10ª Jornada

10ª Jornada - Cáceres a Cañaveral – 45 quilômetros: “O Caminho da Solidão!”:    

Levantei-me, como de costume, às 6 h, mas, só parti às 7 h, pois o dia apresentava-se frio e nublado.

A saída da cidade se faz caminhando em direção a “Plaza de Toros”, ultrapassando-a pelo lado esquerdo. 

Até ali não encontrei nenhum referencial, no entanto, logo abaixo, as primeiras flechas amarelas deram o “ar da graça”.

O monumento a “La Lavandera” é a última alusão à zona urbana de Cáceres. Logo à frente adentrei a uma pista asfaltada privativa a pedestres e ciclistas. 

Por ela prossegui até uma rotatória e ali encontrei o primeiro “monjón” de granito, cuja seta indicava o acostamento de uma movimentada rodovia vicinal.

Em pouco tempo, o brilho da cidade ficou para trás e, agora, somente as luzes dos faróis de veículos me guiavam. 

Durante um bom tempo, o único som que ouvi foi o zumbido de motores e pneus sobre o pavimento asfáltico.

Mais à frente, 2 quilômetros percorridos, adentrei pelo lado esquerdo em uma estrada de terra, cujo leito plano e agradável, me levaram à Casar de Cáceres, onde cheguei às 8 h 30 min,  após percorrer 11 quilômetros. 

Observei as casas e pude ver o sol da manhã iluminar os telhados e as folhas da primavera que caiam das árvores, atapetando a bela cidadezinha em brilhantes tons de vermelho e dourado.

Algumas crianças iam à escola, possivelmente em Cáceres, e esperavam o ônibus numa esquina. 

Um casal idoso caminhava pela calçada, um deles se apoiava numa bengala, enquanto o braço livre entrelaçava orgulhosamente o da companheira. 

Num cruzamento adiante, o guarda de trânsito discutia com um motorista de caminhão e, por toda a parte, os lojistas se preparavam para mais um dia de labuta, expondo seus artigos.

Senti, naquele momento, que as cenas corriqueiras daquele cotidiano não faziam parte do meu mundo. 

Assim, segui adiante e, mais à frente, passei defronte à igreja matriz, dedicada à Nossa Senhora de “la Asunción”, edificada no século XV, cujo estilo gótico, predominante em sua fachada, se mostrava muito interessante. 

Um detalhe me chamou a atenção em seu telhado e torres laterais: inúmeros ninhos de cegonha em açodada construção.

Na cidade existe um bom albergue, localizado na praça central do povoado, em frente ao prédio do “Ayuntamiento”. 

Porém, como não há nada perfeito, os peregrinos que ali pernoitaram e com quem conversei posteriormente, reclamaram do barulho noturno de conversas de jovens que freqüentam a praça. 

E, ainda, do relógio instalado no prédio da Prefeitura, cujas campanadas sonoras, a cada quinze minutos, dificultavam conciliar o tão almejado sono.

 Igreja de Santiago - Casar de Cáceres

No trajeto encontrei diversos bares abertos, vez que a cidade é de razoável tamanho. 

Num deles entrei e fiz meu desjejum. Vale mencionar que este “pueblo” é famoso por suas tortas, na verdade, são queijos cremosos feitos com leite de ovelha. 

Fiquei curioso, mas, não pude experimentar a iguaria, pois, só vendem a peça inteira, o que arrefeceu minha gula.

Já saindo da povoação, passei ao lado de vistosa igrejinha dedicada à Santiago. 

A partir dali, eu percorreria mais 34 quilômetros totalmente despovoados, sem possibilidade de adquirir água ou mantimentos.

Numa rua à frente, fleti à esquerda e logo acessei agradável e larga estrada de terra que segui, tendo por ambos os lados, imensas fazendas, a perder de vista. 

Assim, caminhei sempre no topo de uma elevação, onde a visibilidade do horizonte é ampla, pois o roteiro atravessa zonas praticamente sem vegetação alta, porém, há muito verde ao redor, graças aos pastos sem fim. 

Nesse planalto, vestígios da época romana interagiam com a natureza onde pássaros, animais silvestres e gado leiteiro, permanecem num ambiente árido e, aparentemente, imutável. Durante esse trajeto surgiram algumas cancelas. 

Depois de passar pela “Finca de Cumbre Oscura”, caminhei num trecho bem conservado da antiga calzada romana, entre muros de pedras alinhadas, ao longo de vários quilômetros, num traçado invariável, apesar dos séculos transcorridos.

O caminho seguiu plano, deserto e agradável por uns 15 quilômetros até que avistei à direita, ao longe, o imenso “Embalse de Alcântara”, minha meta naquele dia.

O local surpreendeu-me pela visão de grandes domos de granito que assumem formas caprichosas, criadas pela natureza no afã de imitar-se a si mesma. 

São enormes figuras pétreas, estáticas, esculpidas pela ação da chuva, sol e vento, cujos formatos lembram um osso, um touro e um dinossauro. 

Sem dúvida, obras de arte expostas sob o azul do céu, durante milhares de anos. 

Assim, deslumbrado, fiz uma pausa para reflexão, admiração e fotos.

