21ª Etapa – CALDAS DE REIS à PADRÓN – 18 QUILÔMETROS

21ª Etapa – CALDAS DE REIS à PADRÓN – 18 QUILÔMETROS – “UMA BARCA AMARRADA EM PADRÓN

“O Caminho Português se aproxima do seu final. Porém, antes tem de passar por um dos lugares mais emblemáticos da mitologia jacobeia: Padrón, onde, segundo a lenda, atracou a barca com a qual os discípulos transladaram o corpo do Apóstolo desde a Palestina até a Galícia. Padrón, situada nas margens do rio Sar, o mesmo que banha Santiago de Compostela, é a antesala do Pórtico da Glória, o final de uma grande aventura emocional. Ademais, a jornada se pode definir como tranquila e de um longitude média, despida de maiores dificuldade, a não ser ultrapassagem de um pequeno outeiro que culmina em Carracedo. De se agradecer de novo, que as flechas amarelas nos conduzam para longe do asfalto da N-550, desviando o roteiro por belos bosques e regatos barulhentos, sobretudo no trecho entre Carracedo e Valga, que nos reconcilia com o melhor da natureza galega.” (Traduzido/transcrito do Guia El País Aguilar, edição do ano de 2007, que utilizei na viagem)

 

Seria uma jornada tranquila e com baixa quilometragem, assim, nós optamos por sair um pouco mais tarde do que costumeiramente fazíamos.

Dessa forma, tranquilamente deixamos o Hotel Lotus às 7 h 15, seguindo à esquerda, onde acessamos a Rua Real e, logo adiante, por uma famosa ponte medieval, transpusemos o rio Bermaña, uma passagem muito jacobeia, com um cruzeiro antigo, três arcos de médio ponto e algumas bancadas de pedra.

Uma fonte, com três canos, completa, sem dúvida, um dos melhores conjuntos urbanos de Caldas de Reis.

Na sequência, passamos defronte à capela de São Roque e, pela rua homônima, acessamos a rodovia N-550, seguindo-a por aproximadamente 200 metros.

Então, as flechas nos direcionaram para uma estrada de terra, situada em meio a agradável e centenário bosque, composto por carvalhos e castanheiros, bastante úmido ainda naquele horário, que seguiu pelo bucólico vale do rio Bermaña.

Prosseguimos num ritmo confortável e, logo, ultrapassamos uma dezena de peregrinos, que caminhavam com lentidão, possivelmente, ainda se aquecendo para a jornada do dia.

Pudemos observar, ainda, ao longe, uma peregrina que nos chamou a atenção porque, embora estivesse bastante frio, usava apenas um shorts azul e caminhava em ritmo forte, conquanto carregasse apenas uma pequena mochila vermelha.

Possivelmente, ela estava muito bem preparada fisicamente, porque não a vimos mais naquele dia.

Provavelmente, iria se hospedar além da cidade de Padrón, e mais próximo de Santiago.

No entanto, na jornada seguinte, depois de caminhamos muito tempo, nós a identificamos à nossa frente, quando, então, passamos adiante, pois, inacreditavelmente, ela sentou numa pedra à beira do caminho para, pasmem, fumar um charuto.

Com o tempo fresco, a caminhada se manteve em bom ritmo, envolvidos que estávamos em meio de um bosque digno da lenda do Rei Artur, pelo qual ascendemos suavemente até um cruzeiro.

Neste local, um velho leguário, com um relógio de sol, indicou-nos o local por onde deveríamos cruzar a N-550.

Assim, às 8 h 30 min, 5 quilômetros percorridos, transpusemos a rodovia e, adentramos em Carracedo, onde o ponto alto é a igreja de Santa Maria de Carracedo.

Trata-se de um lindíssimo e esbelto exemplo de templo rural galego, com uma torre campanário, em estilo barroco, arrematada por um jogo de bolas e um interessante cruzeiro à sua porta.

