1 – UM OÁSIS, NUM PARAÍSO ETÍLICO

A melhor maneira de começar uma amizade é com uma boa gargalhada. De terminar com ela, também.” (Oscar Wilde, escritor, poeta e dramaturgo irlandês)

Eu aportei à cidade de Dublin numa quinta-feira, na hora do almoço e, após lauta refeição, passei a tarde curtindo toda saudade represada das netas e da família, além de conhecer a minha mais nova parente: a Ive, uma cachorrinha da raça Lulu da Pomerânia, muito graciosa por sinal.

Poderia pernoitar na nova moradia de meu filho, porém, não pretendia interferir em sua rotina de trabalho, no horário do estudo das crianças, e demais compromissos de minha nora.

Assim, à tardezinha, ele me levou até o Plaza Hotel, distante 4.500 metros de sua casa, já no bairro de Talghatt, onde eu havia feito reserva.

The Plaza Hotel, local onde me hospedei em Dublin/Irlanda.

Após perfazer o competente “check-in”, adentrei em um confortável quarto individual, arrumei meus pertences, tomei banho, depois resolvi brindar minha viagem bem-sucedida.

Para tanto, após tomar informações com o atendente do hotel, me dirigi a um supermercado situado a apenas 100 metros dali para adquirir duas latas da decantada Guiness.

Trata-se, na verdade, da cerveja tipo “stout” mais consumida do mundo.

Comprei, primeiramente, legumes, frutas e alimentos para meu lanche noturno e o desjejum do dia seguinte.

Depois, me dirigi a seção de bebidas, mas, debalde todos os meus esforços, não a localizei.

Em contato com um funcionário, tomei conhecimento que o supermercado pertencia a uma família muçulmana de origem árabe que, em decorrência de sua religião, não comercializava bebidas alcoólicas naquele estabelecimento.

Isto me soava como uma prosaica epifania, afinal, eu estava no país da cerveja, onde todos a consomem, tendo ali o representante da Cervejaria Guiness, instalada na cidade desde 1759. 

Visita à Cervejaria Guiness, um dos melhores passeios feitos em Dublin.

Trata-se, na verdade, do quarto país do mundo onde mais se ingere bebida alcoólica, afinal, em termos globais, o irlandês bebe, em média, 94 litros/anos de cerveja, ficando atrás apenas dos habitantes da República Tcheca, Áustria e Alemanha.

E em Dublin existem mais de 1.000 pubs, alguns lendários, situados, praticamente, em toda esquina, quando não, dois, um em frente ao outro.

Como referencial, em minha ebulição interna, me lembrei do que bem afirmou, certa vez, o aventureiro, aviador e escritor Antoine de Saint-Exupéry: "O que torna belo o deserto é que ele esconde um poço em algum lugar".

Alguns interpretaram essa citação inferindo que: “...o que torna belo toda situação difícil, ou aquilo que você acha que não há saída, é o fato de que sempre há, em meio a todos os problemas, algo muito bom à sua espera. E que as pedras do caminho servem, na verdade, para te deixar mais forte, essa é a sua beleza. Basta você não se enfraquecer perante as dificuldades e continuar a caminhada...”

Mas eu, em minha efervescência interior, sentia que o destino estava sendo cáustico e jocoso comigo.

Oras, em pleno coração da “Cidade dos Bares”, eu tivera a desdita de adentrar em um local inacessível à consecução de meu singelo desejo.

Um "pint" da Guiness. Imperdível!

Frustrado, mas ainda não vencido em meu intento, cuidadosamente, devolvi todos os itens que havia colocado em meu carrinho de compras, cada um, em seu respectivo lugar, nas prateleiras.

Depois, já na rua, tomei informações com um transeunte e, trezentos metros dali, adentrei a uma filial do Tesco, uma das maiores redes de supermercados que opera na Irlanda.

De origem britânica, essa multinacional varejista, composta de pequenas lojas a hipermercados, foi fundada em 1919, e possui atualmente 2.195 filiais funcionando em mais de 13 países, desde os Estados Unidos até a China, passando, por exemplo, pela Coreia, Tailândia, França, etc..

