23ª Jornada

23ª Jornada - Lubián  a La Gudiña – 25 quilômetros – “Chuva e Galícia!”:

Choveu com intensidade a noite toda e quando me levantei, às 6 h, o mau tempo persistia. 

Mesmo assim, otimista, fiz minhas abluções e preparativos, como de costume.

Internamente, me encontrava em ebuliente sublimação. 

Pois, estava próximo de cumprir meu almejado objetivo, sonho de qualquer peregrino que faz o Caminho: aportar à Compostela.     

Assim, quando se vem de muito longe, como no meu caso, o ato de estar quase pisando em terras galegas, nos deixa consternado e nos anima a afrontar com mais força e intrepidez as derradeiras etapas faltantes, já que nosso destino final parece estar ao “alcance das mãos”.

Às 7 h, quase pronto para partir, acordei Miquelle, conforme havíamos combinado na noite anterior. 

O italiano levantou-se, olhou pela janela, coçou a barba por fazer, observou o temporal que se abatia lá fora e confessou:

- “Eu já tenho 62 anos e, sendo assim, não sou mais criança, muito menos “doido varrido”. 

Santiago me aguarda em sua Catedral, mas, me quer saudável, jamais enfermo. 

De forma que já decidi: não caminharei hoje! 

Aguardarei a hospitaleira vir limpar o albergue e vou solicitar-lhe que me providencie um táxi!. 

Dito isto, entrou novamente em seu saco de dormir e, pouco depois, ressonava tranqüilamente.

Assim, esperei, pacientemente, o aguaceiro amainar e bem protegido, vesti minha capa de chuva e segui pelo asfalto até o bar do Javi. 

Como previsto, o estabelecimento já se encontrava aberto e repleto de trabalhadores digerindo a refeição matinal. 

Lá dentro, enquanto deglutia o desjejum, me entrevistei com um morador local sobre a melhor maneira de chegar a La Gudiña, naquele dia.          

Ele reforçou o que ouvira no dia anterior, qual seja, desaconselhou-me a caminhar pelas trilhas, em face do traçado contemplar obrigatoriamente as serras locais e, com certeza, deveriam estar encharcadas e perigosas. 

Incentivou-me, então, a seguir sempre pelo asfalto que, embora representasse um trajeto insípido e duro, ao menos era seguro em razão do clima reinante.

Após tomar meu café, segui em uma estrada secundária asfaltada, uns 2 quilômetros, até o Santuário de “la Virgem de la Tuíza”. 

Naquele local, seguindo as instruções recebidas, virei à direita e, ainda pelo asfalto, prossegui mais 6 quilômetros até me encontrar com a “carretera” N-525.

Naquele lugar, a chuva ainda caía forte, tingindo a paisagem em volta de branco. 

A partir dali, restavam 16 quilômetros para atingir meu destino final.

Uns dois quilômetros à frente, deixei a Província de Zamora e adentrei em Orense, ou seja, estava finalmente na Galícia. 

E ela, fazendo jus a fama de ser um dos locais mais úmidos do mundo, recebendo-me a caráter, pois, a chuva não deu trégua o dia todo.

Às 10 h 30 min, quando ainda faltavam 10 quilômetros para chegar no meu destino, uma perua de transporte escolar parou ao meu lado, buzinando intensamente. 

Dentro estava Miquelle que me convidou para seguirmos juntos no inusitado “táxi”. 

Respondi-lhe que estava bem e completaria o restante do percurso a pé.

Nessa etapa, utilizei sempre o acostamento da rodovia em sentido contrário ao fluxo de veículos e, passei nos povoados de Vilavella, O Pereiro e O Canizo, até atingir, às 12 h 30 min, La Gudiña, cidade situada nos contrafortes do sistema montanhoso que divide as Províncias de Orense/León, meu objetivo naquele dia.

Enquanto caminhava, aproveitei para fazer breve retrospecto do que tinha vivenciado até aquele momento, quase 800 quilômetros percorridos:

Sevilha é o início, a aventura, as grandes extensões sem “pueblos”, água ou presença humana, além do clima extremamente quente.

Já, na Extremadura, o caminho transforma-se em história. 

Os vestígios romanos, a Emérita Augusta, a “Calçada Romana”, Cáceres, o Arco de Cáparra, etc..

Mais à frente, adentrando à Provincia de Castilla e Leon, vão se esbatendo os vestígios da dominação itálica. 

Salamanca é grandiosa, com sua Catedral majestosa e igrejas onipresentes, o seu saber, a Universidade, tudo intimamente ligado à Igreja Católica.

