CRÔNICAS MARAVILHOSAS

As mais belas crônicas escritas pelos escritores mais consagrados do Brasil.

Ler é estimulante e essencial.

A leitura habitual e incessante provoca experiências místicas e rompe muros da mediocridade e da ignorância, inspirando o espírito a avançar em direção da luz, da sabedoria e do aprendizado ilimitado.

Um texto pode fazer-nos vivenciar épocas de guerras, tristezas e alegrias.

Nada desenvolve mais a capacidade verbal que a leitura de livros, que até nos ajudam a sonhar e a pensar com mais nitidez.

Enfim, a boa leitura enriquece a alma e o espírito.


100 - A IDADE DE SER FELIZ

Existe somente uma idade para a gente ser feliz, somente uma época na vida de cada pessoa em que é possível sonhar e fazer planos e ter energia bastante para realizá-los a despeito de todas as dificuldades e obstáculos.

Uma só idade para a gente se encantar com a vida e viver apaixonadamente e desfrutar tudo com toda intensidade sem medo nem culpa de sentir prazer.

Fase dourada em que a gente pode criar e recriar a vida à nossa própria imagem e semelhança e vestir-se com todas as cores e experimentar todos os sabores e entregar-se a todos os amores sem preconceito nem pudor.

Tempo de entusiasmo e coragem em que todo desafio é mais um convite à luta que a gente enfrenta com toda disposição de tentar algo NOVO, de NOVO e de NOVO, e quantas vezes for preciso.

Essa idade tão fugaz na vida da gente chama-se PRESENTE e tem a duração do instante que passa.

(Mário Quintana)


99- A MULHER DO VIZINHO

Contaram-me que na rua onde mora (ou morava) um conhecido e antipático general de nosso Exército morava (ou mora) também um sueco cujos filhos passavam o dia jogando futebol com bola de meia. Ora, às vezes acontecia cair a bola no carro do general e um dia o general acabou perdendo a paciência, pediu ao delegado do bairro para dar um jeito nos filhos do sueco.

O delegado resolveu passar uma chamada no homem, e intimou-o a comparecer à delegacia.

O sueco era tímido, meio descuidado no vestir e pelo aspecto não parecia ser um importante industrial, dono de grande fabrica de papel (ou coisa parecida), que realmente ele era. Obedecendo a ordem recebida, compareceu em companhia da mulher à delegacia e ouviu calado tudo o que o delegado tinha a dizer-lhe. O delegado tinha a dizer-lhe o seguinte:

— O senhor pensa que só porque o deixaram morar neste país pode logo ir fazendo o que quer? Nunca ouviu falar numa coisa chamada AUTORIDADES CONSTITUÍDAS? Não sabe que tem de conhecer as leis do país? Não sabe que existe uma coisa chamada EXÉRCITO BRASILEIRO que o senhor tem de respeitar? Que negócio é este? Então é ir chegando assim sem mais nem menos e fazendo o que bem entende, como se isso aqui fosse casa da sogra? Eu ensino o senhor a cumprir a lei, ali no duro: dura lex! Seus filhos são uns moleques e outra vez que eu souber que andaram incomodando o general, vai tudo em cana. Morou? Sei como tratar gringos feito o senhor.

Tudo isso com voz pausada, reclinado para trás, sob o olhar de aprovação do escrivão a um canto. O sueco pediu (com delicadeza) licença para se retirar. Foi então que a mulher do sueco interveio:

— Era tudo que o senhor tinha a dizer a meu marido?

O delegado apenas olhou-a espantado com o atrevimento.

— Pois então fique sabendo que eu também sei tratar tipos como o senhor. Meu marido não e gringo nem meus filhos são moleques. Se por acaso incomodaram o general ele que viesse falar comigo, pois o senhor também está nos incomodando. E fique sabendo que sou brasileira, sou prima de um major do Exército, sobrinha de um coronel, E FILHA DE UM GENERAL! Morou?

Estarrecido, o delegado só teve forças para engolir em seco e balbuciar humildemente:

— Da ativa, minha senhora?

E ante a confirmação, voltou-se para o escrivão, erguendo os braços desalentado:

— Da ativa, Motinha! Sai dessa...

(Fernando Sabino)


98 – HISTÓRIA DE MINEIRO

Estou sabendo de uma historinha que bem valia um conto e feito por quem a narrou, o contista que anda arrebatando todos os prêmios dos concursos em que se inscreve: Edson Guedes de Morais. É um caso de mineiro. Trata de gente pobre e de filho que veio trabalhar no Rio, prosperou e um dia mandou uma carta ao pai:

Meu pai: com a graça de Deus, posso dizer que já tenho economia suficiente para pretender realizar qualquer sonho seu. Minha maior felicidade estará em poder propor : que possa fazer para alegrá-lo? 0 que mais desejaria na vida? Tenho pensado muito em sua luta de sacrificado e não me lembro de tê-lo ouvido falar sobre qualquer aspiração. Não se acanhe, papai, mande dizer se o senhor quiser alguma coisa."

Lá da cidadezinha das Minas Gerais veio uma carta. Daquele homem religioso, devoto de Nossa Senhora Aparecida, austero, confiando nos seus deveres e trabalhos: o homem que jamais manifestara ao filho o seu desejo de possuir, por exemplo, um carro, ou ter um negócio só seu, ou, no mínimo, de adquirir uma lavadeira automática para desafogar o trabalho da mulher :

— "Meu filho, com a graça. de Deus, todos vão com saúde. Não me falta nada. Assim como vivo, vivo bem. Mas se você quiser saber de um desejo que sempre tive fique sabendo agora que toda a vida quis ver o mar. É só isso, meu filho, mais nada."

Tão pouco lhe pedia o pai ! Mandou-lhe o filho a passagem, depois de ter escolhido um bom hotelzinho na Tijuca, freqüentado por gente de pequenas posses, mas pessoas escolhidas — só família, enfim. E o velho chegou com a alegria de ver o filho que realizara o que inúmeras gerações de sua gente não haviam conseguido: ter dinheiro sobrando. Vieram as efusões, as lágrimas. O primeiro dia passou, e, logo no segundo, o filho veio buscar o pai:

Papai, vista-se que eu vou levá-lo a Copacabana. Está na hora de realizar o desejo."

0 velho olhou-o piscando meio trêmulo:

— "Hoje, não. Quero visitar a prima Carlota, que mora aqui perto. Amanhã eu vou".

Chegou amanhã, e o pai, sempre tremendo e piscando, disse que não se sentia bem para ir a Copacabana. No terceiro e no quarto dias também, afirmou que não podia ir e que queria comprar uma lembrancinha para a mulher e para a filha. Alguns dias decorreram e o grande encontro entre o mineiro e o mar foi sendo protelado. Já, então, o filho estava meio triste com aquela estranha atitude do pai e, afinal, desabafou:

— "Parece que o senhor não está querendo mesmo ir ver o mar! Desde que chegou aqui não encontra um dia para realizar aquilo que afirmou ser o único desejo de sua vida!"

0 pai chegou a pegar o chapéu, passou a mão no ombro do filho mas estava tão perturbado, que desta vez, realmente, parecia doente.

— "Meu pai, o que é que o senhor tem? O que há?"

O velho mineiro, de olhos nublados, hesitou. Por fim, largou o peso da verdade de uma vez :

— "Acho uma coisa tão maravilhosa poder ir ver o mar que quero entregar a Nossa Senhora o meu sacrifício. Meu filho, não se zangue. Vou voltar hoje mesmo para casa sem ir a Copacabana".

— "Mas por que, meu pai? Por quê? Nem Nossa Senhora vai aceitar esse seu sacrifício. Todo mundo vê o mar todo dia. Gente há que nem liga, passa pela praia e nem volta o rosto para ele..."

Mas, a essa altura, o velho já ia juntando os seus trens. Nesse mesmo dia voltou para sua cidade das Minas Gerais, levando em sua imaginação a idéia do abismo de assombro que ele jamais encontraria.

(Dinah Silveira de Queiroz)


97 - A ÁGUIA E A GALINHA

Certa vez, um camponês andando pela floresta, encontra caído ao chão um ninho de águia, com um filhote bastante machucado, que havia caído junto com o ninho do galho mais alto, de uma das árvores mais altas do local.

Com pena da ave, levou-a para sua casa e tratou-a dia a dia. Aos poucos foi se recuperando, e o nosso camponês, sem ter onde deixá-la, acabou colocou-a no galinheiro, junto com as suas galinhas.

E, assim, a aguiazinha foi crescendo e aprendeu a se comportar exatamente como as galinhas.

Os anos se passaram. Certo dia, o camponês recebeu a visita de um naturalista que, ao ver a águia no galinheiro, afirmou:

"Este pássaro não é uma galinha, é uma águia, a rainha das aves, aquela que voa mais alto e que mais perto chega do céu e do sol. A maior de todas as aves".

O camponês confirmou o que ouviu, mas retrucou:

"Não. Ela já foi uma águia. Ela foi águia quando nasceu, mas hoje é uma galinha. Veja, ela se comporta exatamente igual às galinhas".

O naturalista não se conformou e pediu ao camponês para deixá-lo libertar a águia. O camponês não tinha nada a opor, mas advertiu:

"Não adianta. Você verá que ela não é mais uma águia, pois eu não sei há quanto tempo ela já está aqui e durante todos esses anos ela sempre se comportou como uma galinha".

O naturalista pegou a águia e disse:

"Você sempre foi, é e sempre será uma águia. Você nasceu para voar muito alto, para ser a maior de todas as aves, a mais poderosa.

Você não é uma simples galinha. Vamos, voe em direção ao céu e ao sol, pois é o seu destino".

A águia olhou para baixo, viu as galinhas e pulou para o chão, ficando entre elas. O camponês comentou:

"Não lhe disse? Ela perdeu o espírito de águia e agora é uma simples galinha".

O naturalista não se conformou e retrucou:

"Não. A natureza dela não é essa. Amanhã vamos levá-la para o alto da montanha mais alta, lá ela verá o sol e voará como uma águia que é".

E assim fizeram. No dia seguinte levaram a águia até o alto da montanha mais alta e o naturalista repetiu:

"Vamos! Você é uma águia, uma das mais belas criações de Deus. Você foi feita para vencer, não pode continuar agindo como uma simples galinha. Voe. Observe o céu e o sol, eles são os seus objetivos, e não a terra, o chão de um galinheiro".

A princípio a águia, de forma muito medrosa, procurou as galinhas, mas como não as encontrou por perto, passou nervosamente a bater as suas enormes asas, com quase 3 metros de envergadura; aos poucos foi criando coragem e depois de algumas tentativas frustradas e de muito medo conseguiu alçar pequenos voos. Mais um pouco e ela se sentiu com a coragem necessária para voar em direção ao sol e ao céu; e lá foi ela, galhardamente, realizar o seu projeto de vida, para o qual havia sido criada.

Nós, seres humanos, também viemos ao mundo para realizar todos os nossos projetos e sonhos...

Ao longo da vida, entretanto, alguns perdem essa coragem e desistem de buscar a sua própria realização, desfigurando-se completamente.

Acomodam-se e se deixam levar pelos obstáculos e dificuldades que a vida apresenta. Não conseguem reter o espírito de luta que faz de alguns os grandes vencedores, mas que nasceu com todos nós.

A águia é uma ave de rapina e nisto ela é exatamente o oposto do que temos de ser ao longo da nossa vida e da nossa profissão, porque não nascemos para viver de "expedientes de rapina", mas sim da nossa maravilhosa capacidade de construir sempre um mundo melhor para todos, sejam eles nossos familiares, clientes ou empresas, pois ao produzir, seja o que for, estamos melhorando a vida de todas as pessoas.

Mas, assim como a águia, viemos ao mundo para realizar grandes e bonitos "voos ao longo da vida", transformar os nossos sonhos em realidade e . . . vencer.

Às vezes, a vida nos apresenta situações em que é difícil ser águia e sairmos "voando" em direção ao céu dos nossos sonhos e ao sol das nossas realizações, mas temos de ACREDITAR SEMPRE que isto é uma situação passageira e que logo voltaremos a ter o espírito de vitória com que nascemos, lutando para buscar sempre a plena realização de todos os nossos sonhos.

Assim como a águia, viemos ao mundo com a missão de superar todos os obstáculos que se apresentarem, pois temos de, todos os dias, começar sempre tudo de novo -- não adiantará absolutamente nada o sucesso ou o fracasso...de ontem -- e não importa o que já aconteceu, tenha sito ótimo ou péssimo, pois o que importa mesmo é ... o que você fará acontecer hoje !!!

Semelhante à águia, busque ser a realização da obra maior de Deus e lute sempre, pois é isso que diferencia os que vencem... dos que se lamentam..

(Do livro A AGUIA E A GALINHA, de Leonardo Boff)


96 - O MILAGRE DE UM NOVO DIA

Hoje eu me levantei cedo pensando no que tenho para fazer antes que o relógio marque meia noite.

Eu tenho responsabilidades para cumprir hoje.

Eu sou importante.

É minha função escolher que tipo de dia terei hoje.

Hoje eu posso reclamar porque está chovendo ou posso agradecer às águas por lavarem energias pesadas.

Hoje eu posso ficar triste por não ter muito dinheiro ou posso me sentir encorajado para administrar minhas finanças sabiamente, mantendo-me longe de desperdícios.

Hoje eu posso reclamar sobre minha saúde ou posso dar graças a Deus por estar vivo.

Hoje eu posso me queixar dos meus pais por não terem me dado tudo que eu queria quando estava crescendo, ou posso ser grato a eles por terem permitido que eu nascesse.

Hoje eu posso lamentar decepções com amigos ou posso observar oportunidades de ter novas amizades.

Hoje eu posso reclamar por ter que trabalhar ou posso vibrar de alegria por ter um trabalho que me põe ativo.

Hoje eu posso choramingar por ter que ir à escola ou abrir minha mente com entusiasmo para novos conhecimentos.

Hoje eu posso sentir tédio com trabalho doméstico ou posso agradecer a Deus por ter me dado a bênção de um teto que abriga meus pertences, meu corpo e minha alma.

Hoje eu posso olhar para o dia de ontem e lamentar as coisas que não saíram como eu planejei ou posso alegrar-me por ter o dia de hoje para recomeçar.

O dia de hoje está à minha frente esperando para ser o que eu quiser.

E aqui estou eu, o escultor que pode dar-lhe forma.

Depende de mim como será o dia de hoje diante de tudo que encontrarei.

A escolha está em minhas mãos:

Hoje eu posso enxergar minha vida vazia ou posso alegremente receber o Milagre de Um Novo Dia!

(Silvia Schmidt - *Humancat* Versão livre de 'A New Day ', de Kirk McJay)


95 - GENTE COMETA!

O MUNDO ESTÁ PRECISANDO DE ESTRELAS, VAMOS TENTAR SER UMA!

Há pessoas estrelas e há pessoas cometas.

Os cometas passam. Apenas são lembrados pelas datas que passam e retornam. As estrelas permanecem. Os cometas desaparecem.

Há muita gente cometa. Passa pela vida da gente apenas por instante. Gente que não prende ninguém e que a ninguém se prende. Gente sem presença. Assim são pessoas que vivem numa família e que passam um pelo outro sem presença.

Importante é ser estrela. Permanecer. Estar presente. Marcar presença. Estar junto. Ser calor. Ser vida. Amigo é ser estrela. Podem passar os anos, podem surgir distâncias, mas a marca fica no coração. Coração que não quer enamorar-se de cometas que apenas atraem olhares passageiros. Muitos cometas por momentos passam e desaparecem.

Ser cometa é não ser amigo. É ser companheiro por instantes. É explorar os sentimentos humanos. A solidão é resultado de uma vida cometa. A solidão é consequência de não poder contar com alguém. Ninguém fica. Todos passam. E a gente também passa pelos outros.

Há necessidade de criar um mundo de estrelas. Todos os dias poder vê-las e senti-las. Todos os dias ver sua luz e calor. Assim são os amigos estrelas de nossa vida. Pode se contar com eles. Eles são presença, coragem nos momentos difíceis, luz nos momentos escuros e segurança nos momentos de desânimo.

Ser estrela neste mundo passageiro, nesse mundo cheio de cometas é um desafio, mas acima de tudo, uma recompensa.

É nascer e ter vivido e não apenas existido!

(Reinilson Câmara – Professor, escritor, poeta, cronista e compositor de MPB)


94 - SE EU SOUBESSE O QUE SEI AGORA

O dono de um pequeno comércio, amigo do grande poeta Olavo Bilac, abordou-o na rua:

- Sr. Bilac, estou precisando vender o meu sítio, que o senhor tão bem conhece. Poderá redigir o anúncio para o jornal?

Olavo Bilac apanhou o papel e escreveu:

"Vende-se encantadora propriedade, onde cantam os pássaros ao amanhecer no extenso arvoredo, cortada por cristalinas e marejantes águas de um ribeiro. A casa banhada pelo sol nascente, oferece a sombra tranquila das tardes, na varanda".

Meses depois, topa o poeta com o homem e pergunta-lhe se havia vendido o sítio.

- Nem pense mais nisso, disse o homem. Quando li o anúncio é que percebi a maravilha que tinha.

Moral da história: Às vezes não descobrimos as coisas boas que temos conosco e vamos longe atrás da miragem de falsos tesouros.


93 - A DOR QUE DÓI MAIS

Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, dói. Bater a cabeça na quina da mesa dói. Morder a língua dói. Cólica, cárie e pedra no rim também doem. Mas o que mais dói é saudade. Saudade de um irmão que mora longe. Saudade de uma cachoeira da infância. Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais. Saudade do pai que já morreu. Saudade de um amigo imaginário que nunca existiu. Saudade de uma cidade. Saudade da gente mesmo, que o tempo não perdoa. Dói essas saudades todas. Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama. Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida. Você podia ficar na sala e ele no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá. Você podia ir para o escritório e ele para o dentista, mas sabiam-se onde. Você podia ficar o dia sem vê-lo, ele o dia sem vê-la, mas sabiam-se amanhã. Mas quando o amor de um acaba, ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.

Saudade é não saber. Não saber mais se ele continua se gripando no inverno, não saber mais se ela continua pintando o cabelo de vermelho.

Não saber se ele ainda usa a camisa que você deu, não saber se ela foi na consulta com o dermatologista como prometeu. Não saber se ele tem comido frango assado, se ela tem assistido as aulas de inglês, se ele aprendeu a entrar na Internet, se ela aprendeu a estacionar entre dois carros, se ele continua fumando Carlton, se ela continua preferindo Coca-cola, se ele continua sorrindo, se ela continua dançando, se ele continua surfando, se ela continua lhe amando. Saudade é não saber. Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche. Saudade é não querer saber se ele esta com outra, e ao mesmo tempo querer. É não querer saber se ela está feliz, e ao mesmo tempo querer. É não querer saber se ela esta mais magra, se ele está mais belo.

Saudade é nunca mais saber de quem se ama, e ainda assim, doer.

(Martha Medeiros)


92 - ELEGÂNCIA

Existe uma coisa difícil de ser ensinada e que, talvez por isso, esteja cada vez mais rara: a elegância do comportamento.

É um dom que vai muito além do uso correto dos talheres e que abrange bem mais do que dizer um simples obrigado diante de uma gentileza.

É a elegância que nos acompanha da primeira hora da manhã até a hora de dormir e que se manifesta nas situações mais prosaicas, quando não há festa alguma nem fotógrafos por perto.

É uma elegância desobrigada.

É possível detectá-la nas pessoas que elogiam mais do que criticam.

Nas pessoas que escutam mais do que falam. E quando falam, passam longe da fofoca, das pequenas maldades ampliadas no boca a boca.

É possível detectá-la nas pessoas que não usam um tom superior de voz ao se dirigir a frentistas.

Nas pessoas que evitam assuntos constrangedores porque não sentem prazer em humilhar os outros.

É possível detectá-la em pessoas pontuais.

Elegante é quem demonstra interesse por assuntos que desconhece, é quem presenteia fora das datas festivas, é quem cumpre o que promete e, ao receber uma ligação, não recomenda à secretária que pergunte antes quem está falando e só depois manda dizer se está ou não está.

Oferecer flores é sempre elegante.

É elegante não ficar espaçoso demais.

É elegante, você fazer algo por alguém, e este alguém jamais saber o que você teve que se arrebentar para o fazer...

É elegante não mudar seu estilo apenas para se adaptar ao outro.

É muito elegante não falar de dinheiro em bate-papos informais.

É elegante retribuir carinho e solidariedade.

É elegante o silêncio, diante de uma rejeição....

Sobrenome, joias e nariz empinado não substituem a elegância do Gesto.

Não há livro que ensine alguém a ter uma visão generosa do mundo, a estar nele de uma forma não arrogante.

É elegante a gentileza, atitudes gentis falam mais que mil imagens...

...Abrir a porta para alguém... é muito elegante

...Dar o lugar para alguém sentar... é muito elegante

...Sorrir, sempre é muito elegante e faz um bem danado para a alma...

...Oferecer ajuda... é muito elegante

...Olhar nos olhos, ao conversar é essencialmente elegante.

Pode-se tentar capturar esta delicadeza natural pela observação, mas tentar imitá-la é improdutivo.

A saída é desenvolver em si mesma a arte de conviver, que independe de status social: é só pedir licencinha para o nosso lado brucutu, que acha que "com amigo não tem que ter estas frescuras".

Se os amigos não merecem uma certa cordialidade, os inimigos é que não irão desfrutá-la.

Educação enferruja por falta de uso.

E, detalhe: não é frescura.

(Toulouse Lautrec)


91 - FELICIDADE COMPARTILHADA

Uma história fantástica, e simples... Para se ler obrigatoriamente!!!

Dois homens, ambos gravemente doentes, estavam no mesmo quarto de hospital. Um deles podia sentar-se na sua cama durante uma hora, todas as tardes, para que os fluidos circulassem nos seus pulmões. Sua cama estava junto da única janela do quarto. O outro homem tinha de ficar sempre deitado de costas. Os homens conversavam horas a fio. Falavam das suas mulheres e famílias, das suas casas, dos seus empregos, onde tinham passado as férias... E todas as tardes, quando o homem da cama perto da janela se sentava, ele passava o tempo a descrever ao seu companheiro de quarto todas as coisas que ele conseguia ver do lado de fora da janela.

O homem da cama do lado começou a viver à espera desses períodos de uma hora, em que o seu mundo era alargado e animado por toda a atividade e cor do mundo do lado de fora da janela. A janela dava para um parque com um lindo lago. Patos e cisnes chapinhavam na água enquanto as crianças brincavam com os seus barquinhos. Jovens namorados caminhavam de braços dados por entre as flores de todas as cores do arco-íris.

Árvores velhas e enormes acariciavam a paisagem e uma tênue vista da silhueta da cidade podia ser vista no horizonte. Enquanto o homem da cama perto da janela descrevia isto tudo com extraordinário pormenor, o homem no outro lado do quarto fechava os seus olhos e imaginava a pitoresca cena. Um dia, o homem perto da janela descreveu um desfile que ia a passar.

Embora o outro homem não conseguisse ouvir a banda, ele conseguia vê-la e ouvi-la na sua mente, enquanto o outro senhor a retratava através de palavras bastante descritivas. Dias e semanas passaram. Uma manhã, a enfermeira chegou ao quarto trazendo água para os seus banhos, e encontrou o corpo sem vida do homem perto da janela, que tinha falecido calmamente enquanto dormia.

Ela ficou muito triste e chamou os funcionários do hospital para que levassem o corpo. Logo que lhe pareceu apropriado, o outro homem perguntou se podia ser colocado na cama perto da janela. A enfermeira disse logo que sim e fez a troca. Depois de se certificar de que o homem estava bem instalado, a enfermeira deixou o quarto.

Lentamente, e cheio de dores, o homem ergueu-se, apoiado no cotovelo, para contemplar o mundo lá fora. Fez um grande esforço e lentamente olhou para o lado de fora da janela... que dava, afinal, para uma parede de tijolo! O homem perguntou à enfermeira o que teria feito com que o seu falecido companheiro de quarto lhe tivesse descrito coisas tão maravilhosas do lado de fora da janela. A enfermeira respondeu que o homem era cego e nem sequer conseguia ver a parede.

"Talvez ele quisesse apenas dar-lhe coragem...".

Moral da História: Há uma felicidade tremenda em fazer os outros felizes, apesar dos nossos próprios problemas. A dor partilhada é metade da tristeza, mas a felicidade, quando partilhada, é dobrada.

Se te queres sentir rico, conta todas as coisas que tens que o dinheiro não pode comprar.

(Autor desconhecido)


90 - ANTES QUE ELAS CRESÇAM

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

É que as crianças crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estupros dos preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância.

Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente.

Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.

Onde e como andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu? Cadê aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do maternal?

Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos pais, ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins, cabelos soltos sobre as ancas. Essas são as nossas filhas, em pleno cio, lindas potrancas.

Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros ou, então com a suéter amarrada na cintura. Está quente, a gente diz que vão estragar a suéter, mas não tem jeito, é o emblema da geração.

Pois ali estamos, depois do primeiro e do segundo casamento, com essa barba de jovem executivo ou intelectual em ascensão, as mães, às vezes, já com a primeira plástica e o casamento recomposto. Essas são as filhas que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da ditadura das horas. E elas crescem meio amestradas, vendo como redigimos nossas teses e nos doutoramos nos nossos erros.

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

Longe já vai o momento em que o primeiro mênstruo foi recebido como um impacto de rosas vermelhas. Não mais as colheremos nas portas das discotecas e festas, quando surgiam entre gírias e canções. Passou o tempo do balé, da cultura francesa e inglesa. Saíram do banco de trás e passaram para o volante de suas próprias vidas. Só nos resta dizer “bonne route, bonne route”, como naquela canção francesa narrando a emoção do pai quando a filha oferece o primeiro jantar no apartamento dela.

Deveríamos ter ido mais vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, posteres e agendas coloridas de pilô. Não, não as levamos suficientemente ao maldito “drive-in”, ao Tablado para ver “Pluft”, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas.

Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo o nosso afeto.

No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de sorvetes e sanduíches infantis. Depois chegou a idade em que subir para a casa de campo com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma aqui na praia e os primeiros namorados. Esse exílio dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos. Agora é hora de os pais na montanha terem a solidão que queriam, mas, de repente, exalarem contagiosa saudade daquelas pestes.

O jeito é esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.

Por isso, é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.

(Affonso Romano de Sant'Anna)


89 - NEM COM UMA FLOR

"Até hoje só bati numa mulher, mas com singular delicadeza" (Vinicius de Moraes)

Um amigo ia passando pela Avenida Atlântica quando viu um homem batendo numa mulher dentro de um carro estacionado. Resolveu parar e chamar a polícia. Mas iam passando pelo calçadão dois garotões atléticos que vendo o tumulto pararam também para saber. Meu amigo então lhes explica que o sujeito estava batendo na mulher.

— Mas a mulher não é dele? - indagou o garotão.

— E só porque é dele pode bater? - diz o amigo.

— É, nessa você me pegou, cara.

Nesta semana a OAB descobriu que em Imperatriz, no Maranhão, nos últimos cinco anos, maridos mataram 30 mulheres. Mas o fizeram por uma razão muito clara: não queriam pagar pensão nem partilhar os bens na separação. Diante desta estatística da terra de Sarney, os machos da terra de Tancredo ficam humilhados, porque eles só matam mulher por "traição", e, mesmo assim, em menor escala.

Mas vou lhes contar outra estória: uma amiga estava em São Paulo numa conversa sobre espancamento de mulheres. De repente, falou-se de um conhecido professor que havia espancado a mulher (coisa, aliás, que acontece em várias faculdades do país). Reparem bem, estamos falando de gente fina. Não se trata de cachaceiros na subida do morro, do sujeito massacrado pela vida que chega em casa escorraçando as crianças, cães e mulheres. Estamos falando de gente inteligente, formada, com anel no dedo, que toma coquetéis com a gente e cita Marx, Hegel et caterva. Vai daí, alguém, comentando a razão por que o professor teria batido na mulher, sendo ele uma pessoa célebre, indaga: - Mas, afinal, ele é ele, e ela quem é?

Na primeira estorinha vocês viram que um acha que a mulher é propriedade privada do marido, e por isto pode apanhar. Quer dizer: é igual quando a gente tem um cavalo ou cão. Já na segunda narrativa, a titulação acadêmica ou a importância hierárquica justifica a violência sobre o mais fraco. E a mulher, do ponto de vista muscular, é geralmente mais fraca que o homem. Por isto faz muito sentido quando na favela ao lado ouço as mulheres que apanham gritar: "Covarde! Vai bater num homem". E um garotão esclarecido, que estuda lutas marciais, ao ouvir a estória do professor espancador, observou: "Eu queria ver esse professor crescer para cima de mim".

As estorinhas como essas são intermináveis. Lá vai outra. Uma amiga estava dando uma entrevista à televisão e o assunto era exatamente o espancamento de mulheres e a necessidade de se criar uma delegacia especial no Rio, como Franco Montoro criou em São Paulo, só para atender mulheres. E lá ia explicando o bê-á-bá da violência dos homens sobre as mulheres, lembrando que, quando uma mulher é violentada ou espancada, nas delegacias comuns têm que passar por vexames e cantadas, que os homens vêem a vítima como culpada, porque nossa sociedade nos convenceu de que a mulher é sempre uma Eva pecadora. Lembrava que em alguns países, além das delegacias para mulheres, há associações estruturadas para esconderem as vítimas, porque sabem que se muitas delas voltarem para casa serão até assassinadas. E foi explicando que em alguns lugares dos Estados Unidos existe um tratamento para maridos violentos, em sessões comuns, uma espécie de Associação de Alcoólatras Anônimos (os Espancadores Anônimos), que se curam e se tratam em grupo, porque isto é uma doença pessoal e social.

Mas enquanto minha amiga dava a entrevista, os câmeras estavam indóceis. Parecia que o assunto era com eles. E aí, não agüentaram, interromperam a entrevista e um disse: — a gente trabalha na rua o dia inteiro, chega em casa cansado e a comida não está pronta, o que é que há? Ela está querendo apanhar! E a amiga tentou explicar: — então é só você que trabalhou? Ela não batalhou por aí em dupla jornada? Imagine se toda mulher fosse bater em marido que traz pouco ou nenhum dinheiro para casa?

Os câmeras continuaram resmungando durante a entrevista. Não sei o que aconteceu quando eles chegaram em casa. Mas se houvesse na cidade uma delegacia para defender o direito das mulheres certamente pensariam duas vezes. Talvez não chegassem em casa sobraçando flores. Mas seguramente chegariam menos arrogantes.

(Affonso Romano de Sant'Anna)


88 - O PIOR ENCONTRO CASUAL

O pior encontro casual da noite ainda é o do homem autobiográfico. Chega, senta e começa a crônica de si mesmo: "Acordo às sete da manhã e a primeira coisa que faço é tomar o meu bom chuveiro". Como são desprezíveis as pessoas que falam no "bom chuveiro!" E segue o parceiro: "Depois peço os jornais, sento à mesa e tomo meu café reforçado". Ah, a pena de morte, para as pessoas que tomam "café reforçado!" E a explanação continua: "Nos jornais, vocês me desculpem mas, a mim, só interessa o artigo de Macedo Soares e as histórias em quadrinhos". Nessa altura o autobiográfico procura colocar-se em dois planos, que lhe ficam muito bem: o que ele julga de seriedade política (Macedo) e o outro, de folgazante espiritual (histórias em quadrinhos).

E vai daí para outra modesta homenagem a si mesmo: "Aí, então, é que vou me vestir. Quanto à roupa, nunca liguei muito, mas, camisa e cueca, tenha paciência, eu mudo todo dia". O "tenha paciência" é porque está absolutamente certo de que estamos com a camisa e a cueca de ontem. "Acordo minha senhora, pergunto se ela quer alguma coisa e vou para o escritório". Gente que chama a mulher de "minha senhora" está sempre pensando que: não acreditamos que eles sejam casados no civil e no religioso; no fundo, desconfiamos de que sua mulher lhe seja infiel. E vai adiante o mal-feliz: "Só aí vou para o escritório, mas nunca antes de passar no jornal, para ver se há alguma coisa". Esse "passar no jornal" é um pouco difícil de explicar. Mas todo homem banal tem muita vergonha de não ser jornalista e alude sempre a um jornal, do qual tem duas ações ou pertence a um primo, ou amigo íntimo.

Vai por aí contando sua vidinha, que termina, melancolicamente, com esta frase: "À noite, eu sou da família!". Bonito! "Visto meu pijama, janto, deito no sofá e vou ver a televisão, com as crianças em cima de mim". Está aí o retrato perfeito do cretino nacional. E, o que é triste, além de numeroso, está em toda parte. Que horror me causam as pessoas do "bom chuveiro", do "café reforçado", os de "Macedo Soares e das histórias em quadrinhos" (os que gostam só de Macedo Soares ou só de histórias em quadrinhos são ótimos), que precisam dizer que mudam camisa e cueca todos os dias, as que citam "sua senhora" e os que "passam no jornal, antes de ir para o escritório". Nossa maior repulsa, ainda, por quem janta de pijama e deita no sofá, com as crianças em cima. Ah, essa gente me procura tanto!

(Antônio Maria)


87 - MULHER DOS OUTROS

Dia claro. Primeiras horas do dia claro. Havíamos bebido e procurávamos um café aberto, para uma média, com pão-canoa. Quase todos estavam fechados ou não tinham ainda leite ou pão. Fomos parar em Ipanema, num cafezinho, cujo dono era um português e nos conhecia de nome de notícia. Propôs-nos, em vez de café, um vinho maduro, que recebera de sua terra, "uma terrinha (como disse) ao pé de Braga". Não se recusa um vinho maduro, sejam quais forem as circunstâncias. Aceitamo-lo. Nossa grata homenagem a José Manuel Pereira, que nos deu seu vinho.

Nesse café, além de nós, havia um casal, aos beijos. As garrafas vazias (de cerveja) eram quatro sobre a mesa e seis sob. Beijavam-se, bebiam sua cervejinha e voltavam a beijar-se. Não olhavam para nós e pouco estavam ligando para o resto do mundo. Em dado momento, entraram dois rapazes e pediram aguardente no balcão. Ambos disseram palavrões, em voz alta. O casal dos beijos e da cerveja parou com as duas coisas. Outros palavrões e o cabeça do casal protestou:

— Pára com isso, que tem senhora aqui!

Um dos rapazes dos palavrões:

— Não chateia!

--- Não chateia o quê? Pára com isso agora!

Um dos rapazes do palavrão:

— E essa mulher é tua mulher?

— Não é, mas é mulher de um amigo meu!

A briga não foi adiante. Todos rimos. O dono da casa, os rapazes dos palavrões, o casal. Está provado que: quem sai aos beijos com mulher de amigo não tem direito a reclamar coisa alguma.

(Antônio Maria)


86 - PELADA DE SUBÚRBIO

Nova Iguaçu, quatro horas da tarde, sábado de sol. Dois times suam a alma numa pelada barulhenta; o campo em que correm os dois times abre-se como um clarão de barro vermelho cercado por uma ponte velha, um matagal e uma chácara silenciosa, de muros altos.

