O Centro do Caminho III

14/04/2004 - Finalmente em Puente de la Reina

    A Catedral de Santa Maria de Sevilha, feericamente iluminada, “uma genial e deliberada raridade”, nas palavras do ilustre escritor espanhol Camilo José Cela, Prêmio Nobel de Literatura em 1.989, erguia-se imponente à nossa frente.

    À luz baça e imprecisa da madrugada, o estupendo edifício, também nominado de “Magna Hispalensis”, de estilo gótico tardio, se apresentava colossal, embasbacante, gigantesco mesmo, como aliás o pretendiam seus construtores.

    Porquanto, em sua origem esteve uma resolução uníssona: construir um templo tão deslumbrante, que nenhum outro se lhe comparasse, pois os clérigos que decidiram por sua edificação, sonhavam passar por loucos perante as gerações vindouras.

    A verdade é que o resultado foi – e ainda é – a maior igreja gótica do mundo e o terceiro maior templo da cristandade (logo a seguir à Catedral de São Pedro, em Roma e à Catedral de São Paulo, em Londres).

    E toda aquela descomunal massa de tijolos e pedras, amparada por grossas, altaneiras e infindáveis paredes, nos intimidava, deixando-nos tensos e receosos naquela gélida e invernal manhã de março de 2.008.

    Posto que, apesar da amplitude do ambiente, precisávamos localizar dentre suas 13 portas (como a do Lagarto e do Perdão), aquela denominada “de la Asunción”, defronte à qual onde se encontra fincado o marco zero da “Via de la Plata”.

    Deliberamos alguns momentos, eu e meu companheiro de jornada, Francisco, traçando planos.

    Em seguida, ainda confusos, porém obstinados, empreendemos um giro completo no sentido horário, perlustrando ao redor da imensa Sé.

Contudo, debalde nossa pertinácia e redobrada atenção, não logramos o intento desejado.

Desanimados, resolvemos indagar a um elegante ancião que, apesar do horário extemporâneo, calmamente transitava pela calçada oposta. O robusto velhote, sentindo nosso atabalhoamento e urgência, gentilmente, guiou-nos até o destino.

Finalmente, encontrávamos nosso objetivo!

Diante daquele local sacro e venerando, rapidamente nos posicionamos para uma foto, um marco à posteridade.

    Depois, cada qual, em particular devoção, fez sua oração pedindo proteção ao seu Santo de confiança.

    Na sequência, nos cumprimentamos, vez que estávamos no limiar de encetar uma heroica, audaz e intrincada aventura.

    E isto nos infundia, calorosamente, um misto de emoção, medo, estoicismo e desprendimento, porquanto, necessitaríamos sobrelevar inúmeros obstáculos, dificuldades e contratempos até nosso aporte à Santiago.

    Em seguida, partimos pela Avenida de “la Constitución”, seguindo em passos lentos, enquanto aguardávamos nossos músculos se aquecerem.

    Mais à frente, acessamos a “calle de Jimios e, em seguida, a “Reyes Católicos”. Logo abaixo, ultrapassamos o rio Guadalquivir pela “Puente de Isabel II” e fletimos, radicalmente, à direita, rumo ao norte.

    Então, após vencermos os arrabaldes sevilhanos, confiantes e determinados, nos embrenhamos pelos páramos Andaluzes, com os olhos fixos em Compostela.

  A MINHA PEREGRINAÇÃO  

    “A pior coisa que pode acontecer na vida de uma pessoa não é quando seu projeto não dá certo, seu plano de ação não funciona ou quando a viagem termina no lugar errado. O erro é não começar. Esse é o maior naufrágio”. (Almyr Klink)

    O desejo de retornar ao Caminho de Santiago surgiu, naturalmente, nos estertores do ano de 2.007, fruto de um anseio irrefreável e que não aceitava postergações.

Na verdade, a opção de ir novamente trilhá-lo, revelava uma escolha, como inúmeras outras possibilidades, de também crescer intimamente.

Talvez não fosse a mais lógica, pois representava a imposição de libertar-se novamente dos padrões exigentes de minha vida, por mais de 30 dias, e enfrentar 1.000 quilômetros de caminhada, sob sol e chuva, carregando nas costas só o indispensável para sobreviver, além, obviamente, do inseparável peso do próprio estresse acumulado ao longo dos anos.

Ao mesmo tempo, com visão mais opulenta e motivacional, talvez fosse a oportunidade de realmente se livrar das obrigações e de reencontrar momentos de recolhimento.

Ou, ainda, pudesse ser a ocasião de desfrutar da paisagem e de admirar a natureza, de vencer o cansaço do corpo e as dores musculares e de lembrar como era gostoso e divertido, quando criança ou nas peregrinações pretéritas, apanhar chuva e sol.

E, finalmente, de constatar que o indispensável para a vida é, de fato, bem pouco para carregar, se a alma estiver leve.

Por conseguinte, ao se afastar da rotina e do ambiente familiar da vida doméstica, partindo em direção ao desconhecido e submetendo-se às agruras e a incerteza, numa terra estranha, o peregrino adentra a um estado de intensa introspecção, reflexão e oração.

Nesse diapasão, o Caminho de Santiago é apenas a materialização de um dos múltiplos roteiros que, como tantos outros, estão dentro de nós.

Dessa maneira, o importante é a intenção de percorrê-los e, para tanto, o fundamental é vencer a inércia e, com sabedoria, ousar defrontá-los e crescer.

Pois, por trás de cada ato a ser intentado com esse propósito, há sempre uma poderosa força propulsora que nominamos de motivação.

O que me sobreveio à lembrança, na hora de minha decisão de caminhar outra vez na Espanha, foi uma frase do célebre navegador Amyr Klink, encimada, em destaque, que fala da necessidade imperiosa de se colocar na água o barco recém construído, pois “o maior naufrágio é permanecer ancorado.”

Iniciada a jornada, tudo o que pode acontecer são outras aventuras ou novos rumos, com desenvolvimento e desfechos imprevisíveis, mas sem o risco de ver o casco do navio apodrecendo no estaleiro.

 A “VIA DE LA PLATA”

   

  

  Marco Zero da Via de la Plata - Sevilha

    A definição da Rota que iria percorrer, foi uma decisão que mereceu uma atenção especial, posto que objetivava conhecer plagas inéditas e afrontar novos desafios.

    Nesse sentido, sempre encadeei etapas lógicas e precisas, primeiramente, passando do desejo à determinação, concepção, planejamento e, finalmente, à execução.

    Assim, depois de acurados estudos e muita ponderação, optei pela “Via de la Plata”, o que na verdade representava uma enorme porfia, visto ser um roteiro agreste, ermo e longo.

    Posto que, dentre todos os caminhos espanhóis que se dirigem ao Santuário Compostelano, ela é a que detém maior extensão, vez que Sevilha dista de Santiago, exatamente, 1.000 quilômetros.

    E para vencê-la, em sua totalidade, eu precisaria ser audacioso e forte, porém, também, sensato e precavido.

    Desse modo, as pesquisas que diligentemente coligi, davam conta de que eu enfrentaria um percurso extremamente deserto, onde pode-se passar dias inteiros sem avistar vivalmas, e é mais frequente topar-se com ciclistas do que com caminhantes.

    Em suma, ela se mostra inadequada para os que não suportam a solidão ou perseguem um contato mais frequente com outros peregrinos.

    Por outro lado, ela é perfeita para aqueles que aspiram quietude e tranquilidade, além de oferecer inúmeros atrativos em seu entorno cultural e paisagístico.

    E, se apraz ao viandante manter estreito contato com os habitantes dos “pueblos” que se situam ao longo desse Caminho, isto muito lhe confortará, pois é neles que encontrará o necessário calor humano.

    Quanto à parte climática, a melhor época para percorrê-la é entre o mês de março ou abril, quando o calor não chega a ser excessivo.

    Ademais, com o início da primavera, a paisagem torna-se maravilhosa, sobretudo os prados floridos que ainda não se encontram integralmente verdes, pois, se revestem de um manto de flores brancas, amarelas e violetas.

