UM ENCONTRO MARCADO, EM LIGONDE

Diante do Albergue de Manjarín, um local imperdível!

Levantei-me cedo, era sábado, dia 05.05.2001, estava em Portomorím, apenas, a 92 quilômetros de Santiago. Iniciaria, naquele dia, a 26ª jornada no Caminho e, minha intenção era seguir até Palas de Rei 27 quilômetros à frente.

O dia apresentava-se nublado, cinzento, havia chovido muito na véspera. A intempérie havia me açoitado, com violência, na etapa anterior, minha garganta doía e eu estava afônico.

A noite fora tumultuosa, culpa da excessiva lotação no modesto albergue onde pernoitara, meu sono fragmentado e improdutivo produzia, agora, seus efeitos: sentia-me apático e fatigado. Para piorar meu ânimo, o ar frigíssimo, lá fora, era complementado por um vento enregelante, a soprar forte em todas as direções.

Parti pouco antes das sete horas, sozinho, taciturno, absorto em pensamentos obtusos, que só um dia cabuloso como aquele podia engendrar. 

Havia já caminhado 16 quilômetros, acabara de ultrapassar o secular Cruzeiro de Lameiros e agora andava por dentro de um pequeno povoado  chamado Ligonde, onde o Guia El País afirma viverem exatas 63 almas.

Como nos outros locais por onde eu passara aquela manhã, a povoação encontrava-se completamente silenciosa e deserta, portas e janelas fechadas, não fosse pelo barulho dos animais, sentir-me-ia numa cidade fantasma. Eu andava de cabeça baixa, mãos nos bolsos, tristonho, coração opresso, desesperançado, contaminado até a alma pelo clima inóspito que imperava, quando de repente ouvi alguém chamar:

- Buenos dias, peregrino! Tiendes um minuto? 

Surpreso, estaquei, tentando identificar de onde partira o som daquela voz. Uma porta semiaberta numa sólida construção, toda murada na frente, deixava entrever na penumbra, um corredor sob um grande alpendre. Ali, numa cadeira de rodas um senhor, de rosto sorridente, acenava-me. 

É, deveras, relevante ressaltar a interatividade entre o peregrino estrangeiro e o povo espanhol. O Caminho de Santiago, na Espanha, passa por aproximadamente 220 localidades. Destas, apenas umas 20 poderíamos nominar como cidades, as demais não passam de pequenas povoações ou simples ayuntamentos, como se diz por lá.

Nesses, avultam as pessoas idosas. Os jovens, quase sempre vão estudar nos grandes centros, seguem carreiras diferentes de seus ancestrais e, dificilmente retornam à terra natal.

O peregrino, normalmente, é uma pessoal disponível e essa relação bidimensional com o povo nativo ocorre diariamente. Eu mesmo já fora sabatinado em diferentes locais, pois essas pessoas tem curiosidade em identificar a procedência, hábitos, credo e profissão dos peregrinos que por ali passam.

Naquele dia, porém, em razão do meu desânimo, mantinha-me arredio a esse tipo de contato. Por isso, indeciso, detive-me a analisar se deveria interromper minha jornada. No horizonte à leste, observava eu, que durante algum tempo, nuvens negras se aglomeravam, prenúncio certo de chuva para breve. Ainda me sentia indisposto, febril, fruto da borrasca que me apanhara no dia anterior, e não desejava repetir aquela experiência.

Prelibava ansioso por chegar ao albergue, a fim de tomar um banho quente, recompor-me com um almoço proveitoso e um bom descanso. Entretanto, acudiu-me o oitavo mandamento peregrino, ainda perfeitamente insculpido em minha mente: "Não estranhe ou renegue nenhum dos encontros, diálogos e experiências vividas durante a jornada, seja com peregrinos ou com os habitantes da região". Deveria, eu, conspurcar essa máxima?

- Ei, peregrino, aceitas um café? disse-me em seguida o anfitrião.

Ao ouvir o convite lembrei-me que partira muito cedo, ainda estava escuro e, até aquele momento, deglutira apenas uma maçã, meu estomago roncava com freqüência já a algum tempo e, no percurso, eu não encontrara nenhum comércio aberto onde pudesse aplacar minha fome. Ansiava por ingerir algo quente e, assim, aquele oferecimento compeliu-me a uma pausa na caminhada.

