiago, em Tardajos.

A cidade foi erguida sobre um castro romano, aos pés de uma via que ligava Clunia a Juliobriga (Reinosa), onde existia um hospital de peregrinos.

Igreja de La Magdalena, em Tardajos.

A singela igreja de La Magdalena fica na saída da cidade, já no rumo de Rabé de Las Calzadas, sendo que a povoação oferece serviços básicos ao peregrino, com bons albergues, dois hostais, bares, serviço de saúde, farmácia, e uma "tienda" para compra de comestíveis.

Fiz uma pausa na praça principal da cidade para fotos e ingestão de uma banana, aproveitando ainda para me hidratar.

Chegando em Rabé de Las Calzadas.

Na sequência, caminhei mais dois quilômetros sobre asfalto para logo aportar à Rabé de Las Calzadas.

Ela está tão próxima de Tardajos, que no passado ambos os povoados estavam unidos por um grande lodaçal, consequência funesta das cheias do rio Urbel.

Na região há um ditado que diz: "De Rabé a Tardajos, no te faltarán trabajos; de Tardajos a Rabé, ibéranos, Dómine!

Esse povoado foi doado por Alfonso VI ao grande Hospital de Burgos, e hoje seu vestígio monumental mais antigo é a portada da Igreja de Santa Marina, do século XVII, onde, atualmente perdura um monastério de Religiosas.

A avenida principal de Rabé de Las Calzadas.

Na saída do povoado há uma ermida muito simples, mas muito bem conservada, que o peregrino encontra ao lado esquerdo do Caminho.

Destaque para o albergue Santa Marina e Santiago, que acolhem os peregrinos (somente 8), como na antiguidade.

"Fuente de la Discórdia", localizada no centro de Rabé.

Há ainda dois confortáveis hostais/casas rurais e um bom restaurante, além de uma “tienda” com gêneros básicos, para atender os peregrinos.

"Fuente Moderna"ou "Fuente de la Discórdia"?

Eu passei rapidamente pelo centro da urbe, fotografei a famosa “Fuente de la Discórdia” ou "Fuente Moderna", e logo na saída da cidade, adentrei em larga e plana estrada de terra, localizada entre grandes plantações de trigo.

No caminho em direção à Hornillos.

Até ali eu não avistara nenhum peregrino, mas logo eu ultrapassei uma senhora que caminhava com sua filhinha, aparentando não ter mais de seis anos.

Uma peregrina caminha com sua filhinha à minha frente.

E como nós não conseguimos nos entender, pois ela só falava em alemão, fiquei sem saber até onde ela pretendia chegar com aquela inocente criança.

Clássicas esculturas peregrinas à beira do caminho.

Nesse trecho, à beira do caminho, existem inúmeros montículos de pedras, a maior parte delas construídas pelos peregrinos que, ao passar pelo local, vão empilhando as rochas, deixando um certo misticismo reflexivo pelo caminho.

Caminho agradável, sempre entre extensas plantações de trigo.

Nesse trecho, salvo pequena elevação a ser sobrelevada, logo depois de Rabé, o caminho é todo plano e muito agradável.

Original monumento peregrino próximo de Hornillos del Caminho.

Do alto de uma elevação, pude observar o vale abaixo onde podia visualizar, ao longe, a cidade de Hornillos del Caminho.

O descenso da montanha revelou-se bastante exigente, de forma que, nessa circunstância, meu cajado serviu como freio e nada sofri, apesar do risco iminente de um escorregão e consequente queda, o que seria trágico.

Descendendo para a cidade de Hornillos del Caminho, uma paisagem incrível.

Posteriormente, fiquei sabendo que essa pedregosa descida foi apelidada de Matamulos e, claro, eu me pus a especular sobre o porquê de tal nome.

Mas, vencidos 20 quilômetros em boa marcha, adentrei em Hornillos del Camiño, exemplo clássico de um “pueblo camino”, com uma única rua – para variar - a Calle Real (na maioria das vezes é Calle Mayor).

Historicamente, ela foi uma importante localidade na rota medieval, e teve até um leprosário, fundado em 1156, por Alfonso VII.

Chegando em Hornillos del Camiño.

