NA PASCOELA, ENCONTREI DONA FELISA

Um dos aspectos que mais me surpreendeu quando fiz o Caminho de Santiago, foi a expressiva quantidade de feriados religiosos e de datas nacionais que são comemorados e festejados na Espanha.

Como marinheiro de primeira viagem não conhecia tais detalhes, assim, nos primeiros dias de minha caminhada, passei por algumas dificuldades para sobreviver, motivado por falta de dinheiro espanhol.

Explicando melhor, por segurança, troquei apenas 100 dólares no aeroporto de Madrid quando cheguei, pensando em reforçar meu caixa, repetindo tal operação, somente três dias depois quando aportasse em Pamplona. Porém, mal sabia eu, o que me aguardava adiante.

Iniciei o Caminho em San Jean (Fr), dia 10/04/2001, terça-feira da Semana Santa, que na liturgia católica corresponde à última semana da Quaresma, contada desde o Domingo de Ramos até a Páscoa. O que eu ignorava é que em toda a Espanha praticamente não se trabalha ao longo desse período.

Na quarta-feira, dia 11, parti de Roncesvalles e por todas as que cidades que cruzei ao longo do dia o comércio, com raras exceções, já se encontrava fechado. Na quinta-feira, ao chegar à Capital da Navarra fui surpreendido com a notícia de que era feriado nacional, tudo estava irremediavelmente cerrado, inclusive as agências bancárias.

Meu numerário era todo composto por cédulas de U$100,00, que, naquela época, representava um montante significativo em pesetas, a moeda corrente espanhola. Assim, tentei fazer câmbio no albergue com o hospedeiro, sem obter sucesso, fui então, testar meu cartão de crédito nos Bancos 24 horas.

Ali, melhor sorte não tive, pois, após duas fracassadas tentativas de saque, inexplicavelmente, meu cartão foi bloqueado. Desconsolado, retornei ao albergue onde fiz um inventário de todo o dinheiro espanhol que ainda dispunha, a fim de parcimoniosamente dividi-lo, no intuito de enfrentar os gastos previstos para os próximos três dias, na certeza de que na segunda-feira já encontraria o comércio normalizado, com os bancos novamente abertos.

Na Páscoa, conforme previsto, cheguei a Los Arcos onde pernoitaria. O dueto: comércio fechado e carteira vazia me deixava apoquentado. Meus parcos recursos permitiam-me fazer apenas uma refeição diária, o restante do dia eu passava a pão, banana e vinho barato. O conforto raramente faz parte da condição do peregrino, porém, a tensão gerada pela crônica falta de dinheiro, aliada ao desgaste da caminhada diária, inconscientemente, deram início em minhas entranhas a uma crescente fervura interior.

Naquele domingo, praticamente sem recursos financeiros, debilitado fisicamente, enfraquecido na fé, caminhei todo o percurso solitário, com o semblante carregado, o coração sombrio. Mas à noite, após assistir à missa vespertina na riquíssima Igreja de Santa Maria e, como peregrino, ter sido especialmente abençoado pelo celebrante, lembrei que a semana findava, e a confiança voltou a invadir meu ser. Sabendo que as agências bancárias funcionavam para o público, diariamente, das 9 às 14:00 horas, preparei-me para partir ao alvorecer da manhã seguinte.

Despertei naquela segunda-feira, 16/04/2001, por volta das 5:00 horas e, iniciei minha caminhada ainda de madrugada, o céu coalhado de estrelas, antes da luz da aurora. Depois de ultrapassar a cidade de Torres Del Rio, numa encosta íngreme, sob a sombra alongada de um pinheiro, logo no início da manhã, deparei-me com um peregrino alemão, escarrapachado no chão, descansando.

Após saudarmos-nos, ele expressando-se num "arrevesado" espanhol, interrogou-me se dispunha de uma aspirina para ceder-lhe, pois estava com uma insuportável dor de dente. Disse-me que há dias procurava por um dentista ou uma farmácia aberta, porém isso só ocorreria no dia seguinte, devido ao feriado prolongado na Espanha. 