    Por derradeiro, como um divisor de águas, considero interessante transcrever o último parágrafo inserido na edição do ano 2.000, do Guia da CSJ (Confraternity of Saint James), porquanto, creio que clarifica o que acorre a muitos dos caminhantes, quando do aporte à Compostela, ao término desse roteiro:

    “Alguns peregrinos têm comentado que ao chegar à Santiago, se sentiram um pouco triste, particularmente, se anteriormente já haviam percorrido o Caminho Francês.

    È claro que, depois de 1.000 quilômetros caminhando sozinho desde Sevilha, veem-se, repentinamente, submergidos num mar de gente que, após disporem de tempo para se conhecer desde Roncesvalles ou algum outro lugar do Caminho, celebram entre si, com alvoroço, na sua chegada.

    É uma festa à qual o peregrino “Platense" se vê excluído e acha estranho, pois poucas vezes pôde gozar deste espírito festivo ao longo de seu solitário trajeto.

    Diferentemente da outra Rota, onde, progressiva, imperceptível e inexoravelmente, se vai relaxando este espírito espartano e aventureiro com o qual partimos.

    E, a cada manhã se levanta um pouquinho mais tarde, cada dia se faz novos amigos, a cada semana se divide mais refeições e onde tudo vai se tornando, paulatinamente, fácil, alegre e cálido...”

    Este, em rápidas pinceladas, era um retrato daquilo que me aguardava na Espanha.

OS CUIDADOS

    De tudo que pesquisei a respeito da “Via de la Plata”, um detalhe chamou vivamente minha atenção e me deixou receoso e inseguro.

    Porquanto, em quase todos os depoimentos que li insertos em sites espanhóis por quem nela havia transitado, davam conta de que o caminho estava mal sinalizado em algumas etapas, induzindo o caminhante, muitas vezes, a tomar rumo errado.

    E se há algo que realmente estressa o peregrino, é a possibilidade de se perder. Mormente num roteiro ermo e solitário.

    Nesse prisma, resolvi percorrer a “Via de la Plata”, apenas, se encontrasse companhia adequada.

    Assim, após alguns contatos pela Internet, vim a conhecer o Francisco, um jovem e empolgado engenheiro paulistano, apaixonado pelas caminhadas, que sempre sonhara com o Caminho de Santiago.

    Fizemos alguns treinamentos juntos e pude aquilatar que, embora inexperiente em longas jornadas, ele se mostrava muito bem fisicamente, além de estar centrado em nosso objetivo.

    Francisco era uma companhia divertida e houve uma compatibilidade instantânea entre nós.

            

Peregrinos franceses em Fuente de Cantos, 5ª etapa.

    Então, após as tratativas necessárias, agendamos o início da peregrinação para meados de março, final do inverno europeu.

    E mais, aproveitando o interlúdio ao “Velho Mundo”, ele se inscreveu num curso de especialização na área de implosão de edifícios, a ser realizado em Barcelona, com o escopo de se atualizar em sua profissão.

    Contudo, na data aprazada, ele viajaria para se encontrar comigo em Sevilha e, de lá, partiríamos em direção à Santiago.

   O CENTRO DO CAMINHO

    “Os verdadeiros viajantes são aqueles que partem por partir”, disse o poeta Baudelaire, definindo de modo exemplar a figura do peregrino.

    Com efeito, viagem, definida de outra maneira, é a transformação pelo movimento. E todo impulso que acontece em nossa existência, converge, de alguma maneira, para nosso centro espiritual.

    Visto que, o desejo de estímulo físico está sempre associado à dinâmica da vida, tanto quanto a inação se alude à rigidez da morte.

    Partir para o desconhecido, no entanto, pode ser assustador.

    Entretanto, para quem tem na alma a inquietude do vento, o desejo de descoberta supera o medo, instiga a caminhada e catapulta o viajor em direção à sua meta sagrada.

    Veterano de outras caminhadas, sabia que a ânsia de chegar ao destino, poderia, de alguma forma, comprometer o resultado almejado.

    Uma vez que as verdadeiras experiências enriquecem e ampliam os níveis de consciência individual, e costumam ocorrer durante e ao longo da jornada.

    Nesse contexto, tinha pleno conhecimento que atingir a metade do percurso, é tão importante e vital quanto o aporte derradeiro ao alvo traçado.

    Isto porque, ali é o local adequado para se reavaliar o sucedido até aquele patamar, além de planejar o futuro e, se o caso, traçar e implementar novas estratégias que facilitem a consecução da meta tencionada.

    Ademais, eu planejava vencer todo o traçado da “Via de la Plata, no máximo em 34 dias, um tempo um tanto exíguo, vez que o Guia Espanhol editado pela Revista Consumer, mensura o tempo ideal para fazê-lo em 38 etapas.

    Assim, na consecução de meu projeto, tinha consciência absoluta, exigiria continuidade e persistência. Desse modo, qualquer desvio ou esmorecimento podiam ser fatais.

    Isto posto, depois de consultar meus apontamentos e implementar o cronograma de viagem, satisfeito, verifiquei que, simbolicamente, a metade de minha odisseia seria completada, quando atingisse a belíssima cidade de Salamanca, depois de ter sobrelevado, exatos, 518 quilômetros.

    Por óbvio, se analisado sob a ótica numérica, quando ali chegasse eu já teria ultrapassado o “Meio do Caminho”.

    Todavia, esse dado não teria tanta relevância, vez que elegera tal localidade para, além de desfrutar de seus encantos naturais e históricos, fazer um verdadeiro “raio x” de meu íntimo, bem como de minhas condições físicas e psíquicas.

    Em consonância, estaríamos, eu e meu companheiro Francisco, dentro do emprazamento acordado? E como andariam nossas relações interpessoais? O imprevisível clima espanhol estaria jogando a nosso favor? Aportaríamos juntos no meio da jornada ou algo desalentador ocorreria no intermeio?

    Bem, estas eram apenas algumas das incertezas que pululavam na mente, quando tracei o roteiro de minha saga.

    Porém, elas só se revelariam quando alcançasse o “Centro do Caminho” que, novamente, adquiriu contornos logísticos de fundamental importância, aonde, se necessário, poderia repensar ou readequar meus objetivos.

     A PARTIDA

    A chegada à Sevilha ocorreu num Domingo de Ramos, à hora do almoço, após extensa e cansativa viagem.

    Francisco, o dileto companheiro de viagem, já me aguardava no saguão aeroporto e nosso reencontro foi para mim motivo de intensa alegria.

    Porém, confesso que ao revê-lo, levei um choque, pois quase não o reconheci: estava com contornos físicos bem diferentes daquela pessoa atlética, glabra e bronzeada com o qual fizera amizade no Brasil.

    Justificou-se, no entanto, confidenciando que durante sua estada na capital da Catalunha chovera praticamente todos os dias.

    Ademais, as comemorações diárias com os novos amigos de estudo, regadas à muito vinho e as delícias da cozinha espanhola, haviam contribuído decisivamente para que extrapolasse os limites.

    Para piorar, não conseguira caminhar uma única vez desde que aportara ao “Velho Continente” e, como resultado, sua musculatura mostrava-se atrofiada e sem tônus muscular.

    Um risco, em vista da grandiosidade de nossa empreitada.

    Porém, ele me acalmou asseverando que, a partir daquele dia, tudo entraria novamente nos eixos e que estava integralmente focado em nossa meta.

    E, sob o eflúvio de sua solene promessa, partimos em um táxi para o centro da urbe.

    Depois de convenientemente hospedados, fomos almoçar.

    Mais à tarde, após um breve descanso, saímos com o objetivo de conhecer o centro histórico da monumental Sevilha.

    No entanto, em razão das festividades religiosas programadas para aquela data, a urbe se encontrava ornamentada e fervilhante.

    Pois, a principal festa da cidade é a Semana Santa, na qual mais de 60 irmandades desfilam por suas ruas, saindo dos diversos templos até à "Carrera Oficial" (percurso obrigatório para todas), que começa na Campana e finaliza ao sair da Catedral, onde se realiza a estação de penitência.

    Para se ter uma ideia da grandiosidade das solenidades, um terço de sua população, atualmente, 700 mil habitantes, participa nas confrarias, seja como irmãos da luz, "costaleros" ou membros de uma banda.

    Só que há um influxo humano gigantesco de devotos, turistas e curiosos, e a multidão acaba invadindo as ruas, e da celebração mesmo não se vê quase nada.