A bola, das brancas, é nova e rola como um presente a encher o grande vazio de vidas tão humildes que, formalmente divididas, na verdade, juntam-se para conquistar a liberdade na abstração de uma vitória.

Um chute errado manda a bola, pelos ares, lá nos limites da chácara, de onde é devolvida, sem demora, por um arremesso misterioso. Alguns minutos mais tarde, outra vez a bola foi cair nos terrenos da chácara, de onde voltou lançada com as duas mãos por um velhinho com jeito de caseiro.

Na terceira, a bola ficou por lá; ou melhor, veio mas, cinco minutos depois, embaixo do braço de um homem gordo, cabeludo, vestido numa calça de pijama e nu da cintura para cima. Era o dono da chácara.

A rapaziada, meio assustada, ficou na defensiva, olhando: ele entrou, foi andando para o centro do campo, pôs a bola no chão e, quando os dois times ameaçavam agradecer, com palmas e risos, o gesto do vizinho generoso, o homem tirou da cintura um revólver e disparou seis tiros na bola.

No campo, invadido pela sombra da morte, só ficou a bola, murcha.

(Armando Nogueira)


85 - PELADAS

Esta pracinha sem aquela pelada virou uma chatice completa: agora, é uma babá que passa, empurrando, sem afeto, um bebê de carrinho, é um par de velhos que troca silêncios num banco sem encosto.

E, no entanto, ainda ontem, isso aqui fervia de menino, de sol, de bola, de sonho: “Eu jogo na linha! eu sou o Lula!; no gol, eu não jogo, tô com o joelho ralado de ontem; vou ficar aqui atrás: entrou aqui, já sabe”. Uma gritaria, todo mundo se escalando, todo mundo querendo tirar o selo da bola, bendito fruto de uma suada vaquinha.

Oito de cada lado e, para não confundir, um time fica como está; o outro joga sem camisa.

Já reparei uma coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é um ser muito compreensivo que dança conforme a música: se está no Maracanã, numa decisão de título, ela rola e quiçá com um ar dramático, mantendo sempre a mesma pose adulta, esteja nos pés de Gérson ou nas mãos de um gandula.

Em compensação, num racha de menino ninguém é mais sapeca: ela corre para cá, corre para lá, quica no meio-fio, para de estalo no canteiro, lambe a canela de um, deixa-se espremer entre mil canelas, depois escapa, rolando, doida, pela calçada. Parece um bichinho.

Aqui, nessa pelada inocente é que se pode sentir a pureza de uma bola. Afinal, trata-se de uma bola profissional, uma número cinco, cheia de carimbos ilustres: “Copa Rio-Oficial”, “FIFA — Especial”. Uma bola assim, toda de branco, coberta de condecorações por todos os gomos (gomos hexagonais!), jamais seria barrada em recepção do Itamaraty.

No entanto, aí está ela, correndo para cima e para baixo, na maior farra do mundo, disputada, maltratada até, pois, de quando em quando, acertam-lhe um bico, ela sai zarolha, vendo estrelas, coitadinha.

Racha é assim mesmo: tem bico, mas tem também sem-pulo de craque como aquele do Tona, que empatou a pelada e que lava a alma de qualquer bola. Uma pintura.

Nova saída.

Entra na praça batendo palmas como quem enxota galinha no quintal. É um velho com cara de guarda-livros que, sem pedir licença, invade o universo infantil de uma pelada e vai expulsando todo mundo. Num instante, o campo está vazio, o mundo está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves feitas de camisas.

O espantalho-gente pega a bola, viva, ainda, tira do bolso um canivete e dá-lhe a primeira espetada. No segundo golpe, a bola começa a sangrar. Em cada gomo o coração de uma criança.

(Armando Nogueira)


84 - O ANTI-NATAL DE 1951

No documento emitido pelo Juizado de Menores lê-se o seguinte: "Requisito-vos" (ao agente da Estação D. Pedro II, no Rio de Janeiro) "duas passagens de ida e volta em 1ª classe dessa estação até a Estação Presidente Franklin Roosevelt, em São Paulo, para o Dr. Lourenço Laurentis, Curador de Menores do Distrito Federal, e um menor, que viajam a serviço deste Juízo".

Muito atencioso, o agente-ajudante que me atende na Central. Não me faz esperar. Mas, depois de carimbar a requisição, objeta-me que só amanhã poderá dar as passagens, pois o regulamento ferroviário exige antecedência de três dias, não de quatro. Adiantei-me, pois. Evito discutir, para que não surjam obstáculos futuros.

A idéia de fazer essa viagem na companhia unicamente de meu filho, tendo eu me comprometido a não desviá-lo de suas leituras nem durante o percurso nem durante o dia inteiro (25 de dezembro) que passaremos em São Paulo, corresponde satisfatoriamente à nossa concepção (minha e dele) do anti-Natal. Atravessaremos a véspera natalina dentro do trem, sem desejar mal nem bem a quem quer que seja, ele lendo, eu nos meus devaneios. Dia 26 estaremos de volta. Não daremos nem receberemos presentes. O único presente tolerado é essa viagem de graça, que, a bem dizer, não é um presente, é um direito que me dá o cargo de Curador de menores. Doutor Lourenço e o filósofo Lourencinho estarão na deles, numa boa.

Verifico que, se fosse de noturno, com leito de luxo, no "Santa Cruz", em cabine individual de dois passageiros, a viagem de ida e volta custaria ao Estado o triplo do preço desse trajeto feito em poltrona comum. Sairíamos do Rio às 22:30 do dia 24 e chegaríamos a São Paulo às 9 da manhã de 25. Magnífico, sem dúvida. Mas repugna à minha consciência abusar da requisição, proporcionando-nos esse luxo nababesco que ficaria documentado para sempre. Basta a fraude de dizer que eu e o Lourencinho vamos "a serviço do Juízo".

Tentarei, em todo caso, combinar ida em noturno e volta em diurno, numa última homenagem ao meu escrúpulo. O abuso já não será tanto, nem deixarei de proporcionar a meu filho uma viagem repousada. Se tiver de ir e vir de diurno — o que seria a hipótese mais econômica —, a consciência ficará mais leve, mas não sei como se comportariam o fígado dele e os meus rins. Enfim, veremos.

Precipitado no meu otimismo, faço, depois do jantar, uma descrição para a família toda reunida de como é o trem encantado em que viajaremos os dois. Vagões de aço inoxidável. As poltronas forradas de camurça. Giratórias. Ninguém em pé, todos acomodados, de fisionomias risonhas. A composição move-se deslizando, sem nenhuma trepidação, nenhum ruído, não entra pó, o ar que circula é como o do cinema Metro, trem de cinema, primeiro você pensa que é por causa do dia chuvoso, mas deixe chegar uma estação, abrir-se a porta e verá que é como se se abrisse uma fornalha. É a temperatura que faz lá fora. Dentro do carro, no entanto, a mesma inalterável e suavíssima ambiência! Moças e rapazes falam-se aos beijos. Quando não se beijam, cantam. Um sonho!

Diante da minha expansão, Lourencinho tem o comentário desalentador de que só vai a São Paulo para me acompanhar, e que não sabe, afinal, se isso de anti-Natal funcionará mesmo. Se nem o anti-Natal o seduz, meu Deus, que se pode esperar desse rapaz? Deve ser a perspectiva da viagem fatigante. Mas não é só isso, não. Quando lhe falo no que faremos para conhecer a cidade, onde não piso desde 1920 — há mais de 30 anos, portanto —, adverte logo: — Desista disso de querer mostrar parques e avenidas e monumentos e pessoas! Iremos cada qual para seu lado.

Vou buscar as passagens na estação. Outro subagente. Atencioso, como o de ontem. Entretanto, fez-me esperar 25 minutos para verificar se a assinatura era mesmo do juiz de menores, um desaforo. Conclui dizendo, amabilíssimo, que só amanhã, 22, poderá me dar os bilhetes, pois o regulamento fala em "três dias antes da viagem": sendo esta no dia 24, os três dias contam-se 22, 23 e 24. Considera 24 como sendo ao mesmo tempo o dia da viagem e a véspera! Evito discutir etc.

Risadas do homenzinho quando lhe falo em "noturno" e "Santa Cruz". A requisição menciona apenas "passagem de 1ª". Sem especificar "noturno", só se pode subentender "diurno". A fim de não dificultar a interpretação favorável em São Paulo, para a volta, escreve "tarifa noturna", o que permitirá que eu cogite de noturno de lá para cá. Mas, noturno em "trem de madeira", sem leito de qualquer espécie. Nem, sequer, poltrona. A poltrona, mesmo para o diurno, tem de ser paga à parte. São 60 para a ida e outros 60 para a volta. Quer dizer que a requisição do Juízo de Menores só me deu o direito de andar dentro do trem até São Paulo e de São Paulo aqui. Custará isso ao Estado 568 cruzeiros redondos. Acho infinita graça, agora, na minha ingenuidade de falar em "escrúpulo" de pleitear coisa melhor. . . O Governo sabe com quem lida. As bandalheiras não se fazem assim, com recibo. Elas se aninham noutras dobras.

Volto no dia seguinte, o guichê das passagens está se abrindo, sou o primeiro passageiro atendido. Entretanto, não posso ter os assentos que peço, na sombra. "Nós aqui desconhecemos os lugares que são no sol e os que ficam na sombra. As ordens são para destacá-los automaticamente, sem intervenção de quem quer que seja". Conformo-me. Ele lê a requisição. O outro funcionário, ao datá-la, pôs certo 21.12.1951; mas, quando se referiu ao dia da viagem, escreveu, sabe-se lá por que, 24.12.1952, equívoco palpável, evidente. Mas S. Exa. o bilheteiro do guichê nº 1 acha que deve ser retificado. Atendo-o, ainda nisto. No guichê n° 5 já está outro funcionário, diverso do "amabilíssimo" com quem falei ontem. Objeta-me que a retificação não é da sua competência, e que o funcionário que poderia fazê-la só começará a trabalhar às 4 da tarde. Não posso tolerar semelhante absurdo. Volto então ao agente substituto. Ouve-me em silêncio. Manda chamar o bilheteiro. Fala-lhe. E se volta para mim, austeramente: — O funcionário tem razão. Ele não pode retificar um erro que não cometeu. Mas o senhor, também, não vai pagar pelo que se fez sem sua culpa. Atenda-o, portanto, Sr. Freitas. Se o algarismo puder ser modificado, modifique-o. Se não puder, extraia outro passe.

E dá-me as costas. O algarismo não pôde ser modificado. Depois de ajustar pachorrentamente os carbonos e de "experimentar" noutro papel, de rascunho, Freitas pega solenemente o lápis, calca-o, descobre o carbono e diz:

— Não deu certo. — Espero, pois, 15 minutos para que ele extraia novo passe.

Seria justo que minha odisséia terminasse aí. Mas não terminou. Vou para o bilheteiro do guichê n° 1. Examina os novos passes, pede-me a carteira funcional e me diz secamente: 60 cruzeiros pelas duas poltronas. Dou-lhe o dinheiro, mas pergunto:

— Que é que essas poltronas têm de mais?

Ele não demora na resposta:

— Nada.

— Então por que se paga à parte? Se eu não pagasse, iria em pé?

O homem ajusta os óculos ao nariz, fita-me serenamente, reflete no que vai dizer. Responde-me:

— Iria.

Quer dizer: um funcionário, viajando a serviço do Estado, tendo sua passagem requisitada pelo Juízo de Menores, em nome do Ministro da Justiça, não tem direito sequer a viajar sentado nas 11 horas do percurso.

Mas ainda há mais. Pergunto, delicadamente, ao ditador que tenho pela frente, se as poltronas 37 e 38 do carro "B" ficam, ou não, na sombra. Com uma irritação mal disfarçada em calma "superior", responde-me:

— Meu caro senhor, quer um conselho? Peça a Deus que sejam na sombra, porque só Ele pode decidir.

Ali a justiça divina já está feita de antemão. Qualquer dos lugares é igual nos benefícios e nas desvantagens. Em 11 horas de viagem, de 7:25 às 18:25, quem tiver sol pela manhã não o terá mais à tarde, e quem, pela manhã, gozar da sombra, escaldará com o sol de depois do meio-dia.

Rimo-nos, ambos, para descarregar os nervos, evidentemente tensos, tensíssimos. Desejo-lhe Feliz Natal com toda a sinceridade. Posso respirar, enfim. As providências que tinha de tomar para garantir nosso anti-Natal, meu e do meu filho, já estão tomadas.

(Carlos Sussekind)


83 - TARDE DE SÁBADO

A tardezinha de sábado, um pouco cinzenta, um pouco fria, parece não possuir nada de muito particular para ninguém. Os automóveis deslizam; as pessoas entram e saem dos cinemas; os namorados conversam por aqui e por ali; os bares funcionam ativamente, numa fabulosa produção de sanduíches e cachorros-quentes. Apesar da fresquidão, as mocinhas trazem nos pés sandálias douradas, enquanto agasalham a cabeça em echarpes de muitas voltas.

Tudo isso é rotina. Há um certo ar de monotonia por toda parte. O bondinho do Pão de Açúcar lá vai cumprindo o seu destino turístico, e moços bem falantes explicam, de lápis na mão, em seus escritórios coloridos e envidraçados, apartamentos que vão ser construídos em poucos meses, com tantos andares, vista para todos os lados, vestíbulos de mármore, tanto de entrada, mais tantas prestações, sem reajustamento — o melhor emprego de capital jamais oferecido!

Em alguma ruazinha simpática, com árvores e sossego, ainda há crianças deslumbradas a comerem aquele algodão de açúcar que de repente coloca na paisagem carioca uma pincelada oriental. E há os avós de olhos filosóficos, a conduzirem pela mão a netinha que ensaia os primeiros passeios, como uma bailarina principiante a equilibrar-se nas pontas dos sapatinhos brancos.

Andam barquinhos pela baía, com um raio de sol a brilhar nas velas; há uns pescadores carregados de linhas, samburás, caniços, muito compenetrados da sua perícia; há famílias inteiras que não se sabe de onde vêm nem se pode imaginar para onde vão, e que ocupam muito lugar na calçada, com a boca cheia de coisas que devem ser balas, caramelos, pipocas, que passam de uma bochecha para a outra e lhes devem causar uma delícia infinita.

Depois aparecem muitas pessoas bem vestidas, cavalheiros com sapatos reluzentes, senhoras com roupas de renda e chapéus imensos que a brisa da tarde procura docemente arrebatar. Há risos, pulseiras que brilham, anéis que faíscam, muita alegria: pois não há mesmo nada mais divertido que uma pessoa toda coberta de sedas, plumas e flores, a lutar com o vento maroto, irreverente e pagão.

E depois são as belas igrejas acesas, todas ornamentadas, atapetadas, como jardins brancos de grandes ramos floridos

Por uma rua transversal, está chegando um carro. E dentro dele vem a noiva, que não se pode ver, pois está coberta de cascatas de véus, como se viajasse dentro da Via-láctea. Todos param e olham, inutilmente. Ela é a misteriosa dona dessa tardezinha de sábado, que parecia simples, apenas um pouco cinzenta, um pouco fria. E a moça que vem, com a alma cheia de interrogações, para transformar seus dias de menina e adolescente, despreocupados e livres, em dias compactos de deveres e responsabilidades. É uma transição de tempos, de mundos. Mas os convidados a esperam felizes, e ela não terá que pensar nisso. Ela mal se lembra que é sábado, que é o dia de seu casamento, que há padrinhos e convidados. E quando a cerimônia chegar ao apogeu, talvez nem se lembre de quem é: separada dos acontecimentos da terra, subitamente incorporada ao giro do Universo.

(Cecília Meireles)


82 - CONCLUSÕES DE ANINHA

Estavam ali parados. Marido e mulher.

Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça tímida, humilde, sofrida.

Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho, e tudo que tinha dentro.

Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar novo rancho e comprar suas pobrezinhas.

O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula, entregou sem palavra.

A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou, se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar

E não abriu a bolsa.

Qual dos dois ajudou mais?

Donde se infere que o homem ajuda sem participar e a mulher participa sem ajudar.

Da mesma forma aquela sentença:

"A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar."

Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada, o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso e ensinar a paciência do pescador.

Você faria isso, Leitor?

Antes que tudo isso se fizesse o desvalido não morreria de fome?

Conclusão: Na prática, a teoria é outra.

(Cora Coralina)


81 - COMO DIZIA MEU PAI

JÁ SE TORNOU HÁBITO MEU, em meio a uma conversa, preceder algum comentário por uma introdução:

— Como dizia meu pai...

Nem sempre me reporto a algo que ele realmente dizia, sendo apenas uma maneira coloquial de dar ênfase a alguma opinião.

De uns tempos para cá, porém, comecei a perceber que a opinião, sem ser de caso pensado, parece de fato corresponder a alguma coisa que Seu Domingos costumava dizer. Isso significará talvez — Deus queira — insensivelmente vou me tornando com o correr dos anos cada vez mais parecido com ele. Ou, pelo menos, me identificando com a herança espiritual que dele recebi.

Não raro me surpreendo, antes de agir, tentando descobrir como ele agiria em semelhantes circunstâncias, repetindo uma atitude sua, até mesmo esboçando um gesto seu. Ao formular uma idéia, percebo que estou concebendo, para nortear meu pensamento, um princípio que se não foi enunciado por ele, só pode ter sido inspirado por sua presença dentro de mim.

— No fim tudo dá certo...

Ainda ontem eu tranquilizava um de meus filhos com esta frase, sem reparar que repetia literalmente o que ele costumava dizer, sempre concluindo com olhar travesso:

— Se não deu certo, é porque ainda não chegou no fim.

Gosto de evocar a figura mansa de Seu Domingos, a quem chamávamos paizinho, a subir pausadamente a escada da varanda de nossa casa, todos os dias, ao cair da tarde, egresso do escritório situado no porão. Ou depois do jantar, sentado com minha mãe no sofá de palhinha da varanda, como namorados, trocando notícias do dia. Os filhos guardavam zelosa distância, até que ela ia aos seus afazeres e ele se punha à disposição de cada um, para ouvir nossos problemas e ajudar a resolvê-los. Finda a última audiência, passava a mão no chapéu e na bengala e saía para uma volta, um encontro eventual com algum amigo. Regressava religiosamente uma hora depois, e tendo descido a pé até o centro, subia sempre de bonde. Se acaso ainda estávamos acordados, podíamos contar com o saquinho de balas que o paizinho nunca deixava de trazer.

Costumava se distrair realizando pequenos consertos domésticos: uma bóia de descarga, a bucha de uma torneira, um fusível queimado. Dispunha para isso da necessária habilidade e de uma preciosa caixa de ferramentas em que ninguém mais podia tocar. Aprendi com ele como é indispensável, para a boa ordem da casa, ter à mão pelo menos um alicate e uma chave de fenda. Durante algum tempo andou às voltas com o velho relógio de parede que fora de seu pai, hoje me pertence e amanhã será de meu filho: estava atrasando. Depois de remexer durante vários dias em suas entranhas, deu por findo o trabalho, embora ao remontá-lo houvesse sobrado umas pecinhas, que alegou não fazerem falta. O relógio passou a funcionar sem atrasos, e as batidas a soar em horas desencontradas. Como, aliás, acontece até hoje.

Tinha por hábito emitir um pequeno sopro de assovio, que tanto podia ser indício de paz de espírito como do esforço para controlar a perturbação diante de algum aborrecimento.

— As coisas são como são e não como deviam ser. Ou como gostaríamos que fossem.

Este pronunciamento se fazia ouvir em geral quando diante de uma fatalidade a que não se poderia fugir. Queria dizer que devemos nos conformar com o fato de nossa vontade não poder prevalecer sobre a vontade de Deus - embora jamais fosse assim eloqüente em suas conclusões. Estas quase sempre eram, mesmo, eivadas de certo ceticismo preventivo ante as esperanças vãs:

— O que não tem solução, solucionado está.

E tudo que acontece é bom — talvez não chegasse ao cúmulo do otimismo de afirmar isso, como seu filho Gerson, mas não vacilava em sustentar que toda mudança é para melhor: se mudou, é porque não estava dando certo. E se quiser que mude, não podendo fazer nada para isso, espere, que mudará por si.

Às vezes seus princípios pareciam confundir-se com os da própria sabedoria mineira: esperar pela cor da fumaça, não dar passo maior do que as pernas, dormir no chão para não cair da cama. Os dele eram mais singelos:

— Mais vale um apertinho agora que um apertão o resto da vida.

— Negócio demorado acaba não saindo.

— Dinheiro bom em coisa boa.

— Antes de entrar, veja por onde vai sair.

Um dia me disse, ao me surpreender tentando armar um brinquedo qualquer com mãos desajeitadas:

— Meu filho, tudo que é bem feito se faz com os dedos, não com as mãos.

Tenho tido ocasião ao longo da vida de observar como é procedente este seu ensinamento. A mão é grossa, pesada, insensível. Se não fossem os dedos de nada serviria, a não ser para dar bofetadas. Os dedos são refinados, sensitivos, e a eles devemos tudo o que é bem feito e acabado: do mais requintado trabalho manual às mais complicadas operações, da mais fina sensação do tacto à mais terna das carícias.

— Se o cafezinho foi bom, melhor não aceitar o segundo: será sempre pior que o primeiro.

Como tudo mais nessa vida: uma viagem, uma mulher: não repetir, pois a emoção jamais será a mesma da primeira vez. E não desanimar, pois se nascemos nus e estamos vestidos, já estamos no lucro. Nada neste mundo é cem por cento perfeito. Se contamos com mais de cinqüenta por cento, também já estamos no lucro. Quando conseguimos o que é apenas bom, naturalmente devemos continuar aspirando o melhor, se possível - mas perfeição absoluta, só Deus. E creio que Seu Domingos, homem íntegro, reto e temente a Deus, hoje em Sua companhia, não consideraria sacrilégio comentar, naquele seu jeito ladino:

— E assim mesmo, olhe lá...

Seus conselhos eram de tamanha simplicidade que tinham a força de provérbios nascidos da voz do povo: nada como um dia depois do outro, um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar, tudo tem seu tempo. Fosse ele influenciado por leituras piedosas, poderíamos mesmo detectar, aqui e ali, vestígios de inspiração bíblica: tempo de semear, tempo de colher...

— É o que nos acontece.

Há uma diferença sutil entre admitir que as coisas são como são, não como deviam ser, e reconhecer que é o que nos acontece. Aqui, o comentário não pretendia refletir a impossibilidade de modelar (com os dedos) os fatos de acordo com a nossa vontade, mesmo que esta esteja certa. Exprime antes a humilde aceitação da nossa precária condição humana, como frágeis criaturas de Deus. Procura se solidarizar com a desgraça alheia, como a dizer que também estamos sujeitos a ela, somos todos irmãos na mesma atribulação. É o que nos acontece.

Portanto, alegremo-nos! Uma amiga minha, que não o conheceu, busca nele se inspirar quando afirma, sempre que se vê diante de algum contratempo:

— Antes de mais nada, fica estabelecido que ninguém vai tirar o meu bom humor.

Acabei levando esta disposição de minha amiga às últimas conseqüências: o mais importante é não perder a capacidade de rir de mim mesmo. Como Cartola e Carlos Cachaça naquele samba, às vezes dou gargalhadas pensando no meu passado.. . E cada vez acredito mais no ensinamento recebido não sei se de meu pai ou diretamente de Confúcio, segundo o qual há várias maneiras de realizar um desejo, sendo uma delas renunciar a ele. Como adverte outro sábio, se desejamos obstinadamente alguma coisa, é melhor tomar cuidado, porque pode nos suceder a infelicidade de consegui-la.

Tudo isso que de uns tempos para cá vem me vem ocorrendo, às vezes inconscientemente, como legado de meu pai, teve seu coroamento há poucos dias, quando eu ia caminhando distraído pela praia. Revirava na cabeça, não sei a que propósito, uma frase ouvida desde a infância e que fazia parte de sua filosofia: não se deve aumentar a aflição dos aflitos. Esta máxima me conduziu a outra, enunciada por Carlos Drummond de Andrade no filme que fiz sobre ele, a qual certamente Seu Domingos perfilharia: não devemos exigir das pessoas mais do que elas podem dar. De repente fui fulminado por uma verdade tão absoluta que tive de parar, completamente zonzo, fechando os olhos para entender melhor. No entanto era uma verdade evangélica, de clareza cintilante como um raio de sol, cheguei a fazer uma vênia de gratidão a Seu Domingos por me havê-la enviado:

Só há um meio de resolver qualquer problema nosso: é resolver primeiro o do outro.

Com o tempo, a cidade foi tomando conhecimento do seu bom senso, da experiência adquirida ao longo de uma vida sem maiores ambições: Seu Domingos, além de representante de umas firmas inglesas, era procurador de partes — solene designação para uma atividade que hoje talvez fosse referida como a de um despachante. A princípio os amigos, conhecidos, e depois até desconhecidos passaram a procurá-lo para ouvir um conselho ou receber dele uma orientação. Era de se ver a romaria no seu escritório todas as manhãs: um funcionário que dera desfalque, uma mulher abandonada pelo marido, um pai agoniado com problemas do filho — era gente assim que vinha buscar com ele alívio para a sua dúvida, o seu medo, a sua aflição. O próprio Governador, que não o conhecia pessoalmente, certa vez o consultou através de um secretário, sobre questão administrativa que o atormentava. Não se falando nos filhos: mesmo depois de ter saído de casa, mais de uma vez tomei trem ou avião e fui colher uma palavra sua que hoje tanta falta me faz.

Resta apenas evocá-la, como faço agora, para me servir de consolo nas horas más. No momento, ele próprio está aqui a meu lado, com o seu sorriso bom.

(Fernando Sabino)


80 - O ANDAR

Aconteceu na Avenida Copacabana, esquina de Santa Clara. Uma jovem senhora chamou o guarda e apontou o homem, encostado a um poste:

— Prenda este homem, que ele está se portando inconvenientemente.

Era um homem magro, pálido, vestido em casimira velhinha. Não tinha cara de gente má. Ao contrário, seus olhos eram doces e mendigos.

O policial segurou o homem pela lapela. O homem não se mexeu. Apenas levantou os olhos e perguntou:

- Por quê?

A senhora estava uma fúria e dizia num fôlego só:

— Há uma hora este cidadão me segue. Começou no lotação. Desceu quando eu desci. Entrei numa loja e ele entrou também. Andei um quarteirão e ele andou também. Entrei no mercadinho e ele entrou também...

— E lhe disse alguma coisa?

— Não. Só olhava.

O guarda soltou a lapela do homem. O homem agradeceu. O guarda dirigiu-se ainda à mulher:

— Mas ele só olhava?

— Sim. Mas olhava de maneira obscena.

O guarda perguntou, então, ao homem:

— Você olhava de maneira obscena?

— Sim. Não sei mentir. Mas qualquer um no meu lugar faria o mesmo. 0 senhor já viu ela andar?

O guarda viu depois, quando a mulher desistiu da prisão do seu espectador e foi andando. Não se deve explicar muito, mas é preciso que se diga: era uma moça brasileira. Uma moça de formato brasileiro, com movimentos brasileiríssimos. Dessas que deviam ter, como certos automóveis, uma tabuleta às costas, onde se lesse: "Amaciando".

(Antônio Maria)


79 - ELOQUÊNCIA SINGULAR

Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou:

— Senhor Presidente: eu não sou daqueles que...

O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo indicava o plural. No entanto, podia perfeitamente ser o singular:

— Não sou daqueles que...

Não sou daqueles que recusam... No plural soava melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas armadilhas da linguagem — que recusa? — ele que tão facilmente caia nelas, e era logo massacrado com um aparte. Não sou daqueles que... Resolveu ganhar tempo:

— ...embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades como representante do povo nesta Casa, não sou...

Daqueles que recusa, evidentemente. Como é que podia ter pensado em plural? Era um desses casos que os gramáticos registram nas suas questiúnculas de português: ia para o singular, não tinha dúvida. Idiotismo de linguagem, devia ser.

— ...daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa...

Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar:

— Não sou daqueles que...

Daqueles que o quê? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traiçoeira pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido de saída. Mas a concordância? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no singular. Ou no plural:

— Não sou daqueles que, dizia eu — e é bom que se repita sempre, senhor Presidente, para que possamos ser dignos da confiança em nós depositada...

Intercalava orações e mais orações, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por esta ou aquela concordância. Ambas com aparência castiça. Ambas legítimas. Ambas gramaticalmente lídimas, segundo o vernáculo:

— Neste momento tão grave para os destinos da nossa nacionalidade.

Ambas legítimas? Não, não podia ser. Sabia bem que a expressão "daqueles que" era coisa já estudada e decidida por tudo quanto é gramaticóide por aí, qualquer um sabia que levava sempre o verbo ao plural:

— ...não sou daqueles que, conforme afirmava...

Ou ao singular? Há exceções, e aquela bem podia ser uma delas. Daqueles que. Não sou UM daqueles que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar:

— Senhor Presidente. Meus nobres colegas.

A concordância que fosse para o diabo. Intercalou mais uma oração e foi em frente com bravura, disposto a tudo, afirmando não ser daqueles que...

— Como?

Acolheu a interrupção com um suspiro de alívio:

— Não ouvi bem o aparte do nobre deputado.

Silêncio. Ninguém dera aparte nenhum.

— Vossa Excelência, por obséquio, queira falar mais alto, que não ouvi bem — e apontava, agoniado, um dos deputados mais próximos.

— Eu? Mas eu não disse nada...

— Terei o maior prazer em responder ao aparte do nobre colega. Qualquer aparte.

O silêncio continuava. Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador, aguardando o desfecho daquela agonia, que agora já era, como no verso de Bilac, a agonia do herói e a agonia da tarde.

— Que é que você acha? — cochichou um.

— Acho que vai para o singular.

— Pois eu não: para o plural, é lógico.

O orador seguia na sua luta:

— Como afirmava no começo de meu discurso, senhor Presidente...

Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao próprio Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim, como é que é, me tira desta...

— Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado.

— Apenas algumas palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar, quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existência, depois de mais de vinte anos de vida pública...

E entrava por novos desvios:

— Muito embora... sabendo perfeitamente... os imperativos de minha consciência cívica... senhor Presidente... e o declaro peremptoriamente... não sou daqueles que...

O Presidente voltou a adverti-lo que seu tempo se esgotara. Não havia mais por que fugir:

— Senhor Presidente, meus nobres colegas!

Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito de desfechou:

— Em suma: não sou daqueles. Tenho dito.

Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O orador foi vivamente cumprimentado.

(Fernando Sabino)


78 - O HIPOCONDRÍACO

Em tempo de remédios falsificados e laboratórios incompetentes, vale lembrar deste consumidor compulsivo que faz da bula Bíblia: o hipocondríaco. Ele padece do mal de ter mania de doenças e adora tomar remédios. Ao passar à porta da farmácia não resiste e pergunta: "O que tem de novidade?"

Nada mais ofensivo ao hipocondríaco do que erguer um brinde e desejar-lhe "saúde!". Ele só freqüenta coquetel de vitaminas. Encara sempre o interlocutor com aquele olhar de quem diz: "ando sentindo coisas que você nem imagina". No telefone, faz voz de vítima. Cara a cara, suplica, silente, a compaixão alheia.

Está sempre entrando ou saindo de uma gripe; já tomou todas as vacinas; sofre da coluna; padece de insônia; e trata médico como faz com motorista de táxi: "Tá livre?"

O hipocondríaco entra na Justiça exigindo mandado de prisão contra os radicais livres e duvida que alguém possa imaginar o tamanho da enxaqueca que teve ontem. Enquanto outros fazem shopping, o prazer do hipocondríaco é visitar drogarias de vitaminas importadas. Ingere pela manhã o abecedário em drágeas e nunca se deita sem antes tomar um chá de ervas.

Hipocondríaco não tem plano de saúde; prefere cota de cemitério. Gosta de se separar da família para morrer de saudades. E fica doente de raiva quando alguém diz que ele aparenta boa saúde.

O autêntico hipocondríaco carrega sempre uma dorzinha de lado, uma unha encravada, uma afta na boca, uma irritação na garganta, uma dor na coluna e umas tonturas estranhas.

Para o hipocondríaco, esposa ideal é a que banca a enfermeira; cadeira confortável é a de rodas; e cama macia, a de hospital.

O hipocondríaco é a única pessoa que, pelo som, distingue sirene de ambulância da de viatura de polícia e de bombeiro.

O guru do hipocondríaco é Hipócrates, e sua filosofia se resume nesta questão metafísica: "Se a gente nasce deitado e morre deitado, por que não viver deitado?"

O hipocondríaco morre de medo da vida saudável. Está convencido de que a diferença entre o médico e ele é que o primeiro conhece a teoria e, o segundo, a prática. Nunca pergunte a ele: "Vai bem?" É preferível: "Melhorou?"

O hipocondríaco só assina revistas médicas e, nos jornais, lê primeiro o obituário. Mas, ao contrário do que se pensa, o hipocondríaco não quer morrer — isto o curaria de sua loucura.

Nunca convide um hipocondríaco a matricular-se numa academia de ginástica. Ofereça-lhe um check-up. Os únicos exames que ele aceita fazer são os clínicos e adora ser reprovado. Se faz cooper, a perna dói; se pratica natação, fica resfriado; se flexiona o abdome, sente dor nas cadeiras.

O hipocondríaco escuta o médico com a mesma atenção que o bêbado ouve os conselhos do abstêmio. A turma do hipocondríaco se reúne em porta de farmácia e tira férias em clínicas de repouso.

O hipocondríaco é o único paciente que consegue decifrar letra de médico. Ele não se recolhe para dormir, e sim para repousar. Nunca deseje "bom-dia" a um hipocondríaco; pergunte: "Levantou melhor?" Aliás, ele não se levanta; tem alta. No aniversário, dê a ele um vidro de remédios. Todo hipocondríaco é viciado em aspirina, vitamina C e melatonina.

O hipocondríaco sabe dar nó nas tripas e acredita que o melhor lazer é curtir uma diverticulite. Considera incompetente todo médico que diz que ele não tem nada.

O hipocondríaco acredita em tudo que a mídia fala sobre cuidados com a saúde.

Quando viaja, não se hospeda; se interna. No bolso de dentro do paletó ele não carrega caneta, mas termômetro. E é a única pessoa capaz de enxergar vírus e bactérias em talheres de restaurantes.

Sonho de hipocondríaco é ser socorrido por um daqueles helicópteros UTI que aparecem na TV. E sempre reclama de que já existem telessexo, telepiada, telepizza, telessorteio, só falta o teledoença: você liga, descreve os sintomas e, do outro lado da linha, uma voz de médico prescreve a medicação.

Deve ter sido um hipocondríaco quem deu ao remédio que combate infecções o nome de antibiótico — que significa "contra a vida".

O hipocondríaco não tem remédio. Ele só se cura quando morre e, paradoxalmente, a morte é o sintoma mais óbvio de que ele tinha razão. Pena que não possa levantar-se do caixão e enfiar o dedo na cara de quem o tratava pejorativamente como hipocondríaco. De qualquer modo, repare como ele, defunto, traz um sorrisinho de vitória nos lábios.