Prosseguindo, trezentos metros depois, voltamos a transpor a N-550, para passar em Casalderrique, um povoado interessante, onde avistamos inúmeros grupos de mulheres fazendo sua caminhada matinal.

Ali, dobramos à esquerda, e prosseguimos por um caminho de terra, paralelo a Nacional, e depois de mais quinhentos metros, passamos por As Cerradas, onde transpusemos a Autovia Nacional sobre uma ponte metálica.

Do outro lado, agora em franco descenso, voltamos a bordejar a N-550, já em O Pino, pequeno povoado, onde existe o albergue de Valga, aberto em 2010, num antigo prédio escolar, em que são disponibilizadas 80 camas aos peregrinos.

Nós prosseguimos em frente e logo acessamos um caminho de terra, em descenso, bastante irregular, localizado no monte Albor, uma zona afetada por constantes incêndios, mas onde a natureza estava no auge, com muitas flores sobressaindo nos morros adjacentes.

Ali fizemos uma parada para hidratação e ingestão de frutas, exatamente, defronte a um “mojón”, onde a numeração incrustada em seu corpo anunciava que estávamos a, exatos, 32.549 metros de Santiago.

Bem dispostos, prosseguimos em declive, até sair junto às margens do rio Valga, um curso d’água poderoso e encachoeirado, que antigamente emprestava sua força para mover vários moinhos.

Então, iniciou-se uma senda situada em meio a frondoso bosque, um trajeto agradabilíssimo e belo, talvez o trecho que mais me tenha empolgado em todo o Caminho Português.

Infelizmente, foram apenas 2 quilômetros, pois, no final da baixada, por uma ponte de madeira, transpusemos o riozinho, onde um marco de pedra anunciava que restavam 30.546, metros para o final de nossa saga.

Já do outro lado, fizemos um pequeno ascenso, dobramos à esquerda, passamos por uma carpintaria e, na sequência, pela igreja neoclássica de San Miguel de Valga.

Prosseguindo, transitamos defronte a um supermercado, depois principiamos a ascender levemente por uma rodovia vicinal asfaltada, que nos levou a caminhar à meia ladeira, tendo o belíssimo vale do rio Valga à nossa esquerda.

Nesse trecho nós ultrapassamos 3 peregrinas, sendo que uma delas, conforme nos explicitou, era de origem sueca.

Em seguida, acessamos uma senda calçada com paralelepípedos, que seguiu entre cultivos e pequenos bosques de coníferas, com vários desvios por terra e asfalto, porém muito bem sinalizados.

Nesse tramo, passamos por Pedreira e Cimadevila, depois retornamos a caminhar pelo acostamento da já conhecida N-550, e por ela adentramos em Pontecesures, quando nos restavam apenas 3 quilômetros para chegar ao nosso destino do dia.

Esta cidade é uma antiquíssima e estratégica vila, pois dominava a passagem sobre o rio Ulla, facilitando a transposição da ria de Arousa.

Sabe-se que na Idade Média, Mestre Mateo, o mesmo que projetou o Pórtico da Glória na Catedral de Santiago, trabalhou nas melhoras da primitiva ponte de pedra que ali existia.

Nós atravessamos a cidade por ruas tortuosas, e nos aproximamos das linhas férreas, num local de passagem perigosa, onde, inclusive, estava soando o alarme, avisando carros e pedestres que uma composição estava a caminho.

Nós ficamos parados e aguardamos pacientemente por uns 5 minutos, enquanto do outro lado, na nossa frente, uma senhora também esperava o sinal silenciar e dar passagem, mas nada do trem surgir.

Mais audacioso, o Demétrius, depois de observar cautelosamente ambos os lados, ultrapassou a ferrovia com um salto e, já do outro lado, foi prontamente admoestado pelo senhora galega, que o chamou de “atrevido”, por não obedecer a ordem de esperar.