    Dos entrudos, só consegui distinguir a ponta em forma de cartucho das sinistras máscaras parecidas com as da organização americana Ku-Klux-Klan. Os fiéis, metidos nos seus dominós sombrios, acompanham lugubremente as procissões desde os tempos da Inquisição.

    Apenas as cores variam, segundo a paróquia a que pertencem: brancos, vermelhos, roxos, negros. Mas, todos espectrais. É um carnaval às avessas, sem nenhuma alegria, como no verso do poeta Bandeira. Na verdade, mais parece aquele festim medieval para fugir da peste, descrito no conto de Edgar Alan Poe.

    O ponto alto do desfile de procissões se entrecruzando pelas ruas são os andores. Colossais, verdadeiros altares ambulantes, carregam centenas de velas acesas, iluminando imagens de tamanho natural, com ornatos de ouro e prata, numa resplandecente profusão. Alguns são maiores que um automóvel.

    Nota-se, que são pesadíssimos. Ainda assim, seguem pela rua, vacilantes, parece que singram no meio do povo por si mesmos, como navios.

    Sem contar que são movidos pela força humana, já que não se permite o uso de motor, nem a mobilidade das rodas, como os carros alegóricos do nosso carnaval: vão nos ombros de pobres cristãos, dezenas de infelizes que, em anônimo cilício, aguentam aquele peso todo, ocultos pelos quatro lados por uma cortina de pano, sem nada ver e sem ser vistos por ninguém. Não têm a menor participação na festa a não ser esta, é o sacrifício deles.

    Para assistir ao desfile, os privilegiados conseguem uma das cadeiras de armar, enfileiradas ao longo das ruas, em quase toda a extensão do percurso. Os que sobram, naturalmente mais numerosos, se comprimem nas calçadas, ou extravasam para os bares e restaurantes entupidos de gente.

    Naquele domingo, conseguimos abrir caminho no meio do povo, porém, logo nos perdemos entre as paredes brancas do extenso labirinto de becos e ruelas desertas que compõem o “casco viejo” da urbe.

    E, por estar fechada, não pude visitar a Catedral, onde comentam, o interior ser impressionante pelo tamanho. Só o “Tenebrário”, um candelabro de quinze braços, tem sete metros de altura.

    Não pude também conhecer a torre da Giralda, onde alguns sobem caminhando os noventa metros de rampa, um percurso circular que Fernando, o Terceiro, um dia subiu a cavalo. O que não é vantagem: a pé é que é de matar, conforme contam os intimoratos que se arriscam a tal peripécia.

    Porém, segundo quem ali esteve, o sacrifício vale a pena, pois dela se descortina um visão linda da cidade, plena de laranjeiras em flor, à época.

    De volta ao local de pernoite, imediatamente demos início a arrumação de nossas mochilas, com vistas à partida rumo à Santiago, no dia posterior. E, essa premência aflitiva, nos deixava inquietos e ansiosos.

    Posto que, realmente, o momento inicial de uma grande viagem, é sempre muito tenso e carregado de fortes emoções.

    Afinal, teríamos um longo percurso pela frente, pleno de riscos, embates e desafios.

    Durante mais de trinta dias caminhando, precisaríamos atravessar montanhas, vales, planaltos desérticos, ao mesmo tempo, enfrentaríamos chuva, frio, poeira e calor.

    Tudo movido pela fé e o desejo de abraçar o Santo.

    Seria, também, uma ótima oportunidade para conhecer, expandir e, quiçá, extrapolar nossos limites, tanto físicos quanto espirituais.

    E, enquanto fazia a checagem final de meus pertences, tal qual um filme, “insights” invadiram minha mente.

    Neles me vejo aportando em Santiago, feliz, depois de ter finalizado mais um Caminho.

    Certamente, vou querer me admirar no espelho, para certificar de que estou mais forte e determinado que quando parti.

    Esse, sem dúvida, será outro momento especial!

    A SOLIDÃO

    Conquanto o roteiro estivesse muito bem sinalizado, os problemas físicos de Francisco, meu companheiro de viagem, se iniciaram logo na primeira jornada, vez que depois de 15 quilômetros de caminhada, ele começou a “puxar” visivelmente a perna direita.

    Desse modo, resolvemos fazer uma pausa e verificar a causa das dores. Ao descalçar a bota, notamos que havia três enormes bolhas na sola e no lado do seu pé. Mau começo, pensei!    

    Prontifiquei-me em ajudá-lo, fiz-lhe um curativo rápido, dei-lhe um analgésico e seguimos em frente, pois, estávamos próximos de nossa meta do dia.

    Porém, para complicar, na metade do segundo percurso, o meu dileto amigo passou a coxear da perna direita. Confessou-me que, para cúmulo do azar, torcera seu joelho esquerdo numa íngreme e brusca depressão, quando caminhava à minha retaguarda.

    Fizemos, então, pequena pausa, a fim de recuperar as forças. Durante o descanso, ele ingeriu mais um analgésico e prosseguimos, pois, o sol já começava a incomodar.

    À noite, na pensão onde pernoitamos, infelizmente, “Fran” se mostrava desanimado e com o espírito abatido em relação a sua peregrinação, posto que além do aparecimento de mais algumas bolhas no pé, nesse dia, seu joelho esquerdo estava terrivelmente inchado e dolorido.

    E, na manhã do dia seguinte, depois de completar sua higiene matutina, foi sincero e sucinto. Disse-me que por conta das dores, tinha plena consciência de que não conseguiria completar a etapa daquele dia. Ademais, seu joelho piorara e ele sabia que se persistisse no Caminho, seria mais um estorvo que boa companhia.

Com Francisco e um peregrino espanhol em Almadén de la Plata 

    Diante disto, relatou-me aos prantos que ponderara muito durante a noite e resolvera desistir. Assim, decisão sacramentada, iria tomar um ônibus de volta à Sevilha e, incontinenti, regressar ao Brasil. Então, quando lá aportasse, mandaria notícias via Internet.

    Confesso, sua súbita resolução me apanhou de surpresa e me causou um grande choque. Contudo, raciocinei, me sentia bem e com saúde, o que me permitia seguir sozinho.  

    Entretanto, a mútua simpatia que nos ligou durante a viagem, perdurou mesmo após o Caminho, porquanto, desse salutar convívio nasceu duradoura amizade, cultivada em posteriores encontros, e é com prazer que aqui rendo homenagem a esse grande coração.

    Naquela data, porém, um tanto confuso e decepcionado, após emocionada despedida, prossegui minha solitária jornada.

    Na verdade, parti triste e inseguro, todavia, detestava paranoias. Pois, quando elas ocorrem, costumam paralisar o sujeito e fazer com ele imagine coisas onde elas não existem.

    Entrementes, era necessário enfrentar a dura realidade e a emergente solidão.

    Por sorte, em vista de vivenciar na ocasião, a Semana da Páscoa, existia um número expressivo de peregrinos no caminho, circunstância que concorreu, decisivamente, para me deixar mais tranquilo e confiante.

    Com efeito, ao encerramento da 3ª etapa, 18 pessoas pernoitaram no albergue de Almadén de la Plata. E, em Fuente de Cantos, final de minha 5ª etapa, éramos 25 peregrinos a dividir espaço no seminário local.

    

Redigindo meu diário no albergue de São Pedro de los Rozados

    Contudo, eu sabia que, ao se encerrar o interregno pascal, tal número iria minguar terrivelmente, porquanto sobrariam no caminho, somente os autênticos peregrinos, aqueles que efetivamente tinham intenção de prosseguir até Compostela.

    No entanto, quando esse momento chegou, eu já me sentia mais forte e destemido, tendo, nesse meio tempo, intimorato, empreendido inúmeras jornadas solitárias, caminhando, em média, 40 quilômetros por dia.

    Assim, quando definira meu cronograma de viagem, havia planejado completar a metade da jornada em 17 dias.

    Entrementes, além do clima reinante extremamente favorável, também os ventos celestes conspiraram a meu favor, de forma que ao término da 14ª jornada, eu pernoitei na plácida povoação de São Pedro de los Rozados.

    Mais especificamente, em termos numéricos, a apenas 7 quilômetros do “Centro do Caminho.”

    E, a exatos 25 quilômetros de Salamanca!