No entanto, outros hospitais deram atendimento a peregrinos enfermos, sendo que o mais conhecido era a Malateria de San Lázaro, cujos restos ainda podem ser vistos antes de entrar na vila.

Sua igreja paroquial gótica, dedicada a Santa Maria, recebeu em 1360, de vários prelados de Aviñon e do bispo de Burgos, o privilégio de conceder aos peregrinos até 40 dias de indulgência em determinadas datas.

Há no povoado duas pontes, também medievais, que merecem destaque: uma sobre o rio Hormazuela e outra sobre um pequeno riacho, localizada próxima da vila.

Em 1936, foram descobertos sepulcros visigóticos, onde foram encontradas cerâmicas e metais de grande valor.

A localidade, em que pese sua singeleza, possui dois albergues, duas casas rurais, e ainda oferece serviços básicos ao peregrino, como bares, “tendas” e restaurantes.

 

Igreja de Santa Maria, em Hornillos del Camiño.

Apesar das dores nos pés, eu me encontrava fisicamente muito bem, de forma que fiz uma pausa defronte a igreja do pueblo para fotos, hidratação e ingestão de uma barra de chocolate.

Depois, segui em frente, vez que o tempo ficara nublado, prometendo chuva a qualquer momento.

No caminho em direção à Hontanas.

Na sequência, enfrentei outra pequena elevação, e acabei por vislumbrar inúmeros peregrinos caminhando à minha frente, sinal de que minha solidão no roteiro, definitivamente, estava encerrada.

Esse trajeto também não apresentou grandes desafios, embora seja de razoável extensão (11 quilômetros até Hontanas) e, embora eu estivesse num ritmo tranquilo, mas constante, ultrapassei inúmeros peregrinos.

Entrada para o albergue San Bol, à esquerda.

Depois de uma hora caminhando, passei diante da entrada do albergue San Bol, uma solitária construção localizada à esquerda do Caminho, num local ermo e desprovido de sombras, onde, pelo que sei, os peregrinos são muito bem atendidos.

Mas, face estarmos num horário matutino, não visualizei ninguém se dirigindo àquele local, nem mesmo para utilizar banheiros ou tomar água.

No caminho em direção à Hontanas.

O tempo persistia fechado e garoou várias vezes, porém foram precipitações de baixa intensidade, assim não parei para vestir capa, confiante de que não haveria chuva intensa.

Encontrei muita lama no leito do Caminho, no trecho final dessa etapa e, para minha alegria, às 13 horas, cheguei à Hontanas.

 

Finamente, Hontanas, abaixo.

O nome desse povoado provém da hospitaria “Villa de las fuentes”.

Cidade típica do Caminho, ela possui uma particularidade interessante: enquanto a maioria dos povoados está situada em colinas ou, quando muito, num planalto, Hontanas fica numa depressão de terreno, completamente imperceptível, até que se chegue à entrada da vila.

Conserva, ainda, como vestígio do esplendor de seu passado, uma construção chamada de “Mesón de los Franceses”, antigo hospital de peregrinos, atualmente um albergue confortável e remodelado.

Possui ainda hostais, pensões, e um restaurante, bem como duas “tiendas” para suprir as necessidades de compra de mantimentos básicos.

Tem, ainda, uma igreja, a paróquia da Imaculada Conceição, construída no século XIX, e seu principal atrativo é o Senhor Vitorino, um autêntico “bufón”.

 

Chegando em Hontanas, simpático povoado.

A minúscula vila se encontrava bastante movimentada, com inúmeros peregrinos tomando cerveja, vinho, ou mesmo lanchando nos bares existentes em sua praça central.

Eu fiz uma pausa básica num banco adiante, apenas para hidratação e ingestão de outra barra de chocolates.

Aproveitei também para fazer uma checagem geral em meu estado físico e mental, pois até aquele local eu já havia vencido 31 quilômetros e ainda me restavam 10 quilômetros para aportar ao meu destino.

No caminho para Castrojeriz.

Bem disposto, prossegui meu caminho e, logo abaixo, após ultrapassar a rodovia, adentrei em largo, plano e bem arrumado caminho de terra.