(Frei Betto)


77 - UM AMIGO EM TALAS

O meu antigo companheiro de pensão Amadeu Amaral Júnior, um homem louro e fornido, tinha costumes singulares que espantavam os outros hóspedes.

Para falar com propriedade, aquilo não era exatamente pensão, mas isto não tem importância: com um pouco de esforço podíamos admitir que estávamos numa pensão de gente bem comportada. Bocejávamos em demasia, contávamos as pessoas que subiam ou desciam um morro próximo, dormíamos cedo e recebíamos com regularidade a visita do gerente do estabelecimento, o major Nunes, ótima criatura que deixou o cargo por lhe faltar o espírito do negócio.

Amadeu Amaral Júnior vestia-se com sobriedade: usava uma cueca preta e calçava medonhos tamancos barulhentos. Fora isso, o que tinha em cima do corpo era a barba, economicamente desenvolvida, uma barba enorme. Parecia um troglodita. Alimentava-se mal, espichava-se na cama, roncava o dia inteiro e passava as noites acordado, passeando, agitando o soalho, o que provocava a indignação dos outros pensionistas. Quando se cansava, sentava-se a uma grande mesa ao fundo da sala e escrevia o resto da noite. Leu um tratado de psicologia e trocou-o em miúdo, isto é, reduziu-o a artigos, uns quarenta ou cinquenta, que projetou meter nas revistas e nos jornais e com o produto vestir-se, habitar uma casa diferente daquela e pagar ao barbeiro.

Mudamo-nos, separamo-nos, perdemos-nos de vista. Creio que os artigos de psicologia não foram publicados, pois há tempo li este anúncio num semanário: "Intelectual desempregado. Amadeu Amaral Júnior, em estado de desemprego, aceita esmolas, donativos, roupa velha, pão dormido. Também aceita trabalho”.

O anúncio não produziu nenhum efeito, é o que meses depois, nos declara Amadeu Amaral Júnior: "Minha situação continua preta. Reitero o apelo às almas bem formadas: deem de comer a quem tem fome, uma fome atávica, milenária. Deem-me trabalho." E, catalogando as suas habilidades: "Escrevo poesias, crônicas, contos (policiais, psicológicos, de aventura, de terror, de mistério), novelas, discursos, conferências. Sei inglês, francês, italiano, espanhol e um bocado de alemão. Deem-me trabalho pelo amor de Deus ou do diabo."

De literato brasileiro não conheço página mais sincera e razoável que essa. Ao ler o pedido de roupa velha e pão duro, fiquei meio escandalizado, mas refletindo, confessei publicamente que o meu velho companheiro procedia com acerto. E agora, completamente solidário com ele, admiro a exposição que nos faz das suas aptidões e lamento que não as utilizem.

É evidente que Amadeu Amaral Júnior conhece bem o nosso mercado literário e apregoa as mercadorias mais próprias para o consumo: discursos, contos policiais, de aventura, de terror e de mistério. Julgo que vive sem ocupação por não haver falado antes nisso.

O meio cento de artigos redigidos naquelas noites de insônia encalhou certamente na redação, preterido pelas novelas de arrepiar cabelos. Indignado, Amadeu Amaral Júnior oferece de novo os seus préstimos ao editor, afirmando que também sabe compor histórias policiais, de aventura, de terror e de mistério, que arrancam lágrimas e se vendem regularmente.

A maneira como pede trabalho, pelo amor de Deus ou do diabo, revela que o escritor está impaciente e talvez não escrupulize em pôr a sua pena a serviço de qualquer dessas duas entidades, o que não admira, pois Amadeu é jornalista.

Muita gente se espanta com o procedimento desse amigo. Não sei por quê. Os fabricantes anunciam os seus produtos e os sujeitos desempregados costumam, desde que há jornais, dizer neles para que servem. Por que apenas o articulista, precisamente o indivíduo capaz de arrumar umas linhas com decência, deve calar-se e roer chifres?

Eu por mim acho que Amadeu Amaral Júnior andou muito bem. Todos os jornalistas necessitados deviam seguir o exemplo dele. O anúncio, pois não. E, em duros casos, a propaganda oral, numa esquina, aos gritos. Exatamente como quem vende pomada para calos.

(Graciliano Ramos)


76 - SOMBRA AMIGA

Não pude deixar de pensar nesse “John Doe” (1) — nesse Homem Comum — que está animando a tela do Art Palácio, quando, na noitinha chuvosa de anteontem, olhei em torno de mim, no ônibus abarrotado, macio e morno.

O homem, que eu tinha a meu lado, era vago como uma capa de borracha e simpático como um desconhecido.

— O Sr., naturalmente, não me conhece. Ninguém me conhece. E isso é justamente o meu orgulho e a minha melhor felicidade. Sabe quem sou eu? Não sabe. Ninguém sabe. No entanto, eu estou todos os dias em todos os jornais. Eu sou aquele "Etc.” cômodo e fácil, que é o remate comum, o exit smiling de todas as notícias de reuniões sociais, ajuntamentos representativos em gares, aeroportos, enterros... “Notamos a presença dos Srs. A., B., C., D., E., F. etc.”... Eu sou esse "etc.” Eu sou aquele transeunte de que falam muito confortavelmente as reportagens urbanas: "Um transeunte deu o alarme e o Corpo de Bombeiros acorreu prontamente”:.. Eu sou aquele “popular" que socorre sempre cardíacos e atropelados: "Transportada por um popular à farmácia mais próxima, a vítima recebeu os primeiros curativos”... Eu sou o homem coletivo. Não há, na vida, melhor situação do que a minha. 0 Sr. é um homem na multidão: eu sou a multidão num homem. Todo o mundo me deve uma atenção, um serviço; e eu não dou a ninguém o trabalho ou a honra de me agradecer. Toda gente me incomoda, e eu não incomodo ninguém...

O ônibus parou numa esquina anônima. O homem saiu. Saiu todo banhado por um meu longo olhar; que era de gratidão, de ternura, de admiração e de inveja.

(Guilherme de Almeida)


75 - MICROSCÓPIO

Os salões do desembargador Marcelino Pedreira, à rua São Clemente, achavam-se repletos, como poucas vezes acontecia, naquela noite memorável. Políticos, magistrados, médicos, bacharéis, homens de letras e homens de negócios enchiam os grandes compartimentos do palacete magnífico, de mistura com o que há de mais fino, de mais chic, de mais distinto, nas rodas femininas do Rio. Lauro Müller, Miguel Couto, Pires do Rio, Antônio Azeredo, são silhuetas em evidência. O encanto da reunião está, entretanto, na revoada de moças e senhoras que volteiam pelas salas, e entre as quais se destaca, pela formosura, pela mocidade, pela inocência do olhar e dos modos, Mlle. Júlia Petersen, noiva do Dr. Abelardo Moura e filha única do desembargador Feliciano Mendonça.

beleza e repente, como se um punhado de folhas e flores obedecesse a um redemoinho invisível, faz-se uma roda em torno a uma das mesas da sala de chá. Homens de ciência e damas inteligentes formam o grupo. Elevada, culta, a palestra versa os assuntos mais variados, encantando as senhoras.

Na sala contígua, dança-se. E, entre os pares, o Dr. Abelardo e a noiva. Súbito, parando, põem-se os dois a conversar:

__ Que mãos tens tu, Julita! — elogia o noivo, maravilhado, apertando os dedos miúdos, finos, quase infantis, da sua prometida.

— Acha-a pequena? — indaga a moça.

— Microscópica!

— Como?

— Microscópica! — insiste o rapaz.

Intrigada com o vocábulo, que ouvia pela primeira vez, a moça pede licença por um instante, penetra no salão de chá e, com a sua ingenuidade, indaga do Dr. Álvaro Osório:

— Doutor, que significa “microscópico?”

— É um derivado de “microscópio”, Mademoiselle! — explica o ilustre fisiologista.

— E que é “microscópio”? — torna a menina, franzindo a testa morena, que os olhos iluminam.

O Dr. Álvaro medita um momento, e, para não perder tempo, explica:

— É um aparelho que faz as coisas crescerem. Compreende?

A menina sorri, agradecida. De repente, porém, pisca os olhos, franze mais a testa, e enrubescendo:

— Ahn!...

Morde o dedinho róseo, meio brejeira, meio encabulada:

— Sem vergonha! Agora é que eu compreendo porque é que ele diz que eu tenho a mão microscópica ...

E sai correndo, vermelha, a abraçar-se com o noivo.

(Humberto de Campos)


74 - A CRÔNICA

Crônica, do grego chrónos, tempo, cronicar, feito Tácito, relatar o tempo ou tempos.

Por que nós, brasileiros, fizemos do gênero especialidade da casa — feito muqueca de peixe ou tutu à mineira?

Eu, pela parte que me cabe — e é pouquíssima a parte que me cabe —, eu tenho minhas teoriazinhas.

Primeiro lugar, porque nós trabalhamos bem com poucas armas, isto é, Euclides da Cunha à parte, nosso fôlego literário é curto.

Não há nenhum demérito nisso.

Se a América Latina fornece caudalosos escritores, como Vargas Llosa, Roa Bastos e Alejo Carpentier, nós, por outro lado, somos excelentes no pinga-pinga do conto: o próprio Machado de Assis, Lima Barreto, Alcântara Machado, Dalton Trevisan, Clarice Lispector, Rubem Fonseca.

Segundo lugar, porque nós temos consciência da extraordinária violência com que o tempo vai levando as coisas e as gentes, daí a necessidade de registrar, de alguma forma, o que se passou e passa no âmbito pessoal e intransferível.

Terceiro lugar, em consequência disso que acabei de falar: somos muito pessoais, vemos e vivemos muito a nossa vida e a celebramos quase que no próprio instante em que ela se passa.

A crônica é a nossa autobustificação, por assim dizer.

Ou, em termos da realidade atual: é a nossa autonomeação para assessor disso ou secretário daquilo outro.

E em quarto e último lugar: dinheiro.

Não há motivo nenhum para se ficar encabulado.

Quem não escreve por dinheiro não é digno da profissão.

Um romance vende cinco mil exemplares e o autor, com alguma sorte, pega o equivalente a uns tantos salários mínimos.

Se dividirmos tempo gasto no trabalho e na vida de estante do livro, vai dar nisso mesmo: salário mínimo.

O cronista, por outro lado, mesmo mal pago — e quando é bom não é esse o caso —, tem uns cobres garantidos no fim do mês, se o empregador for bom pagador.

Consequentemente: aí está, viva e atuante, a crônica do cronista brasileiro.

Pouco importa que o cronista ou a cronista limite-se a relatar seu encontro no bar ou sua ida ao cabeleireiro.

Tanto faz que seja elitista ou literariamente limitador.

E daí que tenha menos profundidade que mergulhadores mais audazes como Milan Kundera e Marion Zimmer Bradley?

A crônica vai registrando, o cronista vai falando sozinho diante de todo mundo.

(Ivan Lessa)


73 - PEQUENOS CHOQUES – A BANDEJINHA

Os alemães não notam. Sei disso porque já tentei conversar com diversos deles sobre o assunto e eles não compreendem o que quero dizer, não vêem nada do que vejo. Em compensação, outros brasileiros notam, logo não devo estar inventando coisas. Refiro-me a dinheiro, mais precisamente a pagamentos. O relacionamento dos alemães com dinheiro é muito diferente do nosso. Claro, dirão os mais bem-informados, na Alemanha existe dinheiro e no Brasil existem apenas uns papeluchos engraçados que mudam toda semana e que o governo insiste em dizer que é dinheiro, mas ninguém acredita. Verdade, verdade, cruel verdade, e certamente isto tem qualquer coisa a ver com o problema, mas há algo mais, porque já estive em muitos outros países onde também há dinheiro e insisto que os alemães são diferentes. No começo, a gente se assustava e eu atribuía tudo a minha aparência de contrabandista paraguaio foragido da Interpol. Mas depois percebi que o fenômeno é genérico e cheguei mesmo a inventar maneiras de me divertir com ele. Repito que isso é imperceptível para os próprios alemães, assim como um peixe deve achar que o mundo é feito de água, mas a primeira coisa que a gente nota, na hora de pagar, é que se estabelece um imediato clima de ansiedade e tensão, que só se dissipa depois que tiramos o dinheiro do bolso, pagamos e recebemos o troco, tudo rigorosissimamente contado. "São dezoito marcos e vinte e dois", diz a mocinha do balcão, e um silêncio carregado se estabelece, enquanto os olhos dela acompanham nervosamente o desenrolar da operação. A impressão que se tem é que, se alguém der um tiro de canhão lá fora, ela só vai perguntar o que houve depois de ter certeza de que tudo foi feito corretamente. Pagamento completado, tudo certo, o ambiente se desanuvia, há sorrisos, quase suspiros de alívio — que barulho foi esse lá fora, alguém deu um tiro de canhão?

Num táxi carioca, o passageiro é quem pergunta quanto foi a corrida, enquanto o motorista se queixa dos buracos no asfalto ou indaga se não é nesta rua que mora uma famosa cantora. Na Alemanha, o motorista pára, desliga o taxímetro e, antes que outra palavra seja pronunciada, anuncia o custo. Não me lembro de ter perguntado, na Alemanha, o preço de qualquer coisa ou serviço. Assim que se torna evidente que vou comprar, o atendente me diz quanto devo, sem esperar que eu pergunte (e o tal clima ansioso se instaura instantaneamente). Se eu nunca tivesse ouvido falar na Alemanha e de repente me visse vivendo aqui, ia passar algum tempo achando que uma das coisas mais comuns aqui é o sujeito entrar numa loja, pedir uma coisa e sair sem pagar — daí o nervosismo que envolve os pagamentos.

Finalmente, a bandejinha. Agora já sabemos que, quando Deus criou o mundo, criou a bandejinha e que sem ela a civilização é impossível, mas levamos algum tempo para nos habituarmos. A bandejinha me pegou logo nos primeiros dias de minha vida em Berlim, na tabacaria aqui da esquina. Pedi um maço de cigarros, fui imediatamente informado do preço, estendi o dinheiro para a senhora do balcão e ela não o tomou da minha mão, mas apenas me encarou em silêncio, com um ar severo e talvez um pouco impaciente. Não entendi, me atrapalhei, conferi o dinheiro — qual era o problema? Só então observei que o olhar dela ia de meu rosto para a bandejinha ao lado da registradora. Já conhecia a bandejinha de breves estadas anteriores na Alemanha, mas havia esquecido dela. Claro, a bandejinha! Depositei o dinheiro na bandejinha, ela fez a cara satisfeita de quem havia acabado de dar uma lição, agradeceu e pôs o troco na bandejinha.

Depois disso, ainda tive alguns problemas por esquecer da bandejinha, como no dia em que entreguei o dinheiro da passagem ao motorista de um ônibus e ele me disse algumas coisas que não entendi, mas que tenho certeza de que não eram para me elogiar. Agora não esqueço mais, cumpro os usos da terra e não discuto. Não sei por que os alemães não gostam de que lhes entreguem o pagamento diretamente nas mãos, não sei nem se é uma exigência do Bundesbank, mas nem esmola eu dou mais na mão, aqui em Berlim. Jogo a moeda no chapéu ou na caixinha do pedinte, não quero ser espinafrado em plena Breidscheidplatz. E, de qualquer forma, como disse antes, a bandejinha às vezes me diverte. Vingo-me todo dia do motorista de ônibus que me disse desaforos por causa da bandejinha. Conto cuidadosamente moedas, fazendo questão de incluir muitas de dez pfennig, junto o preço exato da passagem e ponho uma pilhazinha na bandeja. E — Deus há de perdoar-me — tenho um prazerzinho sádico em ver o sobressalto do motorista e o gesto ansioso com que ele espalha as moedas para contá-las e, dois segundos depois, quase despenca na cadeira, aliviado em ver que a conta está certa e que, no meio das moedas, não há nenhum zloty, ou qualquer coisa assim. Mas vou parar com isso, tenho medo de algum dia matar um de enfarte.

(João Ubaldo Ribeiro)


72 - AS FLORES

Há dois meses que Iracema recebia flores, sem cartão. Colocava tudo nas jarras, vasos, copos; mesas, janelas, banheiro e até na cozinha. Quando o marido lhe perguntava por que tantas flores, todos os dias, ela sorria:

— Deixe de brincadeira, Epitácio.

Ele não percebia bem o que ela queria dizer, até que um dia:

— Epitácio, acho bom você parar de comprar tanta flor, já não tenho mais onde colocar.

Foi aí que ele compreendeu tudo:

— O quê? Você quer insinuar que não sabia que não sou eu quem manda essas flores?

Foi o diabo, ela não sabia explicar quem mandava, ele não conseguia convencê-la de que não era ele.

— Um de nós dois está mentindo — gritou, furioso.

— Então é você — rebateu ela.

No dia seguinte, de manhã, ele decidiu não sair, pra desvendar o mistério. Assim que as flores chegassem, a pessoa que as trouxesse seria interpelada. Mas não veio ninguém:

— Já são duas horas da tarde e as flores não chegaram, Epitácio. É muita coincidência.

Vai me dizer que não era você.

Ele não tinha por onde escapar. Insinuou muito de leve que a mulher devia ter conhecido alguém na sua ausência. Ela chegou a chorar e se trancou no quarto. A discussão entrou pela noite até o dia seguinte. Epitácio saiu cedo, sem mesmo tomar café. Bateu a porta com força e levou o mistério para o trabalho.

Meia hora depois, a mulher saiu e foi ao florista.

— Como vai, Dona Iracema? A senhora ontem não veio, heim? Aconteceu alguma coisa?

À noite, Epitácio viu as flores e não disse uma palavra, mas a mulher não parou:

— Seu cínico. Bastou você sair para as flores aparecerem e ainda tem coragem de dizer que não foi você.

Nessa noite ele teve insônia.

(Leon Eliachar)


71 - NUNCA DEIXE SEU FILHO MAIS CONFUSO QUE VOCÊ

De manhã, na copa. O pai mexe o café na xícara. O filho caçula vem da sala, dispara:

— Pai, o que é genitália? O homem volta-se:

— Ge... o quê?

— Genitália.

— Onde é que você tirou isso, da sua cabeça?

— Tá no jornal, pai.

— Genitália, no jornal? Bem, esse assunto não é comigo agora. Já estou atrasado pro trabalho. Cadê sua mãe? Rita! Ritinhaaaaa! Onde é que essa mulher se enfiou? Rita, venha ouvir aqui o que seu filho está aprontando.

Dona Rita desce esbaforida:

— Algum problema, Gervásio?

— Problema nenhum. O garoto está apenas querendo saber o que é genitália. Explique pra ele. Estou de saída.

— Genitália? Eu? Isso é conversa de homem pra homem. Vai dizer que você não sabe?

— Saber eu sei, lógico. Mas há coisas que a gente sabe o que é na teoria, mas fica difícil de explicar na prática.

— Deixa de bobagem.

— Tá bom. Depois, se eu pegar trânsito, quero só ver.

— Pode deixar, pai. Não precisa ficar discutindo você e a mamãe por causa de uma palavra. Eu pergunto pra tia da escola.

— Tá louco? A tia pode pensar mal da gente. Deixa comigo. Presta atenção: genitália é o mesmo que partes pudendas. Genitália é uma coisa muito antiga. Já existia no tempo do seu bisavô. No século passado, quando seu bisavô estava vivo, as pessoas tinham pudor. Elas ocultavam do público certas partes do corpo. Chegavam até ao exagero. As partes que ficavam mais resguardadas formavam, exatamente, a genitália. A genitália eram as partes pudendas.

— O umbigo era genitália, pai?

— Não. Na verdade, não era. Vou tentar explicar melhor. As pessoas tinham vergonha de mostrar o corpo. E uma certa parte do corpo era reservada ao extremo. Não aparecia nem em filme francês. As pessoas chamavam esse território misterioso de vergonhas. Isso é que é a genitália moderna.

— Bumbum é genitália, pai?

— Não. Acho que não estou sendo muito claro. Ritinha, você não quer dar uma mão?

— Não. Assuma.

— Bom, vou pras cabeças. Ahnnn. Hummmm. Abaixe as calças. Mais. Até os tornozelos. Isso. Pronto, tá aí a genitália.

— O umbigo?

— No térreo do umbigo. Que é que você vê embaixo do umbiguinho?

— Pô, pai. Vai dizer que o senhor não sabe o que é isso? É meu bingolim, pai.

— Ta aí. O bingolim é a genitália do homem.

— Puxa, o senhor podia ter falado antes.

— Na vida, às vezes é preciso usar eufemismos. Por exemplo, a genitália da mulher tem um nome delicado, leve, ágil. Sabe o que estou querendo dizer, não sabe? Começa com b.

— Barata da vizinha?

— Não, filho. Borboleta.

(Lourenço Diaféria)


70 - EU SEI, MAS NÃO DEVIA

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

(Marina Colasanti)


69 - DE COMO FICAR SEM CULPA

inicio– O brasileiro é, antes de tudo, um infiel.

Poderia ter dito Euclides da Cunha, que conheceu na pele o problema. E nas costas.

Mas nem todos, diriam os mais jovens. Correto. Mas eu estou a me referir à minha geração, dos meus pais e meus avós.

Não é preciso deitar em nenhum divã de psicanalista para entender o que aconteceu com a minha turma.

Para nós, no começo dos 60, amor e sexo eram duas coisas completamente distintas. As namoradas não deixavam nada. Não se ficava, naquele tempo, imagine. A gente, depois de uns 15 dias (e de muita conversa), pegava na mão. Beijo na boca, só uns seis meses depois. E ficava nisso. Um ou outro conseguia um bico por cima do banlon. Sexo, jamais, impossível. Todo mundo tinha sua namorada (muitos casaram com elas). Depois do namoro íamos para a zona. Lá não tinha amor, tinha sexo, com descalcificadas prostitutas interioranas. E na capital, acontecia o mesmo.

Sexo com amor não existia. Portanto, para nós a divisão amor/sexo era absolutamente normal. Para nós, até então, uma coisa não tinha nada a ver com a outra.

A primeira vez que fiz amor e sexo junto, foi um desastre. A namorada sentou-se na cama e me disse:

– Não é nada disso.

E começou a falar de coisas que eu nunca havia imaginado. Carinho, por exemplo. Nunca tinha feito carinho numa profissional do amor, é claro. Essa namorada me ensinou a fazer amor com sexo. Foi uma grande descoberta para mim. Sei até o dia: 1º de maio de 68 (eu tinha 22 anos), entre uma barricada e outra lá na USP.

Portanto, para a minha geração, no início, traía-se naturalmente, sem culpa.

Hoje com um pouco de culpa, com um certo remorso.

Se na vida dos meus pais e avós eram normal a infidelidade e as amantes fixas ou eventuais (as esposas sempre sabiam e fingiam que não era com elas), com a nova geração a história é outra.

A maior invenção dos anos 90 foi o ficar. Que inveja! Fica-se com uma hoje, com outra amanhã e ninguém está enganando ninguém, traindo ninguém. Culpa?

Nem pensar. Sábia essa geração.

Ainda não entendi por que não se libera esse negócio de ficar para nós também, mais velhos. Acabaria a infidelidade. Você me traiu? Não, só fiquei. Ou seja, a novíssima geração continua infiel. Só que deram um jeito na jogada. Ficar não é pecado, não está nos mandamentos nem de Deus e nem da Igreja. Mas se eu ficar, como fica a minha namorada?

Eu tento entender os limites do ficar, mas sinto que a compreensão foge aos meus limites de infiel salesiano. Eu pergunto aos mais jovens: mas ficar, fica até que ponto? Está me entendendo? Tem ficada completa? Ou, se for completa, não é mais ficar? E eles me dizem que, às vezes, ficar pode ser completo. E não é traição. Pinta, entende? E, se pinta, rola. No dia seguinte, imagino eu, nem contam para o melhor amigo. Onde já se viu?

Só que, com a gente, mais velho, elas não ficam. E não é por causa da idade, não. É que elas sabem que nós não sabemos ficar. Quando um cara da minha idade consegue ficar com uma, quer ficar mais, quer no outro dia de novo. Aí não é mais ficar, já entra compromisso, pai e mãe no meio. Ficar, pode.

Ficar mais de uma vez, não. Tá pensando o quê? Casa da sogra, como se diria no meu tempo? Definitivamente eu não sei ficar. Fico devendo.

Ou seja, esse negócio de ficar pra cá, ficar pra lá, completo ou incompleto, é só entre eles. Há de se entender o espírito da coisa. E a minha geração tá muito mais para a carne que para o espírito em relação à ficagem.

Já namorou fulana? Não, mas fiquei. Que coisa mais normal.

Outro dia encontrei com uma amiga da minha geração e ela me disse com a maior naturalidade que a filha dela tinha ficado com o meu filho. Só que quando eu quis tirar um sarro (que é como a gente ficava) com ela há uns 20 anos, nem pensar. Ficou me devendo. E agora vem pra cima de mim com essa normalidade toda. Será que ela quer ficar comigo? Agora? A gente quase avô?

E o mais doido é que há 30 anos a gente cantava no ouvido das meninas: fica comigo esta noite e não te arrependerás!!! E nenhuma delas entendeu o que eu queria dizer.

Resumindo: quem ficou, ficou. Quem não ficou, não fica mais!

E, como já dizia Zilda Mayo, atriz de pornochanchada, numa célebre entrevista para a revista Homem, amar não é só colocar lá dentro.

(Mário Prata)


68 - COISAS DE CINEMA

Cinema é a arte da ilusão, já disse alguém. É tanta ilusão que eu fico a ver os filmes e imaginar como tudo dá certo nas telas. Nada sai errado. Querem ver?

O sujeito que está procurando o táxi, acha na hora. Basta esticar o braço. E o mais grave: a pessoa que vai seguir o primeiro táxi, também leva a mesma facilidade. É clássica a frase: siga aquele táxi! Coisa de cinema.

Só no cinema os casais acordam e se beijam e conversam de pertinho. Ninguém escova os dentes, já repararam? Personagem não tem mau hálito nunca.

E quando o ator levanta da mesa no bar e deixa o dinheiro certinho, trocadinho e vai embora sem ao menos olhar para trás?

E as crianças que dormem no ato? Encostam a cabecinha no travesseiro e dormem. E os quartos delas que são super-arrumadinhos? E as casas não têm empregada. Não sei quem arruma aquilo tudo.

E quando o casal desliga a luz no quarto para dormir? Já notaram como o luar é forte? Mais forte que o luar do nosso sertão. Tudo azul, uma beleza. E a janela está fechada, pode notar.

Telefone nunca dá ocupado. O sujeito disca e o outro atende no ato. O outro sempre está do outro lado. E o mais interessante é que eles não se despedem. Tocam o assunto e desligam na cara do outro.

A pessoa sai para fazer uma compra e sempre tem o que ela procura. E por que será que em toda briga quebram pelo menos uma mesa? Redonda, geralmente.

Já viram cavalo beber água em cinema? Coitados. Xixi e cocô, nem pensar, nunca fazem. E ninguém tira os arreios deles. Colocar, colocam, mas tirar, jamais.

Roupa molhada no corpo, na cena seguinte já está sequinha. E o melhor, passadinha.

Já viu isqueiro falhar em filme?

E a velocidade com que a comida pedida no restaurante chega à mesa? Sem falar nos drinques.

No cinema todo mundo fala inglês. Inclusive os índios e os extraterrestres.

E as velas, gente, como iluminam! Uma simples velinha ilumina uma sala enorme.

Mas o melhor mesmo é a facilidade de se estacionar nas grandes cidades. E estacionam bem na porta de onde têm que ir. Isso em Nova York e San Francisco!

Na hora de morrer, o moribundo sempre tem uma frase definitiva para dizer. Ou um segredo. Ou quem é o assassino. Depois tomba a cabeça para o lado esquerdo.

Outra coisa que me intriga é quem fecha o saloon. Porque saloon não tem porta de fechar, só aaquelas de vaivém. Será que o serviço é de 24 horas?

E como fazem amor rápido, pessoal. Em menos de meio minuto, os dois já estão mais do que satisfeitos e acendendo um cigarrinho. Todos têm orgasmos.

Dois músicos se encontram em algum lugar com dois instrumentos diferentes e começam a tocar. Ninguém afina, pois já vêm afinadíssimos.

E cada revólver de 6 balas que dispara mais de 500? Sem falar nas espingardas de um cano só.

A exemplo dos cavalos, ninguém vai ao banheiro no cinema. E olham que comem e bebem pra urro.

Na hora de se atravessar um rio, ele é sempre rasinho, mas quando o herói pula lá de cima do despenhadeiro é claro que o rio é fundo. Nunca vi ninguém morrer, pulando lá de cima.

E por que cargas d'água todo cinema brasileiro tem pulgas? Que devem, inclusive, falar inglês tão bem quanto nossos heróis de ficção.

(Mário Prata)


67 - PRA LÁ DE MARRAKESCH

Na noite anterior havia trabalhado feito um mouro.

Acordei e estava um verdadeiro calor senegalês. Depois de tomar uma boa duma ducha escocesa, quase dormitar num banho turco, fazer a minha ginástica sueca, passar a minha água de colônia, vesti meu terno azul turquesa de casimira inglesa (que fora um presente de grego de uma amante argentina), cuidei do meu pastor alemão, do pequinês, do dinamarquês, do meu gato siamês e, com uma pontualidade britânica, deslizando sobre o tapete persa, sai para fazer um negócio da china.

Logo voltei. Deveria ter saído com a minha refrescante bermuda, minhas sandálias havaianas e o autêntico chapéu panamá. Evitaria o calor, aquela tortura chinesa que só um bom sorvete de creme holandês refrescaria.

Ou teria sido melhor o terno príncipe de Gales, para evitar uma gripe espanhola ou uma febre asiática? A polaca gostaria mais.

Foi bom ter voltado. Meu periquito australiano e o meu canário belga, famintos, pediam semente de maconha colombiana. E minha galinha de angola, o resto da linguiça calabresa, resquício de um sanduíche americano com um pouco de salada russa e molho inglês, cortado com o meu afiado canivete suíço. Hambúrguer, nem pensar, que é para inglês ver.

Acabei me atrasando, chupei uma mexerica (ou era uma tangerina ou, ainda, uma bergamota?). Brinquei de sombra chinesa e quase dormi.

Para acordar, ligo a televisão, vejo um pouco do esporte bretão, descasco uma lima da pérsia, fico em dúvida entre o pão sírio e o pão francês, conto até dez em algarismos romanos e depois em algarismos arábicos e resolvo fazer um filé a parmegiana. Abro a janela veneziana, preparo um uísque paraguaio e ali, numa autêntica noite americana, tal e qual um tigre asiático, dou um sorriso amarelo, brinco com o porquinho da índia de porcelana inglesa e me sirvo à francesa.

Depois, balanço na poltrona de cana da índia com a cuba libre. Mas, como o pato vai ser à Califórnia, com pimenta malagueta ou pimenta-do-reino, misturado com arroz marroquino (ou à grega?), preparo a milanesa e tudo bem. Vai cravo da índia? Será que o melhor mesmo não seria um filé à cubana, para depois enfrentar uma montanha russa, arrotando couve-de-bruxelas?

Com a chave inglesa abro a porta emperrada, levo no bolso o meu soco igualmente inglês e saio ao encontro da minha cidade, do meu Brasil paraguaio.

Coisa de primeiro mundo.

PS - Segundo pesquisa rápida, na França não existe nada parecido com o nosso pão francês; nenhum americano jamais comeu um sanduiche americano; as saladas russas não têm nada a ver com a nossa salada russa; o calor diminuiu muito no Senegal; em Parma não se faz filé à parmegiana; as janelas de Veneza não são nada venezianas; na Suécia não se faz ginástica como aqui; a linguiça da Calábria é totalmente diferente; os ingleses não estão mais pontuais assim; não se fazem mais bons negócios na China; o pessoal do Panamá deixou de usar chapéu há muito tempo;não se vende mais couve em Bruxelas; na revolução, comeram todas as 117 galinhas de Angola; ultimamente, o príncipe de Gales anda de saia; na França entra-se à francesa e serve-se à brasileira; nunca vi mexerica nem em Tanger e nem em Bérgamo; não existe mais gripe na Espanha e nem febre na Ásia; Cuba não está assim tão livre e filé à cubana é um sonho do passado e não dá mais para enfrentar uma amante argentina nem com uísque paraguaio.

(Mário Prata)


66 - VIAGEM AO REDOR DO MEU UMBIGO

Você já fez, alguma vez, uma endoscopia? Nem sabe o que é isso? É o seguinte: eles enfiam um cabo com uma câmera de televisão pela sua boca, garganta adentro, e ficam bisbilhotando o seu esôfago, o seu estômago e vão até o duodeno. Recomendo por dois motivos: primeiro que você fica se conhecendo melhor. Fica íntimo do seu interior, participa de uma intimidade interior que você jamais poderia imaginar, e fica por dentro de você mesmo. E, em segundo lugar porque, para que as suas estranhas entranhas apareçam na TV (a cores), te dão uma injeção na veia que é, no mínimo, interessante.

É muito engraçado e rico ficar numa sala de espera onde todos serão esofagogastroduodenoscopizados. A palavra oficial é essa. Tente repetir. Todos entram valentes, garbosos e falantes. Firmes. E saem, quinze minutos depois, totalmente drogados, cambaleantes, com o olho paradão, sem mesmo saber o rumo de casa. Lembra do lança-perfume? Mais ou menos aquilo. Só que dura mais. O barato aplicado e um terço de Dolantina, um terço de Diazepan e uma talagada de Buscopan. Na veia. Bate na hora.

Dois dias depois você vai buscar o resultado e está lá o cenário da sua novela interna, a vida íntima de personagens com quem lidamos diariamente e pouco sabemos deles. Ficamos sabendo coisas interessantíssimas sobre o lado de dentro da gente. Por exemplo, o meu esôfago tem boa expansibilidade e calibre conservados. Tenho orgulho disso. Calibre conservado a álcool, provavelmente. Fiquei sabendo também, incrédulo, que tenho a mucosa esbranquiçada e espessada, principalmente em um terço distal. E mais: não há erosões ou úlceras, nem hérnia hiatal às manobras de esforço abdominal. Deve ser o seguinte: posso fazer abdominais tranquilamente, que o esôfago garante.

Vamos agora para a cena seguinte. O estômago, segundo o relatório, estava em boas condições para o exame, com o lago mucoso claro e sem resíduos alimentares. Não é poético saber que temos, lá dentro, um lago? Mucoso, mas lago. A manobra de retrovisão, o fundo e a cárdia não apresentam alteração. O que a doutora quis dizer com isso é que ela fez uma tomada de câmera complicada. Deve ter dado um zoom nas minhas pregas. Sim, porque, logo a seguir, me informa que o pregueado mucoso de corpo segue sua distribuição regularmente. Felizmente. E fico sabendo, finalmente, que a mucosa de incisura angularis e antro estão íntegros e sem lesões. Ou seja, além do lago, descubro que tenho um antro lá dentro. E conclui que o meu piloro está centrado e facilmente permeável. Não me perguntem o que é o meu piloro. O que importa é que ele está centrado. Já o fato dele estar facilmente permeável não deve ser coisa boa. Preferia ter um piloro mais firme, duro, impermeável.