  O MEIO DA JORNADA

    Parti numa segunda-feira, cedíssimo, ainda no escuro. Era minha 15ª jornada no Caminho e tinha urgência em chegar.

    

    Até ali, já tinha caminhado 493 quilômetros e, não fosse por um grave problema físico me atazanando, a cada novo amanhecer me sentia mais animado e decidido a completar minha peregrinação.

    

    Havia chovido muito na véspera, de forma que o clima se apresentava frígido, úmido e ventoso.

    No firmamento, milhões de estrelas brilhavam num céu límpido e davam o tom de como seria o dia.

     Estava bastante escuro ainda, e os contornos de algumas árvores que margeavam a estrada desenhavam-se, ao longe, na aurora hesitante.

    Era a hora a que em nós assoma a angústia, vaga lembrança dos terrores primitivos, quando o homem ainda ignorava se a luz volveria para espantar as trevas.

    Depois de três quilômetros caminhados em bom ritmo, cheguei à Morille, um pequeníssimo “pueblo”, onde tudo se encontrava deserto e silencioso.

    

    Não avistei vivalmas pelas ruas, apenas alguns cães ladraram à minha passagem diante do novo e moderno albergue, instalado numa vistosa residência, onde antigamente funcionava o Posto de Saúde local.

Albergue de San Pedro de los Rozados

    

    Rapidamente, ultrapassei a pequena vila e prossegui por trilhas bem demarcadas, situadas entre inúmeras fazendas de criação de gado.

    Logo à frente, após transpor pequeno riacho, me senti feliz ao alcançar a marca dos 500 quilômetros percorridos, qual seja, metade da jornada cumprida.

Neste local, quilômetro nº 500 da "Via de la Plata", se situa o "Meio do Caminho"                                                                                                                           

                                                                                                                    

    A manhã estava agradável e uma estranha sensação de felicidade tomou conta de mim. Nunca me sentira tão bem e o coração pulsou jubiloso pela conquista.

    O local era encantador, imerso em penumbra e o silêncio expectante. Só o murmúrio das águas próximas, ao saltar algum obstáculo, interrompia a quietude daquele lugar.

    Aproveitei, então, aquele momento propício e fiz uma pausa para breve descanso, agradecimento e, principalmente, reflexão.

    Na verdade, eu me encontrava próximo de um bosque e defronte uma grande fazenda que, juntamente com o raiar do dia, iniciava, de maneira pausada, sua faina diária.

    No momento em que me hidratava, uma grande caminhonete adentrou pelo portão principal da arborizada propriedade, e dela apearam várias pessoas, certamente os mantenedores daquela imensa herdade.

    Alguns caminharam rapidamente em direção ao curral, enquanto os outros se dirigiam à sede ou em direção aos imensos campos circundantes, a maior parte deles com plantações de trigo, a perder de vista.

    Lentamente, uma estranha cacofonia de sons invadiu o ambiente, com vacas mugindo, patos grasnando, pássaros cantando alvoroçados, em radiosa harmonia. Cachorros latindo, bezerros a bramir de fome, enfim, tudo vagarosamente volvia à vida.

    Enquanto professava minha fé em Santiago, face à singeleza e bucolismo do cenário, viajei, sem pressa, à minha distante infância. E, acorreu-me, com nitidez, à minha mente, um quadro que assistia diariamente, porquanto nasci e fui criado em zona rural.

    Parecia estar visualizando, tal qual num filme, episódios que ficaram indelevelmente gravados em minha lembrança.

    Um deles, guardadas as devidas proporções, tal qual retratado em um inspirado texto de autoria do renomado escritor catarinense, Virgílio Várzea, sob o título “ Manhã na Roça”, sobre o tema em comento, cujo teor reproduzo abaixo:

    

   “Uma tênue mancha de claridade argêntea recorta em laca a linha ondulada das colinas verdes.

    Pouco a pouco, uma poeira de ocre transparente, que se esbate para o alto, cobre todo o horizonte e o sol aponta deslumbradoramente, como uma gema de ouro flamante.

    Vapores diáfanos diluem-se lentamente, em meio de listrões vivos que purpureiam o nascente.

    Fundem-se no ar tons delicados de azul e rosa; e eleva-se da floresta uma orquestração triunfal: Despertam de súbito, ao alagamento tépido da luz, as culturas adormecidas.

    Abrem-se as casas.

    Pelos terreiros, úmidos da serenada da noite, homens de cócoras, em camisa, de canjirão na mão, brancos de frio, ordenham as grossas tetas das pacientes e mugidoras vacas, que criam amarradas aos finos paus das parreiras, e que, expelindo fumaça no ar frígido, ruminam ainda restos de grama numa mansidão ingênua de animal digno.

    Mulheres de xale pela cabeça chamam as galinhas, com um ruído seco do beiço tremido, fazendo “burrr” e sacundindo-lhes mãos cheias de milho e pirão esfarelado.

    Um carro atopetado de mandioca, arrancadas de fresco, empoeiradas de areia, compridas, tortas, com o aspecto e a cor esquisita das plantas [que se avolumam e vegetalizam enterradas] chia monotonamente, em direção ao engenho, solavancado pela aspereza do caminho...

    E pela compridão majestosa e verde dos alagados e das pastagens, o colorido movimentoso e variado das reses.”

    Eu me sentia suspenso, mal respirando, enlevado com aquela cena maravilhosa que assistia. Lamentava não ser um pintor, podendo assim perpetuar aquele panorama de sonho.

    Aguardei e fiz bem, pois se o quadro no lusco-fusco da madrugada era lindo, tornou-se maravilhoso quando da bruma, pairando a pouca altura, surgiu o sol avivando aquela indescritível policromia.

    Tal qual uma rica melodia que percorre em arpejos exultantes as complicadas harmonias de uma peça sinfônica, um pensamento me fazia pulsar intensamente o coração, naquele local distante de meu lar.

    Era a sensação de plena e inebriante liberdade que vivenciava naquele instante.

    Embora, o futuro fosse nebuloso e incerto, naquele momento me apresentava iridescente, tal qual o nevoeiro sobre o rio, onde esbatia o sol da manhã.

    E qual peregrino ainda não viveu esses momentos de poesia, encantamento e quimera, cuja lembrança nos põe um toque de ternura no coração?

    Conquanto me sentisse comovido e enlevado, vagarosamente, fui retornando à realidade, e verifiquei que era hora de partir, pois ainda me faltavam quase 20 quilômetros a percorrer, até minha meta para aquele dia.

    Na sequência, depois dos aprestos necessários, agora mais animado e confiante pela fagueira esperança de alcançar a cidade de Salamanca, reiniciei a marcha.

   

    O sol no princípio da primavera era agradável. E, se ao romper do dia era frio, mais tarde aquecia aprazivelmente. E, naquele horário, me sentia invadido por uma sensação de beatitude, a qual não fazia esforço algum para resistir.    Não obstante, um grave problema catalizava minha atenção e verrumava em minha cabeça.    Assim, enquanto caminhava, fui reavaliando minha condição física de peregrino, pois, naquele momento, meu joelho esquerdo se encontrava sobrecarregado e eu estava mancando. Mas, não tinha consciência da dor, porque a adrenalina circulante se incumbia de anestesiá-la.        No trajeto, como um todo, algo estranho ocorria, pois, diferentemente das peregrinações pretéritas, eu me encontrava com mais de 15 bolhas espalhadas por ambos os pés, algumas inflamadas, doloridíssimas.      A maior de todas, repleta de sangue, se localizava acima do dedinho do pé direito, o que me obrigava a poupar a perna correspondente e, consequentemente, forçar a outra.

     Pelo esforço despendido, sentia um princípio de distensão naquela “gamba”, o que comprometia o senso de gravidade, deixando-me um tanto manquitola.

     Durante um bom trecho, tenso e esmorecido, refleti enfaticamente sobre o problema, buscando uma solução. Afinal, em todas as outras caminhadas que já havia feito, nunca esse tipo de enfermidade me atormentara.

    A inusitada erupção das “ampolas” era de fácil explicação. Isto porque, a insidiosa eclosão se iniciara a partir da 6ª jornada, exatamente, quando acabou o estoque de esparadrapo micropore que havia levado do Brasil, e que era utilizado, diariamente, para envolver o algodão que usava para proteger as extremidades dos pés.