Foi, sem dúvida, um trajeto bastante agradável, que discorreu sempre por “tramos” bem cuidados e, em alguns locais, entre muita vegetação.

Nesse percurso final também ultrapassei alguns peregrinos, mormente um grupo de 6 pessoas que caminhavam com capas de chuva, pequeníssimas mochilas, e com botas novas e ainda polidas.

Grupo de peregrinos segue à minha frente.

O grupo de 5 mulheres, capitaneadas por um senhor idoso, me contou que haviam saído de Burgos no dia anterior e caminhariam sempre 20 quilômetros por dia, e assim esperavam chegar até Compostela.

Desejei-lhes boa sorte, prossegui meu périplo e, mais tarde, encontrei esse pessoal nas ruas da cidade de Castrojeriz, onde pudemos conversar mais um pouco.

Na verdade, depois de 4 quilômetros vencidos, o caminho flete radicalmente à esquerda, e o restante desse percurso é feito sobre asfalto, num trajeto duro e cansativo, pelo adiantado da jornada.

Chegando às ruínas de Santo Antón.

Mais um quilômetro percorrido, e eu passei pelas ruínas do Convento de Santo Antón, um lugar mágico e histórico.

Ruínas do Convento de Santo Antón.

Para dizer a verdade, ao ultrapassar esse local, eu não estava muito interessado em história, mas em sobrevivência.

Afinal, 40 quilômetros é demasiado para um só dia, posto que as pernas doem, a mochila incomoda, a tendinite se instala sorrateiramente, enquanto nosso corpo anseia por um banho e descanso.

A cidade de Castrojeriz, surge no horizonte.

A partir desse marco, restavam ainda 5 quilômetros para chegar, então, enfrentei um duríssimo piso asfáltico, e aportei à Castrojeriz terrivelmente dolorido, após 10 horas de marcha, praticamente ininterruptas.

Logo me hospedei numa pensão em que havia feito reserva, depois saí para almoçar e tive grande decepção, pois encontrei tudo fechado.

Na verdade, estávamos em 23 de abril, dia de São Jorge, padroeiro da Província de Castilla e León onde eu me encontrava, e como era feriado, nada funcionava nas cidades.

Por sorte, encontrei um bar aberto onde, após a longa maratona vivenciada naquele dia, pude ingerir uma singela salada mista, acompanhada de um bom e merecido vinho.

 

´Ruínas do castelo de Castrojeriz.

Castrojeriz é uma das cidades do Caminho Francês com maior número de monumentos, em que pese a ruína parcial de alguns deles, como a Colegiata Virgen del Manzano, ou as igrejas de Santo Domingo y San Juan.

Acredita-se, que foi a antiga Castrum Sigerici, talvez fundada pelo Conde de Castilla Sigerico, irmão de Don Rodrigo Diaz de vivar – El Cid), em 760, que foi o repovoador de Burgos.

Na sua rua principal estão alocadas várias igrejas e construções notáveis.

Possui, ainda, os restos do que foi um Castelo, localizado no alto de uma colina que domina a cidade, e que foi construído pelo Conde Muño (Nuño ou Núñez), defensor da fortaleza, aos finais do século IX, contra os árabes.

Muitas bolhas nos meus doloridos pés.

Porquanto, anteriormente ela foi uma fortaleza celta, depois romana e visigoda, e testemunhou várias batalhas, mas em 1131, o rei Alfonso VII, a fez definitivamente espanhola.

A população se desenvolveu na costa sul do morro do Castelo e ao largo do Caminho e, em cerca de um quilômetro de extensão, foram construídas igrejas, sete hospitais, restaurantes, e todo o tipo de comércio.

Começando pela Colegiata de Nuestra Señora del Manzano, templo românico amplamente remodelado no século XVIII, continuando com as igrejas de Santo Domingo e Santiago de los Caballeros, e o templo fortaleza da igreja de San Juan, com seu formoso claustro do século XIV, onde se pode apreciar artesanato mudéjar, terminando pelo monastério de Santa Clara, e as evocadoras ruínas do convento de San Francisco.

Podemos dizer que Castrojeriz tem muito para se ver.

Ainda as ruínas de Santo Antón.

