Na rota de Compostela

(Patrizia Bergamaschi)

A declaração papal data de 1179: todo ano em que a festa de são Tiago - 25 de julho - cair num domingo, será "Ano Santo Compostelano". Assim, 1999 revive as emoções de ver chegar a Compostela, pequena cidade no nordeste da Espanha, milhões de peregrinos de todo o mundo

Quase chegando a Compostela, está o Monte del Gozo (Montanha da Alegria, porque era esse o sentimento que dominava): de lá os peregrinos medievais avistavam a cidade-meta de suas longas caminhadas; o sonho iniciado, às vezes, há muitos meses ou até anos, estava se realizando: ver o "lugar apostólico", o túmulo de são Tiago, irmão de João evangelista, também chamado o "filho do trovão", o primeiro apóstolo a morrer martirizado. 

Hoje, no alto dessa colina, os modernos peregrinos repetem o mesmo olhar de esperança. Vindos de toda a Europa, mas também de todos os cantos do mundo, eles são principalmente jovens. Não levam mais o bastão de ponta curva para se defender e se apoiar nem o cha-péu e a capa tradicionais (foto 1); mas vêm com seus bonés coloridos, com suas mochilas repletas de uma vontade de redescobrir sua própria identidade de cristão, de experienciar a comunhão com a Igreja e com os homens. Uma verdadeiro caminhar do espírito que começa, literalmente, com os pés no chão.

Recuperando energias

Como outros centros católicos de peregrinação - e também de outras religiões - Santiago de Compostela tem sido procurado por pessoas que buscam a "energia" que emana desses lugares, considerados santos. Ficaram famosos no Brasil os relatos de artistas que percorreram o caminho e as publicações que enfatizam suas propriedades místico-energético-mágicas. Mas esse refazer de um itinerário com séculos de história é muito mais do que um filão atraente que as tendências esotéricas de todos os tipos e denominações tentam aproveitar como receita para um aprimoramento espiritual.

No Codex Calixtinus, escrito por um piedoso e culto peregrino, em 1123, enfatiza-se o verdadeiro espírito do caminho de Santiago, isto é, uma experiência única de fé: aqueles que o realizavam, ao voltar a sua terra, não eram mais os mesmos, mas se transformavam em verdadeiros testemunhos, realizando obras de misericórdia.

Atualmente, não se pode negar o fato de que um dos mais fortes atrativos de Santiago, apesar do turismo e dos esoterismos, é motivado pela história do cristianismo e pela trajetória humana de fé no decorrer dos tempos.

No último ano santo compostelano (1994), o bispo da cidade, d. Antônio Maria Rouco Varela, comentava que, em geral, entre os peregrinos de todos os tipos, há uma motivação de caráter existencial, que se fundamenta e se nutre na grande busca do sentido da vida. Muitos fazem a peregrinação dentro do legítimo espírito de penitência cristã; outros são movidos por uma curiosidade, humana e complexa, na qual está latente o problema pessoal de uma vida à qual é preciso dar significado. Em resumo, o problema é Deus. Comumente, no final da peregrinação, participam da missa do peregrino ou se confessam, porque, de alguma forma, caíram do cavalo, como são Paulo, no caminho de Damasco.

Peregrinar é preciso!

Desde a Idade Média, Santiago de Compostela (ver o significado do nome no quadro) tem sido, juntamente com Roma e Jerusalém, um dos locais mais procurados para as grandes peregrinações. O bispo da cidade francesa de Le Puy, Godescalco, teria sido, no século X, segundo as fontes mais seguras, o primeiro peregrino, mas Carlos Magno já tinha visitado o lugar antes; outros ilustres caminheiros irão na mesma rota: são Francisco de Assis, são Bernardo e tantos outros que o caminho ajudou a se tornarem santos. 

Não o caminho apenas, mas o caminhar, enfrentando pacientemente as dificuldades materiais do percurso a pé, o domínio de si, a partilha com um grupo ou a solidão, a necessidade imperiosa de silêncio, a oração, a chegada como um prêmio: a peregrinação é uma metáfora de nossa vida de eternos peregrinos nessa terra. 

"Em Santiago - comenta o bispo da cidade - ao final do caminho, quando se pode descansar, parece que se chega ao momento em que a fé se abre como uma oferta de glória para o peregrino. Para muitos, o momento final da peregrinação é um momento em que se consuma a conversão". A tradicional missa do peregrino, ao meio-dia, comprova a emoção desse momento: o silêncio é profundo e eloqüente, a participação plena de alegria, porque o peregrino fez uma verdadeira experiência de espiritualidade bíblica ao sair de sua terra, deixando aquilo que é seu, enfrentando o deserto, não olhando para trás, firme a caminho de um destino prometido.

Não é possível ser peregrino de Santiago sem reconhecer-se estrangeiro, porque assim pode-se esperar uma realidade melhor. Indo ao encontro daquele que é o Caminho, o peregrino encontra sua mais profunda realidade de um ser desejoso do Absoluto. No passado, ao final do caminho, o peregrino queimava suas roupas, para sentir-se ainda mais livre e leve, a fim de que nem mesmo o pó acumulado durante o caminho pudesse impedi-lo de encontrar-se com ele mesmo. Hoje, mais do que as roupas, os caminheiros desejariam queimar as feridas das preocupações, as angústias de nossos dias que não conseguiram acabar com as saudades que sentem de seu Deus.

Itinerário de Santiago através da história

· Ano 30 dC - Tiago, filho de Zebedeu e Maria Salomé, é chamado por Jesus, junto ao lago da Galiléia. Ele presenciará a transfiguração de Cristo no Monte Tabor.

· Ano 33 - Tiago inicia suas viagens apostólicas, pregando o Evangelho até na península ibérica.

· Ano 44 - Voltando a Jerusalém, é decapitado por ordem de Herodes.

· Século I - O corpo de Tiago é levado, por mar, até a Galícia, onde é sepultado próximo ao local em que hoje se encontra a cidade de Compostela.

· Ano 814 - O bispo Teodomiro descobre o túmulo do santo que estava escondido, num campo que lhe foi indicado por uma luz - Campus stellae - (campo da estrela = Compostela. Para outros, o nome deriva de compostum tellus, isto é, terra sepulcral). Primeiras peregrinações em tempos de heresias e confusões doutrinais.

· Ano 834 - Uma lenda conta que o santo teria aparecido durante uma batalha e favorecido a vitória espanhola sobre os mouros.

· Ano 997 - Al Mansur (o vitorioso) entra a cavalo na igreja de Compostela e saqueia tudo, respeitando apenas o túmulo do santo.

· Século XII - Expansão do culto a são Tiago e organização de grandes peregrinações. A concha torna-se rapidamente o símbolo do peregrino.

· Ano 1211 - Consagração da catedral de Compostela que permanecerá aberta dia e noite aos peregrinos.

· Século XVI - Declínio das peregrinações por causa dos violentos de Lutero.

· Ano 1589 - As relíquias do Santo são escondidas para tentar salvá-las dos procedimentos de Francis Drake.

· Ano 1879 - O corpo é reencontrado.

· Ano 1884 - O papa Leão XIII declara a autenticidade das relíquias de são Tiago.

· Ano 1982 - João Paulo II peregrino de Santiago.

· Ano 1989 - Quarto Encontro Mundial da Juventude em Compostela.

· Ano 1999 - Ano santo compostelano.