    Pois bem, aquele que adquiri na Espanha, movido pela necessidade, era de péssima qualidade, pois não se fixava à pele. E a muito custo ficava no lugar quando calçava as botas de manhã, graças à pressão das meias justíssimas que usava.

    Em decorrência de sua pusilânime aderência, após algumas horas de caminhada, a transpiração deixava a fita antialérgica e o algodão frouxos e, ao atritar com o calçado e a pele, provocavam o aparecimento de novas bolhas, a principal causa de meus dissabores naquele dia.

    Depois de analisar com calma e propriedade a questão, cheguei à conclusão que me restavam três possibilidades:

    Face às intensas dores que sentia nos membros inferiores, a primeira alternativa: foi desistir da peregrinação em Salamanca, embarcar num trem em direção à Santiago, abraçar o Apóstolo e, incontinenti, retornar ao Brasil para aproveitar o restante de minhas férias. Depois, numa outra oportunidade, retornaria para terminar o trajeto.

    Ou, ainda, como meu cronograma de viagem estava adiantado em 2 jornadas, poderia utilizar esse crédito para um merecido descanso, objetivando minorizar ou sanar de vez minhas deficiências físicas. Então, após a pausa restauradora, resolveria meu futuro.

    Mas, intimamente, minha fé era enorme de que, sob as bençãos do Santo Apóstolo, encontraria uma solução definitiva, encher-me-ia de confiança e prosseguiria adiante, como adrede programado.

    Assim, de repente dei-me conta que o Caminho se tornara precioso para mim, tal qual água escorrendo de uma torneira aberta e eu não podendo me mexer com a desenvoltura necessária.

    Esse era o tormentoso panorama que se delineava em meu íntimo. Vez que, em minha alma esperançosa, aguardava uma luz, talvez, um milagre para espancar de vez minha dúvidas.

    Nesse diapasão, mais calmo e conformado, posterguei a decisão para quando aportasse ao meu destino naquele dia, pois Salamanca já aparecia no horizonte, alcandorada no tope de uma elevação.

    E que me pareceu, de grande distância, vestida em amarelo ocre, fato que decorre em função do arenito utilizado em suas principais edificações, apresentar uma coloração levemente dourada clara.

    A entrada, na parte urbana da cidade, se faz por ruas bem sinalizadas, entre grandes olmeiros e, às 12 h, eu atravessava uma enorme ponte romana situada sobre o majestoso rio Tormes, cuja construção data do ano 100 d. C, época do governo do imperador Trajano.

    Na verdade, a região é toda envolta em mistérios. Pois, conta a lenda que o local era centro das ciências ocultas e o próprio diabo lecionava magia negra na cripta da igreja de San Crebián, atualmente La Cueva de Salamanca.     Essa tradição popular criou força, graças ao livro do seu morador mais ilustre, Miguel de Cervantes.

    Salamanca, também conhecida por “Cidade Dourada”, “Capital Europeia da Cultura” e “Cidade da Língua Espanhola”, é uma charmosa e aconchegante povoação, localizada no noroeste da Espanha, na Comunidade de Castela e Leão, a 212 quilômetros de Madri.

    No global, uma pequena urbe que conta, atualmente, com 160.000 habitantes e uma numerosa população estudantil, estimada em 35.000 almas.

    Tal fator, a torna uma capital rejuvenescida, agradável, limpa, muito bem cuidada e, principalmente, segura, cujo lema principal é “Cultura e Arte como imperativo maior”, pois ela também esbanja história.

    Sua Universidade, fundada em 1.218, é a mais antiga da Espanha e uma das primeiras da Europa, juntamente com as de Paris, Oxford e Bolonha.

    Assim, detém escolas e centros de ensino da língua pátria de grande tradição e prestígio, vez que que possui os melhores profissionais qualificados nesse mister.

    Ademais, é o lugar ideal para se aprender espanhol, porque ali se fala o idioma perfeito, de qualidade, sem sotaque, em um ambiente distinto e enobrecedor.

    Estas são algumas das razões pelas quais ela é referência para os que desejam dominar o castelhano.

    Além disso, é jovem, dinâmica e viva, com um legado monumental e histórico relevante, que a tornou Cidade Patrimônio da Humanidade e referência turística mundial, em 1.988.

    Definitivamente, uma cidadezinha cosmopolita e exótica, um lugar de conotação mágica, em que se pode adquirir conhecimento e se divertir.

    E dentre suas inúmeras construções antigas, nominaria a “Casa de las Conchas”, como o edifício histórico mais emblemático dentre todos os existentes em seu “plano monumental”.

    Na verdade, trata-se de uma velha mansão do século XVI, que tem sua fachada exterior decorada com fileiras intermináveis de conchas esculpidas no arenito.

    Ela está localizada próxima da Catedral, e suas instalações, após restauradas, foram transformadas, recentemente, em uma concorrida e bem sortida Biblioteca Pública do Estado.

    Conquanto fosse uma segunda-feira, suas ruas se encontravam engalanadas, festivas, com os carros e a população se movendo em grande alvoroço, apesar do horário intempestivo.    Ao derredor, sobressaia o intermitente estouro de rojões, sons de bandas de músicas, buzinas de automóveis, enfim, me fazia lembrar nossa pátria, pós um grande jogo de futebol.     Respondendo minha indagação, um morador local informou que naquela data, seguindo a tradição, comemorava-se a "Lunes das Águas", e por conta disso as igrejas e grande parte do comércio, cerrariam suas portas às 13 h.

    

    Impende esclarecer que essa interessante festividade teve início no século XVI.     E, ela é celebrada na segunda-feira seguinte à Pascoela (comemorada no dia imediato ao Domingo de Páscoa), com a finalidade de marcar o fim da abstinência quaresmal dos dois tipos de carne: a animal e a carnal (humana).

 Sua origem remonta ao tempo do Infante Dom João, filho dos reis Católicos, que concedeu autorização para a abertura de um prostíbulo na cidade.

     Nessa época, Salamanca já fervilhava de estudantes, coisa que ainda hoje acontece.

     Retornando à história, naquela época a prostituição era tolerada e estava mesmo regulamentada. Com tantos homens na cidade - os estudantes eram todos do sexo masculino - não era de se admirar que o número de meretrizes fosse expressivo.

     Havia, no entanto, limitações legais a essa prática, como por exemplo, não podia ser exercida por mulheres naturais da cidade, nem por casadas ou mestiças.

     Existia, ainda, uma outra imposição da Igreja: na Quaresma, as prostitutas deviam abandonar a cidade, atravessando o rio Tormes, para a outra margem. A viagem era supervisionada por um padre e feita em silêncio.

     No regresso, que ocorria na segunda-feira (Lunes, em Espanhol), ao contrário, havia festa.

     Os barcos, em que as prostitutas atravessavam o Tormes, eram acompanhados por um sacerdote a quem davam alcunha de “Padre Putas”, vinham enfeitados com ramos de flores (daí o nome rameiras) e eram ovacionadas com música e grande festa pela população que ia recebê-las às margens do rio.

     Atualmente, a representação do retorno das profissionais é realizada desde 1.980. Porém, com outra conotação, posto que hoje em dia, as famílias se reúnem pela tarde e saem para o campo, parques ou para as margens do rio e fazem um piquenique, ingerindo, claro, o famoso “Hornazo de Salamanca.”

    O Ayuntamiento (prefeitura) disponibiliza divertimento extra nesses locais para lembrar a data. E as lojas, padarias, confeitarias ou quaisquer comércios do ramo alimentar, enchem-se de hornazos alguns dias antes para abastecer a procura desenfreada do tradicional prato do dia.

    A cidade transforma-se, e há um sorriso maroto na cara dos mancebos. Pois, parecem sentir uma pontinha de inveja dos jovens de antigamente.

    A festa, hoje, de cunho estritamente familiar, acabou por se espalhar para localidades próximas, não sendo mais exclusiva dessa urbe.

    Por sinal, até do lado português da fronteira, em algumas povoações, há festividades relacionadas a esse evento.

    Bem, sabendo das limitações turísticas inerentes à data, rapidamente, me dirigi à Catedral Velha de Salamanca, cuja construção ocorreu em 1.102, portanto, à 900 anos.

    Curiosamente, ela se situa ao lado da Catedral Nova, que é a penúltima em estilo gótico da Espanha, e ambas estão intactas.