Eu passei em seguida e, diante de seu rosto crispado, lhe expliquei que tínhamos pressa, pois iríamos a Santiago, só não lhe contei que na verdade, seria somente no dia seguinte.

Mas creio que ela entendeu que seria ainda naquela data, por isso estávamos tão afoitos e com pressa, tanto que me sorriu e disse “Venga”, uma expressão muito utilizada na Espanha, com o mesmo sentido que dizemos “OK” no Brasil.

Quando já tínhamos nos afastado uns 300 metros do local, depois de ouvir estridentes apitos, ao volver o corpo, pudemos apreciar finalmente o trem trafegando à retaguarda e, para nossa decepção, a não mais de 30 quilômetros por hora.

Rindo muito pela lembrança da expressão “Peregrino Atrevido”, cunhada pela pacienciosa senhora, na sequência, transpusemos o rio Ulla, por uma ponte metálica que também dá passagem a rodovia N-550.

Então, dobramos à direita, e seguimos beirando o rio Sar, que mais abaixo deságua no rio Ulla, e logo adentrávamos em Padrón, uma das vilas mais emblemáticas de toda mitologia jacobeia.

Ali ficamos hospedados no Hotel Cuco que, como os demais estabelecimentos do gênero, está instalado às margens da barulhenta rodovia N-550.

Porém ali fomos muito bem atendidos pelo proprietário que, por 18 Euros, nos disponibilizou um excelente quarto individual.

 

Padrón é a origem de toda a mitologia jacobeia, porquanto, segundo a lenda, depois de uma extensa e perigosa viagem através do mar Mediterrâneo e da costa Atlântica Peninsular, a barca em os discípulos do Apóstolo transladaram seu cadáver, desde a Palestina, onde ele fora decapitado no ano 44, por ordem de Herodes Agripa, entrou pela ria de Arousa, adentrou pelo rio Sar e se deteve neste lugar.

A nau foi amarrada a uma “pedrona” (grande pedra cilíndrica) cravada na margem, na altura onde hoje está a igreja de Santiago.

Uma vez desembarcado o sarcófago com o corpo incorrupto do Apóstolo, a comitiva se dirigiu ao Monte Libradón, atual Compostela, para lhe dar sepultura, na terra onde ele havia pregado em sua vida.

O suposto “pedrón” original se encontra debaixo do altar-mor da igreja de Santiago.

Nela há uma inscrição romana de tradução incerta, e um anagrama de Cristo gravado posteriormente.

Desse topônimo originou o nome Padrón, localidade agradável, de ruas empedradas, e que tardiamente foi protagonizada como capital da comarca, já que a povoação primitiva se assentava em Iria Flávia, onde estava a sede episcopal visigoda, e local de confluência das calçadas romanas.

A vila parece querer concentrar todo o granito dos caminhos, posto que eles recobrem o chão de muitas de suas ruas e, ainda, utiliza-o para edificar muros, bem como construções austeras e monumentais, como o convento do Carmen.

 

À tarde, após um bom descanso, saímos para conhecer a cidade e, primeiramente, fomos até a vila de Iria Flávia, localizada a um quilômetro de Padrón.

Esse antiquíssimo enclave, que primeiro era celta e, logo depois, se tornou um núcleo romano, foi a única diocese que permaneceu ativa durante os primeiros anos da conquista muçulmana da Península Ibérica.

Foi dentro de seu território, onde hoje está Compostela, que apareceu o suposto sepulcro do Apóstolo Santiago.

E, foi o seu bispo Teodomiro, o encarregado pelo rei asturiano Alfonso II, “el Casto”, para confirmar a veracidade da descoberta.

Nesse sentido, sem dúvida, foram os restos mortais do Apóstolo, que deram origem a toda historia jacobeia e que motivou, entre muitos outros, a minha presença naquele local, depois de ter caminhado durante 21 dias por boa parte de Portugal e da Galícia.