Partimos agora para o duodeno, que, como o próprio nome indica, tem o tamanho de doze dedos. Lá a barra estava pesada: a mucosa adjacente está hiperemiada e edemaciada. Entenderam? Nem eu, mas não deve ser boa coisa. Mas, felizmente, não há qualquer sinal de sangramento ou estenose. E, de repente, uma cena digna de final de capítulo. A vilã finalmente mostra a sua cara para os espectadores: em parede posterior próxima à transição para a segunda porção, uma úlcera alongada de 5 a 10 mm de média profundidade e fundo com fibrina. Para minha alegria (e do meu duodeno), a segunda porção não apresenta anormalidades.

Conclusão: tenho uma úlcera bulbar ativa. Claro, jamais me sujeitaria a ter uma úlcera bulbar passiva. É a ‘envelhescência’!

(Mário Prata)


65 - O FURO NO BARCO

Um homem foi chamado à praia para pintar um barco. Trouxe com ele tinta e pincéis, e começou a pintar o barco de um vermelho brilhante, como fora contratado para fazer. Enquanto pintava, viu que a tinta estava passando pelo fundo do barco. Percebeu que havia um vazamento e decidiu consertá-lo. Quando terminou a pintura, recebeu seu dinheiro e se foi.

No dia seguinte, o proprietário do barco procurou o pintor e presenteou-o com um belo cheque. O pintor ficou surpreso:

- O senhor já me pagou pela pintura do barco! - disse ele.

- Mas isto não é pelo trabalho de pintura. É por ter consertado o vazamento do barco.

- Ah! Mas foi um serviço tão pequeno... Certamente, não está me pagando uma quantia tão alta por algo tão insignificante!

- Meu caro amigo, você não compreende. Deixe-me contar-lhe o que aconteceu. Quando pedi a você que pintasse o barco, me esqueci de mencionar o vazamento. Quando o barco secou, meus filhos o pegaram e saíram para uma pescaria. Eu não estava em casa naquele momento. Quando voltei e notei que haviam saído com o barco, fiquei desesperado, pois me lembrei que o barco tinha um furo. Imagine meu alívio e alegria quando os vi retornando sãos e salvos. Então, examinei o barco e constatei que você o havia consertado! Percebe, agora, o que fez? Salvou a vida de meus filhos! Não tenho dinheiro suficiente para pagar a sua "pequena" boa ação.

Não importa para quem, quando ou de que maneira: mas, ajude, ampare, enxugue as lágrimas, escute com atenção e carinho, e conserte todos os "vazamentos" que perceber, pois nunca sabemos quando estão precisando de nós ou quando Deus nos reserva a agradável surpresa de ser útil e importante para alguém.

(Autor desconhecido)


64 - PARA O MELHOR AMIGO, O MELHOR PEDAÇO

Serapião era um velho mendigo que perambulava pelas ruas da cidade. Ao seu lado, o fiel escudeiro, um vira-lata que atendia pelo nome de Malhado.

Serapião não pedia dinheiro. Aceitava sempre um pão, uma banana, um pedaço de bolo ou um almoço feito com sobras de comida dos mais abastados. Quando suas roupas estavam imprestáveis, logo era socorrido por alguma alma caridosa. Mudava a apresentação e era alvo de brincadeiras.

Serapião era conhecido como um homem bom, que perdera a razão, a família, os amigos e até a identidade. Não bebia bebida alcoólica, estava sempre tranquilo, mesmo quando não havia recebido nem um pouco de comida. Dizia sempre que Deus lhe daria um pouco na hora certa e, sempre na hora que Deus determinava, alguém lhe estendia uma porção de alimentos.

Serapião agradecia com reverência e rogava a Deus pela pessoa que o ajudava.

Tudo que ganhava, dava primeiro para o Malhado que, paciente, comia e ficava a esperar por mais um pouco. Não tinha onde dormir; onde anoiteciam, lá dormiam. Quando chovia, procuravam abrigo embaixo da ponte e, ali o mendigo ficava a meditar, com um olhar perdido no horizonte.

Aquela figura me deixava sempre pensativo, pois eu não entendia aquela vida vegetativa, sem progresso, sem esperança e sem um futuro promissor.

Certo dia, com a desculpa de lhe oferecer umas bananas, fui bater um papo com o velho Serapião.

Iniciei a conversa falando do Malhado, perguntei pela idade dele, o que Serapião, não sabia. Dizia não ter ideia, pois se encontraram um certo dia quando ambos andavam pelas ruas e falou:

- Nossa amizade começou com um pedaço de pão, ele parecia estar faminto e eu lhe ofereci um pouco do meu almoço e ele agradeceu, abanando o rabo, e daí, não me largou mais. Ele me ajuda muito e eu retribuo essa ajuda sempre que posso.

Curioso perguntei:

- Como vocês se ajudam?

- Ele me vigia quando estou dormindo; ninguém pode chegar perto que ele late e ataca. Também quando ele dorme, eu fico vigiando para que outro cachorro não o incomode.

Continuando a conversa, perguntei:

- Serapião, você tem algum desejo na vida?

- Sim, respondeu ele - tenho vontade de comer um cachorro quente, daqueles que a Zezé vende ali na esquina.

- Só isso? Indaguei.

- É, no momento é só isso que eu desejo.

- Pois bem, vou satisfazer agora esse grande desejo.

Saí e comprei um cachorro quente para o mendigo. Voltei e lhe entreguei. Ele arregalou os olhos, deu um sorriso, agradeceu a dádiva e em seguida tirou a salsicha, deu para o malhado, e comeu o pão com os temperos.

Não entendi aquele gesto do mendigo, pois imaginava ser a salsicha o melhor pedaço, não contive e perguntei intrigado:

- Por que você deu para o Malhado, logo a salsicha?

Ele com a boca cheia respondeu:

- Para o melhor amigo, o melhor pedaço!

E continuou comendo, alegre e satisfeito.

Despedi-me do Serapião, passei a mão na cabeça do Malhado e sai pensando. Aprendi como é bom ter amigos. Pessoas em que possamos confiar. Por outro lado, é bom ser amigo de alguém e ter a satisfação de ser reconhecido como tal.

Jamais esquecerei a sabedoria daquele eremita: "PARA O MELHOR AMIGO O MELHOR PEDAÇO"


63 - O ANALISTA DE BAGÉ

Certas cidades não conseguem se livrar da reputação injusta que, por alguma razão, possuem. Algumas das pessoas mais sensíveis e menos grossas que eu conheço vem de Bagé, assim como algumas das menos afetadas são de Pelotas. Mas não adianta. Estas histórias do psicanalista de Bagé são provavelmente apócrifas (como diria o próprio analista de Bagé, história apócrifa é mentira bem educada) mas, pensando bem, ele não poderia vir de outro lugar.

Pues, diz que o divã no consultório do analista de Bagé é forrado com um pelego. Ele recebe os pacientes de bombacha e pé no chão.

— Buenas. Vá entrando e se abanque, índio velho.

— O senhor quer que eu deite logo no divã?

— Bom, se o amigo quiser dançar uma marca, antes, esteja a gosto. Mas eu prefiro ver o vivente estendido e charlando que nem china da fronteira, pra não perder tempo nem dinheiro.

— Certo, certo. Eu...

— Aceita um mate?

— Um quê? Ah, não. Obrigado.

— Pos desembucha.

— Antes, eu queria saber. O senhor é freudiano?

— Sou e sustento. Mais ortodoxo que reclame de xarope.

— Certo. Bem. Acho que o meu problema é com a minha mãe

— Outro.

— Outro?

— Complexo de Édipo. Dá mais que pereba em moleque.

— E o senhor acha...

— Eu acho uma pôca vergonha.

— Mas...

— Vai te metê na zona e deixa a velha em paz, tchê!

~//~

Contam que outra vez um casal pediu para consultar, juntos, o analista de Bagé. Ele, a princípio, não achou muito ortodoxo.

— Quem gosta de aglomeramento é mosca em bicheira... Mas acabou concordando.

— Se abanquem, se abanquem no más. Mas que parelha buenacha, tchê! . Qual é o causo?

— Bem — disse o home — é que nós tivemos um desentendimento...

— Mas tu também é um bagual. Tu não sabe que em mulher e cavalo novo não se mete a espora?

— Eu não meti a espora. Não é, meu bem?

— Não fala comigo!

— Mas essa aí tá mais nervosa que gato em dia de faxina.

— Ela tem um problema de carência afetiva...

— Eu não sou de muita frescura. Lá de onde eu venho, carência afetiva é falta de homem.

— Nós estamos justamente atravessando uma crise de relacionamento porque ela tem procurado experiências extraconjugais e...

— Epa. Opa. Quer dizer que a negra velha é que nem luva de maquinista? Tão folgada que qualquer um bota a mão?

— Nós somos pessoas modernas. Ela está tentando encontrar o verdadeiro eu, entende?

— Ela tá procurando o verdadeiro tu nos outros?

— O verdadeiro eu, não. O verdadeiro eu dela.

— Mas isto tá ficando mais enrolado que linguiça de venda. Te deita no pelego.

— Eu?

— Ela. Tu espera na salinha.


62 - PLANTANDO ÁRVORES

Tempos atrás, eu era vizinho de um médico, cujo "hobby" era plantar árvores no enorme quintal de sua casa. Às vezes, observava da minha janela o seu esforço para plantar árvores e mais árvores, todos os dias.

O que mais chamava a atenção, entretanto, era o fato de que ele jamais regava as mudas que plantava.

Passei a notar, depois de algum tempo, que suas árvores estavam demorando muito para crescer. Certo dia eu resolvi então aproximar-me do médico e perguntei se ele não tinha receio de que as árvores não crescessem, pois percebia que ele nunca as regava. Foi quando, com um ar orgulhoso, ele me descreveu sua fantástica teoria.

Disse-me que se regasse suas plantas, as raízes se acomodariam na superfície e ficariam sempre esperando pela água mais fácil, vinda de cima.

Como ele não as regava, as árvores demorariam mais para crescer, mas suas raízes tenderiam a migrar para o fundo, em busca da água e das várias fontes nutrientes encontradas nas camadas mais inferiores do solo.

Assim, segundo ele, as árvores teriam raízes profundas e seriam mais resistentes às intempéries.

Disse-me ainda, que frequentemente dava uma palmadinha nas suas árvores, com um jornal enrolado, e que fazia isso para que se mantivessem sempre acordadas e atentas.

Essa foi a única conversa que tive com aquele meu vizinho. Logo depois, fui morar em outro país, e nunca mais o encontrei.

Vários anos depois, ao retornar do exterior fui dar uma olhada na minha antiga residência.

Ao aproximar-me, notei um bosque que não havia antes. Meu antigo vizinho havia realizado seu sonho!

O curioso é que aquele era um dia de um vento muito forte e gelado, em que as árvores da rua estavam arqueadas, como se não estivessem resistindo ao rigor do inverno. Entretanto, ao aproximar-me do quintal do médico, notei como estavam sólidas as suas árvores: praticamente não se moviam, resistindo implacavelmente àquela ventania toda.

Que efeito curioso, pensei eu... As adversidades pela qual aquelas árvores tinham passado, levando palmadelas e tendo sido privadas de água, pareciam tê-las beneficiado de um modo que o conforto o tratamento mais fácil jamais conseguiriam.

Todas as noites, antes de ir me deitar, dou sempre uma olhada em meus filhos.

Debruço-me sobre suas camas e observo como têm crescido.

Frequentemente, oro por eles.

Na maioria das vezes, peço para que suas vidas sejam fáceis:

"Meu Deus, livre meus filhos de todas as dificuldades e agressões desse mundo"...

Tenho pensado, entretanto, que é hora de alterar minhas orações.

Essa mudança tem a ver com o fato de que é inevitável que os ventos gelados e fortes nos atinjam e aos nossos filhos. Sei que eles encontrarão inúmeros problemas e que, portanto, minhas orações para que as dificuldades não ocorram, têm sido ingênuas demais.

Sempre haverá uma tempestade, ocorrendo em algum lugar. Portanto, pretendo mudar minhas orações. Farei isso porque, quer nós queiramos ou não, a vida não é muito fácil. Ao contrário do que tenho feito, passarei a orar para que meus filhos cresçam com raízes profundas, de tal forma que possam retirar energia das melhores fontes, das mais divinas, que se encontram nos locais mais remotos.

Oramos demais para termos facilidades, mas na verdade o que precisamos fazer é pedir para desenvolver raízes fortes e profundas, de tal modo que quando as tempestades chegarem e os ventos gelados soprarem, nós resistiremos bravamente, ao invés de sermos subjugados e varridos para longe.

Jean Paul Barnier: "Que suas raízes sejam fortes o suficiente para fazê-lo forte, perseverante, destemido, vencedor e trazer-lhe a tão sonhada felicidade! Acredite nela e, sobretudo, acredite em você".


61 - TUDO A VER

Você ama aquela petulante. Você escreveu dúzias de cartas que ela não respondeu, você deu flores que ela deixou a seco, você levou para conhecer a sua mãe e ela foi de blusa transparente. Você gosta de rock e ela de chorinho, você gosta de praia e ela tem alergia a sol, você abomina o Natal e ela detesta o Ano Novo, nem no ódio vocês combinam. Então?

Então que ela tem um jeito de sorrir que o deixa imobilizado, o beijo dela é mais viciante do que LSD, você adora brigar com ela, ela adora implicar com você. Isso tem nome.

Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai ligar e não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra no armário, ele escuta Sivuca. Ele não emplaca uma semana nos empregos, está sempre duro, e é meio galinha. Ele não tem a menor vocação para príncipe encantado, e ainda assim você não consegue despachá-lo. Quando a mão dele toca na sua nuca, você se derrete feito manteiga. Por que você ama este cara?

Não pergunte pra mim. Você é inteligente. Lê livros, revistas, jornais.

Gosta dos filmes de Woody Allen, dos irmãos Coen e do Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica também tem o seu valor. É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo tem todas as curvas no lugar. Independente, emprego fixo, bom saldo no banco.

Gosta de viajar, de música, tem loucura por computador e seu fettuccine ao pesto é imbatível. Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém, adora sexo. Com um currículo desses, criatura, por que diabo está sem um amor?

Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados.

Não funciona assim. Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário os honestos, simpáticos e não-fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo à porta. O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão.

O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar. Costuma ser despertado mais pelas flechas do cupido que por uma ficha limpa. Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano. Isso são só referências. Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca. Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera.

Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC.

Ama-se justamente pelo que o amor tem de indefinível.

Honestos existem aos milhares, generosos tem às pencas, bons motoristas e bons pais de família, tá assim, ó. Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor da sua vida é.

(Roberto Freire)


60 - A NENHUMA CHAMARÁS ALDEBARÃ

Eu vinha de não sei que tristes sonhos, nefastos pesadelos. Despertei, ansiado, no meio da noite, e olhando a escura parede senti que as imagens torvas que me povoavam os olhos ainda tontos ali vagamente se moviam. Voltei-me, então, sobre o meu flanco direito; a janela estava aberta para a noite. Era uma noite sem lua, que ciciava em árvores e murmurava em águas humildes; e uma grande estrela brilhava.

Haveria outras, esparsas e pequenas, mas aquela era tão grande e cintilava com uma estranha palpitação; era tão distante, mas brilhava tão perto e tão para mim como se fosse uma lanterna que mão amiga houvesse pendurado em minha janela para me dar alento no fundo da treva. Eu vagara tanto pelo mundo que, ao despertar, não sabia em que leito, casa, país e tempo; e mesmo tinha de recompor minha ideia para lembrar se era feliz ou infeliz. Apenas senti que estava agora voltado para o norte, e do fundo de meu coração saudei a estrela com a palavra que me veio aos lábios: Aldebarã!

Lera essa palavra em velhos, cansados livros que falam de astros e mistérios do céu; mas somente agora percebia que era uma palavra mística, feita de muitas outras, querendo dizer, em antigas secretas línguas: a Nova Esperança, a Alegria Amiga, o Esquecimento das Mágoas, a Alegria da Noite.

Aldebarã, Aldebarã! – disse eu, com estranho ardor; e foi como se a sua palpitação se fizesse mais fremente e pura. Então uma voz suave me disse, e era como se a minha melancólica mãe ou, ainda mais distante, a minha irmã e madrinha me passasse a mão pelos cabelos. “Descansa, dorme em paz, Aldebarã é tua amiga; e como soubeste dizer seu nome ela é para sempre tua amiga; dorme em paz, homem da noite solitária e cruel e dos fatigados, tristes pesadelos; dorme. E se amanhã, na tua inquieta fantasia, quiseres dar esse nome a lago que ames, podes dá-lo sem remorso à égua fidalga que no galope deixa que o luar lhe beije as negras crinas, ou à mais bela flor no pélago marinho; e até podes chamar Aldebarã a uma nuvem que se doira no momento em que o céu, para o ocidente, já toma a cor da triste violeta; mas promete que nunca darás esse nome, nunca, a nenhuma filha dos homens, por mais ansioso te faça a sua beleza peregrina”.

Eu disse apenas, humilde: “Prometo”. E então pela primeira vez em muitos e muitos anos de longas noites, eu pude adormecer sorrindo, porque meu coração era puro como o de um menino.

(Rubem Braga)


59 - AUTO-RETRATO DO ARTISTA QUANDO NÃO TÃO JOVEM - (Stanislaw Ponte Preta)

“ATIVIDADE PROFISSIONAL: Jornalista, radialista, televisista (o termo ainda não existe, mas a atividade dizem que sim), teatrólogo ora em recesso, humorista, publicista e bancário.

OUTRAS ATIVIDADES: Marido, pescador, colecionador de discos (só samba do bom e jazz tocado por negro, além de clássicos), ex-atleta, hoje cardíaco. Mania de limpar coisas tais como livros, discos, objetos de metal e cachimbos.

PRINCIPAIS MOTIVAÇÕES: Mulher.

QUALIDADES PARADOXAIS: Boêmio que adora ficar em casa, irreverente que revê o que escreve, humorista a sério.

PONTOS VULNERÁVEIS: Completa incapacidade para se deixar arrebatar por política. Jamais teve opinião formada sobre qualquer figurão da vida pública, quer nacional, quer estrangeira.

ÓDIOS INCONFESSOS: Puxa-saco, militar metido a machão, burro metido a sabido e, principalmente, racista.

PANACÉIAS CASEIRAS: Quando dói do umbigo para baixo: Elixir Paregórico. Do umbigo para cima: aspirina.

SUPERTIÇÕES INVENCÍVEIS: Nenhuma, a não ser em véspera de decisão de Copa do Mundo. Nessas ocasiões comparativamente qualquer pai-de-santo é um simples cético.

TENTAÇÕES IRRESISTÍVEIS: Passear na chuva, rir em horas impróprias, dizer ao ouvido de mulher besta que ela não tão boa quanto pensa.

MEDOS ABSURDOS: Qualquer inseto taludinho (de barata pra cima).

ORGULHO SECRETO: Faz ovo estrelado como Pelé faz gol. Aliás, é um bom cozinheiro no setor mais difícil da culinária: o trivial.

Assinado, Sérgio Porto, agosto de 1963.”


58 - AEROPORTO DE CONGONHAS, UMA, DUAS, VÁRIAS VERGONHAS

Ao ser inaugurado, em agosto de 1934, Congonhas era considerado um modelo de “obra aeroviária”. Como todo bom aeroporto que se preza, também ficava a alguns minutos da cidade. Cedo, porém, os executivos paulistas, sempre muito atarefados, começaram a reclamar que não podiam perder esses minutos entre a cidade e o aeroporto.

- O senhor compreende – queixou-se um executivo a uma autoridade da época – esse percurso nos rouba um precioso tempo. Será que não dá pra chegar a cidade um pouquinho mais para perto do aeroporto?

A autoridade fez um ar de indignação e exclamou que a proposta “era um absurdo”; mas como São Paulo não pode parar – e não pode parar nem pra pensar – não tomou nenhuma providência. A cidade então foi se aproximando, já ajudada pela população em geral, que desde o início se amarrou em fazer programa no aeroporto. Várias famílias inclusive venderam suas casas de campo e compraram ou­tras em Congonhas para poderem passar um fim de semana mais tranquilo no aeroporto. A cidade continuou sorratei­ramente se aproximando, se aproximando, pegou as autori­dades distraídas e de repente fez o que os índios fazem com as diligências nos bangue-bangues americanos: cercou o aeroporto.

Hoje, os aviões sobem e descem passando a dois palmos dos telhados das casas e, enquanto outros locais da cidade exaltam suas pracinhas, igrejas, monumentos, lagos, residên­cias, Congonhas se vangloria de ser o único bairro metropo­litano em todo o mundo que possui um aeroporto interna­cional na esquina de suas ruas.

O Aeroporto de Congonhas é um digno exemplo do milagre brasileiro. É realmente um milagre que no local ainda não tenha havido um acidente de proporções super­sônicas. O aeroporto está condenado desde o congresso brasileiro aeronáutico, realizado em 1958. Sua pista prin­cipal tem 1 mil 867 metros e não oferece os padrões de segurança necessários às operações com jatos. Para vocês terem uma ideia: um Boeing-727 necessita de 3 quilômetros de pista para aterrissar ou decolar. E não é muito raro se ver um avião, ao pousar, abrir os paraquedas, para não varar a pista e sair lá pela Avenida Rubem Berta. Ano passado, um turboélice errou nas contas, atravessou a pista e foi bater num poste na Avenida Jabaquara, causando o maior congestionamento no trânsito. A perícia demorou três horas para chegar (o que não é muito: para os carros demora duas horas) e entre outras coisas concluiu que a empresa deveria pagar uma multa ao Detran.

- Mas – indagou o funcionário da empresa – multa por quê?

- Por avanço de sinal, é claro – disse o perito. ­Várias testemunhas afirmaram que o sinal estava fechado para o seu avião.

E o pior, meus amigos, é que as pistas de Congonhas não podem ser aumentadas, sob pena de se misturarem com as ruas. Já se pensou na solução dos viadutos. São Paulo seria a primeira cidade do mundo a ter uma pista de pouso em cima de um viaduto. Depois, porém, chegou-se à con­clusão de que, pelo tamanho, seria muito oneroso: para satisfazer aos jumbos a pista do aeroporto teria que começar mais ou menos na Praça da República.

Vivendo anos debaixo do ruído permanente das aero­naves, os moradores de Congonhas, aos poucos, foram modificando seus hábitos, seus costumes, seus encontros:

- Eu queria dar um pulinho aí para lhe ver – disse uma amiga da tia do Aristides, falando pelo telefone.

- Venha mesmo – respondeu a tia – que nós pre­cisamos conversar.

- E qual é a melhor hora pra você? Ah, venha depois do Boeing das oito.

As janelas das casas, por exemplo, só tem a armação.

Os vidros foram dispensados em 1958, quando chegou o primeiro jato. Sempre que levantava voo, o jato quebrava todas as vidraças do bairro. Os espelhos, para não estilha­çarem, já são comprados aos cacos. As antenas de televisão são subterrâneas. Uma vez, um Lockheed calculou mal a descida e aterrissou com 11 antenas de televisão espetadas no bojo. Apesar de todas as precauções dos moradores, às vezes ocorrem certos imprevistos. Não faz muito tempo, um Jumbo passou tão baixo que arrastou as roupas que estavam estendidas num quintal. A dona da casa teve que ir recla­mar no balcão da companhia:

- Boa tarde – disse ela – eu vim buscar minhas roupas que vieram nesse Jumbo que acabou de descer.

- Pois não – falou a recepcionista – qual é o número de sua mala?

- Não. Elas não estavam na mala.

- Não? – voltou a moça. – Estavam onde, então?

- Estavam no varal lá de casa.

Ninguém no bairro usa relógio. Todos se orientam pelos vôos. Na casa da tia do Aristides a família acorda às 6h43m quando passa o Viscount prefixo PP-PTB; toma banho às l0h29m, na passagem do Boeing-747; almoça às 12 h 43 m com o Caravelle. Aristides, que passou uns dias em Congonhas, ficou impressionado com a tarimba da tia. Um dia acordou e perguntou a ela como estava o tempo lá fora.

- Nublado.

- Mas como é que a senhora sabe, se nem olhou? Nem precisa. Tem um YS-11 há meia-hora roncando aqui em cima. Não há teto para descer.

Em Congonhas, entretanto, corre-se o risco de dormir na cama e acordar na poltrona de um DC-10. Uma vizinha da tia de Aristides conta que uma noite bateram na sua casa às quatro horas da manhã. Ela se levantou e quando abriu a porta deu de cara com um Boeing. Mais desagradável, porém, do que ver um Boeing entrando pela sala sem ser chamado são os problemas causados pela poluição sonora. São 300 decolagens ou aterrissagens por dia, o que dá em média um ronco de avião a cada quatro minutos. Como o ruído dos jatos alcança 140 decibéis – o ouvido humano suporta sem danos 85 – conclui-se que os moradores de Congonhas em matéria de barulho são vice-campeões mundiais. Só perdem mesmo para os moradores do Cabo Ken­nedy, onde os foguetes espaciais decolam a 180 decibéis. Segundo um trabalho da UNESCO, o maior consumo de algodão em todo o mundo é no bairro de Congonhas.

No Hospital do Servidor Público, próximo ao aeroporto, a primeira providência para com uma criança ao nascer é botar-lhe algodão nos ouvidos. Depois, então, corta-se o cordão umbilical. Aliás, é curioso como o resultado de uma pesquisa recente revelou que 90% dos me­ninos do bairro ao crescerem querem ser soldados. E por que isso?

- Pra poder servir nas baterias antiaéreas.

- E o pessoal aqui do bairro normalmente dorme bem? – perguntou o entrevistador.

- Dorme.

- Ninguém tem insônia?

- Às vezes. Um ou outro.

- E quando não se consegue dormir – voltou o en­trevistador – que é que vocês fazem? Contam carneirinhos?

- Não senhor. Contar carneirinho é coisa do passado.

- Também acho – concordou o entrevistador. ­Que fazem, então?

- Contamos aviões.

Há, contudo, casos excepcionais, como o do marido da tia do Aristides, um senhor de 92 anos (20 a mais que ela), cujas profundas olheiras impressionaram tanto a Aristides que ele foi perguntar à tia: “Ele está doente?”

- Não. É que não dorme desde 1958.

- E por quê?

- Não conseguiu se adaptar ao barulho dos jatos – explicou ela – estamos aqui desde 1930. O ruído dos aviões a pistão e turboélices ele não teve dificuldades em assimilar, mas com os jatos não conseguiu. Disse que já estava muito velho para se adaptar a um novo ronco.

Quando, porém, soube da chegada do primeiro super­sônico a Congonhas, o velho correu para a janela. E ficou maravilhado diante do silêncio com que o avião pousou… Voltou para dentro de casa aos berros: “Estou salvo, viva, viva, até que enfim inventaram um avião silencioso, agora poderei dormir, viva” – e comemorando abraçava a todos até ser interrompido bruscamente por um vigoroso estrondo que parecia estar rachando o céu. Parou lívido no meio da sala e perguntou:

- Que foi isso?

- O som do avião.

- Mas que avião? – perguntou o velho consultando os céus. – Não tem avião agora.

- Foi do que acabou de descer. Ele não é mais rápido que o som? Então. Com avião supersônico é assim mesmo. O som chega sempre com 10 minutos de atraso.

Mas afinal, perguntarão vocês, por que essa conversa toda sobre o aeroporto de São Paulo, se nós moramos no Rio? Porque parece que agora as coisas vão mudar. Reconhecendo que o ruído dos aviões vem criando graves problemas para os moradores de Congonhas, as autoridades resolveram interditar os voos das 22 às 6 horas da manhã, para que o pessoal possa dormir mais um pouco.

- Mas por que só em Congonhas? – perguntou um carioca. – E o pessoal da Ilha do Governador?

- Bem – respondeu um funcionário do DAC – o pessoal da Ilha tem que esperar. Afinal, não pode dormir todo mundo ao mesmo tempo.

E eu fico aqui pensando, irmãos, que isso, e muito mais que não contei, acontece exatamente na terra do pai da avia­ção. Como não estaríamos, então, se isso fosse apenas a terra de um primo da aviação?


57 - RECEITA DE DOMINGO

Ter na véspera o cuidado de escancarar a janela. Despertar com a primeira luz cantando e ver dentro da moldura da janela a mocidade do universo, límpido incêndio a debruar de vermelho quase frio as nuvens espessas. A brisa alta, que se levanta, agitar docemente as grinaldas das janelas fronteiras. Uma gaivota madrugadora cruzar o retângulo. Um galo desenhar na hora a parábola de seu canto. Então, dormir de novo, devagar, como se dessa vez fosse para retornar à terra só ao som da trombeta do arcanjo.

Café e jornais devem estar à nossa espera no momento preciso no qual violentamos a ausência do sono e voltamos à tona. Esse milagre doméstico tem de ser. Da área subir uma dissonância festiva de instrumentos de percussão — caçarolas, panelas, frigideiras, cristais anunciando que a química e a ternura do almoço mais farto e saboroso não foram esquecidas. Jorre a água do tanque e, perto deste, a galinha que vai entrar na faca saia de seu mutismo e cacareje como em domingos de antigamente. Também o canário belga do vizinho descobrir deslumbrado que faz domingo.

Enquanto tomamos café, lembrar que é dia de um grande jogo de futebol. Vestir um short, zanzar pela casa, lutar no chão com o caçula, receber dele um soco que nos deixe doloridos e orgulhosos. A mulher precisa dizer, fingindo-se muito zangada, que estamos a fazer uma bagunça terrível e somos mais crianças do que as crianças.

Só depois de chatear suficientemente a todos, sair em bando familiar em direção à praia, naturalmente com a barraca mais desbotada e desmilinguida de toda a redondeza.

Se a Aeronáutica não se dispuser esta manhã a divertir a infância com os seus mergulhos acrobáticos, torna-se indispensável a passagem de sócios da Hípica, em corcéis ainda mais kar do que os próprios cavaleiros.

Comprar para a meninada tudo que o médico e o regime doméstico desaconselham: sorvetes mil, uvas cristalizadas, pirulitos, algodão doce, refrigerantes, balões em forma de pinguim, macaquinhos de pano, papaventos. Fingir-se de distraído no momento em que o terrível caçula, armado, aproximar-se da barraca onde dorme o imenso alemão para desferir nas costas gordas do tedesco uma vigorosa paulada. A pedagogia recomenda não contrariar demais as crianças.

No instante em que a meninada já comece a “encher”, a mulher deve resolver ir cuidar do almoço e deixar-nos sós. Notar, portanto, que as moças estão em flor, e o nosso envelhecimento não é uma regra geral. Depois, fechar os olhos, torrar no sol até que a pele adquira uma vida própria, esperar que os insetos da areia nos despertem do meio-sono.

A caminho de casa, é de bom alvitre encontrar, também de calção, um amigo motorizado, que a gente não via há muito tempo. Com ele ir às ostras na Barra da Tijuca, beber chope ou vinho branco.

O banho, o espaçado almoço, o sol transpassando o dia. Desistir à última hora de ver o futebol, pois o nosso time não está em jogo. Ir à casa de um amigo, recusar o uísque que este nos oferece, dizer bobagens, brigar com os filhos dele em várias partidas de pingue-pongue.

Novamente em casa, conversar com a família. Contar uma história meio macabra aos meninos. Enquanto estes são postos em sossego, abrir um livro. Sentir que a noite desceu e as luzes distantes melancolizam. Se a solidão assaltar-nos, subjugá-la; se o sentimento de insegurança chegar, usar o telefone; se for a saudade, abrigá-la com reservas; se for a poesia, possuí-la; se for o corvo arranhando o caixilho da janela, gritar-lhe alto e bom som: “never more”.

Noite pesada. À luz da lâmpada, viajamos. O livro precisa dizer-nos que o mundo está errado, que o mundo devia, mas não é composto de domingos. Então, como uma espada, surgir da nossa felicidade burguesa e particular uma dor viril e irritada, de lado a lado. Para que os dias da semana entrante não nos repartam em uma existência de egoísmos.

(Paulo Mendes Campos)


56 - CONVERSINHA MINEIRA

- É bom mesmo o cafezinho daqui, meu amigo?

- Sei dizer não senhor: não tomo café.

- Você é dono do café, não sabe dizer?

- Ninguém tem reclamado dele não senhor.

- Então me dá café com leite, pão e manteiga.

- Café com leite só se for sem leite.

- Não tem leite?

- Hoje, não senhor.

- Por que hoje não?

- Porque hoje o leiteiro não veio.

- Ontem ele veio?

- Ontem não.

- Quando é que ele vem?

- Tem dia certo não senhor. Às vezes vem, às vezes não vem. Só que no dia que devia vir em geral não vem.

- Mas ali fora está escrito “Leiteria”!

- Ah, isso está, sim senhor.

- Quando é que tem leite?

- Quando o leiteiro vem.

- Tem ali um sujeito comendo coalhada. É feita de quê?

- O quê: coalhada? Então o senhor não sabe de que é feita a coalhada?

- Está bem, você ganhou. Me traz um café com leite sem leite. Escuta uma coisa: como é que vai indo a política aqui na sua cidade?

- Sei dizer não senhor: eu não sou daqui.

- E há quanto tempo o senhor mora aqui?

- Vai para uns quinze anos. Isto é, não posso garantir com certeza: um pouco mais, um pouco menos.

- Já dava para saber como vai indo a situação, não acha?

- Ah, o senhor fala da situação? Dizem que vai bem.

- Para que Partido?

- Para todos os Partidos, parece.

- Eu gostaria de saber quem é que vai ganhar a eleição aqui.

- Eu também gostaria. Uns falam que é um, outros falam que outro. Nessa mexida…

- E o Prefeito?

- Que é que tem o Prefeito?

- Que tal o Prefeito daqui?

- O Prefeito? É tal e qual eles falam dele.

- Que é que falam dele?

- Dele? Uai, esse trem todo que falam de tudo quanto é Prefeito.

- Você, certamente, já tem candidato.

- Quem, eu? Estou esperando as plataformas.

- Mas tem ali o retrato de um candidato dependurado na parede, que história é essa?

- Aonde, ali? Uê, gente: penduraram isso aí…

(Fernando Sabino)


55 - INICIAÇÃO

Foi numa dessas manhãs sem sol que percebi o quanto já estava dentro do que não suspeitava. E a tal ponto que tive a certeza súbita que não conseguiria mais sair. Não sabia até que ponto isso seria bom ou mau — mas de qualquer forma não conseguia definir o que se fez quando comecei a perceber as lembranças espatifadas pelo quarto. Não que houvesse fotografias ou qualquer coisa de muito concreto — certamente havia o concreto em algumas roupas, uma escova de dentes, alguns discos, um livro: as miudezas se amontoavam pelos cantos. Mas o que marcava e pesava mais era o intangível.