    A entrada principal do faustoso templo se encontrava fechada, porém o acesso estava sendo disponibilizado por uma porta lateral, onde existe uma bilheteria, já que é necessário pagar uma taxa de 4 Euros para visitá-la.

    Contudo, utilizando as benesses de peregrino anotadas na Credencial que portava, pude adentrar gratuitamente.

    Realmente, seu interior é de deixar boquiaberto qualquer mortal, pois suas dimensões são realmente portentosas.

    Além disso, é de se admirar a grandeza, beleza e magnitude de suas naves, porquanto poucas igrejas no mundo ostentam tanto requinte arquitetônico em suas instalações.

    Seus altares e santos são representados por imagens grandiosas e impressionantes, e toda a decoração interior que a compõe, deslumbram sobremaneira o visitante.

    Todavia, naquele momento eu não me sentia como um turista ou mero expectador de arte, apenas alguém, ao alvedrio da sorte, buscando um desfecho feliz para minhas dúvidas.

    Por conseguinte, meu espírito estava inquieto e os pensamentos agitavam-se freneticamente em meu cérebro, como as centelhas de um carburador defeituoso, pois ansiava por um lenitivo para minhas agruras e dores anímicas que, como todo ser humano, também sentia.

    Assim, primeiramente me persignei.

    Depois, ajoelhei-me defronte uma das inúmeras capelas laterais ali existentes, buscando introspecção.

    O templo, praticamente deserto, transmitia-me a bonança luminosa de uma alma sem pecado.

    Sem contar que, o ambiente amplo e arejado, infundiu-me, de imediato, uma sensação de paz, conforto e segurança.

    É estranho, pensei, que os locais projetados para abrigar pessoas, como teatro e igrejas, sempre conservem aquela atmosfera de expectativa quando vazios, um eco no padrão mantido por anos irremediavelmente transcorridos em vozes e passos desvanecidos.

    Lembrei-me, então, em face do horário, que naquele momento, em Santiago, na Catedral Compostelana, desenrolava-se a missa diária, dedicada aos peregrinos e foi para lá que minha mente viajou apressada.

    No arcabouço silencioso da minha memória, podia ver, com nitidez, a figura excelsa do Santo Apóstolo, intensamente iluminada, encimado no altar-mor do soberbo templo.

    Concentrado, e totalmente à vontade, sentindo-me seguro e amparado, revelei-lhe naquele momento único, sem falsos pudores, todas as minhas apreensões que meu estado físico sentia.

    E, ao extravasar meus queixumes, mergulhei num torvelinho de emoções.

    Na sequência, rezei com vagar e convicção, suplicando saúde, clemência, sabedoria, humildade, amor e compaixão, pressupostos basilares para meu desiderato.

    Ofereci-lhe, ainda, uma oração solene, vinda do coração, rogando uma luz ou um sinal para nortear minhas decisões.

    A relação com o Caminho, meu silencioso mestre, havia se solidificado naqueles 15 dias de caminhada, e só de pensar em despedir-me dele, fazia doer a alma.

    Sabia, entretanto, que, se não me restasse outra alternativa, seria preciso a compreensão dos justos e ser grato a quem havia me permitido tal intento.

    E minha fé ali externada com vigor, nada mais era do que a certeza daquilo que aguardava, a prova cabal das coisas que não via, conforme está inserto na Bíblia sagrada (Hebreus 11.1).

    Nesse enfoque, a partir de meu desafogo, passei ali momentos de paz e encantadora serenidade. E pouco a pouco, a tranquilidade fez minha mente aquietar-se.

    Concomitantemente, uma sensação de felicidade inexprimível inundou-me, como um bom pressentimento.

    Afinal, tal qual planejara, ainda que de maneira claudicante, conseguira atingir o “Centro do Caminho”. E isto me soava como uma vitória e ótimo presságio.

    Na sequência, com extrema confiança e convicção de que meus pleitos seriam consentidos pelo meu “Protetor”, deixei o recinto e fui em busca de acomodação para pernoite.

    Esperançoso, mente desanuviada, quando emergi do templo, encontrei a praça fronteiriça banhada pela cálida luz primaveril, temperatura amena, beirando os 15ºC.

    Depois de um breve passeio pelas imediações, acabei me hospedando no Hostal Sara, um estabelecimento recém reformado e de excelente qualidade, que está situado próximo aos famosos jardins de “Calysto e Melibea”.

    Mal entrando no luxuoso quarto, fui arrancando as roupas coladas à pele e, debaixo do chuveiro, fiquei deliciado durante mais de 20 minutos, sentido a água, vestir-me de um manto refrigerador, amenizando todas as fadigas e preocupações.

    Principescamente instalado, barba feita, roupa limpa no corpo, saí para almoçar e, para tal ofício, escolhi um dos inúmeros restaurantes que funcionam nas imediações.

    Bem alimentado, resolvi seguir por uma das avenidas centrais, como forma de agilizar minha digestão e, ao mesmo tempo, conhecer o roteiro por onde partiria no dia imediato, se me fosse dada essa possibilidade.

    Logo à frente, apesar de estar em pleno horário da sagrada “siesta” espanhola, surpreendentemente, encontrei uma farmácia aberta e, por mais incrível que possa parecer, um farmacêutico jovem, competente, atencioso e com vontade de me ajudar.

    Com os peregrinos alemães Karl e Walfrid, na "Plaza Mayor"

    O Dr. Sérgio, assim se chamava ele, após acurado exame das lesões, iniciou a limpeza e assepsia nas “ampolas”, uma a uma, com extremo cuidado e conhecimento de causa. Aquela que estava dilatada pelo seu conteúdo sanguíneo, foi convenientemente transpassada com linha embebida em iodo, para que pudesse drenar seu líquido infecto.

    E ao final de seu paciente trabalho, receitou-me anti-inflamatórios, um creme cicatrizante e, ainda, me ofereceu um esparadrapo alemão, fabricado pela empresa Leoucofort, que não desgrudava da pele, até mesmo após um banho demorado e quente.

    Apesar de ter gasto mais de 20 Euros entre consulta e materiais adquiridos, confiante, regressei ao Hotel, fiz curativos complementares, dei sequência ao tratamento e, incontinenti, como um milagre recebido, me senti aliviado e extremamente otimista quanto ao porvir.

    Tanto que, logo depois, empreendi um giro turístico pela cidade.

    Calçando confortáveis sandálias do tipo “papetes”, tive a oportunidade de conhecer alguns edifícios que fazem parte de seu conjunto monumental, como a Casa das Conchas, sua Universidade, fundada pelo rei Alfonso IX, bem como o Convento das Dueñas e o Palácio de Anaya, dentre outros.

    Para melhor ilustrar meu espírito naquele memorável dia, me sentia como se já conhecesse todos os locais por onde passava, vez que já havia lido, exaustivamente, sobre os prédios históricos que fazem parte do acervo dessa magnífica urbe.

    Por sinal, um dos textos mais representativos sobre essa imponente localidade, foi escrito por Francisco da Silveira Bueno (1.898/1.989), iminente cronista, poeta, jornalista, professor, lexicógrafo, filólogo, ensaísta e tradutor brasileiro, em seu livro “Pelos Caminhos do Mundo”, Editora Saraiva (páginas 97/101).

    Para deleite e conhecimento, transcrevo abaixo o que ele viu e observou quando, em 1.953, esteve nesta cidade, portanto, 55 anos antes de minha visita:

    “À margem do Tormes, um dos afluentes do Douro, está Salamanca, a Mestra, famosa pela sua Universidade, uma das mais antigas da Europa e, certamente, a mais antiga da Espanha.

    No ano 222 a. C era já cidade florescente, capital dos Vetones, e Aníbal, após memorável batalha, a submete ao jugo cartaginês. Toda a sua grandeza, porém, começou na Idade Média quando os reis de Leão e de Castela a transformaram no maior centro religioso e cultural da Península.

    Visitá-la, hoje, mas com olhos que saibam ver no passado, com mente culta que possa avaliar a sua grande contribuição à humanidade, é um dos mais altos e finos prazeres da inteligência.

    Tudo em Salamanca, respira estudos, recorda lutas literárias, embates teológicos e filosóficos, relembra grandes nomes do Renascimento que aí ensinaram, vindos de Bolonha, de Paris, de Louvain, de Oxford, como centro que foi do mundo universitário de seu tempo.