Logo à frente, segui em direção à “N-630”, porém, próximo à rodovia, dobrei à direita e segui paralelo a ela por aproximadamente 1 quilômetro, através de uma trilha extremamente perigosa e acidentada devido a bruscos e acentuados aclives e declives. 

Desse modo, acredito que a melhor opção é seguir direto pela “carretera”, isto porque, logo à frente, os caminhos se fundem.     

Ao atingir a confluência, prossegui mais 5 quilômetros por asfalto, num percurso difícil, triste e solitário, provavelmente, reflexo do dia cinzento.

Após ultrapassar duas enormes pontes que cortam, respectivamente, os rios Almonte e Tajos, deixando para trás o club náutico e a estação ferroviária, cheguei às “ruínas” de Alcântara. 

Ali, uma placa à beira da pista informava que havia um albergue turístico situado a 500 metros, à esquerda, em direção à represa, onde a hospedagem custava 15 euros.

Ainda era cedo, ventava forte e o local encontrava-se completamente deserto. 

Um prédio localizado à beira da pista onde antigamente funcionava o Hostal Miraltajo, se achava abandonado e em escombros. 

Fiz ali uma pausa para lanchar e recobrar as forças.

Desanimado, em virtude do desconforto e solidão que sentia naquele local, resolvi prosseguir em frente, embora já tivesse caminhado 30 quilômetros. 

O caminho segue à direita da “carretera”, em razoável aclive, por uma larga e pedregosa estrada de terra. 

Por ali também passava a antiga calçada romana e, assim, nesse trecho, ambos os roteiros se fundem.

Mais acima, prossegui entre enormes fazendas de criação de gado, num extenso planalto, com ampla vista da região. 

Logo à frente, numa ravina, visualizei Canãveral no horizonte e, embora estivesse distante uns 10 quilômetros, sua inesperada aparição robusteceu, sobremaneira, meu desalentado ânimo.

Numa curva do Caminho, avistei, ao longe, 3 peregrinos à minha frente. 

Tal visão me deixou, ao mesmo tempo, curioso e animado. 

Segui-os, durante mais de uma hora e lentamente me aproximei do grupo, quando já faltavam uns 3 quilômetros para chegar.

Assim, ultrapassei-os, ao fazerem uma pausa para refrigério. 

Cumprimentamo-nos e soube, então, que eram franceses, estavam todos na faixa etária dos 60 anos e haviam pernoitado em Casar de Cáceres.

Mais à frente, uma placa indicava a direção a seguir: à esquerda, aqueles que pernoitariam em Canaveral como eu; à direita, aqueles que iriam adiante, possivelmente, até Grimaldo, 9 quilômetros à frente.

Às 15 h passei sobre a famosa ponte medieval de São Benito, interessante construção do século XIV, ainda perfeitamente conservada. 

Uma leve subida e logo cheguei novamente à “N-630”, rodovia que corta Canãveral, em toda sua extensão.

Pude notar curioso que na entrada da povoação existe uma grande fonte, talvez a maior construção nesse estilo que vi desde Sevilha. 

Também, observei as originais formatações das chaminés instaladas nas vivendas desse povoado, uma obra típica da região.     

Segui, então, em frente, pelo asfalto até o Hostal Málaga, onde cheguei às 15 h 30 min, e fiquei muito bem instalado, por 20 Euros.

O proprietário, Sr. Alfonso, pessoa especialíssima, ao verificar que eu me encontrava extremamente cansado e faminto, insistiu para que eu, primeiramente, tomasse banho e almoçasse (8 Euros), para só depois fazer meu registro no estabelecimento e receber o pagamento da diária.

Mais tarde saí para visitar a cidade e comprar provisões para o dia seguinte. 

Na Casa da Cultura consegui acessar a internet, graciosamente. 

E, ainda, pude conhecer a igreja dedicada a Santa Marina, do século XIV, padroeira da urbe.

À noite, no bar do Hostal, encontrei Juan, um simpático senhor de nacionalidade chilena, expulso de seu país por Pinochet. 

Disse-me que morou e lecionou dez anos no Brasil, sendo, 5 deles no estado de São Paulo. 

É Artista Plástico de renome, radicado a alguns anos naquela localidade e consegue se expressar em oito diferentes línguas, inclusive, no idioma russo.

Foi, sem dúvida, um revigorante congraçamento, regado a um saboroso vinho tinto, que deixou gratíssima lembrança, mormente pelos “causos” relatados de perseguições políticas vivenciadas pelo meu interlocutor, ao tempo em que morava na nossa abençoada pátria.    

Mais tarde, fiz apenas um leve lanche no quarto onde pernoitaria, preparando-me para a dura jornada que enfrentaria no dia seguinte.

 

Resumo: Tempo gasto: 8 h 30 min - Sinalização: Normal - Clima: Nublado e ventoso, com temperatura variando entre 3 e 10 graus.

 

Impressão pessoal: Trajeto longo e bastante cansativo. Sem dúvida, uma das etapas mais difíceis de toda minha peregrinação, mormente, pelos derradeiros 15 quilômetros, posto que trilhados numa estradinha extremamente pedregosa, que magoam sensivelmente os pés. Há que se ponderar, também, a longa e árdua distância percorrida nessa jornada.