Lembro que naquela manhã abri os olhos de repente para um teto claro e minha mão tocou um espaço vazio a meu lado sobre a cama, e não encontrando procurou um cigarro no maço sobre a mesa e virou o despertador de frente para a parede e depois buscou um fósforo e uma chama e fumei fumei fumei: os olhos fixos naquele teto claro. Chovia e os jornais alardeavam enchentes. Os carros eram carregados pelas águas, os ônibus caíam das pontes e nas praias o mar explodia alto respingando pessoas amedrontadas. A minha mão direita conduzia espaçadamente um cigarro até minha boca: minha boca sugava uma fumaça áspera para dentro dos pulmões escurecidos: meus pulmões escurecidos lançavam pela boca e pelas narinas um fio de fumaça em direção ao teto claro onde meus olhos permaneciam fixos. E minha mão esquerda tocava uma ausência sobre a cama.

Tudo isso me perturbava porque eu pensara até então que, de certa forma, toda minha evolução conduzira lentamente a uma espécie de não-precisar-de-ninguém. Até então aceitara todas as ausências e dizia muitas vezes para os outros que me sentia um pouco como um álbum de retratos. Carregava centenas de fotografias amarelecidas em páginas que folheava detidamente durante a insônia e dentro dos ônibus olhando pelas janelas e nos elevadores de edifícios altos e em todos os lugares onde de repente ficava sozinho comigo mesmo. Virava as páginas lentamente, há muito tempo antes, e não me surpreendia nem me atemorizava pensar que muito tempo depois estaria da mesma forma de mãos dadas com um outro eu amortecido — da mesma forma — revendo antigas fotografias. Mas o que me doía, agora, era um passado próximo.

Não conseguia compreender como conseguira penetrar naquilo sem ter consciência e sem o menor policiamento: logo eu, que confiava nos meus processos, e que dizia sempre saber de tudo quanto fazia ou dizia. A vida era lenta e eu podia comandá-la. Essa crença fácil tinha me alimentado até o momento em que, deitado ali, no meio da manhã sem sol, olhos fixos no teto claro, suportava um cigarro na mão direita e uma ausência na mão esquerda. Seria sem sentido chorar, então chorei enquanto a chuva caía porque estava tão sozinho que o melhor a ser feito era qualquer coisa sem sentido. Durante algum tempo fiz coisas antigas como chorar e sentir saudade da maneira mais humana possível: fiz coisas antigas e humanas como se elas me solucionassem. Não solucionaram. Então fui penetrando de leve numa região esverdeada em direção a qualquer coisa como uma lembrança depois da qual não haveria depois. Era talvez uma coisa tão antiga e tão humana quanto qualquer outra, mas não tentei defini-la. Deixei que o verde se espalhasse e os olhos quase fechados e os ouvidos separassem do som dos pingos da chuva batendo sobre os telhados de zinco uma voz que crescia numa história contada devagar como se eu ainda fosse menino e ainda houvesse tias solteironas pelos corredores contando histórias em dias de chuva e sonhos fritos em açúcar e canela e manteiga.

(Caio Fernando Abreu)


54 - QUEM MORRE DESCANSA

Ela batia à máquina quando Norberto apareceu. Fez a pergunta: — Pode-se bater um papinho contigo? — Quando? — Depois do serviço? — OK. E onde? Ele vacilou: “Olha, eu te espero naquele bar da esquina”. Julinha, com o coração disparado, balbuciou: “Eu estarei lá. Batata”. E não trabalhou mais direito. Findo o expediente, correu no reservado das moças, e espiou-se no espelho; retocou a pintura dos lábios e passou pó no nariz; muito lustroso. Norberto a esperava, num canto do bar, com uma garrafa na frente. Deu-lhe a cadeira e requisitou o garçom. Perguntou à pequena: — Você toma o quê? Julinha, que não estava passando bem do estômago, pediu: — “Água tônica”. Enquanto o garçom ia e vinha, Norberto foi direto ao assunto: — “Você sabe, não sabe, que eu sou casado?”. Suspirou: — Sei. E ele: — Muito bem. Sabe, também, que eu gosto muito de você? Disse que não tinha certeza, mas desconfiava. Ele insistiu: — “Pois gosto e muito, mais do que você pensa”. E, súbito, fez-lhe a pergunta que a surpreendeu e deixou sem fala: — “Quer casar comigo?”.

A ESPOSA

Durante alguns momentos, ela não soube o que dizer, não soube o que pensar. Balbuciou:

— Quer dizer, queria. Mas como? E sua mulher? Mas Norberto estava preparado para a pergunta: — “O negócio é o seguinte, meu anjo: minha mulher está muito mal”. E era verdade. A mulher de Norberto era muito franzina, um peito cavado, asmática, tinha uma vida de sacrifício. No inverno, pagava todos os pecados, qualquer resfriado bobo a deixava sem ar e tinha sufocações tremendas. Vivia em casa, estiolando-se, cada dia pior. Há coisa de oito meses, fizera uma radiografia do estômago. Constatara-se a úlcera; e, depois, uma do pulmão que revelara a tuberculose. Chocada com essas variedades de doenças, de provações, Julinha deixou escapar a exclamação: — “Que horror!”. Norberto prosseguiu:

— Queres ver uma coisa? Hoje eu a deixei pondo sangue pela boca. E não se sabe se a hemorragia é da úlcera do estômago ou do pulmão. — Coitada! — O médico já avisou que ela não dura muito. Uns três ou quatro meses. E talvez morra antes, de um colapso. Uma calamidade. Mas o que eu queria te dizer era o seguinte: tu gostas de mim e eu de ti; e te dou minha palavra que, logo que possa, me casarei contigo. Tu esperas? Julinha ergueu o rosto e disse, com muita doçura: — Espero.

O OUTRO

A partir de então, sua vida foi uma espera de todos os dias, horas e minutos. Havia no escritório um outro companheiro interessado em conquistá-la. Era o Queiroz. Tomara-se de amores pela menina e, muito obstinado, não a deixava em paz. Não fosse a súbita declaração de Norberto, que ela preferia, e talvez tivesse admitido um namoro, a título experimental, com o Queiroz. Mas Norberto, vendo o assédio do outro, se antecipara. E, no dia seguinte, quando o Queiroz reiterou um antigo convite para um “cineminha”, a garota pôs as cartas na mesa: — Tem santíssima paciência, mas não pode ser. Eu gosto de outro. — Não acredito! E ela: “Te juro”. Como o rapaz teimasse na incredulidade, fez o juramento extremo: “Quero ver minha mãe morta, se não é verdade”.

Atônito, ele balbuciou a pergunta: “Mas quem é o cara?”. — Segredo. — Ué! Julinha acabou se irritando: “Além disso, eu não tenho que dar satisfação de minha vida”. O rapaz saiu dali amargo, depois de rosnar: “Esse negócio está me cheirando a homem casado”. E o fato é que, desde então, ele passou a vigiar ferozmente a pequena. Soube que Norberto e Julinha tinham sido vistos, depois do serviço, no bar da esquina. Esbravejou: — Cachorro!

O MARTÍRIO

Sempre que chegava ao emprego, Julinha olhava para a mesa de Norberto. Quando ele não vinha, perguntava a si mesma: “Será que ele não veio porque a mulher dele morreu?”. Corria ao contínuo: — Quedê seu Norberto? — Foi tomar café. Ela sabia então que a outra estava viva. Por causa do controle do Queiroz, os dois procuravam disfarçar tanto quanto possível. Com sua lógica de mulher, Julinha ponderava: “Afinal de contas, você é um homem casado e eu sou uma moça de família”. Por outro lado, o sigilo que era obrigada a manter constituía um elemento de mistério, interesse, excitação. E assim, dias após dias, Julinha acompanhava à distância o martírio da outra. Às vezes, Norberto ia à rua telefonar para ela e dramatizava: “Minha mulher está que é só pele e osso. Não sei como ainda vive”. A princípio, Julinha tinha escrúpulos de esperar e mesmo desejar a morte da infeliz. Mas, com o correr dos dias, o hábito de falar no assunto a sensibilizou. E, um dia, surpreendeu-se a si mesma: “No duro, no duro, me responde. Ela vai até quando, mais ou menos?”. Norberto fez os cálculos: — Uns quinze dias. Em casa, no quarto, Julinha pôs-se a imaginar: ”Quinze dias. Mais uns seis meses etc. Daqui a um ano posso estar casada”. Mas os quinze dias se passaram. E nada. No telefone, ela perguntou, com uma irritação que procurava dissimular: “Como é, fulano? Você disse quinze dias e quando acaba…”. Do outro lado do fio ele desabafava: — Pois é. Que espeto! Sabe que eu estou besta com a resistência? O médico disse hoje que, assim, nunca viu. Julinha suspirou: “Paciência. Paciência”. Mas já começava a admitir mesmo que o estado da outra não fosse tão grave assim. E, por fim, interpelou Norberto: “Quem sabe se você não está me tapeando?”. Ele jurou que não, deu a palavra de honra. Julinha, deprimida, fez a revelação: — Olha que eu já estou fazendo despesas com o enxoval. Comprei muita coisa. Veja lá! Ele, seguro de si e do destino, foi categórico: “Ótimo, ótimo. Pode ir comprando tudo. É bom, sim. E o vestido de noiva eu faço questão de te dar. Quero um bacana”.

AGONIA

Mais quinze dias e a esposa de Norberto, apesar da úlcera, da tuberculose e da asma, resistia. Ele, desesperado e sentindo que a pequena duvidava, propôs-lhe: “Vamos fazer o seguinte: vou arranjar um pretexto do serviço e te levo lá em casa. Queres?”. Julinha, que já se julgava vítima de uma mistificação, disse: “Pois quero”. No dia seguinte, entrava na casa da rival. E seu estômago se contraiu quando viu a outra no fundo da cama. Era, de fato, um esqueleto. Um esqueleto com um leve, muito leve, revestimento de pele. Parecia incrível que aquela criatura ainda estivesse respirando, ainda vivesse. Na primeira oportunidade, Norberto soprou-lhe: — Não te disse? Batata, meu anjo. É um fenômeno de resistência. Qualquer dia, morre. Coincidiu que o médico aparecesse e, falando com Norberto e Julinha, foi terminante: “É um milagre, sua mulher já devia estar morta”. Julinha, impressionada, sugeriu: “Deve ser um sacrifício a vida dessa criatura. Um martírio”. O médico admitiu com a voz cava: — Natural. E continuou a espera. Então, pouco a pouco, Julinha se desesperou.

Começava a admitir na sua meditação que a outra não morresse nunca, que se tornasse definitivamente uma múmia. O Queiroz, teimoso, não cessava o assédio. E, sem querer, ela já o tratava de outra maneira, quase com afeto. Ele era positivo: “Eu me caso contigo em dois meses”. Julinha adotou uma atitude que não deixava de ser um estímulo. Disse: “Deixa o barco correr”. Dias depois, foi mais longe: — Te dou a resposta dentro de um mês.

A MORTE

Esperava que, dentro desse prazo, a outra morresse. Pois bem. Passou-se o mês e nada. Perdeu a paciência: “Não interessa. Estou bancando a palhaça”. O Queiroz, que contava os dias na folhinha, esperou-a sôfrego: “Como é? Já decidiste?”. Julinha teve um fundo suspiro:

— Já.

— E então?

— Sim.

Combinaram ali mesmo, em voz baixa, tudo. Ele, agitado, queria o máximo de rapidez, e batia, sobretudo numa tecla: “Dois meses, no máximo”. Esfregou a mão, feliz, quando soube que Julinha já preparara muita coisa do enxoval. Acabou soprando: “Vem cá um instantinho”. Levou-a ao corredor e deu-lhe um beijo na boca. Voltando ao escritório, saiu de mesa em mesa, anunciando: “Estamos noivos”. Foi uma farra entre os colegas. De repente, bate o telefone: Julinha atende e… Teve um choque, quando reconheceu a voz de Norberto. Falando baixo, com a boca encostada no telefone, Norberto anunciava: — Minha mulher entrou em agonia. Agora é batata. Questão de minutos. Um beijo pra ti.

— E desligou.

Por alguns instantes ela não soube o que fazer. Numa alegria lancinante, tinha os olhos marejados, já esquecida do compromisso com o Queiroz. E, quando este veio lhe falar, ela não teve o mínimo tato. Disse- lhe à queima-roupa:

— “Olha, nada feito. Você me desculpa” etc. etc. Ele, branco, ainda insistiu:

— “Você não pode fazer isso comigo. Eu não sou nenhum moleque”. Mas quando se convenceu que a tinha perdido, não teve dúvidas. Era nortista, afundou-lhe o punhal num dos seios. Julinha expirou, ali mesmo, antes que a assistência chegasse. Pouco depois, batia o telefone. Era de novo Norberto, que vinha avisar que a esposa morrera, afinal. Mas ninguém, ali, teve cabeça para atender. Norberto acabou desistindo. Voltou para junto da esposa morta, com a natural compostura de um viúvo. E fez, para os presentes, o seguinte comentário: — Quem morre descansa.

(Nelson Rodrigues)


53 - A REPARTIÇÃO DOS PÃES

Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado, ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.

Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo, sonhador e resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem – menos ficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros, outros cavalos.

Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós…

Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.

A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.

Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. ‘Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.

Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.

Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tornava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.

Pão é amor entre estranhos.

(Clarice Lispector)


52- BROTINHO INDÓCIL

A insistência daqueles chamados já estava me enchendo a paciência (isto foi há alguns anos). Toda a vez era a mesma voz infantil e a mesma teimosia:

— Mas eu nunca vou à cidade, minha filha. Porque é que você não toma juízo e não esquece essa bobagem…

A resposta vinha clara, prática, persuasiva:

— Olha que eu sou um broto muito bonitinho… E depois, não é nada do que você pensa não, seu bobo. Eu quero só que você autografe para mim a sua “Antologia Poética”, morou?

Morar eu morava. É danadamente difícil ser indelicado com uma mulher, sobretudo quando já se facilitou um bocadinho. Aventei a hipótese:

— Mas. . . e se você for um bagulho horrível? Não é chato para nós ambos?

A risada veio límpida como a própria verdade enunciada:

— Sou uma gracinha.

Mnhum – mnhum. Comecei a sentir-me nojento, uma espécie de Nabokov “avant-la-lettre”, com aquela Lolita de araque a querer arrastar-me para o seu mundo de ninfete. Não, resistiria.

— Adeus. Vê se não telefona mais, por favor. . .

— Adeus. Espero você às 4, diante da ABI. Quando você vir um brotinho lindo você sabe que sou eu. Você, eu conheço. Tenho até retratos seus. . .

Não fui, é claro. Mas o telefone no dia seguinte tocou.

— Ingrato . . .

— Onde é que você mora, hein?

— Na Tijuca. Por quê?

— Por nada. Você não desiste, não é?

— Nem morta.

— Está bem. São 3 da tarde; às 4 estarei na porta da ABI. Se quiser dar o bolo, pode dar. Tenho de toda maneira que ir à cidade.

— Malcriado. . . Você vai cair duro quando me vir.

Desta vez fui. E qual não é minha surpresa quando, às 4 em ponto, vejo aproximar-se de mim a coisinha mais linda do mundo: um pouco mais de um metro e meio de mulherzinha em uniforme colegial, saltos baixos e rabinho de cavalo, rosto lavado, olhos enormes: uma graça completa. Teria, no máximo, 13 anos. Apresentou-me sorridente o livro:

— Põe uma coisa bem bonitinha para mim, por favor?…

E como eu lhe respondesse ao sorriso:

— Então, está desapontado?

Escrevi a dedicatória sem dar-lhe trela. Ela leu atentamente, teve um muxoxo:

— Ih, que sério. . .

Embora morto de vontade de rir, contive-me para retorquir-lhe:

— É, sou um homem sério. E daí?

O “e daí” é que foi a minha perdição. Seus olhos brilharam e ela disse rápido:

— Daí que os homens sérios podem muito bem levar brotinhos ao cinema…

Olhei-a com um falso ar severo:

— Você está vendo aquele Café ali? Se você não desaparecer daqui imediatamente eu vou àquele Café, ligo para sua mãe ou seu pai e digo para vir buscar você aqui de chinelo, você está ouvindo? De chinelo!

Ela me ouviu, parada, um arzinho meio triste como o de uma menina a quem não se fez a vontade. Depois disse, devagar, olhando-me bem nos olhos:

— Você não sabe o que está perdendo. . .

E saiu em frente, desenvolvendo, para o lado da Avenida.

(Vinicius de Moraes)


51 - O CHURRASCO

Cada vez chego mais à conclusão que não existe nada mais melindroso do que um churrasco caseiro. E, ao mesmo tempo, relaxante.

Sim, porque no Brasil todo mundo entende de duas coisas: ou é metido a ser técnico de futebol ou a fazer churrasco. Têm os que sabem. E têm os outros. E é muito difícil você ver alguém fazendo um churrasco e não dar pelo menos um palpite. E o churrasqueiro de plantão sabe que, se sucumbir ao primeiro investimento alheio, terá de aturar o chato até o fim da tarde.

Os palpites já começam na hora de acender o fogo.

– Você não tem aquele negocinho para colocar embaixo, que fica pegando fogo?

– Com jornal! Pega os classificados!

– O Caderno2, não!!!

– Se não abanar, não vai pegar. Vai por mim.

– Colocou muito carvão. Vai sufocar o fogo. Não disse?

– Tá muito alto. Joga água!

– Não falei para não jogar água? Olha aí, apagou.

– Você é que não abanou. Dá licença?

Fogo pronto, todo mundo já na segunda caipirinha, as esposas lá do outro lado. Se tem uma coisa que mulher não entende é de churrasco. Participam, no máximo, com a salada e os gritos de: amor, traz mais um pano de prato?

Aí começam os palpites pra valer:

– Se eu fosse você, colocava a linguiça na parte de baixo.

– O quê??? Vai fatiar a picanha? Peloamordedeus, isso é uma infâmia!

– Olha, sem querer ser chato, mas eu acho melhor colocar a gordura para o lado de baixo. Depois virar. E não virar mais.

– O problema do lombo é que demora mais. Precisa ficar embaixo.

Muita gordura, meu.

– Tá vendo?, pinga a gordura e o fogo sobe. Assim não vai dar. Joga a água.

– Limão? Na picanha?

– Aquela linguiça ali já não está boa? Cadê o pão?

– O que é isso? Salmoura? No meu churrasco, não!!!

– Mas não fui eu quem ficou de comprar o pão. Clotilde! Não tem pão!!!

– Me dá licença? Posso virar a costela? O que é isso que você colocou aqui? Orégano??? Tá doido, cara?

– Salmoura, onde já se viu…

– De peixe eu entendo. Só sal e limão. Não, cara, sal grosso, não. Sal fino. Põe por dentro. Assim, ó. Tem papel laminado, não?

Já está todo mundo ali a ponto de enfiar o espeto no colega de repartição quando começam a chegar as crianças.

– Já tem linguiça, paiê?

– Já disse que eu chamo. É surdo?

É quando chega o colega retardatário e, antes de cumprimentar?

– Esse fogo tá muito alto. Com licença. Se tem uma coisa que eu entendo é de churrasco, Edgar. Deixa comigo. Quem é que está fazendo a caipirinha? Muito açúcar. Tá um melado isso aqui.

– Põe mais carvão, Souzinha.

– Queimei o dedo!

– Sei não, eu, por mim, virava essa picanha. Vai torrar, cara.

– Você precisa comprar uma faca melhor. Olha aí. Isso aqui está estragando a carne.

– Joaninha, cadê a faca boa? Aquela que o seu pai me deu?

– Cuidado que tá quente, filho. Não disse? Não me ouve…

– Mas não tem nem uma manteiguinha para passar na batata, Nestor?

– Clotilde!!! Eu já não disse que margarina não serve? Olhaí, derrete muito rápido, esfria a batata. Ah, meu Deus do céu!

E por aí vai, até escurecer e o fogo apagar de vez.

Existe uma teoria psicanalítica de que quem faz churrasco não precisa fazer terapia. Que os grandes e amadores churrasqueiros são todos pessoas muito bem resolvidas.

Deve ser verdade, pois colocam avental com uma feminilidade cativante. Ficam – dois ou três homenzarrões abraçados – olhando por horas e horas para o fogo ardente, brigando e discutindo como se fossem marido e mulher. Já notou? Já notou quando um queima o dedo, com que carinho é tratado pelos outros? Já vi barbudo chupar o dedo do outro ali, ao lado das brasas da amizade.

Se não houvesse o churrasco caseiro, os homens seriam muito mais tristes, muito mais violentos.

Fazer um churrasco num sábado resolve todos os problemas da firma, do casamento e dos filhos. O homem vira um herói de si mesmo.

(Mário Prata)


50 - CRÔNICA DO AMOR

Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário os honestos, simpáticos e não fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo a porta.

O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão. O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar.

Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano. Isso são só referenciais.

Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca.

Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera.

Você ama aquela petulante. Você escreveu dúzias de cartas que ela não respondeu, você deu flores que ela deixou a seco.

Você gosta de rock e ela de chorinho, você gosta de praia e ela tem alergia a sol, você abomina Natal e ela detesta o Ano Novo, nem no ódio vocês combinam. Então?

Então, que ela tem um jeito de sorrir que o deixa imobilizado, o beijo dela é mais viciante do que LSD, você adora brigar com ela e ela adora implicar com você. Isso tem nome.

Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai e não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra no armário. Ele não emplaca uma semana nos empregos, está sempre duro, e é meio galinha. Ele não tem a menor vocação para príncipe encantado e ainda assim você não consegue despachá-lo.

Quando a mão dele toca na sua nuca, você derrete feito manteiga. Ele toca gaita na boca, adora animais e escreve poemas. Por que você ama este cara?

Não pergunte pra mim; você é inteligente. Lê livros, revistas, jornais. Gosta dos filmes dos irmãos Coen e do Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica também tem seu valor.

É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo tem todas as curvas no lugar. Independente, emprego fixo, bom saldo no banco. Gosta de viajar, de música, tem loucura por computador e seu fettucine ao pesto é imbatível.

Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém e adora sexo. Com um currículo desse, criatura, por que está sem um amor?

Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados.

Não funciona assim.

Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo que o Amor tem de indefinível.

Honestos existem aos milhares, generosos têm às pencas, bons motoristas e bons pais de família, tá assim, ó!

Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor da sua vida é! Pense nisso. Pedir é a maneira mais eficaz de merecer. É a contingência maior de quem precisa.

(Arnaldo Jabor)


49 - SEJA UM IDIOTA

A idiotice é vital para a felicidade.

Gente chata essa que quer ser séria, profunda e visceral sempre. Putz! A vida já é um caos, por que fazermos dela, ainda por cima, um tratado? Deixe a seriedade para as horas em que ela é inevitável: mortes, separações, dores e afins.

No dia-a-dia, pelo amor de Deus, seja idiota! Ria dos próprios defeitos. E de quem acha defeitos em você. Ignore o que o boçal do seu chefe disse. Pense assim: quem tem que carregar aquela cara feia, todos os dias, inseparavelmente, é ele. Pobre dele.

Milhares de casamentos acabaram-se não pela falta de amor, dinheiro, sexo, sincronia, mas pela ausência de idiotice. Trate seu amor como seu melhor amigo, e pronto.

Quem disse que é bom dividirmos a vida com alguém que tem conselho pra tudo, soluções sensatas, mas não consegue rir quando tropeça?

hahahahahahahahaha!...

Alguém que sabe resolver uma crise familiar, mas não tem a menor ideia de como preencher as horas livres de um fim de semana? Quanto tempo faz que você não vai ao cinema?

É bem comum gente que fica perdida quando se acabam os problemas. E daí, o que elas farão se já não têm por que se desesperar?

Desaprenderam a brincar. Eu não quero alguém assim comigo. Você quer? Espero que não.

Tudo que é mais difícil é mais gostoso, mas... a realidade já é dura; piora se for densa.

Dura, densa, e bem ruim.

Brincar é legal. Entendeu?

Esqueça o que te falaram sobre ser adulto, tudo aquilo de não brincar com comida, não falar besteira, não ser imaturo, não chorar, não andar descalço, não tomar chuva.

Pule corda!

Adultos podem (e devem) contar piadas, passear no parque, rir alto e lamber a tampa do iogurte.

Ser adulto não é perder os prazeres da vida - e esse é o único "não" realmente aceitável.

Teste a teoria. Uma semaninha, para começar.

Veja e sinta as coisas como se elas fossem o que realmente são: passageiras. Acorde de manhã e decida entre duas coisas: ficar de mau humor e transmitir isso adiante ou sorrir...

Bom mesmo é ter problema na cabeça, sorriso na boca e paz no coração!

Aliás, entregue os problemas nas mãos de Deus e que tal um cafezinho gostoso agora?

A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso cante, chore, dance e viva intensamente antes que a cortina se feche!

(Arnaldo Jabor)


48 - O HOMEM NU

Ao acordar, disse para a mulher:

— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.

— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.

— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.

Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.

Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:

— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.

Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.

Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!

Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:

— Maria, por favor! Sou eu!

Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.

Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.

— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado.

E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!

— Isso é que não — repetiu, furioso.

Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.

— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.

Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:

— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu...

A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:

— Valha-me Deus! O padeiro está nu!

E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:

— Tem um homem pelado aqui na porta!

Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:

— É um tarado!

— Olha, que horror!

— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!

Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.

— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.

Não era: era o cobrador da televisão.

(Fernando Sabino)


47 – DOIS ENTENDIDOS

Dizem que tem uma memória extraordinária e sabe tudo sobre futebol. Suas lembranças desafiam contestação.}

Um dia, porém, viu-se numa reunião em que se achava outro com igual prestígio. E os dois acabaram se defrontando:

— Você se lembra da primeira Copa Roca disputada no Brasil? - perguntou-lhe o outro.

— Se me lembro.

E disse o dia, o mês e o ano.

— Fazia um calor danado.

— Isso mesmo: um calor danado. Lembra-se da formação do time brasileiro?

— Quem é que não se lembra?

Cantou para o outro o time todo. O outro ia confirmando com a cabeça. Fez apenas uma ressalva quanto ao extrema-esquerda.

— Eu sei: mas estou falando o time titular. Agora vou lhe dizer os reservas.

Declamou a lista dos reservas, e sugeriu, por sua vez:

— Você naturalmente se lembra da formação do time argentino.

O outro embatucou: o time argentino? Não, isso ninguém era capaz de dizer.

— Pois então tome lá.

E recitou o time argentino. O outro, meio ressabiado, procurou recuperar o terreno perdido:

— Para nomes não sou muito bom. Mas me lembro que o goleiro argentino segurou um pênalti. - Um pênalti mal cobrado, foi por isso: faltavam sete minutos para acabar o jogo.

O outro, como que ocasionalmente, disse quem cobrara o pênalti, fazendo nova investida:

— E lhe digo mais: o juiz apitou quinze "fouls" contra nós no primeiro tempo, dezessete contra eles. No segundo tempo...

— Está aí; isso eu não sou capaz de garantir. Tudo mais sobre o jogo eu lhe digo. Aliás, sobre esse jogo, ou qualquer outro que você quiser, de 1929 para cá. Mas essa história de número de "fouls". . Como é que você sabe disso com tanta certeza?

— Sei — tornou o outro, triunfante — porque fui o juiz da partida.

Com essa ele não contava. O juiz da partida.

— Como é mesmo o seu nome?

Ficou a rolar na língua o nome do outro.

— Você tinha algum apelido?

O outro deu uma gargalhada:

--- Juiz, com apelido? Naquele tempo eu já me fazia respeitar.

— Sei, sei — e ele sacudiu a cabeça, pensativo.

— Engraçado, me lembro perfeitamente do juiz, não se parecia com você. Chamava-se... Espera aí: se não me falha a memória...

— Ela costuma falhar, meu velho.

Ao redor a expectativa dos circunstantes crescia, ante o duelo dos dois entendidos.

—...o juiz era grande, pesadão, anulou um gol nosso, houve um começo de sururu...

— Emagreci muito desde então. E anulei o gol porque já tinha apitado quando ele chutou. Houve realmente um ligeiro incidente, mas fiz valer minha autoridade e o jogo prosseguiu.

— Você já tinha apitado...

— Já tinha apitado.

Os dois se olharam em silêncio.

— Quer dizer que quem apitou aquele jogo foi você - recomeçou ele, intrigado.

— Fui eu. E lhe digo mais: quando Fausto fez aquele gol de fora da área...

— Já na prorrogação.

— Na prorrogação: quiseram protestar dizendo que ele estava impedido...

— Não estava impedido.

— Eu sei que não estava. Tanto assim que não anulei. Mesmo porque, a regra naquele tempo era diferente.

— Nem naquele tempo nem hoje nem nunca aquilo seria impedimento. Se o juiz me anula aquele gol...

—...teria que anular também o primeiro gol dos argentinos...

—...que foi feito exatamente nas mesmas condições.

Calaram-se um instante, medindo forças. Mas o outro teve a infelicidade de acrescentar:

— Mesmo que o bandeirinha tivesse assinalado...

Ele saltou de súbito, brandindo o dedo no ar:

— Já sei! isso mesmo! Você não foi juiz coisa nenhuma! Você era o bandeirinha! Me lembro muito bem de você: era mais gordo mesmo, todo agitadinho, corria se requebrando... Tinha o apelido de Zuzú.

O outro não teve forças para negar e se rendeu à memória do adversário. Mesmo porque, encafifado, fazia uma cara de Zuzú.

(Fernando Sabino)


46 - EU TE AMO... NÃO DIZ TUDO!

Você sabe que é amado(a) porque lhe disseram isso?

A demonstração de amor requer mais do que beijos, sexo e palavras.

Sentir-se amado é sentir que a pessoa tem interesse real na sua vida,

Que zela pela sua felicidade,

Que se preocupa quando as coisas não estão dando certo,

Que se coloca a postos para ouvir suas dúvidas,

E que dá uma sacudida em você quando for preciso.

Ser amado é ver que ele(a) lembra de coisas que você contou dois anos atrás,

É ver como ele(a) fica triste quando você está triste,

E como sorri com delicadeza quando diz que você está fazendo uma tempestade em copo d'água.

Sente-se amado aquele que não vê transformada a mágoa em munição na hora da discussão.

Sente-se amado aquele que se sente aceito, que se sente inteiro.

Aquele que sabe que tudo pode ser dito e compreendido.

Sente-se amado quem se sente seguro para ser exatamente como é,

Sem inventar um personagem para a relação,

Pois personagem nenhum se sustenta muito tempo.

Sente-se amado quem não ofega, mas suspira;

Quem não levanta a voz, mas fala;

Quem não concorda, mas escuta.

Agora, sente-se e escute: Eu te amo não diz tudo!

(Arnaldo Jabor)


45 - A MAIS PURA VERDADE...

A medida que envelheço e convivo com outras, valorizo mais ainda as mulheres que estão acima dos 30. Elas não se importam com o que você pensa, mas se dispõem de coração se você tiver a intenção de conversar. Se ela não quer assistir ao jogo de futebol na tv, não fica à sua volta resmungando, vai fazer alguma coisa que queira fazer...

E geralmente é alguma coisa bem mais interessante. Ela se conhece o suficiente para saber quem é, o que quer e quem quer. Elas não ficam com quem não confiam. Mulheres se tornam psicanalistas quando envelhecem.

Você nunca precisa confessar seus pecados... elas sempre sabem... Ficam lindas quando usam batom vermelho. O mesmo não acontece com mulheres mais jovens... Mulheres mais velhas são diretas e honestas.

Elas te dirão na cara se você for um idiota, caso esteja agindo como um!

Você nunca precisa se preocupar onde se encaixa na vida dela. Basta agir como homem e o resto deixe que ela faça... Sim, nós admiramos as mulheres com mais de 30 anos! Infelizmente isto não é recíproco, pois para cada mulher com mais de 30 anos, estonteante, bonita, bem apanhada e sexy, existe um careca, pançudo em bermudões amarelos bancando o bobo para uma garota de 19 anos...

Senhoras, eu peço desculpas! Para todos os homens que dizem: "Porque comprar a vaca, se você pode beber o leite de graça?", aqui está a novidade para vocês: Hoje em dia 80% das mulheres são contra o casamento e sabem por quê?

"Porque as mulheres perceberam que não vale a pena comprar um porco inteiro só para ter uma linguiça!".

Nada mais justo!

(Arnaldo Jabor)


44 - RELACIONAMENTOS

Sempre acho que namoro, casamento, romance, tem começo, meio e fim. Como tudo na vida.

Detesto quando escuto aquela conversa:

- Ah, terminei o namoro...

- Nossa, estavam juntos há tanto tempo...

- Cinco anos.... que pena... acabou...

- é... não deu certo...

Claro que deu! Deu certo durante cinco anos, só que acabou. E o bom da vida, é que você pode ter vários amores.

Não acredito em pessoas que se complementam. Acredito em pessoas que se somam.

Às vezes você não consegue nem dar cem por cento de você para você mesmo, como cobrar cem por cento do outro?

E não temos essa coisa completa.

Às vezes ela é fiel, mas é devagar na cama.

Às vezes ele é carinhoso, mas não é fiel.

Às vezes ele é atencioso, mas não é trabalhador.

Às vezes ela é muito bonita, mas não é sensível.

Tudo junto, não vamos encontrar.

Perceba qual o aspecto mais importante para você e invista nele.

Pele é um bicho traiçoeiro. Quando você tem pele com alguém, pode ser o papai com mamãe mais básico que é uma delícia.

E às vezes você tem aquele sexo acrobata, mas que não te impressiona...

Acho que o beijo é importante... e se o beijo bate... se joga... se não bate... mais um Martini, por favor... e vá dar uma volta.

Se ele ou ela não te quer mais, não force a barra. O outro tem o direito de não te querer.

Não brigue, não ligue, não dê pití. Se a pessoa tá com dúvidas, problema dela, cabe a você esperar... ou não.

Existe gente que precisa da ausência para querer a presença.

O ser humano não é absoluto.

Ele titubeia, tem dúvidas e medos, mas se a pessoa REALMENTE gostar, ela volta. Nada de drama.

Que graça tem alguém do seu lado sob pressão?

O legal é alguém que está com você, só por você. E vice-versa. Não fique com alguém por pena. Ou por medo da solidão. Nascemos sós. Morremos sós.

Nosso pensamento é nosso, não é compartilhado. E quando você acorda, a primeira impressão é sempre sua, seu olhar, seu pensamento.

Tem gente que pula de um romance para o outro. Que medo é este de se ver só, na sua própria companhia?

Gostar dói. Muitas vezes você vai sentir raiva, ciúmes, ódio, frustração... Faz parte. Você convive com outro ser, um outro mundo, um outro universo.

E nem sempre as coisas são como você gostaria que fosse... A pior coisa é gente que tem medo de se envolver.

Se alguém vier com este papo, corra, afinal você não é terapeuta. Se não quer se envolver, namore uma planta. É mais previsível.

Na vida e no amor, não temos garantias.

Nem toda pessoa que te convida para sair é para casar. Nem todo beijo é para romancear.

E nem todo sexo bom é para descartar... ou se apaixonar... ou se culpar...

Enfim...quem disse que ser adulto é fácil ????