    Duas magníficas catedrais, grandes e monumentais colégios religiosos, conventos e mosteiros, todos do mais fino gosto arquitetônico, demonstram que toda essa florescência intelectual, científica e literária, foi promovida pela Igreja Católica.

    A catedral velha, iniciada no século XII pelo bispo Don Jerônimo, aquele mesmo que fora o confessor “del Cid, el Campeador”, é toda romântica em sua arquitetura, com influências renascentistas nas pinturas e estátuas.

    Célebre é o seu quadro – “Jesus como Juiz”, pintura do florentino Nicolas, do século XV. Mais 55 afrescos do mesmo artista fazem desta catedral uma obra de arte.

    A capela “de la Talavera” chama a minha atenção sempre voltada aos problemas religiosos: é dedicada ao culto moçárabe e pude aí renovar a minha curiosidade, assistindo a missa nesse rito da Espanha, quase desconhecido no resto do mundo.

    Não era a primeira vez que isto se sucedia: em Toledo, numa capela especial, já havia tomado parte nesse ato religioso tão estranho para nós que fomos educados no rito romano. Tudo é diferente, desde as vestes sacerdotais, desde os vasos sagrados, mais simples e pobres, até a liturgia da missa: o oficiante volta-se ao povo, dialoga com ele, reza com ele, diretamente, como se estivesse a conversar.

    A elevação da Hóstia, do Cálice é também diferente: são apresentados pelo sacerdote aos assistentes para que o reverenciem. Para que todo o cerimonial se desenvolva dignamente, mantém a catedral, tanto aqui como em Toledo, um corpo de pessoas adrede preparadas para que possam responder às orações do sacerdote.

    A catedral nova é toda gótica, com grandes inovações arquitetônicas que pronunciavam a passagem do estilo antigo ao moderno. Foi iniciada no século XVI pelo bispo Dom Francisco de Bobadilla. Navarrete, Moralez foram os decoradores do grande templo salmaticense. Só um dos sinos do campanário pesa vinte e três toneladas.

    O objeto que maior curiosidade desperta, é o famoso Crucifixo de Cid: todo de bronze, tem esta denominação porque nos combates do Grande Campeador e terrível destruidor dos invasores mouriscos, ia sempre à frente das tropas, para dizer a todos que essa guerra era uma guerra santa: lutavam pela libertação da pátria, lutando pela libertação da fé.

    Eis porque, em Espanha, nunca se poderá separar o catolicismo do patriotismo: ambos se confundem: ambos fazem dos seus patriotas religiosos, dos seus religiosos patriotas. Querer desconhecer estes fatos é querer negar a história da Espanha.

    Entre as duas catedrais está essa outra catedral, a Universidade. Construída em 1.230 por Afonso IX de Leão, foi ampliada for Fernando, el Santo, de Castela, engrandecida por Afonso X, o Sábio.

    Quando transpus seus umbrais, quando contemplei toda essa frontaria gótica, quando me achei em face da estátua de Fray Luis de León, todo me emocionei como se entrado houvesse nalgum recinto ainda mais venerando que esses das veneráveis catedrais da velha Salamanca!

    Por um esforço de imaginação, revivi os áureos tempos da Mestra de todos os povos: dez mil estudantes enchiam aqueles pátios, vindos de todos os pontos da Europa, atraídos pela fama dos professores, dez mil jovens de tão variadas origens todos, porém, a falar a mesma língua, o latim, a língua universitária por excelência.

    Naqueles salões, naquelas cátedras, haviam ensinado os maiores doutores da Europa. Ali, Colombo expôs, ao mundo, as suas viagens à América. Ali, Copérnico deu a conhecer à humanidade o seu sistema, Colombo e Copérnico que reformariam o Orbe.

    Ali ensinara Francisco Vitória, ali discutira com toda a sua elegância de máximo escritor do tempo, Fray Luís de León. Ali também enchera a Espanha de fama o rebelde Unamuno. Ali estivera Clenardus, atraído desde Louvain pela fama das cátedras de grego, latim e árabe da grande Universidade.

    Quanta recordação, quando emoção para um pobre professor da Universidade de São Paulo, uma das mais jovens da América!

    A biblioteca encerra mais de duzentos mil volumes e só manuscritos raros há mais de mil, entre os quais se enumera não poucos de grande interesse cultural e histórico para as letras portuguesas. Dentre todas as salas, sem dúvida alguma a que mais me impressionou foi essa enorme, com o púlpito no alto da parede, onde ensinou Fray Luís de León.

    Um mapa, uma planta da sala no tempo do insigne mestre, mostra os alunos assentados, atentos à lição do célebre poeta: desses alunos saíram papas, reis, abades, cardeais, sábios, escritores. O ápice da emoção encontra-se na inscrição espanhola que se lê acima da cátedra: “Como decíamos ayer...”

    Para compreendê-la é necessário conhecer a história trágica deste grande espírito de frade agostiniano: professor de exegese bíblica, tradutor do “Cântico dos Cânticos”, espírito profundamente místico, mas que escrevia no mais castiço espanhol da época, despertara, naturalmente, a inveja de quantos se sentiam diminuídos pelo seu talento, por todos que ambicionavam tomar-lhe a cátedra.

    Acusaram-no de heresia e por quatro anos foi esquecido no fundo de um cárcere em Valladolid. Examinados e discutidas as suas obras, declaradas de perfeita ortodoxia, após quatro anos de silêncio, um dia, entre festas e clamores de toda a Universidade, lá no alto da cátedra, apareceu, com a mesma serenidade de outrora, a figura, hoje, imortal do frande poeta.

    Cessados os aplausos e, naturalmente, findos os discursos, quando todos esperavam que Fray Luís de León fosse fazer a sua própria defesa, reduzir a pó os seus detratores, com a maior serenidade, como se nada houvesse acontecido, reabrindo o livro de texto disse apenas essa frase que lá ainda hoje se lê: “Como decimos ayer...”, como dizíamos ontem...

    Esse ontem tinha sido há quatro anos, quando, no meio da sua lição, o arrancaram da cátedra para encerrá-lo no cárcere! É necessário ser de grande perfeição moral, de sublime elevação de caráter para, em face duma injustiça reparada, coibir os ímpetos naturais do coração e fazer silêncio sobre os quatro anos de sofrimento!

    Foi nesses anos de prisão que escrever a sua obra-prima, - “Los Nombres de Chisto”, ponto mais alto da mística espanhola, o livro ainda hoje não excedido em literatura alguma na Europa.

    Outra sala de interesse, se bem que muito menor, é essa de grego, em cuja cátedra ensinou Unamuno. Grande inteligência, espírito inquieto como de todos os bascos, as obras de Unamuno despertaram a atenção do mundo, sobretudo, essa cujo título a maioria não saber compreender: “A Agonia do Chistianismo”.

    Unamuno, professor de grego, tomou a palavra “Agonia” no sentido etimológico, de luta, combate, e não de sentido cristão de últimos momentos de vida, predecessores da morte. O título quer dizer apenas: “A Luta do Cristianismo” e não a “Morte do Cristianismo”. É necessário ler toda a obra e o prefácio em que o autor explica a semântica da palavra para não fazer injustiça ao escritor.

    Nesta cátedra de grego, assenta-se hoje Antonio Tovar Lioriente, magnífico reitor da Universidade, uma das maiores autoridades da moderna linguística de Espanha.

    Deixando as cátedras, não pode o turista esquecer a visão da belíssima “Plaza Mayor”, considerada uma mais formosas da Europa: enorme quadrado com 90 pórticos e 90 colunas coríntias, pode conter folgadamente ... 20.000 pessoas.

    Era aí que se corriam os touros e das suas balaustradas, dos seus arcos, no fausto do século XVIII, a beleza espanhola podia admirar a graça e a valentia de seus “matadores”. Construiu-a o arquiteto Andrés Garcia de Quiñones.

    E lá ficou Salamanca a mirar-se nas águas do Tormes à espera de que outros brasileiros a visitem para admirar-lhe os monumentos da sua glória.”

    No retorno ao local de pernoite, permiti-me fazer breve reflexão.