Face aos minguados trocados que carregava e, visceralmente, abalado pela desditosa notícia, indaguei-lhe o motivo de mais aquela fiesta. Explicou-me que na primeira segunda-feira após a Páscoa, na Espanha, como em toda a Europa, comemora-se a "Pascoela", também chamada de Páscoa Pequena.

Essa tradição deriva da Itália e, o motivo desse feriado, historicamente falando, é que os comerciantes por não poderem festejar a ressurreição de Cristo no dia aprazado, visto trabalharem nessa data, guardam e comemoram a Páscoa na primeira segunda-feira após essa festa. Porém, na Itália, como em toda Europa, diferentemente do que vi na Espanha, durante a Semana Santa trabalha-se normalmente, inclusive na Sexta-Feira da Paixão.

Minha irresignação ante mais aquele feriado era patente, meus sentimentos de revolta se aflorando, pressionando os limites da tolerância e de um controle que eu procurava desesperadamente manter.

Enquanto digeria mentalmente a dura novidade, dois outros peregrinos apontaram numa curva, vindo em minha direção: um claudicava terrivelmente da perna esquerda. O outro manquitolava penosamente, sobrepondo os passos com todo cuidado no chão, revelando estar com os pés tomados por bolhas, um infortúnio freqüente no Caminho.

Passaram, aparentemente sem nos ver, pois olhavam fixamente à frente, como se a espera de encontrar Santiago em carne e osso. Embora abalado emocionalmente, agradeci a Deus por estar fisicamente são e, ao mesmo tempo, reconheci que em espírito, talvez eu não fosse tão robusto quanto àqueles que acabavam de me ultrapassar. Essa pequena reflexão teve o condão de me acalmar e, conjuntamente, meus nervos prontamente se arrefeceram.

Ato contínuo, imbuído de intenso fervor, abri a pequena bíblia que carregava e li o salmo 23: "O senhor é meu pastor, nada me faltará. Pelos....". Ao terminar a oração, minha enferma esperança, prontamente se restabeleceu.

Depois de entregar ao simpático amigo que encontrei no Caminho dois analgésicos, preparei-me para seguir viagem. Uma pequena réstia de esperança acendeu-se em minha mente, quando me lembrei que no final da jornada prevista para aquele dia eu deixaria a Província de Navarra, onde me encontrava, e adentraria a de Rioja. Sentia-me feliz imaginando: quem sabe lá, face à diversidade cultural do País, tudo estivesse normal? Sabedor de que enquanto houvesse uma luz, haveria esperança, segui em frente confiante, reconfortado por essa efêmera expectativa. Jamais exercitei essa máxima com tamanho fervor, como fiz naquele dia.

Por volta do meio dia atravessei Viana, uma linda cidade fortificada entre muralhas medievais, como nas outras que eu deixara para trás, tudo estava silencioso, vazio, o comércio permanecia fechado, inclusive as igrejas. Não encontrei almas vivas nas ruas e, o motivo, soube-o mais à frente. 

Logroño, a bela capital de Rioja, estava à vista e emergia num longínqüo horizonte, fincada majestosamente num vale. Ao longe pude ver, destacando-se sob os céus da cidade, a cúpula piramidal da Igreja de Santa Maria Del Palácio e as torres da Catedral de Santa Maria la Redonda. Pareciam estar ao alcance de minhas mãos, porém 10 longos quilômetros ainda me separavam dela. 

Ao reiniciar minha caminhada, transitei por uma estrada vicinal asfaltada, concorri com centenas de carros e pessoas a pé, afluentes a uma comemoração que acontecia numa igreja à frente. Quando lá cheguei, reconheci a Ermida de la Virgem de las Cuevas, Padroeira de Viana, cuja data é comemorada na Pascoela. Moradores da região participavam de uma autêntica festa campal, onde havia quermesse, bingo, barracas de comes-e-bebes e música ao vivo, em altíssimo volume. 