(Arnaldo Jabor)


43 - ESPERANÇA

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano

Vive uma louca chamada Esperança

E ela pensa que quando todas as sirenas

Todas as buzinas

Todos os reco-recos tocarem

Atira-se

E

— ó delicioso vôo!

Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,

Outra vez criança...

E em torno dela indagará o povo:

— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?

E ela lhes dirá

(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)

Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:

— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

(Mário Quintana)


42 – NOS PRIMÓRDIOS

Era só água e sol de primeiro este recanto. Meninos cangavam sapos. Brincavam de primo com prima. Tordo ensinava o brinquedo "primo com prima não faz mal: finca finca". Não havia instrumento musical. Os homens tocavam gado. As coisas ainda inominadas. Como no começo dos tempos.

Logo se fez a piranha. Em seguida os domingos e feriados. Depois os cuiabanos e os beira-corgos. Por fim o cavalo e o anta batizado.

Nem precisaram dizer crescei e multiplicai. Pois já se faziam filhos e piadas com muita animosidade.

Conhecimentos vinham por infusão pelo faro dos bugres pelos mascates.

O homem havia sido posto ali nos inícios para campear e hortar. Porém só pensava em lombo de cavalo. De forma que só campeava e não hortava.

Daí que campear se fez de preferência por ser atividade livre e andeja. Enquanto que hortar prendia o ente no cabo da enxada. O que não era bom.

No começo contudo enxada teve seu lugar. Prestava para o peão encostar-se nela a fim de prover seu cigarrinho de palha. Depois, com o desaparecimento do cigarro de palha, constatou-se a inutilidade das enxadas.

— O homem tinha mais o que não fazer!

Foi muito soberano mesmo no começo dos tempos este cortado. Burro não entrava em seus pastos. Só porque burro não pega perto.* Porém já hoje há quem trate os burros como cavalo. O que é uma distinção.

*Burro não pega perto é expressão pantaneira. Nas lides de campear o pantaneiro usa o cavalo, que é veloz e alcança a rês desgarrada rapidamente. O cavalo pega perto. Mas o burro, não sendo veloz, alcança longe a rês desgarrada. Por isso se diz que o burro não pega perto. (N. do A.)

(Manoel de Barros)


41 - SENTIMENTOS

Na hora de cantar todo mundo enche o peito nas boates, nos bares, levanta os braços, sorri e dispara: “eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também”.

No entanto, passado o efeito do uísque com energético e dos beijos descompromissados, os adeptos da geração ´tribalista´ se dirigem aos consultórios terapêuticos, ou alugam os ouvidos do amigo mais próximo e reclamam de solidão, ausência de interesse das pessoas, descaso e rejeição.

A maioria não quer ser de ninguém, mas quer que alguém seja seu.

Não dá, infelizmente, para ficar somente com a cereja do bolo - beijar de língua, namorar e não ser de ninguém. Para comer a cereja é preciso comer o bolo todo e nele, os ingredientes vão além do descompromisso, como: não receber o famoso telefonema no dia seguinte, não saber se está namorando mesmo depois de sair um mês com a mesma pessoa, não se importar se o outro estiver beijando outra, etc, etc, etc.

Desconhece a delícia de assistir a um filme debaixo das cobertas num dia chuvoso comendo pipoca com chocolate quente, o prazer de dormir junto abraçado, roçando os pés sob as cobertas e a troca de cumplicidade, carinho e amor.

Namorar é algo que vai muito além das cobranças. É cuidar do outro e ser cuidado por ele, é telefonar só para dizer bom dia, ter uma boa companhia para ir ao cinema de mãos dadas, transar por amor, ter alguém para fazer e receber cafuné, um colo para chorar, uma mão para enxugar lágrimas, enfim, é ter ´alguém para amar´.. Somos livres para optarmos! E ser livre não é beijar na boca e não ser de ninguém. É ter coragem, ser autêntico e se permitir viver um sentimento...

(Arnaldo Jabor)


40 - INTERESSANTE...

Sobre estar sozinho

Não é apenas o avanço tecnológico que marcou o inicio deste milênio. As relações afetivas também estão passando por profundas transformações e revolucionando o conceito de amor.

O que se busca hoje é uma relação compatível com os tempos modernos, na qual existe individualidade, respeito, alegria e prazer de estar junto, e não mais uma relação de dependência, em que um responsabiliza o outro pelo seu bem-estar.

A idéia de uma pessoa ser o remédio para nossa felicidade, que nasceu com o romantismo, está fadada a desaparecer neste início de século. O amor romântico parte da premissa de que somos uma fração e precisamos encontrar nossa outra metade para nos sentirmos completos.

Muitas vezes ocorre até um processo de despersonalização que, historicamente, tem atingido mais a mulher. Ela abandona suas características, para se amalgamar ao projeto masculino.

A teoria da ligação entre opostos também vem dessa raiz: o outro tem de saber fazer o que eu não sei. Se for manso, ele deve ser agressivo, e assim por diante. Uma idéia prática de sobrevivência, e pouco romântica, por sinal.

A palavra de ordem deste século é parceria.

Estamos trocando o amor de necessidade, pelo amor de desejo.

Eu gosto e desejo...a companhia, mas não preciso, o que é muito diferente.

Com o avanço tecnológico, que exige mais tempo individual, as pessoas estão perdendo o pavor de ficarem sozinhas, e aprendendo a conviver melhor consigo mesmo.

Elas estão começando a perceber que se sentem frações, mas são inteiras.

O outro, com o qual se estabelece um elo, também se sente uma fração. Não é príncipe ou salvador de coisa nenhuma.

É apenas um companheiro de viagem.

O homem é um animal que vai mudando o mundo, e depois tem de ir se reciclando, para se adaptar ao mundo que fabricou.

Estamos entrando na era da individualidade, o que não tem nada a ver com egoísmo. O egoísta não tem energia própria; ele se alimenta da energia que vem do outro, seja ela financeira ou moral.

A nova forma de amor, ou mais amor, tem nova feição e significado.

Visa a aproximação de dois inteiros, e não a união de duas metades. E ela só é possível para aqueles que conseguirem trabalhar sua individualidade.

Quanto mais o indivíduo for competente para viver sozinho, mais preparado estará para uma boa relação afetiva. A solidão é boa, ficar sozinho não é vergonhoso. Ao contrário, dá dignidade à pessoa. As boas relações afetivas·são ótimas são muito parecido com o ficar sozinho, ninguém exige nada de ninguém e ambos crescem.

Relações de dominação e de concessões exageradas são coisas do século passado. Cada cérebro

é único. Nosso modo de pensar e agir não serve de referência para avaliar ninguém.

Muitas vezes, pensamos que o outro é nossa alma gêmea e, na verdade, o que fizemos foi inventá-lo ao nosso gosto.

Todas as pessoas deveriam ficar sozinhas de vez em quando, para estabelecer um diálogo interno e descobrir sua força pessoal. Na solidão, o indivíduo entende que a harmonia e a paz de espírito só podem ser encontradas dentro dele mesmo, e não a partir do outro. Ao perceber isso, ele se torna menos crítico e mais compreensivo quanto às diferenças, respeitando a maneira de ser de cada um.

O amor de duas pessoas inteiras é bem mais saudável.

Nesse tipo de ligação, há o aconchego, o prazer da companhia e o respeito pelo ser amado.

(Flávio Gikovate, médico psicoterapeuta)

"As grandes idéias de sucesso foram criadas por pessoas que reconheceram um problema e o transformaram em uma oportunidade." [Joseph Sugarman]


39 - FALHAS

"Você já viu alguém que se acha mais inteligente do que na realidade é?

Falo daqueles insuportavelmente "certos". Do tipo papai-sabe-tudo (é, daquele seriado antigo). Sempre desconfie das pessoas que dizem saber tudo.

Você deve conhecer alguns, claro. Eles nunca erram. Nunca falham. Sempre culpam alguém ou alguma coisa, mas eles... eles são perfeitos. Transmitem a idéia - e muitas vezes acreditamos - de que o universo conspira a favor deles. É como se tivessem um toque mágico, divino.

Há pouco, recebi do professor Eleutério Dallazen, do Centro Cultural Brasil Estados Unidos, uma mensagem muito bonita sobre pessoas e suas imperfeições.

Tem tudo a ver com o parágrafo acima. Chama-se "Falhas", a qual repasso para vocês."

"Uma das coisas que fascina na cidade de San Francisco é ela estar localizada sobre a falha de San Andreas, que é um desnível no terreno da região que provoca pequenos abalos sísmicos de vez em quando, e grandes terremotos de tempos em tempos.

Você está deslumbrado, caminhando pela cidade, apreciando a arquitetura vitoriana, a baía, a famosa Golden Gate e, de uma hora para outra, pode perder o chão. Ver tudo sair do lugar, ficar tontinho, tontinho. É pouco provável que vá acontecer justo quando você estiver lá, mas existe a possibilidade. Isso amedronta, mas ao mesmo tempo excita, vai dizer que não?

Assim são também as pessoas interessantes: têm falhas. Pessoas perfeitas são como Viena, uma cidade quase perfeita. Linda, sem fraturas geológicas, onde tudo funciona e você quase morre de tédio.

Pessoas, como cidades, não precisam ser excessivamente bonitas. É fundamental que tenham sinais de expressão no rosto, um nariz com personalidade, um vinco na testa que as caracterize.

Pessoas, como cidades, precisam ser limpas, mas não a ponto de não possuírem máculas. É importante suar na hora do cansaço. Também é bom ter um cheiro próprio, uma camiseta velha para dormir, um jeans quase transparente de tanto que foi usado, um batom que escapou dos lábios depois de um beijo, um rímel que borrou um pouquinho quando você chorou.

Pessoas, como cidades, têm que funcionar, mas não podem ser previsíveis. De vez em quando, sem abusar muito da licença, devem ser insensatas, ligeiramente passionais. Devem demonstrar um certo desatino, ir contra alguns prognósticos, cometer erros de julgamento e pedir perdão depois. Aliás, pedir perdão sempre, para poder ter crédito e errar outra vez.

Pessoas, como cidades, devem dar vontade de visitar, devem satisfazer nossa necessidade de viver momentos sublimes, devem ser calorosas, ser generosas e abrir suas portas. Devem nos fazer querer voltar, porém não devem nos deixar 100% seguros, nunca.

Uma pequena dose de apreensão e cuidado devem provocar. Nunca devem deixar os outros esquecerem que pessoas, assim como cidades, têm rachaduras internas. Portanto, podem surpreender.

Falhas. Agradeça as suas, que é o que humaniza você. E fascina os outros."


38 - RECOMEÇAR

Não importa onde você parou... em que momento da vida você cansou... o que importa é que sempre é possível e necessário "Recomeçar".

Recomeçar é dar uma nova chance a si mesmo... é renovar as esperanças na vida e o mais importante... acreditar em você de novo.

Sofreu muito nesse período? foi aprendizado...

Chorou muito? foi limpeza da alma...

Ficou com raiva das pessoas? foi para perdoá-las um dia...

Sentiu-se só por diversas vezes? é por que fechaste a porta até para os anjos...

Acreditou que tudo estava perdido? era o início da tua melhora...

Pois é...agora é hora de reiniciar...de pensar na luz... de encontrar prazer nas coisas simples de novo.

Um corte de cabelo arrojado...diferente? Um novo curso...ou aquele velho desejo de aprender a pintar...desenhar...dominar o computador... ou qualquer outra coisa...

Olha quanto desafio...quanta coisa nova nesse mundão de meu Deus te esperando.

Tá se sentindo sozinho? besteira...tem tanta gente que você afastou com o seu "período de isolamento"... tem tanta gente esperando apenas um sorriso teu para "chegar" perto de você.

Quando nos trancamos na tristeza... nem nós mesmos nos suportamos... ficamos horríveis... o mal humor vai comendo nosso fígado... até a boca fica amarga.

Recomeçar...hoje é um bom dia para começar novos desafios.

Onde você quer chegar? ir alto...sonhe alto... queira o melhor do melhor... queira coisas boas para a vida... pensando assim trazemos prá nós aquilo que desejamos... se pensamos pequeno... coisas pequenas teremos... já se desejarmos fortemente o melhor e principalmente lutarmos pelo melhor... o melhor vai se instalar na nossa vida.

E é hoje o dia da faxina mental... joga fora tudo que te prende ao passado... ao mundinho de coisas tristes... fotos...peças de roupa, papel de bala...ingressos de cinema bilhetes de viagens... e toda aquela tranqueira que guardamos quando nos julgamos apaixonados... jogue tudo fora... mas principalmente... esvazie seu coração... fique pronto para a vida... para um novo amor...

Lembre-se somos apaixonáveis... somos sempre capazes de amar muitas e muitas vezes... afinal de contas... Nós somos o "Amor"...

" Porque sou do tamanho daquilo que vejo, e não do tamanho da minha altura."

(Carlos Drummond Andrade)


37 - O CAVALO E O PORCO

Um fazendeiro colecionava cavalos e só faltava uma determinada raça.

Um dia ele descobriu que o seu vizinho tinha este determinado cavalo.

Assim, ele atazanou seu vizinho até conseguir comprá-lo. Um mês depois o cavalo adoeceu, e ele chamou o veterinário:

-Bem, seu cavalo está com uma virose, é preciso tomar este medicamento durante 3 dias; no terceiro dia eu retornarei e caso ele não esteja melhor, será necessário sacrificá-lo.

Neste momento, o porco escutava toda a conversa.

No dia seguinte deram o medicamento e foram embora. O porco se aproximou do cavalo e disse:

-Força amigo! Levanta daí, senão você será sacrificado!

No segundo dia, deram o medicamento e foram embora. O porco se aproximou do cavalo e disse:

-Vamos lá amigão, levanta senão você vai morrer! Vamos lá, eu te ajudo a levantar... Upa! Um, dois, três...

No terceiro dia deram o medicamento e o veterinário disse:

-Infelizmente, vamos ter que sacrificá-lo amanhã, pois a virose pode contaminar os outros cavalos.

Quando foram embora, o porco se aproximou do cavalo e disse:

-Cara é agora ou nunca, levanta logo! Coragem! Upa! Upa! Isso, devagar! Ótimo, vamos, um, dois, três, legal, legal, agora mais depressa vai... Fantástico! Corre, corre mais! Upa! Upa! Upa! Você venceu, Campeão!

Então de repente o dono chegou, viu o cavalo correndo no campo e gritou:

-Milagre! O cavalo melhorou. Isso merece uma festa...Vamos matar o porco!

*Ponto de reflexão:*

Isso acontece com freqüência no ambiente de trabalho. Ninguém percebe quem é o funcionário que tem o mérito pelo sucesso. Saber viver sem ser reconhecido é uma arte. Se algum dia alguém lhe disser que seu trabalho não é o de um profissional, lembre-se:

- amadores construíram a Arca de Noé e profissionais, o Titanic.

Procure ser uma pessoa de valor, em vez de ser uma pessoa de sucesso...


36 - PESCARIA

— Fomos uns cinco pescar — conta-nos o amigo que há muito não encontrávamos. Tinha comprado um molinete e, segundo nos confessou, desde menino sonhava em ter o seu próprio molinete. Por isso aceitou o convite.

Quando o encontramos, às 11 horas da noite de sábado, estava cansadíssimo e queria ir dormir. Mesmo assim contou como foi a pescaria.

— Eles me convidaram dizendo que estava dando muito pampo na Barra da Tijuca. Passaram lá em casa às 7, me pegaram e saímos para comprar isca.

Ficaram comprando isca e lá pelas 9 horas entraram num bar para tomar um negócio porque estava ameaçando chuva e era preciso precaução. Às 11 horas, saíram do bar e tinha um camarada na porta vendendo siris.

— Vivos? — perguntamos:

Nosso amigo diz que sim e que, por isso mesmo, era preciso preparar. Ninguém levava comida para a pescaria e, portanto, até que seria bom cozinharem uns siris para fazer o farnel.

Na casa de um dele, a cozinheira foi avisada de que chegariam dentro em pouco com uma centena de siris para preparar. E de fato chegaram, lá pelas duas da tarde.

Foi tudo muito rápido. Às 5 horas os siris estavam prontinhos e todos sentados em volta da mesa, para experimentar. Trouxeram umas cervejas e foram comendo, foram comendo, até que chegou uma hora em que havia mais siris do que fome. Resolveram tomar providências e telefonaram para uns amigos.

— Venham comer siris.

Os amigos chegaram com um violão e uma garrafa de uísque. Uísque vai, uísque vem, deu fome outra vez. Eram oito horas quando a cozinheira salvou a situação com uma panelada de carne-seca com abóbora. Uns sirizinhos antes, como aperitivo, e todos caíram na carne-seca.

Então deu vontade de cantar. Um lá pegou o violão, os outros suas caixas de fósforo e começaram a lembrar sambas antigos.

E nosso amigo, ainda com o caniço e o molinete na mão, confessa:

— Saí de lá agora.

— E a pescaria?

— Pescaria? Que pescaria?

(Stanislaw Ponte Preta)


35 - AMOR SEM ILUSÃO

Conta-se que um jovem caminhava pelas montanhas nevadas da velha Índia, absorvido em profundos questionamentos sobre o amor, sem poder solucionar suas ansiedades.

Ao longo do caminho, à sua frente, percebeu que vinha em sua direção um velho sábio.

E porque se demorasse em seus pensamentos sem encontrar uma resposta que lhe aquietasse a alma, resolveu pedir ao sábio que o ajudasse.

Aproximou-se e falou com verdadeiro interesse:

- Senhor, desejo encontrar minha amada e construir com ela uma família com bases no verdadeiro amor.

Todavia, sempre que me vem à mente uma jovem bela e graciosa e eu a olho com atenção, em meus pensamentos ela vai se transformando rapidamente.

Seus cabelos tornam-se alvos como a neve, sua pele rósea e firme fica pálida e se enche de profundos vincos.

Seu olhar vivaz perde o brilho e parece perder-se no infinito.

Sua forma física se modifica acentuadamente e eu me apavoro.

Desejo saber, meu sábio, como é que o amor poderá ser eterno, como falam os poetas?

Nesse mesmo instante aproxima-se de ambos uma jovem envolta em luto, trazendo no rosto expressões de profunda dor.

Dirige-se ao sábio e lhe fala com voz embargada:

- Acabo de enterrar o corpo de meu pai que morreu antes de completar 50 anos.

Sofro porque nunca poderei ver sua cabeça branca aureolada de conhecimentos.

Seu rosto marcado pelas rugas da experiência, nem seu olhar amadurecido pelas lições da vida.

Sofro porque não poderei mais ouvir suas histórias sábias nem contemplar seu sorriso de ternura.

Não verei suas mãos enrugadas tomando as minhas com profundo afeto.

Nesse momento o sábio dirigiu-se ao jovem e lhe falou com serenidade:

- Você percebe agora as nuanças do amor sem ilusões, meu jovem?

O amor verdadeiro é eterno porque não se apega ao corpo físico, mas se afeiçoa ao ser imortal que o habita temporariamente.

É nesses sentimentos sem ilusões nem fantasias que reside o verdadeiro e eterno amor.

A lição do velho sábio é de grande valia para todos nós que buscamos as belezas da forma física sem observar as grandezas da alma imortal.

O sentimento que valoriza somente as aparências exteriores não é amor, é paixão ilusória.

O amor verdadeiro observa, além da roupagem física que se desgasta e morre, a alma que se aperfeiçoa e a deixa quando chega a hora, para prosseguir vivendo e amando, tanto quanto o permita o seu coração imortal.

Pense nisso!

As flores, por mais belas que sejam, um dia murcham e morrem...

Mas o seu perfume permanece no ar e no olfato daqueles que o souberam guardar em frascos adequados.

O corpo humano, por mais belo e cheio de vida que seja, um dia envelhece e morre.

Mas as virtudes do espírito que dele se liberta continuam vivas nos sentimentos daqueles que as souberam apreciar e preservar, no frasco do coração.


34 – QUASE NADA

Ainda pior que a convicção do não, é a incerteza do talvez, é a desilusão de um quase!

É o quase que me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi.

Quem quase ganhou ainda joga, quem quase passou ainda estuda, quem quase amou não amou.

Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos, nas chances que se perdem por medo, nas idéias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono.

Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna.

A resposta eu sei de cor, está estampada na distância e na frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços, na indiferença dos "bom dia", quase que sussurrados.

Sobra covardia e falta coragem até para ser feliz. A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai.

Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor. Mas não são.

Se a virtude estivesse mesmo no meio-termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza.

O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.

Preferir a derrota prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer.

Para os erros há perdão, para os fracassos, chance, para os amores impossíveis, tempo.

De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma. Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance.

Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo o impeça de tentar.

Desconfie do destino e acredite em você.

Gaste mais horas realizando que sonhando...

Fazendo que planejando...

Vivendo que esperando...

Porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.

(Fernando Pessoa)


33 - TEM COISA MELHOR?

Se apaixonar pela pessoa certa e ser correspondido.

Rir a ponto de não agüentar mais.

Um banho quente num dia de muito frio.

Sem limites em um supermercado.

Aquela encarada de fazer tremer.

Receber e-mail de alguém que você gosta e que não manda nunca.

Dirigir por um lindo caminho.

Escutar sua música favorita tocar no rádio.

Deitar na cama e escutar a chuva cair.

Cheiro de terra molhada.

Pegar aquela chuva de verão e dar um beijo na chuva.

Tomar aquele banho e dormir na sua própria cama depois de acampar durante 4 dias.

Toalhas ainda quentes, recém passadas.

Descobrir que a blusa que você quer está em promoção pela metade do preço.

Um milk-shake de chocolate.

Uma ligação de alguém que está distante.

Um banho de espuma.

Uma boa conversa.

Achar uma nota de R$ 50 no casaco do inverno passado.

Rir de você mesmo(a).

Ligações depois da meia-noite que duram horas.

Rir sem motivo nenhum.

Ter alguém pra dizer o quanto você e linda(o).

Rir de algo que acabou de lembrar.

Amigos.

Acidentalmente ouvir alguém falando bem de você.

Acordar e descobrir que ainda pode dormir por mais algumas horas.

Gastar tempo com os velhos amigos ou fazer novos.

Brincar com o novo bichinho de estimação.

Ter alguém mexendo no seu cabelo.

Sonhar com coisas boas.

Realizar um sonho antigo.

Chocolate quente.

Viajar com os amigos.

Empacotar presentes debaixo da árvore de Natal enquanto come biscoito de Chocolate.

Letras de música no encarte do seu novo CD pra poder cantar junto sem se sentir idiota.

Ir a um ótimo show.

Encarar um(a) lindo(a) desconhecido (a)

Ganhar um jogo super disputado.

Fazer bolo de chocolate e raspar a panela da calda.

Ganhar dos amigos biscoitos feitos em casa.

Segurar na mão de alguém que você realmente gosta.

Encontrar um velho amigo e perceber que algumas coisas (boas ou ruins) nunca mudam.

Ver a expressão no rosto de alguém quando abre o seu tão esperado presente.

Olhar o nascer do sol.

Conseguir enxergar essas pequenas coisas boas da vida e saber dar muito valor a isso.

Ter sorte.

Acordar toda manhã e agradecer a Deus por mais um lindo dia. Muitas pessoas pensam que a felicidade somente será possível depois de alcançar algo, mas a verdade é que deixar para ser feliz amanhã é uma forma de ser infeliz."

(Roberto Shinyashiki)


32 - A GENTE SE ACOSTUMA

"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.

E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.

E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.

E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender cedo a luz.

E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.

A tomar o café correndo porque está atrasado.

A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.

A comer sanduíche porque não dá para almoçar.

A sair do trabalho porque já é noite.

A cochilar no ônibus porque está cansado.

A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone:

"Hoje não posso ir".

A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.

A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo, o que deseja e o de que necessita.

E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.

E a pagar mais do que as coisas valem.

E a saber que cada vez pagará mais.

E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma à poluição.

Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.

À luz artificial de ligeiro tremor.

Ao choque que os olhos levam na luz natural.

Às bactérias de água potável.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.

Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.

Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.

Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.

Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.

E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito, porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.

Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida.

Que aos poucos se gasta, e que se gasta de tanto se acostumar, e se perde de si mesma..."

(Marina Colassanti)


31 – ÉRAMOS MAIS UNIDOS AOS DOMINGOS

As senhoras chegavam primeiro porque vinham diretas da missa para o café da manhã. Assim era que, mal davam as 10, se tanto, vinham chegando de conversa, abancando-se na grande mesa do caramanchão. Naquele tempo pecava-se menos, mas nem por isso elas se descuidavam. Iam em jejum para a missa, confessavam lá os seus pequeninos pecados, comungavam e depois vinham para o café. Daí chegarem mais cedo.

Os homens, sempre mais dispostos ao pecado, já não se cuidavam tanto. Ou antes, cuidavam mais do corpo do que da alma. Iam para a praia, para o banho de sol, os mergulhos, o jogo de bola. Só chegavam mesmo — e invariavelmente atrasados na hora do almoço. Vinham ainda úmidos do mar e passavam a correr pelo lado da casa, rumo ao grande banheiro dos fundos, para lavar o sal, refrescarem-se no chuveiro frio, excelente chuveiro, que só começou a negar água do Prefeito Henrique Dodsworth pra cá.

O casarão, aí por volta das 2 horas, estava apinhado. Primos, primas, tios, tias, tias-avós e netos, pais e filhos, todos na expectativa, aguardando aquela que seria mais uma obra-mestra da lustrosa negra Eulália. Os homens beliscavam pinga, as mulheres falando, contando casos, sempre com muito assunto. Quem as ouvisse não diria que estiveram juntas no domingo anterior, nem imaginaria que estariam juntas no domingo seguinte. As moças, geralmente, na varanda da frente, cochichando bobagens. Os rapazes no jardim, se mostrando. E a meninada, mais afoita, rondando a cozinha, a roubar pastéis, se fosse o caso de domingo de pastéis.

De repente aquilo que Vovô chamava de "ouviram do Ipiranga as margens plácidas". Era o grito de Eulália, que passava da copa para o caramanchão, sobraçando uma fumegante tigela, primeiro e único aviso de que o almoço estava servido. E então todos se misturavam para distribuição de lugares, ocasião em que pais repreendiam filhos, primos obsequiavam primas e o barulho crescia com o arrastar de cadeiras, só terminando com o início da farta distribuição de calorias.

Impossível descrever os pratos nascidos da imaginação da gorda e simpática negra Eulália. Hoje faltam-me palavras, mas naquele tempo nunca me faltou apetite. Nem a mim nem a ninguém na mesa, onde todos comiam a conversar em altas vozes, regando o repasto com cerveja e guaraná, distribuídos por ordem de idade. Havia sempre um adulto que preferia guaraná, havia sempre uma criança teimando em tomar cerveja. Um olhar repreensivo do pai e aderia logo ao refresco, esquecido da vontade. Mauricinho não conversava, mas em compensação comia mais do que os outros.

Moças e rapazes muitas vezes dispensavam a sobremesa, na ânsia de não chegarem atrasados na sessão dos cinemas, que eram dois e, tal como no poema de Drummond, deixavam sempre dúvidas na escolha.

A tarde descia mais calma sobre nossas cabeças, naqueles longos domingos de Copacabana. O mormaço da varanda envolvia tudo, entrava pela sala onde alguns ouviam o futebol pelo rádio, um futebol mais disputado, porque amador, irradiado por locutores menos frenéticos. Lá, nos fundos os bem-aventurados dormiam em redes. Era grande a família e poucas as redes, daí o revezamento tácito de todos os domingos, que ninguém ousava infringir.

E quando já era de noitinha, quando o último rapaz deixava sua namorada no portão de casa e vinha chegando de volta, então começavam as despedidas no jardim, com promessas de encontros durante a semana, coisa que poucas vezes acontecia porque era nos domingos que nos reuníamos.

Depois, quando éramos só nós — os de casa — a negra Eulália entrava mais uma vez em cena, com bolinhos, leite, biscoitos e café. Todos fazíamos aquele lanche, antes de ir dormir. Aliás, todos não. Mauricinho sempre arranjava um jeito de jantar o que sobrara do almoço.

(Stanislaw Ponte Preta)


30 - NEGATIVA

Não acredito em pessoas que se complementam. Acredito em pessoas que se somam.

Às vezes você não consegue nem dar cem por cento de você para você mesmo, como cobrar cem por cento do outro?

Existe gente que precisa da ausência para querer a presença.

O ser humano não é absoluto. Ele titubeia, tem dúvidas e medos, mas se a pessoa REALMENTE gostar, ela volta.

Nada de drama.

(Arnaldo Jabor)


29 – ORGANIZA O NATAL

Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.

Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.

Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento.

A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro.

A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.

Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.

O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.

Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.

A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.

O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.

E será Natal para sempre.

(Carlos Drummond de Andrade)


28 - MOTIVAÇÃO

O cara faz um esforço desgraçado para ficar rico pra quê?

O sujeito quer ficar famoso pra quê?

O indivíduo malha, faz exercícios pra quê?

A verdade é que é a mulher o objetivo do homem.

Tudo que eu quis dizer é que o homem vive em função da mulher.

Vivem e pensam em mulher o dia inteiro, a vida inteira.

Se a mulher não existisse, o mundo não teria ido pra frente.

Homem algum iria fazer alguma coisa na vida para impressionar outro homem, para conquistar sujeito igual a ele, de bigode e tudo.

Um mundo só de homens seria o grande erro da criação.

Já dizia a velha frase que 'atrás de todo homem bem-sucedido existe uma grande mulher'.

O dito está envelhecido. Hoje eu diria que 'na frente de todo homem bem-sucedido existe uma grande mulher'.

É você, mulher, quem impulsiona o mundo.

É você quem tem o poder, e não o homem.

É você quem decide a compra do apartamento, a cor do carro, o filme a ser visto, o local das férias.

Bendita a hora em que você saiu da cozinha e, bem-sucedida, ficou na frente de todos os homens.

E, se você que está lendo isto aqui for um homem, tente imaginar a sua vida sem nenhuma mulher.

Aí na sua casa, onde você trabalha, na rua. Só homens.

Já pensou?

Um casamento sem noiva?

Um mundo sem sogras?

Enfim, um mundo sem metas.

ALGUNS MOTIVOS PELOS QUAIS OS HOMENS GOSTAM TANTO DE MULHERES:

01- O cheirinho delas é sempre gostoso, mesmo que seja só xampu.

02- O jeitinho que elas têm de sempre encontrar o lugarzinho certo em nosso ombro, nosso peito.

03- A facilidade com a qual cabem em nossos braços.

04- O jeito que tem de nos beijar e, de repente, fazer o mundo ficar perfeito.

05- Como são encantadoras quando comem.

06- Elas levam horas para se vestir, mas no final vale a pena.

07- Porque estão sempre quentinhas, mesmo que esteja fazendo trinta graus abaixo de zero lá fora.

08- Como sempre ficam bonitas, mesmo de jeans com camiseta e rabo-de-cavalo.

09- Aquele jeitinho sutil de pedir um elogio.

10- O modo que tem de sempre encontrar a nossa mão.

11- O brilho nos olhos quando sorriem.

12- O jeito que tem de dizer 'Não vamos brigar mais, não..'

13- A ternura com que nos beijam quando lhes fazemos uma delicadeza.

14- O modo de nos beijarem quando dizemos 'eu te amo'.

15- Pensando bem, só o modo de nos beijarem já basta.

16- O modo que têm de se atirar em nossos braços quando choram.

17- O fato de nos darem um tapa, achando que vai doer.

18- O jeitinho de dizerem 'estou com saudades'.

19- As saudades que sentimos delas.

20- A maneira que suas lágrimas têm de nos fazer querer mudar o mundo para que mais nada lhes cause dor.

(Arnaldo Jabor)


27 – DEPOIS DO JANTAR

Também, que idéia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar.

O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio.

— Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?

— Não fumo, respondeu o outro.

Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou o relógio:

— 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.

— Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio.

— Como?

— Já disse. Vai passando o relógio.

— Mas ...

— Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.

— Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.

O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono.

— Agora posso continuar?

— Continuar o quê?

— O passeio. Eu estava passeando, não viu?

— Vi, sim. Espera um pouco.

— Esperar o quê?

— Passa a carteira.

— Mas...

— Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade?

— Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar...

— E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?

— Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.

— Diga.

— Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.

— Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto?

— Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?

— É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa do cara. Sou civilizado, manja?

— Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra.

— Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.

— Não precisa, não precisa.

— Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.

— Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.

— Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?

— Claro.

— Você, o assaltado. Certo?

— Confere.

— Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.

— Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.

— Tá bom, não se discute.

— Vamos, procure nos... nos escaninhos.

— Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.

— Deixe ao menos tirar os documentos?

— Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.

— Nem uma de quinhentos? Uma só.

— Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.

— Nem eu ia aceitar dinheiro de você.

— Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.

Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé.

(Carlos Drummond de Andrade)


26 - A IDIOTICE É VITAL PARA A FELICIDADE

Gente chata essa que quer ser séria, profunda e visceral sempre. Putz! A vida já é um caos, porque fazermos dela, ainda por cima, um tratado? Deixe a seriedade para as horas em que ela é inevitável: mortes, separações, dores e afins. No dia-a-dia, pelo amor de deus, seja idiota! Ria dos próprios defeitos. E de quem acha defeitos em vc. Ignore o que o boçal do seu chefe disse.

Pense assim: quem tem que carregar aquela cara feia, todos os dias, inseparavelmente é ele, pobre dele! Milhares de casamentos acabaram-se não pela falta de amor, dinheiro, sexo, sincronia, mas pela ausência de idiotice. Trate seu amor como seu melhor amigo, e ponto. Quem disse que é bom dividirmos a vida com alguém que tem conselhos para tudo, soluções sensatas, mas não consegue rir quando tropeça?

Hahahaha. Alguém que sabe resolver uma crise familiar, mas não tem a menor ideia de como preencher as horas livres de um fim de semana? Quanto tempo faz que você não vai ao cinema? É bem comum gente que fica perdida quando se acabam os problemas. E daí, o que elas farão se já não têm porque se desesperar? Desaprenderam a brincar. Eu não quero alguém assim comigo. Você quer? Espero que não. Tudo o que é mais difícil é mais gostoso, mas... a realidade já é dura, piora se for densa. Dura, densa e bem ruim.

Brincar é legal. Entendeu? Esqueça o que te falaram sobre ser adulto, tudo aquilo de não brincar com comida, não falar besteiras, não ser imaturo, não chorar, não andar descalço, não tomar chuva. Pule corda! Adultos podem (e devem) contar piadas, passear no parque, rir alto e lamber a tampa do iogurte. Ser adulto não é perder os prazeres da vida - e esse é o único "não" realmente aceitável. Teste a teoria. Uma semaninha, para começar. Veja e sinta as coisas como se elas fossem o que realmente são: passageiras.

Acorde de manhã e decida entre duas coisas: ficar de mau humor e transmitir isso adiante ou sorrir... Bom mesmo é ter problema na cabeça, sorriso na boca e paz no coração! Alias, entregue os problemas nas mãos de Deus e que tal um cafezinho gostoso agora? "a vida é uma peça de teatro que não permite ensaios" "por isso cante, chore, dance e viva intensamente antes que a cortina se feche".