Lentamente, retrocedi e acerquei-me do umbral.

No Caminho, próximo de Viana.

Das sombras, a cadeira de rodas projetou-se levemente para frente. Ao atravessar a porta, pude identificar, então, com mais nitidez, um senhor de rosto expressivo, tez escura, pele engelhada, cabelos brancos, de compleição forte. Um grosso cobertor agasalhava-lhe as pernas.

Um aperto de mão fez sentir a sua extremamente calejada, a denunciar uma pessoa afeita à lida bruta. Por trás dele, uma senhora de olhos escuros, com um sorriso triste nos lábios. No chão, do seu lado, dois lindos cães da raça Labrador, cochilavam. Ao me aproximar, uma cadeira foi-me gentilmente oferecida, sendo colocada ali no corredor.

Observando o jardim, divisei com surpresa que o quintal se abria num enorme terreno, onde vislumbrei, ao fundo, várias cabeças de gado a pastar. Ao lado delas, num redil, inúmeras ovelhas baliam. Debaixo de um grande rancho, dois tratores e inúmeros implementos agrícolas ficavam protegidos do sol e da chuva. Por sobre a grama, galináceos, de todas as espécies, corriam em bandos. Identifiquei, também, alguns hórrios, construções típicas galegas, utilizadas para a guarda da colheita, em locais altos, a salvo do ataque de roedores e aves.

Próximo de mim, num canto do alpendre, uma pequena capela recentemente pintada e, dentro dela, num nicho a imagem de Santiago. Tudo por ali transpirava ordem, competência, abastança.

Enquanto me desvencilhava da mochila e do cajado, uma bandeja contendo um bule e várias fatias de pão recém saído do forno, ainda a fumegar, foi colocada sobre uma pequena mesa. O cheiro inebriante da infusão, produto da rubiácea aquecida, misturada ao aroma do puro trigo cozido, encheu minha boca de saliva, deixando-me, momentaneamente, sem palavras. 

Após as apresentações formais, entabulamos um animado diálogo. Seu nome era Vicente, e sua esposa, aquela de olhos tristes, chamava-se Tereza. Falava com voz grave e pausada a conferir se eu lhe entendia. O idioma pelo qual os habitantes da Galícia se expressam, é muito semelhante ao nosso e, assim, a conversa prosperou em clima de cordialidade.

Sucintamente, eu lhe fiz um relato de minha jornada, desde a saída de minha casa, no Brasil, até ali. Enquanto eu sorvia lentamente uma xícara de café, discutimos, pragmaticamente, sobre o tempo lá fora. Contou-me, depois, que suas terras prosseguiam além do bosque que eu avistava ao longe. Naquele lugar plantava trigo, cevada, além de possuir extensos parreirais.

Falava com orgulho de sua propriedade, das safras abundantes, dos preços nem sempre compensadores, estribado em dados concretos, exatos, fruto de sua longa experiência e vivência na zona rural. A frugalidade da minha presença, exortava-o a ser conciso e objetivo. Depois, curioso, inquiriu-me:

- Peregrino, que te moves a fazer o Caminho? 

No Caminho, próximo de Óbanos.

Essa era uma pergunta que eu já me fizera, também, por diversas vezes, durante a caminhada, sem obter, ainda, uma resposta conclusiva. Enquanto refletia, observei por sobre um pequeno morro, o céu que se tornava rosado, o sol encoberto por nuvens tênues deixava o firmamento numa radiância ocre. Gosto pela aventura? pensei. Cultura? Religiosidade? Desafio à nova idade?

Com certeza, era uma somatória de tudo isso, mas, respondi-lhe, simplesmente, que, naquele instante, o que me alimentava era a fé inabalável, o sonho de um dia abraçar Santiago, na sua majestosa catedral.

- Parabéns! Uma jornada, que transcende a coragem, disse-me ele. Veja você, que ironia! Moro nesta casa há mais de 60 anos, sempre a trabalhar. Primeiro, precisava criar meus filhos e, eles eram seis, uma, já no céu. A mais nova, falecida ao sete anos, por inépcia médica, contou-me, com olhos úmidos, semblante emocionado. Era uma criança extraordinária, falou-me, dotada de uma inteligência inquiridora e carinhosa.