A igrejinha encontrava-se completamente lotada, o que impediu meu ingresso em seu interior. Famílias inteiras haviam trazido mesas, cadeiras, e se instalavam pelos campos em derredor, compondo um ambiente alegre e descontraído. Em todas as reuniões, litros do bom vinho espanhol incluía-se no cardápio do dia. Ao lado de algumas mesas, churrasqueiras incandescentes deixavam no ar o cheiro de carne na brasa, que impregnava o frio clima primaveril.

Aquela abastança alimentar corroía meu estômago, pois, ainda, não tinha almoçado, a lembrar-me, também, que face aos últimos trocados inseridos em meu bolso, estava condenado a ingerir, naquele dia, uma simples sopa de macarrão com pão.

Intimorato, desejoso de reverter esse fadário, parti célere em direção ao meu objetivo final, e logo à frente, depois de ultrapassar um pequeno marco de pedra, deixei Navarra, para adentrar em Rioja, com seus vastíssimos campos agricultáveis e seus exuberantes vinhedos começando a florescer. Avancei, bordeando o Monte Cantábria, e, após vencer uma acentuada descida ladeada de parreirais, alcancei as primeiras casas da área urbana.

Logo, numa singela barraquinha, avistei uma senhora idosa, que me acenou alegremente e convidou-me a sentar para o tradicional "selo". Veneranda, com cabelos brancos a prantear-lhe os anos, era Dona FELISA, um dos maiores ícones do Caminho, famosa pelo seu proverbial carinho e exacerbada dedicação para com os peregrinos.

Tudo ali vestia o aspecto da simplicidade. A mesinha rústica sobre a qual assinei seu livro de registros, as cadeiras desgastadas pelo tempo, a tosca e encarquilhada barraca, os pés de figo que vicejavam exuberantes ao lado de sua modesta moradia, compunham um cenário bucólico onde brincava serena harmonia. 

Ofereceu-me água e figos e, depois de apor o carimbo em minha credencial e identificar minha procedência, com voz melíflua, pediu-me uma pedra do Brasil para sua coleção. Carregava em minha mochila apenas duas pedrinhas, desde minha casa, com o propósito de depositá-las na Cruz de Ferro, assim, desculpei-me e prometi levar-lhe algumas se um dia ali voltasse. 

É salutar clarificar-se a admiração de Dona FELISA pelas pedras brasileiras. Na verdade, ela tinha especial predileção por pedrinhas polidas, tais como cristais de quartzo, ágatas, topázios, ametistas e afins, procedentes, quase sempre, dos Estados de Minas Gerais e Goiás. Aquelas que eu portava, eram simples seixos que havia subvertido de meu quintal, sem nenhuma beleza exterior, porém, para mim, carregadas de mística simbologia e, saudosa energia familiar.

Como outros, desconhecia esse curioso "hoby" de minha interlocutora, porém, num futuro retorno ao Caminho, compromisso assumido, iria mimoseá-la não com uma pedrinha, mas sim, com uma dezena delas.

Minhas vãs esperanças de encontrar um banco aberto naquele dia, foram definitivamente sepultadas por Dona FELISA, ao afirmar-me que ali em Logroño, também, tudo estava cerrado por conta da Pascoela. Desconsolado, contei-lhe estar com míseros trocados no bolso motivado por aqueles infindáveis feriados espanhóis. Com um leve aceno de cabeça concordou, então, graciosamente ofereceu-me uma garrafa de água.

E, ainda me deu, obsequiosa e com toda sua simpatia estampada no rosto, dois saborosos figos açucarados, que degluti ali mesmo, com irrefreável avidez. Sua solidariedade ao meu suplício fez com que eu sorrisse pela primeira vez naquele dia. Ao me preparar para partir, ainda cônscia do problema que me afligia, disse-me: "Peregrino, tenha fé, Santiago há de lhe prover no momento certo!".