Um pouco antes de se chegar à cidade, o peregrino invariavelmente irá passar por Santo Antón, onde há um singelo albergue e nada mais.

Diz a lenda que no século XI, o filho de um senhor importante foi acometido por uma grave doença, conhecida na época como "fogo de Santo Antônio" ou "fogo sagrado".

Esta era uma moléstia que se espalhou pela Europa no século X, e manifestava-se com gangrena progressiva, bastante dolorosa, sendo muitas vezes incurável. Tendo invocado o auxílio de Santo Antônio, a doença logo desapareceu e seu filho curou-se rapidamente.

A partir de então a ordem dos Monges de Santo Antônio, fundada no ano 1093, difundiu-se pela Europa e tornou-se muito conhecida. Essa ordem fundou, em 1146, seu mosteiro espanhol nas proximidades de Castrojeriz, onde, não só ajudavam os peregrinos, como curavam os enfermos portadores de "fogo de Santo Antônio".

Miliários romanos encontrados dentro da cidade de Castrojeriz.

Um antigo peregrino francês deixou um relato informando que estes monges amputavam os braços e as pernas dos seus pacientes, e os penduravam nas portas do Hospital.

Com a ampliação das dependências do mosteiro no século XIV, a estrutura de colunas e arcos que se apoiava em suas próprias paredes, foram modificadas e construíram-nas passando por cima da antiga estrada dos peregrinos. Entretanto o trajeto da estrada não foi alterado, e até hoje passa sob os gigantescos arcos em ruínas do que foi um dia o átrio ocidental da igreja já destruída.

Desde que Carlos III, rei da Espanha, aboliu esta ordem em fins do século XVIII, o mosteiro foi abandonado, e hoje em dia nada mais resta que suas ruínas fantasmagóricas.

O peregrino que cruza seus silentes arcos de pedra ao fim da tarde, sente um calafrio inexplicável, e apenas o assustador latir dos cães quebra o pesado silêncio.

Pois, se há algum lugar no Caminho em que o misticismo emana de cada arbusto e de cada pedra, este local é sem dúvida San Antón.

A cidade de Castrojeriz, mesmo não sendo tão grande como os grandes centros urbanos ao longo do Caminho, é uma das cidades que oferece um conjunto de serviços ao peregrino muito diversificado, com excelentes albergues, bons hostais e restaurantes, serviços de comércio e bancários.

Bar "La Taberna", uma embaixada dos brasileiros na Espanha.

É bom lembrar que o hostal e restaurante “La Taberna” funciona quase como uma embaixada brasileira na Espanha, sob o comando de Tonho e sua família, e que um dos albergues localizado quase na saída da cidade, recebe o peregrino de forma diferenciada.

Lá não são aceitos quem usa carro de apoio, ou outros meios de transporte, exceto a cavalo ou bicicleta.

Exige silêncio absoluto para o repouso do peregrino, tanto à noite como pela manhã, onde todos são despertados com canto gregoriano.

 

Com o Tonho, proprietário de "La Taberna".

Mais tarde, após uma boa e necessária soneca, saí passear pelo silencioso povoado e, além de localizar a saída para a manhã seguinte, fui até o bar La Taberna, um referencial para os brasileiros no Caminho, e pude conhecer o Tonho, seu proprietário que, ao saber de minha nacionalidade, me tratou como um amigo de longa data.

Era dele o inesquecível cão Berni, que diariamente acompanhava os peregrinos até Boadilla del Caminho onde era, invariavelmente, resgatado por seu dono.

Infelizmente, esse mítico animal faleceu em 2003, possivelmente, envenenado.

Ali também existem outras fotos históricas penduradas na parede do estabelecimento, inclusive, uma do Tonho acompanhado do Paulo Coelho; posso dizer que o ambiente é, simplesmente, imperdível e o proprietário esbanja simpatia e bom humor.

Depois de beber duas taças de vinho e ingerir uma “tortilla” de batatas e ovos, retornei ao local de pernoite e logo me recolhi, pois a jornada do dia fora extremamente cansativa. 

 

11ª etapa: CASTROJERIZ à FRÓMISTA – 29 quilômetros