Em continuação, cheguei à cidade de Zamora, famosa pelas Confrarias, os encapuçados, a Páscoa. 

Para mim, uma religiosidade difícil de compreender, pois privilegia a crucificação de Jesus.

Todavia, embora uma cidade austera e carrasquenta, tem seu lado melífluo. 

Porquanto, é afamada pelos seus farináceos, posto que oferece em cada esquina uma “tienda” de pães e doces deliciosos.

Próximo à Granja de Moreruela optei em deixar a Via de la Plata, que prossegue até Astorga, onde se atrela ao Caminho Francês. 

Preferi, então, seguir pelo roteiro Sanabrês, este sim, uma senda de espiritualidade e interiorização.

Na seqüência, são uma constante os “pueblos” praticamente abandonados, mas não esquecidos, uma vez que placas fincadas pela Fundação Ramos de Castro falam da povoação, de seus habitantes, da historia, remetendo-nos sempre a uma reflexão... 

“Caminante, el cordón de la vida és lo que importa, los demás son verdades relativas. Que la andadura te entrañe com la esencia del vivir”...

Sem dúvida, a emoção maior que senti foi adentrar à Província da Galícia, pois, ali já estava próximo da consecução de mais um sonho, qual seja, rever pela terceira vez Santiago de Compostela, meu destino final.

Em La Gudiña, fiquei hospedado no albergue de la Xunta, por certo, o melhor que pernoitei. 

No piso superior ficam os dormitórios, que contêm 24 beliches. Ainda, 4 duchas, 4 lavabos, e 8 banheiros. 

No piso inferior há cozinha, sala de estar, banheiros, escritório, sala de TV, etc. Um verdadeiro luxo!

Ali encontrei instalado, além de Miquelle, um peregrino alemão de nome Olaf, que naquele dia ficara de “molho”, pois, segundo me contou, não se sentira bem ao acordar. 

Em compensação, confidenciou-me que os outros seis hóspedes, inclusive meu amigo Gianfranco, tinham seguido de trem para Laza, devido à intensidade da chuva que desabara, qual seja, naquele dia ninguém caminhara.

Um detalhe me chamou a atenção no espaçoso “refúgio”, que dispõe de um quadro onde várias cópias da chave da porta de entrada são disponibilizadas aos peregrinos. 

Dessa forma, aquele que resolver dar uma volta no “pueblo”, pode retornar sem problemas de acessibilidade ao edifício, um confortável sistema não oferecido em qualquer outro.

Para almoçar utilizei os serviços do bar Oscar (9 Euros), que recomendo, mormente pelo seu delicioso “Caldo Gallego”. 

O edifício da Biblioteca Municipal está localizado próximo ao albergue e lá pude acessar a Internet, graciosamente.

Mais tarde dei um breve giro pelo povoado e aproveitei para conhecer a igreja de San Martinho, cuja construção data de 1.619.

Comprovei, ainda, por onde deveria seguir no dia seguinte, pois, a partir desta cidade existem duas opções para se chegar à Ourense. 

Uma, mais plana e longa, passa pela cidade de Verín. E a outra, mais curta e acidentada, segue através de Laza. 

Escolhi este último, por onde seguirei.

À tardinha, Miquelle entusiasmado com o conforto e funcionalidade da ampla cozinha do albergue, resolveu ser “mestre-cuca” novamente, de maneira que nós três, os únicos ocupantes do imenso estabelecimento, saímos para comprar mantimentos e, depois de pronta a refeição, jantamos com fartura, comunitariamente.

A chuva havia dado ligeira trégua ao anoitecer, mas retornou com fúria logo depois e seguiu noite adentro, proporcionando-me um sono reparador, e, ao mesmo tempo, inquietante, em razão da dura jornada que enfrentaria na manhã seguinte.

Com Miquelle, jantando no Albergue

Resumo: Tempo gasto: 5 h - Sinalização: Foi o único trecho em que não tive condições de avaliar “in loco”, contudo, os outros peregrinos que haviam feito o trajeto no dia anterior, ao serem perquiridos, confirmaram que todo o roteiro está muito bem sinalizado - Clima: Chuvoso, com temperatura variando entre 0 e 10 graus.

 

Impressão pessoal: Um percurso todo feito por asfalto, debaixo de chuva e, em face das adversidades encontradas, valeu para testar minha pertinácia e obstinação, não me deixando abater pela brusca e violenta mudança climática que vivenciei.