    Afinal, conseguira atingir um patamar intermediário, no qual podia relaxar, observar o Caminho até ali percorrido e alegrar-me por ter superado inúmeras dificuldades.

    Agora era imprescindível recarregar as baterias e elevar o espírito para enfrentar os desafios que me aguardavam à frente.

    À noite a temperatura caiu bastante e resolvi fazer apenas um leve lanche no quarto do Hotel.

    Porém, antes de dormir, cuidei novamente dos ferimentos, refazendo as aplicações necessárias do creme medicinal e renovando as ataduras.

    

Levantei às 6 h, e sob grande expectativa, paramentei-me para a jornada do dia.

Faria um teste, se me sentisse bem, prosseguiria adiante. Contudo, se ocorressem novas equimoses, retornaria à Salamanca e diria adeus ao Caminho.

Bem disposto e otimista, parti às 7 h e caminhei por 36 quilômetros, indo pernoitar na cidade de El Cubo de la Tierra del Vino.

Na chegada, após demorado banho, fiz um novo retrospecto de minha situação física, particularmente, de eventuais ulcerações resultantes pelo esforço despendido naquela data.

E nada poderia melhorar mais meu estado de ânimo, de puro contentamento, ao verificar que, em termos físicos, nada de mal acontecera.

Ao contrário, milagrosamente as lesões antigas haviam regredido de forma substancial e, ao mesmo tempo, as dores que tanto me importunavam, situavam-se agora num patamar tolerável.

Face à essa comprovação, senti correr pelas veias um jato de felicidade, quase assustador em sua concretude física, um regozijo que me inundava a alma. Algo que raramente acontece, depois de transcorrida a juventude.

Sobreveio-me, então, uma sensação eletrizante de esperança, ao perceber que ainda haviam chances concretas de prosseguir em minha peregrinação, até o final.

Com efeito, nos dias subsequentes as contusões adentraram num rápido processo de cicatrização e, uma semana depois, contrariando meus prognósticos mais otimistas, estava integralmente são.

Indubitavelmente, um fato de caráter sobrenatural, mormente, se considerarmos que prossegui enfrentando longas jornadas e, mais à frente, clima hostil e chuvoso nas serras da Galícia.

Assim, finalmente, no 29º dia de jornada, tal como sonhara, aportei são e salvo em Compostela!

    Feliz, na Praça do Obradoiro, imediatamente, posei para uma foto, a fim de guardar uma lembrança para a posteridade.

    Na sequência, depois de subir os 33 degraus até a entrada da Catedral, encontrei vários peregrinos já na fila para, como eu, contatar o milenar “Pórtico da Glória”.

 "Pórtico da Glória"

    É muito difícil explicar esse momento no qual ficamos com os sentimentos à flor da pele, como uma fratura exposta.

    Ao chegar a minha vez, brotaram as primeiras lágrimas em meus olhos.

    Toquei a pilastra inserindo minha mão direita no entralhe da coluna, já calcado pelas mãos peregrinas, durante mais de mil anos.

    Por alguns segundos fiz uma prece silenciosa, agradecendo por ter conseguido meu objetivo e pedindo graças a todos que me auxiliaram a cumprir essa aventura a que me propus.

    Em seguida, fui abraçar à Santiago.

    Nessa hora, mesmo sem desejar, minha vista se turvou pela emoção interior e meus olhos principiaram a entrever, sob a névoa da lágrima, o enternecedor momento em que enlacei sua imagem.

    Depois, fui visitar seu túmulo, como reza a sagrada tradição católica.

    Ao final, após dar por encerradas minhas homenagens, tributos e agradecimentos ao excelso Santo Apóstolo, naquele memorável dia passei pela “Oficina del Turismo” para retirar a “Compostelana” e, na sequência, me hospedei no confortável Hotel Real, localizado próximo ao “casco viejo” da cidade.

         

  REFLEXÕES

    Estou a relembrar acontecimentos que a saudade foi buscar no fundo de minha memória e, acudindo nítidos, apesar do longo interregno, deixam-me docemente comovido.

    Porquanto, esses diletos momentos vivenciados no Caminho de Santiago, somente nós, os autênticos peregrinos, podemos sentir vibrar continuamente em nossas almas, muito embora a pátina do tempo persista agindo, como um poderoso analgésico, esmaecendo as cores vivas de nossas dores e emoções.

    Desse modo, quem lê um singelo relato como este, jamais poderá aquilatar quais e quantas preocupações, sacrifícios, contrariedades, renúncias e fadigas, necessita sobrelevar, o humilde caminhante, a fim de alcançar o escopo desejado.

    Nesse sentido, a “Via de la Plata” transmutou-se como um grande laboratório em minha vida, onde sintetizou em meu espírito a disciplina, a paciência, a tenacidade e a perseverança: virtudes essenciais para concluir, com sucesso, uma peregrinação dessa envergadura.

    No global, a jornada, como um todo, deixou, sem dúvida, um saldo positivo em minha vida, pois, primordialmente, ajudou-me a dissipar de vez uma tendência para o perfeccionismo que desde sempre me acompanhara e que constituía, na verdade, uma fonte constante de frustração.

    Depois, em face das lesões ocorridas, ensinou-me a ser mais tolerante comigo mesmo, com as pessoas e o mundo.

    Com efeito, ao aceitar as imperfeições e aprender a gostar delas, me fez mais relaxado, leve e solto.

    Por derradeiro, o registro dessas recordações deixa-me o coração apertado, saudoso dessas paragens longínquas, localizadas no sul da Espanha, onde é quase certo, não mais voltarei a caminhar.

    Em consonância, depois de finalizar à bom termo minha jornada, retornei ao lar com a estimulante sensação de haver cumprido integralmente a “missão” a que me predispus.

    Tal qual a primavera, que no silêncio da noite se arrebenta em flores, alheia a indiferença dos homens.

                                                                                             

                                                                                                                                                                                      

FINAL

   

 

Chegou, finalmente, o dia de minha partida de Santiago.

Passei parte da manhã caminhando pelas tortuosas ruas que compõe seu “cientro monumental” e pude, novamente, constatar o afável encantamento que essa medieval cidade nos propicia.

É claro que minha percepção do ambiente condizia com o sentimento de êxtase em que me encontrava, depois de um mês sobrevivendo praticamente isolado dos grandes centros urbanos.

Mais tarde, já paramentado para a viagem e sob forte chuva, fiz minha derradeira visita à Catedral.

Naquele horário, tudo estava calmo e poucas pessoas transitavam pelo seu interior.

Assim, solitário e introspecto, permaneci por muito tempo orando e contemplando, serenamente, o esplendor da Casa Maior de Tiago.

Enquanto isso, se aquietava meu coração, pois o meu exílio voluntário chegara ao fim.

Ao deixar o templo, notei que o clima esfriara e a intensa chuva matutina, agora se convertera em úmida neblina, através da qual pequenas gotas caíam como orvalho.

Num bar localizado defronte à Praça de Quintana, ergui uma copiosa taça de um fino vinho tinto riojano, em silencioso brinde.

Depois, como um ritual, lentamente sorvi o precioso líquido.

Era um excelente néctar, e sua ingestão, ainda que de forma moderada, proporcionou a imediata dilatação de meus sentidos e estimulou voos amplos em minha imaginação.

  

   

Na sequência, desci vagarosamente as escadarias que conduzem o turista à Praça do Obradoiro e ali, compenetrado, lancei um último e já saudoso olhar ao derredor, antes de partir.

Naquele momento, a imagem de Dom José Maria Alonso, o pároco do Monastério de San Juan Ortega, local onde pernoitei em minha peregrinação de 2.001, acorreu-me à mente.

Havia no seu semblante calmo e sereno, profunda sabedoria quando afirmou naquela inesquecível data:

“O Caminho de Santiago e o Caminho da Vida são compostos da mesma essência, qual seja: uma sucessão infinita de vales, planícies e montanhas.”

Enquanto, ponderava sobre esse magnífico adágio, aguardei ainda um momento, na vã esperança de avistar um arco-íris por trás das magníficas e pontiagudas torres da Catedral Compostelana.

Depois, girei o corpo e iniciei a longa viagem de volta para casa.

                                                                                                                                                 

Queimando minhas roupas e exorcizando os "maus espíritos", em Finisterre/Espanha

  Bom Caminho a todos!

 novembro/2010

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