Ali, calmamente, pude adquirir os produtos que necessitava e, mais tarde, já em meu quarto, enquanto degustava uma “bock” bem gelada da Guiness Draught Dry Stout, uma cerveja leve e cremosa, lembrei que, ainda, em 2016, quando percorria o Caminho Jacobeu do Ebro, guardadas as devidas proporções, ocorrera fato semelhante.

Locais estupendos para se caminhar em Dublin.

Foi no dia em que enfrentei a etapa situada entre as cidades de Gallur e Tudela, onde caminhei 39 quilômetros.

Ao acordar naquela data, lembrei que seria uma jornada longa, acidentada e, para variar, eu tinha um problema adicional, pois não conseguira reservar o pernoite no único hostal existente em Tudela, que é uma cidade grande, a maior existente nesse caminho, depois de Zaragoza.

Claro, lá havia vários hotéis, mas o preço e a localização não era o ideal para o que eu almejava fazer naquele domingo.

Dessa forma, na ocasião, como a primeira parte do trajeto seria bem tranquila, deixei o local de pernoite às 5 h 45 min, ascendendo em direção à igreja de São Pedro, local onde estivera no dia anterior, com isso não tive problemas para encontrar a saída da cidade.

A bela igreja matriz de Gallur.

Aproximadamente, 9 quilômetros percorridos em bom ritmo, logo cheguei no casco antigo da cidade de Mallén, cuja população atual é de 3611 habitantes.

Prosseguindo, passei diante de sua igreja matriz, cuja padroeira é Nossa Senhora dos Anjos, uma construção do século XII, com sucessivas modificações nos séculos XIII e XVIII.

Na sequência, mais abaixo, eu acessei um calçadão lateral, protegido por um alambrado, localizado junto à rodovia, e logo adentrei à Província da Navarra.

Um quilômetro depois, transitei por Cortes de Navarra, onde residem 3240 pessoas.

Antiquíssima vila, de origem romana, foi reconquista dos muçulmanos em 1119, pelo rei Alfonso I “El Batallador”.

A cidade me pareceu belíssima, com ruas largas, jardins bem cuidados e casas recém-pintadas.

Seguindo as flechas, no casco antigo eu passei diante da igreja matriz da cidade, cujo padroeiro é São João Batista, uma construção do século XIII.

O fabuloso Castelo de Cortes, em Cortes de Navarra.

Logo adiante, pude admirar o fabuloso Castelo de Cortes, uma construção do século XII, declarado Bem de Interesse Turístico e Cultural.

Prosseguindo, eu transitei por uma grande praça arborizada, depois acessei uma larga e plana estrada de terra, orlada por imensos barracões, onde a criação de porcos era a tônica.

Porém, outro grande entrave surgiu nesse trecho: um vento fortíssimo me fustigava de frente, zunindo alto nos meus ouvidos, quase impedindo meu deslocamento.

Vendaval de arrancar até etiqueta que fica fora da roupa, como aconteceu com meu boné, que precisei retornar correndo para resgatá-lo.

Inclinado para a frente, para ganhar aerodinâmica, eu dilatava as veias do pescoço para alcançar míseros 2 km/hora, ou menos. 

Vento fortíssimo, de frente, nesse trecho.

Era como se duas mãos postas no meu peito dificultassem o avanço.

E como eu caminhava por uma imensa planície, nada havia à minha frente que pudesse amenizar esse flagelo.

Além disso, eu estava me desgastando fisicamente, sem conseguir antever uma solução para o problema.

Por sorte, o caminho foi derivando lentamente à esquerda e logo eu passei a caminhar à beira da ferrovia.

Como o leito da via-férrea estava edificado num plano superior, meu problema não cessou, mas, ao menos, decaiu pela metade.

Não fosse esse furacão avassalador, eu estaria muito bem, pois o caminho era largo e eu tinha extensos trigais e grandes plantações de hortaliças a me ladear pelo lado direito.

Tempo fechando a minha frente.. haveria chuva?

Intimorato, finalmente adentrei em zona urbana e seguindo as flechas, logo estava no centro de Ribaforada, uma cidade que possui quase 3700 habitantes.