(Arnaldo Jabor)


25 - OS HOMENS DESEJAM AS MULHERES QUE NÃO EXISTEM

Está na moda - muitas mulheres ficam em acrobáticas posições ginecológicas para raspar os pêlos pubianos nos salões de beleza. Ficam penduradas em paus-de-arara e, depois, saem felizes com apenas um canteirinho de cabelos, como um jardinzinho estreito, a vereda indicativa de um desejo inofensivo e não mais as agressivas florestas que podem nos assustar. Parecem uns bigodinhos verticais que (oh, céus!...) me fazem pensar em... Hitler.

Silicone, pêlos dourados, bumbuns malhados, tudo para agradar aos consumidores do mercado sexual. Olho as revistas povoadas de mulheres lindas... e sinto uma leve depressão, me sinto mais só, diante de tanta oferta impossível. Vejo que no Brasil o feminismo se vulgarizou numa liberdade de "objetos", produziu mulheres livres como coisas, livres como produtos perfeitos para o prazer. A concorrência é grande para um mercado com poucos consumidores, pois há muito mais mulher que homens na praça (e-mails indignados virão...) Talvez este artigo seja moralista, talvez as uvas da inveja estejam verdes, mas eu olho as revistas de mulher nua e só vejo paisagens; não vejo pessoas com defeitos, medos. Só vejo meninas oferecendo a doçura total, todas competindo no mercado, em contorções eróticas desesperadas porque não têm mais o que mostrar. Nunca as mulheres foram tão nuas no Brasil; já expuseram o corpo todo, mucosas, vagina, ânus.

O que falta? Órgãos internos? Que querem essas mulheres? Querem acabar com nossos lares? Querem nos humilhar com sua beleza inconquistável? Muitas têm boquinhas tímidas, algumas sugerem um susto de virgens, outras fazem cara de zangadas, ferozes gatas, mas todas nos olham dentro dos olhos como se dissessem: "Venham... eu estou sempre pronta, sempre alegre, sempre excitada, eu independo de carícias, de romance!..."

Sugerem uma mistura de menina com vampira, de doçura com loucura e todas ostentam uma falsa tesão devoradora. Elas querem dinheiro, claro, marido, lugar social, respeito, mas posam como imaginam que os homens as querem.

Ostentam um desejo que não têm e posam como se fossem apenas corpos sem vida interior, de modo a não incomodar com chateações os homens que as consomem.

A pessoa delas não tem mais um corpo; o corpo é que tem uma pessoa, frágil, tênue, morando dentro dele.

Mas, que nos prometem essas mulheres virtuais? Um orgasmo infinito? Elas figuram ser odaliscas de um paraíso de mercado, último andar de uma torre que os homens atingiriam depois de suas Ferraris, seus Armanis, ouros e sucesso; elas são o coroamento de um narcisismo yuppie, são as 11 mil virgens de um paraíso para executivos. E o problema continua: como abordar mulheres que parecem paisagens?

Outro dia vi a modelo Daniela Cicarelli na TV. Vocês já viram essa moça? É a coisa mais linda do mundo, tem uma esfuziante simpatia, risonha, democrática, perfeita, a imensa boca rósea, os "olhos de esmeralda nadando em leite" (quem escreveu isso?), cabelos de ouro seco, seios bíblicos, como uma imensa flor de prazeres. Olho-a de minha solidão e me pergunto: "Onde está a Daniela no meio desses tesouros perfeitos? Onde está ela?" Ela deve ficar perplexa diante da própria beleza, aprisionada em seu destino de sedutora, talvez até com um vago ciúme de seu próprio corpo. Daniela é tão linda que tenho vontade de dizer: "Seja feia..."

Queremos percorrer as mulheres virtuais, visitá-las, mas, como conversar com elas? Com quem? Onde estão elas? Tanta oferta sexual me angústia, me dá a certeza de que nosso sexo é programado por outros, por indústrias masturbatórias, nos provocando desejo para me vender satisfação. É pela dificuldade de realizar esse sonho masculino que essas moças existem, realmente. Elas existem, para além do limbo gráfico das revistas. O contato com elas revela meninas inseguras, ou doces, espertas ou bobas, mas, se elas pudessem expressar seus reais desejos, não estariam nas revistas sexy, pois não há mercado para mulheres amando maridos, cozinhando felizes, aspirando por namoros ternos. Nas revistas, são tão perfeitas que parecem dispensar parceiros, estão tão nuas que parecem namoradas de si mesmas. Mas, na verdade, elas querem amar e ser amadas, embora tenham de ralar nos haréns virtuais inventados pelos machos. Elas têm de fingir que não são reais, pois ninguém quer ser real hoje em dia - foi uma decepção quando a Tiazinha se revelou ótima dona de casa na Casa dos Artistas, limpando tudo numa faxina compulsiva.

Infelizmente, é impossível tê-las, porque, na tecnologia da gostosura, elas se artificializam cada vez mais, como carros de luxo se aperfeiçoando a cada ano. A cada mutação erótica, elas ficam mais inatingíveis no mundo real. Por isso, com a crise econômica, o grande sucesso são as meninas belas e saradas, enchendo os sites eróticos da internet ou nas saunas relax for men, essa réplica moderna dos haréns árabes. Essas lindas mulheres são pagas para não existir, pagas para serem um sonho impalpável, pagas para serem uma ilusão. Vi um anúncio de boneca inflável que sintetizava o desejo impossível do homem de mercado: ter mulheres que não existam... O anúncio tinha o slogan em baixo: "She needs no food nor stupid conversation." Essa é a utopia masculina: satisfação plena sem sofrimento ou realidade.

A democracia de massas, mesclada ao subdesenvolvimento cultural, parece "libertar" as mulheres. Ilusão à toa. A "libertação da mulher" numa sociedade ignorante como a nossa deu nisso: superobjetos se pensando livres, mas aprisionadas numa exterioridade corporal que apenas esconde pobres meninas famintas de amor e dinheiro. A liberdade de mercado produziu um estranho e falso "mercado da liberdade". É isso aí. E ao fechar este texto, me assalta a dúvida: estou sendo hipócrita e com inveja do erotismo do século 21? Será que fui apenas barrado do baile?

(Arnaldo Jabor)


24 - CRIAÇÃO

“Fui criado com princípios morais comuns:

Quando eu era pequeno, mães, pais, professores, avós, tios, vizinhos, eram autoridades dignas de respeito e consideração. Quanto mais próximos ou mais velhos, mais afeto. Inimaginável responder de forma mal educada aos mais velhos, professores ou autoridades… Confiávamos nos adultos porque todos eram pais, mães ou familiares das crianças da nossa rua, do bairro, ou da cidade… Tínhamos medo apenas do escuro, dos sapos, dos filmes de terror… Hoje me deu uma tristeza infinita por tudo aquilo que perdemos. Por tudo o que meus netos um dia enfrentarão.

Pelo medo no olhar das crianças, dos jovens, dos velhos e dos adultos. Direitos humanos para criminosos, deveres ilimitados para cidadãos honestos. Não levar vantagem em tudo significa ser idiota. Pagar dívidas em dia é ser tonto… Anistia para corruptos e sonegadores… O que aconteceu conosco? Professores maltratados nas salas de aula, comerciantes ameaçados por traficantes, grades em nossas janelas e portas. Que valores são esses? Automóveis que valem mais que abraços, filhas querendo uma cirurgia como presente por passar de ano. Celulares nas mochilas de crianças. O que vais querer em troca de um abraço? A diversão vale mais que um diploma. Uma tela gigante vale mais que uma boa conversa. Mais vale uma maquiagem que um sorvete. Mais vale parecer do que ser… Quando foi que tudo desapareceu ou se tornou ridículo?

Quero arrancar as grades da minha janela para poder tocar as flores! Quero me sentar na varanda e dormir com a porta aberta nas noites de verão! Quero a honestidade como motivo de orgulho. Quero a vergonha na cara e a solidariedade. Quero a retidão de caráter, a cara limpa e o olhar olho-no-olho. Quero a esperança, a alegria, a confiança! Quero calar a boca de quem diz: “temos que estar ao nível de…”, ao falar de uma pessoa. Abaixo o “TER”, viva o “SER”. E viva o retorno da verdadeira vida, simples como a chuva, limpa como um céu de primavera, leve como a brisa da manhã!

E definitivamente bela, como cada amanhecer. Quero ter de volta o meu mundo simples e comum. Onde existam amor, solidariedade e fraternidade como bases. Vamos voltar a ser “gente”. Construir um mundo melhor, mais justo, mais humano, onde as pessoas respeitem as pessoas. Utopia? Quem sabe?… Precisamos tentar… Quem sabe comecemos a caminhar transmitindo essa mensagem… Nossos filhos merecem e nossos netos certamente nos agradecerão!”.

(Arnaldo Jabor)


23 - CALOR

O rapaz vinha do rio. Descalço, com as calças arregaçadas acima do joelho, as pernas sujas de lama. Vestia uma camisa vermelha, aberta no peito, onde os primeiros pêlos da puberdade começavam a enegrecer. Tinha o cabelo escuro, molhado de suor que lhe escorria pelo pescoço delgado. Dobrava-se um pouco para a frente, sob o peso dos longos remos, donde pendiam fios verdes de limos ainda gotejantes. O barco ficou balouçando na água turva, e ali perto, como quem espreita, afloraram de repente os olhos globulosos de uma rã. O rapaz olhou-a, e ela olhou-o a ele. Depois a rã fez um movimento brusco, e desapareceu. Um minuto mais e a superfície do rio ficou lisa e calma, e brilhante como os olhos do rapaz. A respiração do lodo desprendia lentas bolhas de gás que a corrente arrastava. No calor da tarde, os choupos altos vibraram silenciosamente, e de rajada, como uma flor rápida que do ar nascesse, uma ave azul passou rasando a água. O rapaz levantou a cabeça. No outro lado do rio, uma rapariga olhava-o, imóvel. O rapaz ergueu a mão livre e todo o seu corpo desenhou o gesto de uma palavra que não se ouviu. O rio fluía, lento.

O rapaz subiu a ladeira, sem olhar para trás. A erva acabava logo ali. Para cima, para além, o sol calcinava os torrões dos alqueives e os olivais cinzentos. Metálica, dura, uma cigarra roía o silêncio. À distância, a atmosfera tremia.

A casa era térrea, acachapada, brunida de cal, com uma barra de ocre violento. Um pano de parede cega, sem janelas, uma porta onde se abria um postigo. No interior, o chão de barro refrescava os pés. O rapaz encostou os remos, limpou o suor ao antebraço. Ficou quieto, escutando as pancadas do coração, o vagaroso surdir do suor que se renovava na pele. Esteve assim uns minutos, sem consciência dos rumores que vinham da parte de trás da casa e que se transformaram, de súbito, em guinchos lancinantes e gratuitos: o protesto de um porco preso.

Quando, por fim, começou a mover-se, o grito do animal, desta vez ferido e insultado, bateu-lhe nos ouvidos. E logo outros gritos, agudos, raivosos, uma súplica desesperada, um apelo que não espera socorro.

Correu para o quintal, mas não passou da soleira da porta. Dois homens e uma mulher seguravam o porco. Outro home, com uma faca ensaguentada, abria-lhe um rasgo vertical no escroto. Na palha brilhava já um ovóide achatado, vermelho. O porco tremia todo, atirava gritos entre as queixadas que uma corda apertava. A ferida alargou-se, o testículo apareceu leitoso e raiado de sangue, os dedos do homem introduziram-se na abertura, puxaram, torceram, arrancaram. A mulher tinha o rosto pálido e crispado. Desamarraram o porco, libertaram-lhe o focinho, e um dos homens baixou-se e apanhou os bagos, grossos e macios.

O animal deu uma volta, perplexo, e ficou de cabeça baixa, arfando. Então o homem atirou-lhos. O porco abocou, mastigou sôfrego, engoliu. A mulher disse algumas palavras e os homens encolheram os ombros. Um deles riu. Foi nessa altura que viram o rapaz. Ficaram todos calados e, como se fosse a única coisa que pudessem fazer naquele momento, puseram-se a olhar o animal que se deitara na palha, suspirando, com os beiços sujos do próprio sangue.

O rapaz voltou para dentro. Encheu um púcaro e bebeu, deixando que água lhe corresse pelos cantos da boca, pelo pescoço, até os pêlos do peito que se tornaram mais escuros. Enquanto bebia, olhava lá fora as duas manchas vermelhas sobre a palha. Depois, num movimento que parecia de cansaço, tornou a sair de casa, atravessou o olival, outra vez sob a torreira do sol.

A poeira queimava-lhe os pés, e ele, sem dar por isso, encolhia-os, para fugir ao contacto escaldante. A mesma cigarra rangia, em tom mais surdo. Depois a ladeira, a erva com o seu cheiro de seiva aquecida, a frescura entontecedora debaixo dos ramos, o lodo que se insinua entre os dedos dos pés e irrompe para cima.

O rapaz ficou parado, a olhar o rio. Sobre um afloramento de limos, uma rã, parda como a primeira, de olhos redondos sob as arcadas salientes, parecia estar à espera. A pele branca da goela palpitava. E a boca fechada fazia talvez uma prega de escárnio. Passou tempo, e nem a rã nem o rapaz se moviam. Então o rapaz, desviando a custo os olhos, como para fugir a um malefício, viu no outro lado do rio, entre os ramos baixos dos salgueiros, aparecer a rapariga. Outra vez, silencioso e inesperado, passou sobre a água o relâmpago azul.

Devagar, o rapaz tirou a camisa. Devagar se acabou de despir, e foi só quando já não tinha roupa nenhuma no corpo que sua nudez, lentamente, se revelou. Assim como se estivesse curando uma cegueira de si mesma. A rapariga recuou para a sombra dos salgueiros e com os mesmos gestos lentos se libertou do vestido e tudo quanto a cobria. Nua sobre o fundo verde das árvores.

O rapaz olhou uma vez mais o rio. Círculos que alargavam e perdiam na superfície calma, mostravam o lugar onde a rã mergulhara. Então, porque o Verão queimava e era urgente negar o escárnio, o rapaz meteu-se à água e nadou para a outra margem, enquanto o vulto branco da rapariga se escondia entre os ramos.

(José Saramago)


22 - COMO ROUBAR UM CORAÇÃO

Para se roubar um coração, é preciso que seja com muita habilidade, tem que ser vagarosamente, disfarçadamente, não se chega com ímpeto, não se alcança o coração de alguém com pressa.

Tem que se aproximar com meias palavras, suavemente, apoderar-se dele aos poucos, com cuidado.

Não se pode deixar que percebam que ele será roubado, na verdade, teremos que furtá-lo, docemente.

Conquistar um coração de verdade dá trabalho, requer paciência, é como se fosse tecer uma colcha de retalhos, aplicar uma renda em um vestido, tratar de um jardim, cuidar de uma criança.

É necessário que seja com destreza, com vontade, com encanto, carinho e sinceridade.

Para se conquistar um coração definitivamente tem que ter garra e esperteza, mas não falo dessa esperteza que todos conhecem, falo da esperteza de sentimentos, daquela que existe guardada na alma em todos os momentos.

Quando se deseja realmente conquistar um coração, é preciso que antes já tenhamos conseguido conquistar o nosso, é preciso que ele já tenha sido explorado nos mínimos detalhes, que já se tenha conseguido conhecer cada cantinho, entender cada espaço preenchido e aceitar cada espaço vago.

...e então, quando finalmente esse coração for conquistado, quando tivermos nos apoderado dele,

vai existir uma parte de alguém que seguirá conosco.

Uma metade de alguém que será guiada por nós e o nosso coração passará a bater por conta desse outro coração.

Eles sofrerão altos e baixos sim, mas com certeza haverá instantes, milhares de instantes de alegria.

Baterá descompassado muitas vezes e sabe por que?

Faltará a metade dele que ainda não está junto de nós.

Até que um dia, cansado de estar dividido ao meio, esse coração chamará a sua outra parte e alguém por vontade própria, sem que precisemos roubá-la ou furtá-la nos entregará a metade que faltava.

... e é assim que se rouba um coração, fácil não?

Pois é, nós só precisaremos roubar uma metade, a outra virá na nossa mão e ficará detectado um roubo então!

E é só por isso que encontramos tantas pessoas pela vida a fora que dizem que nunca mais conseguiram amar alguém... é simples... é porque elas não possuem mais coração, eles foram roubados, arrancados do seu peito, e somente com um grande amor ela terá um novo coração, afinal de contas, corações são para serem divididos, e com certeza esse grande amor repartirá o dele com você.

(Luís Fernando Veríssimo)


21 - MULHERES

"Certo dia parei para observar as mulheres e só pude concluir uma coisa: elas não são humanas. São espiãs. Espiãs de Deus, disfarçadas entre nós.

Pare para refletir sobre o sexto-sentido.

Alguém duvida de que ele exista?

E como explicar que ela saiba exatamente qual mulher, entre as presentes, em uma reunião, seja aquela que dá em cima de você?

E quando ela antecipa que alguém tem algo contra você, que alguém está ficando doente ou que você quer terminar o relacionamento?

E quando ela diz que vai fazer frio e manda você levar um casaco? Rio de Janeiro, 40 graus, você vai pegar um avião pra São Paulo. Só meia-hora de vôo. Ela fala pra você levar um casaco, porque "vai fazer frio". Você não leva. O que acontece?

O avião fica preso no tráfego, em terra, por quase duas horas, depois que você já entrou, antes de decolar. O ar condicionado chega a pingar gelo de tanto frio que faz lá dentro!

"Leve um sapato extra na mala, querido.

Vai que você pisa numa poça..."

Se você não levar o "sapato extra", meu amigo, leve dinheiro extra para comprar outro. Pois o seu estará, sem dúvida, molhado...

O sexto-sentido não faz sentido!

É a comunicação direta com Deus!

Assim é muito fácil...

As mulheres são mães!

E preparam, literalmente, gente dentro de si.

Será que Deus confiaria tamanha responsabilidade a um reles mortal?

E não satisfeitas em ensinar a vida elas insistem em ensinar a vivê-la, de forma íntegra, oferecendo amor incondicional e disponibilidade integral.

Fala-se em "praga de mãe", "amor de mãe", "coração de mãe"...

Tudo isso é meio mágico...

Talvez Ele tenha instalado o dispositivo "coração de mãe" nos "anjos da guarda" de Seus filhos (que, aliás, foram criados à Sua imagem e semelhança).

As mulheres choram. Ou vazam? Ou extravazam?

Homens também choram, mas é um choro diferente. As lágrimas das mulheres têm um não sei quê que não quer chorar, um não sei quê de fragilidade, um não sei quê de amor, um não sei quê de tempero divino, que tem um efeito devastador sobre os homens...

É choro feminino. É choro de mulher...

Já viram como as mulheres conversam com os olhos?

Elas conseguem pedir uma à outra para mudar de assunto com apenas um olhar.

Elas fazem um comentário sarcástico com outro olhar.

E apontam uma terceira pessoa com outro olhar.

Quantos tipos de olhar existem?

Elas conhecem todos...

Parece que frequentam escolas diferentes das que frequentam os homens!

E é com um desses milhões de olhares que elas enfeitiçam os homens.

EN-FEI-TI-ÇAM !

E tem mais! No tocante às profissões, por que se concentram nas áreas de Humanas?

Para estudar os homens, é claro!

Embora algumas disfarcem e estudem Exatas...

Nem mesmo Freud se arriscou a adentrar nessa seara. Ele, que estudou, como poucos o comportamento humano, disse que a mulher era "um continente obscuro".

Quer evidência maior do que essa?

Qualquer um que ama se aproxima de Deus.

E com as mulheres também é assim.

O amor as leva para perto dEle, já que Ele é o próprio amor. Por isso dizem "estar nas nuvens", quando apaixonadas.

É sabido que as mulheres confundem sexo e amor.

E isso seria uma falha, se não obrigasse os homens a uma atitude mais sensível e respeitosa com a própria vida.

Pena que eles nunca verão as mulheres-anjos que têm ao lado.

Com todo esse amor de mãe, esposa e amiga, elas ainda são mulheres a maior parte do tempo.

Mas elas são anjos depois do sexo-amor.

É nessa hora que elas se sentem o próprio amor encarnado e voltam a ser anjos.

E levitam.

Algumas até voam.

Mas os homens não sabem disso.

E nem poderiam.

Porque são tomados por um encantamento que os faz dormir nessa hora."

(Luís Fernando Veríssimo)


20 - NOTA DE FALECIMENTO

Faleceu ontem a pessoa que atrapalhava sua vida...

Um dia, quando os funcionários chegaram para trabalhar, encontraram na portaria um cartaz enorme, no qual estava escrito:

"Faleceu ontem a pessoa que atrapalhava sua vida na Empresa. Você está convidado para o velório na quadra de esportes".

No início, todos se entristeceram com a morte de alguém, mas depois de algum tempo, ficaram curiosos para saber quem estava atrapalhando sua vida e bloqueando seu crescimento na empresa. A agitação na quadra de esportes era tão grande, que foi preciso chamar os seguranças para organizar a fila do velório. Conforme as pessoas iam se aproximando do caixão, a excitação aumentava:

- Quem será que estava atrapalhando o meu progresso?

- Ainda bem que esse infeliz morreu!

Um a um, os funcionários, agitados, se aproximavam do caixão, olhavam pelo visor do caixão a fim de reconhecer o defunto, engoliam em seco e saiam de cabeça abaixada, sem nada falar uns com os outros. Ficavam no mais absoluto silêncio, como se tivessem sido atingidos no fundo da alma e dirigiam-se para suas salas. Todos, muito curiosos mantinham-se na fila até chegar a sua vez de verificar quem estava no caixão e que tinha atrapalhado tanto a cada um deles.

A pergunta ecoava na mente de todos: "Quem está nesse caixão"?

No visor do caixão havia um espelho e cada um via a si mesmo... Só existe uma pessoa capaz de limitar seu crescimento: VOCÊ MESMO! Você é a única pessoa que pode fazer a revolução de sua vida. Você é a única pessoa que pode prejudicar a sua vida. Você é a única pessoa que pode ajudar a si mesmo. "SUA VIDA NÃO MUDA QUANDO SEU CHEFE MUDA, QUANDO SUA EMPRESA MUDA, QUANDO SEUS PAIS MUDAM, QUANDO SEU(SUA) NAMORADO(A) MUDA. SUA VIDA MUDA... QUANDO VOCÊ MUDA! VOCÊ É O ÚNICO RESPONSÁVEL POR ELA."

O mundo é como um espelho que devolve a cada pessoa o reflexo de seus próprios pensamentos e seus atos. A maneira como você encara a vida é que faz toda diferença. A vida muda, quando "você muda".

(Luís Fernando Veríssimo)


19 - EXIGÊNCIAS DA VIDA MODERNA

Dizem que todos os dias você deve comer uma maçã por causa do ferro.

E uma banana pelo potássio.

E também uma laranja pela vitamina C. Uma xícara de chá verde sem açúcar para prevenir a diabetes.

Todos os dias deve-se tomar ao menos dois litros de água. E uriná-los, o que consome o dobro do tempo.

Todos os dias deve-se tomar um Yakult pelos lactobacilos (que ninguém sabe bem o que é, mas que aos bilhões, ajudam a digestão). Cada dia uma Aspirina, previne infarto. Uma taça de vinho tinto também. Uma de vinho branco estabiliza o sistema nervoso. Um copo de cerveja, para... não lembro bem para o que, mas faz bem. O benefício adicional é que se você tomar tudo isso ao mesmo tempo e tiver um derrame, nem vai perceber.

Todos os dias deve-se comer fibra. Muita, muitíssima fibra. Fibra suficiente para fazer um pulôver.

Você deve fazer entre quatro e seis refeições leves diariamente. E nunca se esqueça de mastigar pelo menos cem vezes cada garfada. Só para comer, serão cerca de cinco horas do dia...

E não se esqueça de escovar os dentes depois de comer. Ou seja, você tem que escovar os dentes depois da maçã, da banana, da laranja, das seis refeições e enquanto tiver dentes, passar fio dental, massagear a gengiva, escovar a língua e bochechar com Plax. Melhor, inclusive, ampliar o banheiro e aproveitar para colocar um equipamento de som, porque entre a água, a fibra e os dentes, você vai passar ali várias horas por dia.

Há que se dormir oito horas por noite e trabalhar outras oito por dia, mais as cinco comendo são vinte e uma.

Sobram três, desde que você não pegue trânsito. As estatísticas comprovam que assistimos três horas de TV por dia. Menos você, porque todos os dias você vai caminhar ao menos meia hora (por experiência própria, após quinze minutos dê meia volta e comece a voltar, ou a meia hora vira uma).

E você deve cuidar das amizades, porque são como uma planta: devem ser regadas diariamente, o que me faz pensar em quem vai cuidar delas quando eu estiver viajando.

Deve-se estar bem informado também, lendo dois ou três jornais por dia para comparar as informações.

Ah! E o sexo! Todos os dias, tomando o cuidado de não se cair na rotina. Há que ser criativo, inovador para renovar a sedução. Isso leva tempo - e nem estou falando de sexo tântrico.

Também precisa sobrar tempo para varrer, passar, lavar roupa, pratos e espero que você não tenha um bichinho de estimação. Na minha conta são 29 horas por dia.

A única solução que me ocorre é fazer várias dessas coisas ao mesmo tempo! Por exemplo, tomar banho frio com a boca aberta, assim você toma água e escova os dentes. Chame os amigos junto com os seus pais. Beba o vinho, coma a maçã e a banana junto com a sua mulher... na sua cama.

Ainda bem que somos crescidinhos, senão ainda teria um Danoninho e se sobrarem 5 minutos, uma colherada de leite de magnésio.

Agora tenho que ir.

É o meio do dia, e depois da cerveja, do vinho e da maçã, tenho que ir ao banheiro.

E já que vou, levo um jornal... Tchau!

Viva a vida com bom humor!!!

(Luís Fernando Veríssimo)


18 - PAQUERAS

Paquerar é bom, mas chega uma hora que cansa! Cansa na hora que você percebe que ter 10 pessoas ao mesmo tempo é o mesmo que não ter nenhuma, e ter apenas uma, é o mesmo que possuir 10 ao mesmo tempo.

Nessas horas sempre surge aquela tradicional perguntinha: Por que aquela pessoa pela qual você trocaria qualquer programa por um simples filme com pipoca abraçadinho no sofá da sala não despenca na sua vida?

(Luís Fernando Veríssimo)


17 - VERÃO

Chegou o verão!

Verão também é sinônimo de pouca roupa e muito chifre, pouca cintura e muita gordura, pouco trabalho e muita micose.

Verão é picolé de Kisuco no palito reciclado, é milho cozido na água da torneira, é coco verde aberto pra comer a gosminha branca.

Verão é prisão de ventre de uma semana e pé inchado que não entra no tênis.

Mas o principal ponto do verão é.... A praia!

Ah, como é bela a praia.

Os cachorros fazem cocô e as crianças pegam pra fazer coleção.

Os casais jogam frescobol e acertam a bolinha na cabeça das véias.

Os jovens de jet ski atropelam os surfistas, que por sua vez, miram a prancha pra abrir a cabeça dos banhistas.

O melhor programa pra quem vai à praia é chegar bem cedo, antes do sorveteiro, quando o sol ainda está fraco e as famílias estão chegando.

Muito bonito ver aquelas pessoas carregando vinte cadeiras, três geladeiras de isopor, cinco guarda-sóis, raquete, frango, farofa, toalha, bola, balde, chapéu e prancha, acreditando que estão de férias.

Em menos de cinquenta minutos, todos já estão instalados, besuntados e prontos pra enterrar a avó na areia.

E as crianças? Ah, que gracinhas! Os bebês chorando de desidratação, as crianças pequenas se socando por uma conchinha do mar, os adolescentes ouvindo walkman enquanto dormem.

As mulheres também têm muita diversão na praia, como buscar o filho afogado e caminhar vinte quilômetros pra encontrar o outro pé do chinelo.

Já os homens ficam com as tarefas mais chatas, como furar a areia pra fincar o cabo do guarda-sol.

É mais fácil achar petróleo do que conseguir fazer o guarda-sol ficar em pé.

Mas tudo isso não conta, diante da alegria, da felicidade, da maravilha que é entrar no mar!

Aquela água tão cristalina, que dá pra ver os cardumes de latinha de cerveja no fundo.

Aquela sensação de boiar na salmoura como um pepino em conserva.

Depois de um belo banho de mar, com o rego cheio de sal e a periquita cheia de areia, vem àquela vontade de fritar na chapa.

A gente abre a esteira velha, com o cheiro de velório de bode, bota o chapéu, os óculos escuros e puxa um ronco bacaninha.

Isso é paz, isso é amor, isso é o absurdo do calor!!!!!

Mas, claro, tudo tem seu lado bom.

E à noite o sol vai embora.

Todo mundo volta pra casa tostado e vermelho como mortadela, toma banho e deixa o sabonete cheio de areia para o próximo.

O shampoo acaba e a gente acaba lavando a cabeça com qualquer coisa, desde creme de barbear até desinfetante de privada.

As toalhas, com aquele cheirinho de mofo que só a casa da praia oferece.

Aí, uma bela macarronada pra entupir o bucho e uma dormidinha na rede pra adquirir um bom torcicolo e ralar as costas queimadas.

O dia termina com uma boa rodada de tranca e uma briga em família.

Todo mundo vai dormir bêbado e emburrado, babando na fronha e torcendo, pra que na manhã seguinte, faça aquele sol e todo mundo possa se encontrar no mesmo inferno tropical...

(Luís Fernando Veríssimo)


16 - DAR AMOR

Dar é dar.

Fazer amor é lindo, é sublime, é encantador, é esplêndido, mas dar é bom pra cacete.

Dar é aquela coisa que alguém te puxa os cabelos da nuca, te chama de nomes que eu não escreveria, não te vira com delicadeza, não sente vergonha de ritmos animais.

Dar é bom.

Melhor do que dar, só dar por dar.

Dar sem querer casar, sem querer apresentar pra mãe, sem querer dar o primeiro abraço no Ano Novo.

Dar porque o cara te esquenta a coluna vertebral, te amolece o gingado, te molha o instinto.

Dar porque a vida de uma publicitária em começo de carreira é estressante, e dar relaxa.

Dar porque se você não der para ele hoje, vai dar amanhã, ou depois de amanhã.

Dar sem esperar ouvir promessas, sem esperar ouvir carinhos, sem esperar ouvir futuro.

Dar é bom, na hora.

Durante um mês.

Para as mais desavisadas, talvez anos.

Mas dar é dar demais e ficar vazia.

Dar é não ganhar.

É não ganhar um eu te amo baixinho perdido no meio do escuro.

É não ganhar uma mão no ombro quando o caos da cidade parece querer te abduzir.

É não ter alguém pra querer casar, para apresentar pra mãe, pra dar o primeiro abraço de Ano Novo e pra falar: "Que cê acha amor?".

Dar é inevitável, dê mesmo, dê sempre, dê muito.

Mas dê mais ainda, muito mais do que qualquer coisa, uma chance ao amor, esse sim é o maior tesão.

Esse sim relaxa, cura o mau humor, ameniza todas as crises e faz você flutuar o suficiente pra nem perceber as catarradas na rua.

Se você for chata, suas amigas perdoam.

Se você for brava, suas amigas perdoam.

Até se você for magra, as suas amigas perdoam.

Mas... experimente ser amada."

(Luís Fernando Veríssimo)


15 - MULHER

Um homem inteligente falando das mulheres:

Tenho apenas um exemplar em casa, que mantenho com muito zelo e dedicação, mas na verdade acredito que é ela quem me mantém.

Mulher vive de carinho. Dê-lhe em abundância. É coisa de homem sim, e se ela não receber de você vai pegar de outro.

Beijos matinais e um 'eu te amo’ no café da manhã as mantém viçosas e perfumadas durante todo o dia.

Flores também fazem parte de seu cardápio – mulher que não recebe flores murcha rapidamente e adquire traços masculinos como rispidez e brutalidade.

Respeite a natureza. Você não suporta TPM? Case-se com um homem.

Mulheres menstruam, choram por nada, gostam de falar do próprio dia.

Não faça sombra sobre ela. Se você quiser ser um grande homem tenha uma mulher ao seu lado, nunca atrás. Assim, quando ela brilhar, você vai pegar um bronzeado.

Porém, se ela estiver atrás, você vai levar um pé-na-bunda.

Aceite: mulheres também têm luz própria e não dependem de nós para brilhar.

O homem sábio alimenta os potenciais da parceira e os utiliza para motivar os próprios.

Ele sabe que, preservando e cultivando a mulher, ele estará salvando a si mesmo.

É, meu amigo, se você acha que mulher é caro demais, vire gay. Só tem mulher quem pode!

(Luís Fernando Veríssimo)


14 - A VIDA E O AMOR

Às vezes as pessoas que amamos nos magoam, e nada podemos fazer senão continuar nossa jornada com nosso coração machucado.

Às vezes nos falta esperança. Às vezes o amor nos machuca profundamente, e vamos nos recuperando muito lentamente dessa ferida tão dolorosa.

Às vezes perdemos nossa fé, então descobrimos que precisamos acreditar, tanto quanto precisamos respirar... é nossa razão de existir.

Às vezes estamos sem rumo, mas alguém entra em nossa vida, e se torna o nosso destino.

Às vezes estamos no meio de centenas de pessoas, e a solidão aperta nosso coração pela falta de uma única pessoa.

Às vezes a dor nos faz chorar, nos faz sofrer, nos faz querer parar de viver, até que algo toque nosso coração, algo simples como a beleza de um pôr do sol, a magnitude de uma noite estrelada, a simplicidade de uma brisa batendo em nosso rosto.

É a força da natureza nos chamando para a vida.

Você descobre que as pessoas que pareciam ser sinceras e receberam sua confiança, te traíram sem qualquer piedade.

Você entende que o que para você era amizade, para outros era apenas conveniência, oportunismo.

Você descobre que algumas pessoas nunca disseram eu te amo, e por isso nunca fizeram amor, apenas transaram...

Descobre também que outras disseram eu te amo uma única vez.

E agora temem dizer novamente, e com razão, mas se o seu sentimento for sincero poderá ajudá-las a reconstruir um coração quebrado.

Assim ao conhecer alguém, preste atenção no caminho que essa pessoa percorreu, são fatores importantes: a relação com a família, as condições econômicas nas quais se desenvolveu.

(dificuldades extremas ou facilidades excessivas formam um caráter), os relacionamentos anteriores e as razões do rompimento, seus sonhos, ideais e objetivos.

Não deixe de acreditar no amor. Mas certifique-se de estar entregando seu coração para alguém que dê valor aos mesmos sentimentos que você dá.

Manifeste suas ideias e planos, para saber se vocês combinam. E certifique-se de que quando estão juntos, aquele abraço vale mais que qualquer palavra.

Esteja aberto a algumas alterações, mas jamais abra mão de tudo, pois se essa pessoa te deixar, então nada irá lhe restar.

Tenha sempre em mente que às vezes tentar salvar um relacionamento, manter um grande amor, pode ter um preço muito alto se esse sentimento não for recíproco.