Então, prosseguiu, fui adiando meus sonhos! Hoje todos eles moram em grandes cidades, estão casados e, sem tempo, raramente vêm nos visitar. Depois, o compromisso diário com as plantas e os animais que possuo, pois não tenho empregados. Jamais pude me afastar daqui, você entende que para os bichos não existe domingo ou feriado? Precisam ser alimentados e ordenhados todos os dias, faça sol ou chuva?

Uma rotina agradável a minha, disse-me, porém massacrante, a escravizar-me pela vida afora. Já vi milhares de peregrinos passarem por essa estrada e, embora more a apenas 76 quilômetros de Santiago e seja devoto ferrenho do Santo Apóstolo, jamais estive lá. Agora, no entanto, estou decidido, assim que eu voltar a andar, irei conhecer Santiago. Aquela pausa obrigatória, a enfermidade exasperante, mostrara-lhe a transitoriedade das coisas materiais, confidenciou-me.

- Eu, consternado, indaguei-lhe, então, a razão de sua imobilidade.

- Talvez tenha sido um alerta! comentou. Fora um privilegiado, aquinhoado com uma saúde de ferro! Jamais consultara um médico. A doença malsã, no entanto, grassara com perfídia, relatou-me. Aleivosamente e, de sorrateiro, perpetrara-lhe uma surpresa. A gota insidiosa, manifestara-se, repentinamente, eclodindo pelo corpo todo. Cristais de ácido úrico, protuberantes, transpareciam por debaixo de sua pele. A uricemia aguda atacara com mais vigor nas partes localizadas abaixo de sua cintura.

Apesar das invectivas funestas, formuladas pelo médico que o atendera, com grave risco de amputação de ambas as pernas, por obra divina, isto não fora necessário. Levantando a coberta, pude vê-las: tumefactas, deformadas, avermelhadas, as juntas artríticas, candentes. Um milagre! Dizia ele, olhos marejados. Nessa hora, valeu-lhe a fé em Santiago!

Nos primeiros dias, após manifestar-se, a moléstia revelara-se cruel. Ele, estático na cama, sem poder se mover, sob dores lancinantes, alternara-se, por uma semana, entre a razão e a inconsciência. Lembrava-se, porém, com nitidez de sonhos marcantes, onde invariavelmente Santiago aparecia-lhe, finalizando com ele, sempre, dando um abraço no Santo.     

Ao recuperar totalmente a lucidez, estava inevitavelmente contaminado pelo vírus peregrino. Ansiava encontrar Santiago em seu trono, na sua suntuosa catedral. Quando seu estado geral melhorou, permitindo-o sentar, ficava horas naquele alpendre, a contemplar a legião de caminhantes que por ali passava. Nos últimos cinco dias, sempre que era possível, convidava alguém para uma conversa amiga, onde tentava absorver um pouco daquilo que cada um levava no coração.

Nesse dia, tinha sido eu o primeiro peregrino que ele avistara, daí a razão do seu convite. Revelou-me que, em sua última visita, o médico fora sinistro em seu parecer: se excludente a famigerada amputação, nada era conclusivo quanto a possíveis seqüelas futuras. Mesmo assim, o senhor Vicente, malgrado as intensas dores, inobstante a adversidade latente, destarte sua estaticidade forçada, mostrava-se esperançoso no porvir, num exemplo de tenacidade e denodo frente às vicissitudes que a vida lhe apresentava.

Um relancear pelo meu relógio de pulso, mostrou-me que nossa conversa já durara mais de uma hora. Urgia partir, assim, pus-me em pé, ato contínuo, apanhei a mochila e o cajado.

- Peregrino, seu esforço é heroico! falou-me. Você está a mais de 10.000 quilômetros de sua casa, a perseguir um intento. Vejo em seus olhos claros, uma pureza de sentimentos, um objetivo inexorável a atingir, uma determinação incomum! Certamente, você realizará seu desejo!

Interessante, estamos nós dois à mesma distância da Catedral de Santiago. Porém, em condições diversas. Você breve encerrará sua jornada! Eu, aguardarei, pacientemente, minha vez! Quando falar com o Santo Apóstolo, por favor, ore e interceda por mim! Antes que parta, prosseguiu, permita-me dizer-lhe duas coisas. Eu atento e compenetrado, aguardava silencioso.