Praticamente similar, em termos populacionais, às povoações que eu ultrapassara nesse dia, ela foi fundada em 1157 por cavaleiros templários.

Mais abaixo, eu transitei próximo de sua igreja matriz, dedicada a São Brás, uma construção do século XII.

Seguindo as flechas amarelas, eu atravessei toda a localidade até encontrar uma ponte, por onde passei sobre o Canal Imperial.

Do lado esquerdo, mais uma interminável plantação de alcachofras.

Então, girei à esquerda, e segui adiante, por uma esplêndida estrada de terra, tendo o famoso canal de irrigação à minha esquerda, numa distância máxima de 100 metros.

Foram aproximadamente 5 quilômetros vencidos em bom ritmo, e nesse tramo não vi e nem encontrei ninguém.

Finalmente, ultrapassei um pequeno bosque de pinheiros e, na sequência, adentrei em El Bocal, onde se localiza o início do Canal Imperial, desde a represa que foi projetada pelo Imperador Carlos V.

Na verdade, El Bocal é um bairro da cidade de Foncillas, mas esse local tem uma história bastante interessante.

Gil de Morlanes, em 1528, construiu uma represa para remansar as águas do Ebro e serem desviadas para canais de irrigação.

Ramón de Pignatelli elevou o nível das águas com a construção de uma nova represa, que alimentaria o Canal Imperial de Aragón, de cuja obra participaram centenas de trabalhadores e, por isso, foi necessário construir edificações para acolher tantas pessoas, quanto oficinas, refeitórios, armazéns, etc..

Eu segui por uma avenida florida e arborizada até alcançar um mirador situado ao lado da represa, de onde tinha uma vista estupenda do embalse.

Casa das Máquinas e início do Canal Imperial.

Seguindo as flechas, fiz uma curva à esquerda e passei ao lado de uma casa de máquinas, onde ficam as comportas que controlam o fluxo das águas desviadas do Ebro para o Canal Imperial.

Prosseguindo adiante, ultrapassei um canal por uma ponte e prossegui indefinidamente ao lado da ferrovia, novamente.

O tempo estava se fechando, nuvens escuras correndo céleres pelo céu, parecia que um dilúvio estava próximo.

Resolvi estugar meus passos para fugir de um possível temporal e, quatro quilômetros vencidos em boa marcha, adentrei em zona urbana.

Então, seguindo à sinalização, prossegui pela Avenida Zaragoza, que me levou até a entrada do “casco viejo” da localidade.

Tudela me impressionou favoravelmente por suas construções, limpeza e solidariedade de seus habitantes.

Próximo da Plaza de las Três Culturas, eu tomei informações com um senhor de idade e ele fez questão de me levar até o Hostal Remígio, onde fiquei hospedado nesse dia.

Ali paguei salgados 36 Euros por um quarto individual, mas fiquei junto à Plaza de Los Fueros, onde se localiza o centro comercial e cultural da cidade que, por sinal, estava movimentadíssima nesse dia.

Plaza de Los Fueros, em Tudela.

Depois do banho e massagens nos pés, bastante doloridos, pós a longa jornada, saí para almoçar.

No piso térreo do estabelecimento onde eu me hospedara existia um restaurante mas ele trabalhava aos domingos no sistema de reservas e já estava lotado, sem condição de atender mais ninguém, muito menos um pobre e cansado peregrino.

Fui à luta pela avenida central e algumas ruas laterais mas, debalde tenha adentrado em mais de 6 restaurantes, encontrei todos lotados e não estava a fim de aguardar nas filas existentes, pois sentia muita fome.

Localizei numa avenida um pequeno restaurante limpo, atraente e, por incrível que pudesse parecer, integralmente vazio.

Seu proprietário me recebeu com sorrisos e salamaleques, depois me explicou que não trabalhava no sistema “menú del dia”, e sim, com pratos já elaborados, dos quais me sugeriu um que continha ervas, verduras e carnes de ave.

Para mim estava ótimo e já antegozava da saborosa refeição.

E para beber, indagou-me ele?