Sinto que Santiago, como que ouviu o seu apelo, pois no excelente albergue onde me hospedei, conheci um casal de mineiros, o José Maria e a Ana, que estavam iniciando o Caminho naquela cidade. Extremamente prestativos e atenciosos, souberam do meu drama financeiro e, por estarem com a "burra" cheia, prontamente me cambiaram uma nota de U$100,00, restabelecendo, de imediato meu delicado equilíbrio financeiro.     

Como por encanto, minha caldeira interna desaqueceu-se. Após um lauto jantar regado a um fino vinho Riojano o bom humor voltou a me invadir, restabelecendo a tranqüilidade para caminhar por mais dois dias até Santo Domingo de La Calçada, onde pude converter todos os meus dólares em moeda espanhola e, assim, encerrar o Caminho sem maiores percalços monetários.

Aquele interstício Pascal, vivido entre o desespero e a solidariedade, ensejou-me, depois, inúmeras reflexões ao longo do Caminho. A fome e a ausência de dinheiro naquele interregno forçado, propiciaram-me repensar o luxo, viver a humildade do despojamento, domar minha concupiscência.

Se, é cediço e notório o pendor do povo espanhol para festas e comemorações, é o peregrino cuja alma busca a iluminação, quem deve dar o exemplo, se acalmando, se conformando e, se adaptando ante as vicissitudes que se nos apresentam no dia-a-dia ao longo da Trilha.

Escoteiro, lá necessitei de muita perseverança em alguns momentos para prosseguir em frente sendo que, a coragem não é a ausência do medo, mas sim a capacidade de se portar com dignidade, apesar de senti-lo.

Precisei, também, muitas vezes contar com a reciprocidade alheia. Foi difícil, pois em meu santuário interior, há muitos cômodos que, ainda hoje, parecem estar fechados a estranhos. 

Por outro lado, a Pascoela me lembra Dona FELISA, essa senhora que durante sua longa existência demonstrou ser um exemplo de fidelidade e dedicação ao Caminho. Com 91 anos na época em que a encontrei, seu rosto cor de papoila, um quase nada oblongo, exalava serenidade. Por gerações, sua irreprochável presença, naquele local, foi sinônimo de atenção e inefável desvelo para os caminhantes que ali passavam diariamente.

A genuína adoração que demonstrava pelos peregrinos, o remoçar diário de seu coração generoso, já coberto de invernos nevados, infundia a todos, fé, ânimo e certeza de chegar ileso a Santiago. Em seus olhos, lembro-me com clareza, vi uma coisa rara: carinho e amor, puro e sem mistura. 

A nota sombria que chegou em novembro de 2002 sobre sua morte, colheu a todos de surpresa e, nos lança ao rosto a realidade irrefutável da vida: o tempo é escasso, fugaz, nossa existência breve. Só o hoje nos pertence, apenas o agora cabe em nossas mãos para realizarmos nossos sonhos enquanto se está no mundo. 

Outros ídolos do Caminho tombaram recentemente: Madame Debril, em maio de 2000. Bernie, o cão de Castrojeriz, amigo dos peregrinos, morto brutalmente em janeiro de 2003. O Caminho imita a vida, ele é dinâmico, outros assumirão seus lugares, porém, suas lacunas permanecerão impreenchíveis e imorredouras. 

De DONA FELISA fica a certeza de sua realização, de sua submissão aos desígnios celestes, do atendimento de sua vocação. A ela, minha gratidão, minha homenagem sincera, vinda de um coração agora pesaroso, o qual sabe reconhecer a riqueza e o amor que ela legou a mim e a todos que por lá passaram um dia, como a dizer:

"Aqui fica o presente, para que o futuro relembre o passado!"    

 Bom Caminho a todos!

Março/2.003