Primeiramente, um conselho, disse-me ele: "Jamais postergue suas quimeras e aspirações!". Enfático, prosseguiu: "Não abandone seus sonhos ou o ato de sonhar. Não deixe a vida cortar o fio enquanto você puxa a linha dos seus sonhos...segure firme...continue puxando...não desista...agarre a rede, e se parecer que eles estão prontos para pular fora depois que você os pegou, pule atrás deles e continue nadando até que se afogue, se necessário...mas nunca deixe seus sonhos fugirem...". Segundo, leve meu pleito diretamente a Santiago.

Em ascenso, na direção do Cebreiro.

Avise-lhe que, quando eu voltar a ser dono de meus passos irei vê-lo pessoal, em seu resplandecente altar. Ato contínuo, passou-me às mãos um pequeno invólucro, solicitando-me fosse o mesmo, colocado junto ao Santo, como símbolo de sua humildade. 

Gratificado, percebi que, embora recente, nosso relacionamento já repousava num terreno sólido, ainda que estreito. Trocamos, então, um abraço afetuoso, e, num gesto de profundo respeito e gratidão pela amizade conquistada, osculei-lhe um rosto, augurando-lhe imediatas melhoras.

O momento da partida era sublime, um turbilhão de emoções a orquestrar meus sentimentos. Quis chorar, porém não pude. Uma aflição estranha, agridoce, impedia-me, ao mesmo tempo que me envolvia numa onda de pesar e esperança.

Saí dali a revolver o encontro recém findo. Sentia-me importante, agora, era portador de uma mensagem ao Santo. Estranhamente, o cansaço havia se desvanecido. Meu coração exultava, pelo amistoso colóquio, a deferência com que foi tratado, pelo conforto da fome saciada. Pensava, momento, momento, adiamos nossos sonhos, deixando-os para um futuro tão incerto.

Qual a garantia de vivermos o amanhã? Olhando para o céu, pude perceber que o dia também transmutara-se radicalmente. As nuvens negras que antes contadas ao horizonte desaparecido. O vento amainara e o clima fazia-se soberbo. Um sol pálido iluminava os campos verdes ao meu redor. Concomitantemente, transformara-se, também, o meu espírito, agora, confiante e alegre. Então, lembrei-me do provérbio que diz: "A hora mais escura da madrugada é, exatamente, aquela que antecede o alvorecer". Havia comprovado isto na prática.

Dois dias depois, vencida a renhida jornada, aportava em Santiago. Após meu abraço efusivo e particular no Santo Apóstolo, abracei-o novamente, desta vez, fazendo uma oração pelo pronto restabelecimento do Sr. Vicente.

Enquanto estreitava meu amplexo, em simultâneo, discretamente, depositei o invólucro que ele me confiara, a sua foto, aos pés do Santo, por sobre o altar.

No dia seguinte, enviei-lhe um cartão postal, onde declinava a boa nova de minha chegada sem percalços à Catedral, bem como a promessa cumprida. Sem "post scriptum", subscrevi-lhe meu endereço no Brasil.

Um mês após retornar ao meu lar, uma correspondência proveniente da Espanha, redigida por Dona Tereza, dava-me conta que o Sr. Vicente, contrariando todos os prognósticos médicos, tinha necessário obter uma cadeira de rodas e, começado a andar, cinco dias após minha passagem por sua cidade.

De pronto, mesmo claudicante, cumprido sua promessa, indo a pé até Santiago. Naquele percurso que eu vencera em dois dias e meio, ele havia demorado sete, porém realizara seu sonho, como eu, chegara a Santiago pelas próprias pernas. Já voltara à liça costumeira, mas, agora, com planos de viajar, visitar os filhos e, a não se deixar escravizar na labuta diária.

De minha parte, tal qual o Sr. Vicente, continuo a perseguir meus sonhos. Num futuro próximo, quiçá em 2004, se Deus permitir, Santiago quiser, pretendo retornar ao Caminho. Um compromisso obrigatório será um encontro já, adredemente, marcado, em Ligonde.

Antevejo, com regozijo, minha visita obrigatória àquela casa hospitaleira, para uma conversa informal, um abraço "de urso" no Sr. Vicente. Será, com certeza, um amplexo "de quebrar os ossos", movido por uma intensa saudade. Um aperitivo, antecipando o abraço maior, o qual darei em meu Santo protetor, ao final do Caminho: SANTIAGO, em sua imponente Catedral! Então, até lá!

Bom Caminho, a todos!

Janeiro / 2.003