Sequioso, pedi uma garrafa de um bom vinho tinto.

Plaza de Los Fueros, em Tudela.

Ele, então, se desculpou dizendo ser de nacionalidade paquistanesa, adepto do islamismo, cuja religião proibia o comércio de bebidas alcoólicas.

Aquilo soou como um “balde de água gelada” em meu entusiasmo, uma notícia chocante que transformou minha euforia num gigantesco desapontamento.

De fato, em época pretéritas, era costume despejar baldes de água fria nos doentes mentais ou nas pessoas perturbadas, porquanto, se a terapia não possuísse qualquer efeito curativo, tinha o condão de, pelo menos, acalmar os infelizes por algum tempo, quanto mais não fosse, pelo susto.

Por outro lado, raciocinava consternado, eu estava na província da Navarra onde são fabricados e consumidos um dos melhores vinhos espanhóis da atualidade, face ao rigoroso processo utilizado em sua elaboração.

Ademais, o povo espanhol está entre os primeiros no ranking do consumo de vinho per capita mundial.

E, em meio aos estupendos parreirais que me ladearam o tempo todo em boa parte do caminho, eu era premiado naquela localidade com a notícia de que ingerir vinho era pecado.

Estava explicado porque o local se encontrava deserto.

Bem, eu estava desconcertado mas não vencido, de forma que agradeci o bom homem pelo atendimento e voltei à luta.

Não sem antes perceber um ar de decepção em sua face engelhada.

A fabulosa Catedral de Santa Maria, em Tudela.

Refiz todo o périplo pelos mesmos restaurantes em que havia percorrido anteriormente e, para minha surpresa, além das filas prosseguirem extensas, em alguns elas até haviam aumentado de tamanho.

Eu me sentia exasperado, entranhas em ebulição, pernas fraquejantes pela falta de alimento e, sem alternativa, me dei por derrotado.

E meu orgulho baixou a cabeça e desceu do pedestal para se deitar aos pés da humildade, que nunca tira os pés do chão.

Então, com o “rabo entre as pernas”, retornei ao mesmo restaurante paquistanês para almoçar.

Para acompanhar a refeição, eu que estava doido por sorver uma garrafa de fino vinho, tive que me conformar com uma insossa coca cola.

Não feliz, mas com as energias devidamente recompostas, voltei ao hostal para descansar.

Mais tarde, após uma reconfortante soneca, fui conhecer o centro antigo da cidade, e pude fotografar a igreja matriz da cidade: a fabulosa Catedral de Santa Maria.

Depois, segui as flechas amarelas por um bom tempo, como forma de me inteirar do itinerário que faria na manhã seguinte, para deixar a cidade.

Em seguida, fiz demorada visita a Plaza de Los Fueros, local belíssimo e que estava bastante movimentado, apesar do horário vespertino.

Posteriormente, passei pelo Mercado de Abastos, onde adquiri víveres e água para a jornada seguinte.

O Mercado Municipal de Tudela.

Numa das bancas ali existentes, feliz da vida, negociei a compra de uma garrafa de um estupendo vinho regional.

Para jantar, optei por um singelo lanche num bar das proximidades, regado a dois copos de vinho tinto, pelos quais paguei apenas 6 Euros.

Já no quarto, enquanto degustava o “néctar dos deuses” que havia adquirido no mercado, reflexionava em como as tristezas, tanto quanto as alegrias, são efêmeras.

E que um fracasso, se formos bafejados pela sorte, poderá se transformar em gloriosa vitória.

Plaza de Los Fueros, em Tudela.

Pensando nisso, fiz um reverencioso brinde ao Caminho de Santiago, “matei” a garrafa, depois fui dormir, pois estava deveras cansado, fruto da longa jornada do dia.

E, sob o efeito entorpecedor do vinho, fecharam as portas da realidade para me lançar no país dos sonhos, de onde veio me tirar, às 4 horas, uma grasnante cegonha madrugadora.

Acrescendo que a chuva tão prometida no dia anterior, acabou por desaguar em outras plagas, pois na cidade não caiu uma gota d'água sequer.

Bom Caminho a todos!