A Colegiata de Iria Flávia, também conhecida como Santa Maria de Adina, é uma obra do século XII, quando Iria havia cedido todo seu protagonismo a Santiago, porém daquela época românica só se conservam uma porta, as torres e vários sarcófagos no cemitério anexo.

No século XVII, o Arcebispo Monroi de Santiago reformou e ampliou sua estrutura, até alcançar seu aspecto atual.

Em seu interior se conserva um retrato românico da Virgem Maria e as tumbas dos primeiros 28 bispos que dirigiram sua sede episcopal e jacobeia.

Infelizmente, para nossa decepção, o templo se encontrava fechado, o que obstou nossa visita ao seu interior.

Assim, após as fotos, caminhamos em seu entorno, e bem em frente à igreja, pudemos visitar as antigas casas clericais, onde, hoje, a Fundação Camilo José Cela tem sua sede.

Lembrando que foi ele, prêmio Nobel de Literatura de 1989, nascido em Iria Flávia.

Na verdade, quando as velhas dependências do colégio passaram a ser vendidas a pessoas particulares, o escritor comprou uma grande sala, para depositar ali sua biblioteca e seu legado.

E, quando de seu falecimento, a Fundação adquiriu mais casas e estabeleceu um museu com toda a sua coleção de manuscritos, que incluem suas próprias obras, e mais de 9.000 cartas, escritas por ele e trocadas com outros autores e artistas.

Há também uma pinacoteca, anfiteatro e toda a sua biblioteca e hemeroteca.

Depois, fomos visitar a igreja de Santiago de Padrón, onde tivemos a oportunidade única de contemplar, emocionados, o famoso “pedrón” que existe sobre o altar-mor.

Porquanto, nela está a suposta pedra (de onde vem o nome da cidade) onde foi amarrada a barca com o corpo do Apóstolo, que ali chegou depois de navegar pelo rio Ulla.

Naquele local, segundo consta no Código Calixtino, ocorreram vários milagres em favor dos discípulos do Santo que, na verdade, queriam apenas um local para enterrar o corpo de seu mestre.

Após externar ali minhas orações e bater algumas fotos, seguimos até o “Convento del Carmen”, localizado na margem direita do rio Sar, uma obra do século XVIII, construída com doações enviadas por Alonso de la Penã, quando era Arcebispo de Quito, Equador.

Não estávamos em condições físicas ideais de enfrentar as longas escadarias que levam até Santiaguiño del Monte, para onde, no cume do morro, se pode apreciar o local em que o Apóstolo pregou seus primeiros sermões em terras galegas.

Pelo adiantado da hora, também deixamos de visitar Casa Museu de Rosália de Castro, local onde a genial poetisa galega passou longas temporadas de sua vida e faleceu, vítima de câncer, em 1885, aos 48 anos de idade.

Faltava algo imprescindível, degustar os famosos pimentões de Padrón, conhecidos e afamados no mundo todo pelo epíteto que diz: "Pimientos de Padrón, unos pican sin, otros pican non".

Porém, como havíamos almoçado tarde e estávamos enfastiados, resolvemos deixar essa saborosa experiência para uma outra oportunidade.

Assim, para fechar o dia com “Chave de Ouro”, fomos até o bar de Dom Pepe, um ambiente no qual os brasileiros são extremamente bem atendidos, onde degustamos alguns “tapas” e saboreamos um copo de vinho tinto, com o qual brindamos nosso iminente aporte à Santiago.

IMPRESSÃO PESSOAL – Uma etapa relativamente curta e agradável, que discorre sempre em meio a muito verde. Nesse percurso, e antes de aportar em São Miguel de Valga, o trânsito de dois quilômetros por um precioso bosque de carvalhos e acácias, localizado às margens do rio Valga, foi o trecho mais bonito que encontrei em todo o Caminho Português. No global, uma etapa fácil, coroada pela chegada à Padrón, cidade mística e imperdível.

22ª Etapa – PADRÓN à SANTIAGO – 24 QUILÔMETROS