Pois em algum outro momento essa pessoa irá te deixar e seu sofrimento será ainda mais intenso, do que teria sido no passado.

Pode ser difícil fazer algumas escolhas, mas muitas vezes isso é necessário.

Existe uma diferença muito grande entre conhecer o caminho e percorrê-lo.

A tristeza pode ser intensa, mas jamais será eterna.

A felicidade pode demorar a chegar, mas o importante é que ela venha para ficar e não esteja apenas de passagem...

(François de Bitencourt)


13 - CONQUISTAS

Quando se deseja realmente conquistar um coração, é preciso que antes já tenhamos conseguido conquistar o nosso, é preciso que ele já tenha sido explorado nos mínimos detalhes, que já se tenha conseguido conhecer cada cantinho, entender cada espaço preenchido e aceitar cada espaço vago.

...e então, quando finalmente esse coração for conquistado, quando tivermos nos apoderado dele,

vai existir uma parte de alguém que seguirá conosco.

Uma metade de alguém que será guiada por nós e o nosso coração passará a bater por conta desse outro coração.

Eles sofrerão altos e baixos sim, mas com certeza haverá instantes, milhares de instantes de alegria.

Baterá descompassado muitas vezes e sabe por que?

Faltará a metade dele que ainda não está junto de nós.

Até que um dia, cansado de estar dividido ao meio, esse coração chamará a sua outra parte e alguém por vontade própria, sem que precisemos roubá-la ou furtá-la nos entregará a metade que faltava.

... e é assim que se rouba um coração, fácil não?

Pois é, nós só precisaremos roubar uma metade,

a outra virá na nossa mão e ficará detectado um roubo então!

E é só por isso que encontramos tantas pessoas pela vida a fora que dizem que nunca mais conseguiram amar alguém... é simples...

é porque elas não possuem mais coração, eles foram roubados, arrancados do seu peito, e somente com um grande amor ela terá um novo coração, afinal de contas, corações são para serem divididos, e com certeza esse grande amor repartirá o dele com você

(Luís Fernando Veríssimo)


12 - LINHAS CRUZADAS

Um telefone toca num fim de tarde, começo de noite. . .

* Alô?

* Pronto.

Ele: - Voz estranha... Gripada?

Ela: - Faringite.

Ele: - Deve ser o sereno. No mínimo tá saindo todas as noites pra badalar.

Ela: - E se estivesse? Algum problema?

Ele: - Não, imagina! Agora, você é uma mulher livre.

Ela: - E você? Sua voz também está diferente. Faringite?

Ele: - Constipado.

Ela: - Constipado? Você nunca usou esta palavra na vida.

Ele: - A gente aprende.

Ela: - Tá vendo? A separação serviu para alguma coisa.

Ele: - Viver sozinho é bom. A gente cresce.

Ela: - Você sempre viveu sozinho. Até quando casado só fez o que quis.

Ele: - Maldade sua, pois deixei de lado várias coisas quando a gente se casou.

Ela: - Evidente! Só faltava você continuar rebolando nas discotecas com as amigas.

Ele: - Já você não abriu mão de nada. Não deixou de ver novela, passear no shopping, comprar joias, conversar ao telefone com as amigas durante horas.

. . . Silêncio . . .

Ela: - Comprar joias? De onde você tirou essa ideia? A única coisa que comprei em quinze anos de casamento foi um par de brincos.

Ele: - Quinze anos? Pensei que fosse bem menos.

Ela: - A memória dos homens é um caso de polícia!

Ele: - Mas conversar com as amigas no telefone...

Ela: - Solidão, meu caro, cansaço... Trabalhar fora, cuidar das crianças e ainda preparar o jantar para o HERÓI que chega à noite... Convenhamos, não chega a ser uma roda-gigante de emoções...

Ele: - Você nunca reclamou disso.

Ela: - E você me perguntou alguma vez?

Ele: - Lá vem você de novo... As poucas coisas que eu achava que estavam certas...

Isso também era errado!?

Ela: - Evidente, a gente não conversava nunca...

Ele: - Faltou diálogo, é isso? Na hora, ninguém fala nada. Aparece um impasse e as mulheres não reclamam. Depois, dizem que Faltou diálogo.

As mulheres são de Marte!

Ela: - E vocês são de Saturno!

. . . Silêncio . . .

Ele: - E aí, como vai a vida?

Ela: - Nunca estive tão bem. Livre para pensar, ninguém pra Me dizer o que devo fazer...

Ele: - E isso é bom?

Ela: - Pense o que quiser, mas quinze anos de jornada são de enlouquecer qualquer uma.

Ele: - Eu nunca fui autoritário!

Ela: - Também nunca foi compreensivo!

Ele: - Jamais dei a entender que era perfeito. Tenho minhas limitações como qualquer mortal...

Ela: - Limitado e omisso como qualquer mortal.

Ele: - Você nunca foi irônica.

Ela: - Isso a gente aprende também.

Ele: - Eu sempre te apoiei.

Ela: - Lógico. Se não me engano foi no segundo mês de casamento que você lavou a única louça da tua vida. Um apoio inestimável... Sinceramente, eu não sei o que faria sem você? Ou você acha que fazer vinte caipirinhas numa tarde para um bando de marmanjos que assistem ao jogo da Copa do Mundo era realmente o meu grande objetivo na vida ?

Ele: - Do que você está falando?

Ela: - Ah, não lembra?

Ele: - Ana, eu detesto futebol.

Ela: - Ana!? Esqueceu meu nome também? Alexandre, você ficou louco?

Ele: - Alexandre? Meu nome é Ronaldo!

. . . Silêncio . . .

Ele: - De onde está falando?

Ela: - 2578 9922

Ele: - Não é o 2578 9222?

Ela: - Não.

Ele: - Ah, desculpe, foi engano.

Depois de um tempo ambos caem na gargalhada.

Ele: - Quer dizer que você faz uma ótima caipirinha, hein?

Ela: - Modéstia à parte... Mas não gosto, prefiro vinho tinto.

Ele: - Mesmo? Vinho é a minha bebida preferida!

Ela: - E detesta futebol?

Ele: - Deus me livre... 22 caras correndo atrás de uma bola... Acho ridículo!

Ela: - Bem, você me dá licença, mas eu vou preparar o jantar.

Ele: - Que pena... O meu já está pronto. Risoto, minha especialidade!

Ela: - Mentira! É o meu prato predileto...

Ele: - Mesmo! Bem, a porção dá pra dois, e estou abrindo um Chianti também. Você não gostaria de...

Ela: - Adoraria!

Ele dá o endereço.

... CUIDADO COM AS LINHAS CRUZADAS ...

(Luís Fernando Veríssimo)


11 - CONTO DE FADAS DO SÉCULO XXI

Era uma vez, numa terra muito distante uma linda princesa independente e cheia de auto-estima que, enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago de seu castelo estava de acordo com as conformidades ecológicas, se deparou com uma rã. Então a rã pulou no seu colo e disse:

- Linda princesa, eu já fui um príncipe muito bom. Uma bruxa má lançou-me um encanto e transformou-me nessa rã asquerosa. Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo e poderemos casar e constituir um lar feliz em teu lindo castelo. A minha mãe pode vir morar conosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavarias as minhas roupas, criarias os nossos filhos e viveríamos felizes para sempre!

Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã à sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um finíssimo vinho branco, a princesa sorria e pensava: “NEM FUDENDO”!

(Luís Fernando Veríssimo)


10 - VERDADES

Cinema é melhor pra saúde do que pipoca!

Conversa é melhor do que piada.

Exercício é melhor do que cirurgia.

Humor é melhor do que rancor.

Amigos são melhores do que gente influente.

Economia é melhor do que dívida.

Pergunta é melhor do que dúvida.

Sonhar é melhor do que NADA!

Cinema é melhor pra saúde do que pipoca!

Conversa é melhor do que piada.

Exercício é melhor do que cirurgia.

Humor é melhor do que rancor.

Amigos são melhores do que gente influente.

Economia é melhor do que dívida.

Pergunta é melhor do que dúvida.

Sonhar é melhor do que NADA!

(Luís Fernando Veríssimo)


09 - QUASE

Ainda pior que a convicção do não é a incerteza do talvez, é a desilusão de um quase.

É o quase que me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi.

Quem quase ganhou ainda joga, quem quase passou ainda estuda, quem quase morreu está vivo, quem quase amou não amou.

Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos, nas chances que se perdem por medo, nas ideias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono.

Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna; ou melhor, não me pergunto, contesto.

A resposta eu sei de cor, está estampada na distância e frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços, na indiferença dos “Bom dia”, quase que sussurrados.

Sobra covardia e falta coragem até pra ser feliz.

A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai.

Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, sentir o nada, mas não são.

Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza.

O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.

Não é que fé mova montanhas, nem que todas as estrelas estejam ao alcance, para as coisas que não podem ser mudadas resta-nos somente paciência porém, preferir a derrota prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer.

Pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo. De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma. Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance.

Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar.

Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.

Ainda pior que a convicção do não é a incerteza do talvez, é a desilusão de um quase.

É o quase que me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi.

Quem quase ganhou ainda joga, quem quase passou ainda estuda, quem quase morreu está vivo, quem quase amou não amou.

Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos, nas chances que se perdem por medo, nas ideias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono.

Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna; ou melhor não me pergunto, contesto.

A resposta eu sei de cor, está estampada na distância e frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços, na indiferença dos “Bom dia”, quase que sussurrados.

Sobra covardia e falta coragem até pra ser feliz.

A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai.

Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, sentir o nada, mas não são.

Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza.

O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.

Não é que fé mova montanhas, nem que todas as estrelas estejam ao alcance, para as coisas que não podem ser mudadas resta-nos somente paciência porém, preferir a derrota prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer.

Pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo. De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma. Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance.

Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar.

Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.

(Sarah Westphal)


08 - CARAS NOVAS

O Rio é a capital mundial da operação plástica. Não param de chegar estrangeiros para ver, não o pão de açúcar; mas, o Pitangui. Quem não consegue reserva com o Pitangui recorre a outros restauradores brasileiros, com menos nome mas igualmente competentes (é o que dizem, eu não sei. Na única vez que eu consultei um cirurgião plástico ele foi radical: sugeriu outra cabeça. E aquela história do cara que era tão feio que foi desenganado pelo cirurgião plástico?). Os responsáveis pelo turismo no Rio podiam montar um balcão no aeroporto - reserva de cirurgião - para receber os visitantes que chegam tapando o rosto e pedindo informações.

-Que tipo de operação o senhor deseja?

-Papada. Quero um bom homem de papada.

O cirurgião plástico, injustamente chamado de gigolô da vaidade, desempenha uma função social muito importante. Os eventuais exageros não são culpa sua. São os clientes que insistem.

-Minha senhora, é impossível esticar a sua pele ainda mais. Já lhe operei 17 vezes, não tenho mais o que puxar.

-Desta vez só quero que você tire esta covinha do queixo.

-Isso não é covinha. É o seu umbigo.

Antigamente a cirurgia plástica era um recurso extremo.

-Querida, que bobagem, operar o nariz. Eu gosto do seu nariz assim como está. Casei com seu nariz que nada, casei com você.

-Acontece que eu não aguento mais o meu nariz. Não posso viver com ele mais nenhum minuto. Não quero mais ver esse nariz na minha frente.

-Mas uma operação plástica...

-Você tem que escolher, ou ele ou eu.

Hoje só falta das nas colunas sociais:

"Gigi Gavrache reuniu um grupo de amigos para a inauguração do seu novo queixo - o terceiro em dois anos que recebei muitos elogios. "Voluntarioso", "sensível", "um clássico", foram alguns comentários ouvidos durante a noite. "Não posso me queixar..." disse Gigi, com sua conhecida verve."

"Muito comentado o encontro casual de Dora Avante e Scaninha Vabis na pérgola do Copa, sábado pela manhã. As duas estavam com o mesmo nariz. Domage..."

Imagino que no mundo da cirurgia plástica - que é uma forma de escultura com anestesia - devem existir algumas mesmas instituições do mundo das artes, que também são plásticas. Como a fofoca.

-O que você esta achando da nova fase dele?

-Muita influência estrangeira. Só dá perfil romano.

-Achei o queixo da Gigi bem solucionado.

-Mas, nada original. Eu estava fazendo queixos assim há cem anos. O romantismo está ultrapassado. Ele não evoluiu.

-Por sinal, não deixe de ir ao meu vernissage.

-Vernissage?

-Vou expor alguns traseiros, meu trabalho mais recente.

Mas tem um problema que me preocupa. Digamos que a americana rica se operou com o Pitangui. Esta contentíssima com o resultado e prepara-se para embarcar no avião de volta a Dallas. Ela tem que passar pelas autoridades no aeroporto.

-Seu passaporte, senhorita.

-Senhorita não, senhora.

-Perdão.

-Obrigada.

-Mas... este passaporte não é seu.

-Como que não? Ai esta meu nome. Gertrude sou eu.

-Mas a fotografia é do Ronald Reagan.

-Ridículo.

-Está aqui. O Ronald Reagan de peruca.

-Essa sou eu.

-Impossível senhorita. Vamos ter que confiscar este passaporte. Providencie outro com a sua fotografia.

(Luís Fernando Veríssimo)


07 - FELICIDADE PODE DEMORAR

Às vezes as pessoas que amamos nos magoam, e nada podemos fazer senão continuar nossa jornada com nosso coração machucado.

Às vezes nos falta esperança. Às vezes o amor nos machuca profundamente, e vamos nos recuperando muito lentamente dessa ferida tão dolorosa.

... Às vezes perdemos nossa fé, então descobrimos que precisamos acreditar, tanto quanto precisamos respirar... é nossa razão de existir.

Às vezes estamos sem rumo, mas alguém entra em nossa vida, e se torna o nosso destino.

Às vezes estamos no meio de centenas de pessoas, e a solidão aperta nosso coração pela falta de uma única pessoa.

Às vezes a dor nos faz chorar, nos faz sofrer, nos faz querer parar de viver,

até que algo toque nosso coração, algo simples como a beleza de um pôr do sol,

a magnitude de uma noite estrelada, a simplicidade de uma brisa batendo em nosso rosto.

É a força da natureza nos chamando para a vida.

Você descobre que as pessoas que pareciam ser sinceras e receberam sua confiança, te traíram sem qualquer piedade.

Você entende que o que para você era amizade, para outros era apenas conveniência, oportunismo.

Você descobre que algumas pessoas nunca disseram eu te amo, e por isso nunca fizeram amor, apenas transaram...

Descobre também que outras disseram eu te amo uma única vez.

E agora temem dizer novamente, e com razão, mas se o seu sentimento for sincero poderá ajudá-las a reconstruir um coração quebrado.

Assim ao conhecer alguém, preste atenção no caminho que essa pessoa percorreu, são fatores importantes: a relação com a família, as condições econômicas nas quais se desenvolveu (dificuldades extremas ou facilidades excessivas formam um caráter), os relacionamentos anteriores e as razões do rompimento, seus sonhos, ideais e objetivos.

Não deixe de acreditar no amor. Mas certifique-se de estar entregando seu coração para alguém que dê valor aos mesmos sentimentos que você dá.

Manifeste suas ideias e planos, para saber se vocês combinam. E certifique-se de que quando estão juntos, aquele abraço vale mais que qualquer palavra.

Esteja aberto a algumas alterações, mas jamais abra mão de tudo, pois se essa pessoa te deixar, então nada irá lhe restar.

Tenha sempre em mente que às vezes tentar salvar um relacionamento, manter um grande amor, pode ter um preço muito alto se esse sentimento não for recíproco.

Pois em algum outro momento essa pessoa irá te deixar e seu sofrimento será ainda mais intenso, do que teria sido no passado.

Pode ser difícil fazer algumas escolhas, mas muitas vezes isso é necessário.

Existe uma diferença muito grande entre conhecer o caminho e percorrê-lo.

A tristeza pode ser intensa, mas jamais será eterna.

A felicidade pode demorar a chegar, mas o importante é que ela venha para ficar e não esteja apenas de passagem...

(Luís Fernando Veríssimo)


06 - BRUNET

Escrevi uma vez que era um cético que só acreditava no que pudesse tocar: não acreditava na Luiza Brunet, por exemplo. Cruzei com a Luiza Brunet num dos camarotes deste carnaval. Ela me cobrou a frase, e disse que eu podia tocá-la para me convencer da sua existência. Toquei-a. Não me convenci. Não pode existir mulher tão bonita e tão simpática ao mesmo tempo. Vou precisar de mais provas.

(Luís Fernando Veríssimo)


05 - CASAMENTO À MODA ANTIGA

O casamento foi a maneira que a humanidade encontrou de propagar a espécie sem causar falatório na vizinhança. As tradições matrimoniais se transformaram através dos tempos e variam de cultura para cultura. Em certas sociedades primitivas o tempo gasto nas preliminares do casamento - corte, namoro, noivado, etc...- era abreviado. O macho escolhia uma fêmea, batia com um tacape na sua cabeça e a arrastava para sua caverna.

O homem precisava aproximar-se dela, cheirar seus cabelos, grunhir no seu ouvido, mordiscar a sua orelha e só então, quando ela estivesse distraída, bater com o tacape na sua cabeça e arrastá-la para a caverna.

Com o passar do tempo este método foi abandonado, por pressão dos buffets, das lojas de presente e das mulheres, que não admitiam um período pré-conjugal tão curto.

(Luiz Fernando Veríssimo)


04 - PÁSCOA

O Luiz Fernando Veríssimo escreveu uma crônica hilariante sobre a Páscoa. Foi um diálogo absurdo entre um menino, seu pai e sua mãe, sobre o sentido dessa festa. A crônica termina com uma observação justíssima do menino. Disse ele: "Eu acho que ao invés de "coelho da Páscoa" deveria ser "galinha da Páscoa..." Pois é claro. Todo mundo sabe que coelhos não botam ovos. E todos sabem que galinhas botam ovos...

Confesso minha ignorância: não sei como é que o coelho entrou nessa estória. Para início de conversa é preciso lembrar que os textos sagrados não fazem referência alguma a esse animalzinho fofo. Quem foi que teve a ideia de torná-lo o personagem mais importante dessa celebração cristã?

Certamente um gozador. E para tornar a estória mais absurda, fizeram com que os coelhos, que não botam ovos, botassem ovos de chocolate... Nos tempos de Jesus Cristo havia chocolate?

Acho que não. Galinhas não são seres poéticos. Na poesia elas sempre aparecem como bichos engraçados, cacarejantes, de inteligência curta, cuja única função é botar ovos e serem transformadas em canja. Assim é compreensível que vocês não gostem da idéia de galinhas de Páscoa. Eu também não gosto.

Mas poderia ser "pombas de Páscoa". Pombas são seres teológicos. Começando com a Arca de Noé. A se acreditar no relato do Antigo Testamento Noé, para se certificar de que o dilúvio acabara, soltou um corvo. Confesso que se eu fosse Noé teria adotado um método mais simples. Teria aberto a janela da arca e esticado o pescoço para fora. Eu veria, então, que a chuva havia terminado e que as plantas já estavam soltando os seus brotos. Será que Noé acreditava que o corvo, depois de voar, voltaria para dar um relatório? Como é que o corvo comunicaria os seus achados? O corvo ingrato não voltou. Desde então eles ficaram aves de má fama, injustamente. Vendo que o corvo não voltava e sem se dar conta do método mais fácil que sugeri, ele soltou uma pomba.

Ah! Ave maravilhosa! Voou, viu, apanhou um ramo verde de oliveira, e o trouxe para Noé! É preciso notar que as oliveiras daqueles tempos extraordinários deveriam ser diferentes das oliveiras de agora. As oliveiras de agora certamente estariam mortas, depois de passar tanto tempo debaixo d'água. Oliveiras não são plantas sub-aquáticas. Foi então que, pelo galho de oliveira que a pomba lhe trouxera, Noé ficou sabendo que o dilúvio havia chegado ao fim. Desde então as pombas passaram a ser símbolos teológicos: símbolos de pureza, símbolos de paz. Uma das telas mais comoventes de Picasso é uma menina com uma pombinha nas mãos. De fato as pombas têm um jeitinho de mansidão. O que não acontece com os corvos negros de bico torto. Bom para os corvos, mau para as pombas. As pombas passaram a serem usadas como aves a serem sacrificadas no templo pelas razões mais incríveis. Se não me falha a memória as mulheres, terminado seu período menstrual de impureza, deveriam sacrificar pombas no templo para se purificarem. Pobres pombas! O templo era uma sangueira. Quem quiser saber mais sobre a sangueira do templo que leia o livro de Saramago, "O evangelho segundo Jesus Cristo". Os corvos, pela esperteza do primeiro corvo que não voltou, ficaram livres desse triste destino. Vem então o Novo Testamento que sacraliza definitivamente as pombas, ao relatar que o Espírito Santo é uma pomba. Sobre isso leia-se o poema de Alberto Caeiro em que ele conta como Jesus voltou à terra, tornado outra vez menino. É lindo.

Brincadeira de lado, o embaraço dos pais e a pergunta do menino revela a confusão que marca essa festa. Ninguém sabe direito o que é que está sendo celebrado. E, para dizer a verdade, acho que são bem poucos aqueles que fazem alguma celebração. Antigamente semana santa era coisa séria. Lembro-me da procissão do enterro, os panos roxos, a banda de música tocando a marcha fúnebre de Chopin, as matracas, as mulheres mais piedosas carregando pedras na cabeça, como penitência...

Isso mesmo: as mulheres carregavam pedras na cabeça. Como é bem sabido, Deus gosta de ver os seus filhos e filhas sofrer.

Isso para não dizer da quaresma que a antecede, tempo em que as hostes do mal, demônios de todos os tipos, assombrações, mulas sem cabeça, almas penadas, ficavam soltas e todo mundo tinha medo de sair à noite. Sempre havia alguém que relatava, pela salvação da mãe morta, que havia visto uma mula sem cabeça numa encruzilhada à meia-noite. Meia noite era a hora do medo. E no escuro ouvia-se o zunido sinistro dos berra-bois. Semana Santa era um tempo metafísico, entre o céu e o inferno.

Agora é diferente. Páscoa é domingo, pé de cachimbo, cachimbo é de barro, bate no jarro, jarro é de ouro, bate no touro, touro é valente, chifra a gente, a gente é fraco, cai no buraco, buraco é fundo, acabou-se o mundo... Páscoa é fim de semana santa, feriado de três dias, a praia está esperando, hora de se preparar para a viagem...

Contou-me um sacerdote da Igreja Ortodoxa Russa que lá a Páscoa é uma grande festa. O comunismo não foi capaz de destruir a alma do povo. Pela manhã as pessoas saem pelas ruas e se cumprimentam dizendo: "Cristo ressuscitou!" E o outro responde, com uma risada: "Sim, ele ressuscitou!" ( A obra sinfônica de Rimski-Korsakov "A grande Páscoa russa" é linda". E agora percebo que faz muito tempo que não a ouço. ) . Entre nós, país onde 99% das pessoas acreditam em Deus ( acreditam porque acham que, se não acreditarem, é capaz de ele, Deus, enviar algum castigo... ), a Páscoa é como uma casca de cigarra presa no tronco de uma árvore.

Vazia. Morta. Não tem nada lá dentro. Mas já foi o corpo de um ser vivo que, cansado de ficar preso na casca, criou asas e voou. A Páscoa, com seus ovos de chocolate, é celebração inconsciente de um tempo que não existe mais, tempo em que se acreditava. Os ovos de chocolate, vocês sabem, são tão ocos quanto as cascas de cigarra...

Na tradição cristã mais antiga a semana santa era um teatro, o drama da vida dentro de uma casca de noz. Teologia mínima.

Duas cenas apenas. Primeira cena: a morte e o seu horror parecem triunfar. Segunda cena: a vida sai do túmulo de pedra, deixando-o vazio como uma casca de cigarra.

(Rubem Alves)


03 - A VERGONHA (BBB-10)

Que me perdoem os ávidos telespectadores do Big Brother Brasil (BBB), produzido e organizado pela nossa distinta Rede Globo, mas conseguimos chegar ao fundo do poço. A décima (está indo longe) edição do BBB é uma síntese do que há de pior na TV brasileira. Chega a ser difícil encontrar as palavras adequadas para qualificar tamanho atentado à nossa modesta inteligência.

Dizem que Roma, um dos maiores impérios que o mundo conheceu, teve seu fim marcado pela depravação dos valores morais do seu povo, principalmente pela banalização do sexo. O BBB 10 é a pura e suprema banalização do sexo.

Impossível assistir ver este programa ao lado dos filhos. Gays, lésbicas, heteros... todos na mesma casa, a casa dos “heróis”, como são chamados por Pedro Bial. Não tenho nada contra gays, acho que cada um faz da vida o que quer, mas sou contra safadeza ao vivo na TV, seja entre homossexuais ou heterosexuais. O BBB 10 é a realidade em busca do IBOPE.

Veja como Pedro Bial tratou os participantes do BBB 10. Ele prometeu um “zoológico humano divertido”. Não sei se será divertido, mas parece bem variado na sua mistura de clichês e figuras típicas.

Se entendi corretamente as apresentações, são 15 os “animais” do “zoológico”: o judeu tarado, o gay afeminado, a dentista gostosa, o negro com suingue, a nerd tímida, a gostosa com bundão, a “não sou piranha mas não sou santa”, o modelo Mr. Maringá, a lésbica convicta, a DJ intelectual, o carioca marrento, o maquiador drag-queen e a PM que gosta de apanhar (essa é para acabar!!!).

Pergunto-me, por exemplo, como um jornalista, documentarista e escritor como Pedro Bial que, faça-se justiça, cobriu a Queda do Muro de Berlim, se submete a ser apresentador de um programa desse nível. Em um e-mail que recebi há pouco tempo, Bial escreve maravilhosamente bem sobre a perda do humorista Bussunda referindo-se à pena de se morrer tão cedo. Eu gostaria de perguntar se ele não pensa que esse programa é a morte da cultura, de valores e princípios, da moral, da ética e da dignidade.

Outro dia, durante o intervalo de uma programação da Globo, um outro repórter acéfalo do BBB disse que, para ganhar o prêmio de um milhão e meio de reais, um Big Brother tem um caminho árduo pela frente, chamando-os de heróis. Caminho árduo? Heróis? São esses nossos exemplos de heróis?

Caminho árduo para mim é aquele percorrido por milhões de brasileiros, profissionais da saúde, professores da rede pública (aliás, todos os professores) , carteiros, lixeiros e tantos outros trabalhadores incansáveis que, diariamente, passam horas exercendo suas funções com dedicação, competência e amor e quase sempre são mal remunerados.

Heróis são milhares de brasileiros que sequer tem um prato de comida por dia e um colchão decente para dormir, e conseguem sobreviver a isso todo santo dia.

Heróis são crianças e adultos que lutam contra doenças complicadíssimas porque não tiveram chance de ter uma vida mais saudável e digna.

Heróis são inúmeras pessoas, entidades sociais e beneficentes, ONGs, voluntários, igrejas e hospitais que se dedicam ao cuidado de carentes, doentes e necessitados (vamos lembrar de nossa eterna heroína Zilda Arns).

Heróis são aqueles que, apesar de ganharem um salário mínimo, pagam suas contas, restando apenas dezesseis reais para alimentação, como mostrado em outra reportagem apresentada meses atrás pela própria Rede Globo.

O Big Brother Brasil não é um programa cultural, nem educativo, não acrescenta informações e conhecimentos intelectuais aos telespectadores, nem aos participantes, e não há qualquer outro estímulo como, por exemplo, o incentivo ao esporte, à música, à criatividade ou ao ensino de conceitos como valor, ética, trabalho e moral. São apenas pessoas que se prestam a comer, beber, tomar sol, fofocar, dormir e agir estupidamente para que, ao final do programa, o “escolhido” receba um milhão e meio de reais. E ai vem algum psicólogo de vanguarda e me diz que o BBB ajuda a "entender o comportamento humano". Ah, tenha dó!!!

Veja o que está por de tra$$$$$ $$$$ do BBB: José Neumani da Rádio Jovem Pan, fez um cálculo de que se vinte e nove milhões de pessoas ligarem a cada paredão, com o custo da ligação a trinta centavos, a Rede Globo e a Telefônica arrecadam oito milhões e setecentos mil reais. Eu vou repetir: oito milhões e setecentos mil reais a cada paredão.

Já imaginaram quanto poderia ser feito com essa quantia se fosse dedicada a programas de inclusão social, moradia, alimentação, ensino e saúde de muitos brasileiros?

(Poderia ser feito mais de 520 casas populares; ou comprar mais de 5.000 computadores).

Essas palavras não são de revolta ou protesto, mas de vergonha e indignação, por ver tamanha aberração ter milhões de telespectadores.

Em vez de assistir ao BBB, que tal ler um livro, um poema de Mário Quintana ou de Neruda ou qualquer outra coisa..., ir ao cinema..., estudar..., ouvir boa música..., cuidar das flores e jardins..., telefonar para um amigo..., visitar os avós..., pescar..., brincar com as crianças..., namorar... ou simplesmente dormir.

Assistir ao BBB é ajudar a Globo a ganhar rios de dinheiro e destruir o que ainda resta dos valores sobre os quais foi construída nossa sociedade.

(Luís Fernando Veríssimo)


02 - PERQUIRIÇÕES

Quem é que nunca teve um Marcelo, um Felipe, um Ricardo, um André ou um Alexandre na vida?

Tudo bem, pode ser uma Juliana, uma Ana, uma Patrícia ou uma Aline...

Paquerar é bom, mas chega uma hora que cansa!

Cansa na hora que você percebe que ter 10 pessoas ao mesmo tempo é o mesmo $ não ter nenhuma, e ter apenas uma, é o mesmo que possuir 10 ao mesmo tempo!

A "fila" anda, a coleção de "figurinhas" cresce, a conta de telefone é sempre altíssima. Mas e ai? O que isso te acrescenta? Nessas horas sempre surge aquela tradicional perguntinha: Por que aquela pessoa pela qual você trocaria qualquer programa por um simples filme com pipoca abraçadinho no sofá da sala não despenca logo na sua vida??? Se o tal "amor" é impontual e imprevisível que se dane! Não adianta: as pessoas são impacientes! São e sempre vão ser! Tem gente que diz que não é... "Eu não sou ansioso, as coisas acontecem quando tem que acontecer." Mentira!

Por dentro todo ser humano é igual: impaciente, sonhador, iludido... Jura de pé junto que não, mas vive sempre em busca da famosa cara metade! Pode dar o nome que quiser: amor, alma gêmea, par perfeito, a outra metade da laranja... No fim dá tudo no mesmo. Pode soar brega, cafona... Mas é a realidade.

Inclusive o assunto "amor" é sempre cafonérrimo. Acredito que o status de cafona surgiu porque a grande maioria das pessoas nunca teve a oportunidade de viver um grande amor. Poucas pessoas experimentaram nesta vida a sensação de sonhar acordada, de dormir do lado do telefone, de ter os olhos brilhando, de desfilar com aquele sorriso de borboleta azul estampado no rosto...

Não lembro se foi o "Wando" ou se foi o "Reginaldo Rossi" que disse em uma entrevista que se a Marisa Monte não tivesse optado pelo "Amor I love you" e que se o Caetano não tivesse dito "Tô me sentindo muito sozinho.." eles não venderiam mais nenhum disco.

Não adianta, o publico gosta e vibra com o "brega".

Não adianta tapar o sol com a peneira. Por mais que você não admita: você ficou triste porque o Leonardo di Caprio morreu em "Titanic" e ficou feliz porque a Julia Roberts e o Richard Gere acabaram juntos em "Uma Linda Mulher"; existe pelo menos uma música sertaneja ou um "pagodinho" que te deixe com dor de cotovelo; quando você está solteiro e vê um casal aos beijos e abraços no meio da rua você sente a maior inveja; você já se pegou escrevendo o seu nome e o da pessoa pela qual você está apaixonado no espelho embaçado do banheiro, ou num pedacinho de papel; você já se viu cantando o mantra "Toca telefone toca" em alguma das sextas-feiras de sua vida, ou qualquer outro dia que seja; você já enfiou os pés pelas mãos alguma vez na vida e se atirou de cabeça numa "relação" sem nem perceber que você mal conhecia a outra pessoa e que com este seu jeito de agir ela te acharia um tremendo louco; você, assim como nos contos de fada, sonha em escutar um dia o tal "E foram felizes para sempre".

Bem.., preciso continuar?

Ok, acho que não... Negue o quanto quiser, mas sei que já passou por isso, e se não passou, não sabe o quanto esta perdendo...." O problema de resistir a uma tentação é que você pode não ter uma segunda chance"

"Falo a língua dos loucos, porque não conheço a mórbida coerência dos lúcidos."

(Luís Fernando Veríssimo)


01 - A VERDADE

Uma donzela estava um dia sentada à beira de um riacho deixando a água do riacho passar por entre os seus dedos muito brancos, quando sentiu seu anel de diamante ser levado pelas águas. Temendo o castigo do pai, a donzela contou em casa que fora assaltada por um homem no bosque e que ele arrancara o anel de diamante do seu dedo e a deixara desfalecida sobre um canteiro de margaridas. O pai e os irmãos da donzela foram atrás do assaltante e encontraram um homem dormindo no bosque, e o mataram, mas não encontraram o anel de diamante. E a donzela disse:

- Agora me lembro, não era um homem, eram dois.

- E o pai e os irmãos da donzela saíram atrás do segundo homem e o encontraram, e o mataram, mas ele também não tinha o anel. E a donzela disse:

- Então está com o terceiro!

Pois se lembrara que havia um terceiro assaltante. E o pai e os irmãos da donzela saíram no encalço do terceiro assaltante, e o encontraram no bosque. Mas não o mataram, pois estavam fartos de sangue. E trouxeram o homem para a aldeia, e o revistaram e encontraram no seu bolso o anel de diamante da donzela, para espanto dela.

- Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo e a deixou desfalecida - gritaram os aldeões. - Matem-no!

- Esperem! - gritou o homem, no momento em que passavam a corda da forca pelo seu pescoço. - Eu não roubei o anel. Foi ela que me deu!

E apontou para a donzela, diante do escândalo de todos.

O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando, quando a donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o beijo. Depois a donzela tirara a roupa e pedira e pedira que ele a possuísse, pois queria saber o que era o amor. Mas como era um homem honrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia ter paciência, pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então a donzela lhe oferecera o anel, dizendo "Já que meus encantos não o seduzem, este anel comprará o seu amor". E ele sucumbira, pois era pobre, e a necessidade é o algoz da honra.

Todos se viraram contra a donzela e gritaram: "Rameira! Impura! Diaba!" e exigiram seu sacrifício. E o próprio pai da donzela passou a forca para o seu pescoço.

Antes de morrer, a donzela disse para o pescado:

- A sua mentira era maior que a minha. E eles mataram pela minha mentira e vão matar pela sua. Onde está, afinal, a verdade?

O pescador deu de ombros e disse:

- A verdade é que eu achei o anel na barriga de um peixe. Mas quem acreditaria nisso? O pessoal quer violência e sexo, não histórias de pescador.

(Luís Fernando Veríssimo)