O LADO SENTIMENTAL DO MEU PRIMEIRO CAMINHO DE SANTIAGO

Minha primeira Compostelana.

O ÍNICIO DE TUDO

"Trilha do Ouro", em 1998. Eu sou o terceiro, da esquerda para a direita, em pé.

Era o ano de 1998. Mês de junho, semana de Corpus Christi. Época de inverno, fazia muito frio.

Com um grupo de colegas fui percorrer a “Trilha do Ouro”, localizada no Parque Nacional da Serra da Bocaina, que tem seu início em São José do Barreiro/SP, e termina no bairro Mambucaba, na cidade de Parati/RJ.

Meu preparo físico era invejável, posto que eu era pedestrianista há mais de 20 anos e corria, em média, 6 quilômetros todos os dias.

Contudo, aquele passeio seria uma experiência única e moldaria meus passos vida afora de forma irretorquível.

Vez que, no segundo dia do “trekking”, mesmo carregando uma pesada e desajeitada mochila de 60 litros, um amigo que observava minha performance na trilha, perguntou se eu já pensara em percorrer o Caminho de Santiago a pé algum dia.

Nesse momento redargui: do que se tratava, posto que jamais lera ou ouvira algo sobre o assunto.

"Trilha do Ouro", em 1998. Atravessando o rio Mambucaba por uma pinguela.

Importante ressaltar que a internet, naquele ano, ainda era incipiente, e poucos possuíam computadores, pois era um artigo de luxo.

Concisamente, ele descreveu o roteiro, depois, ao clarificar minhas interrogações sobre os pernoites, disse-me que os caminhantes dormiam em albergues, edificações adaptadas especialmente para tal finalidade.

Desde o ano de 1995, eu já estivera por quatro vezes na Europa, fazendo parte de excursões adquiridas com grande antecedência e que garantiam, além de transporte e visitas a sítios e atrações adredemente planejados, acomodação em hotéis de renome.

Assim, ao saber dos locais onde os peregrinos passavam a noite, disse-lhe que jamais intentaria tal loucura, pois não deixaria o conforto de meu lar para dormir em ambientes públicos e compartilhados.

E, dei o assunto por encerrado.

Mas, eu estava redondamente enganado, como se verá adiante.

PAULO COELHO

Em 1999, por indicação de uma amiga de trabalho, li o livro “O Diário de Um Mago”, cujo autor, Paulo Coelho, descreve o ambiente do Caminho de Santiago, fruto de sua peregrinação, que teria ocorrido em 1986.

É evidente que me senti impressionado, pois ele narra de forma pungente e clarificante sua experiência no trajeto localizado, não por acaso, sob a Via Láctea.

Ainda assim, não me sentia tentado a seguir seus passos, porquanto gostara do conteúdo, mas entendia, à época, que o assunto era um tanto exótico e fantasioso.

O CAMINHO ME CHAMA

O ano de 2000 trouxe mudanças drásticas em minha rotina diária, visto que, por ordens médicas, parei de correr.

Proibido terminantemente de praticar atividades de impacto, sob o risco de passar por dolorosa cirurgia na coluna vertebral, iniciei a prática da natação e passei a caminhar diariamente, para manter a forma física.

No mês de outubro, antevendo a chegada de meu quinquagésimo aniversário, buscava uma maneira de comemorá-lo de uma forma diferente do convencional.

Pensei, talvez, uma aventura inédita, porém a dúvida, para aonde?

Contatei várias agências de viagem, li inúmeros guias de turismo, e quanto mais me aprofundava no assunto, mais hesitante ficava.

Indeciso, me ocorreram várias possibilidades: porque não fazer um “trekking” no Nepal, em direção ao Monte Everest? Ou percorrer a Trilha Inca no Peru? Ou, ainda, uma cavalgada pelas infindáveis planícies da distante Mongólia?

Abril/2001 - Em San Jean Pied Port, na França, antes de iniciar o Caminho.

Então, inexplicavelmente, por três noites seguidas sonhei com o Caminho de Santiago.

Curioso pela intensidade do que antevira, resolvi pesquisar sobre o tema, iniciando minhas diligências pela internet.

Tudo o que eu encontrava era impresso e arquivado numa pasta que mantinha secreta, já que não dei conhecimento a ninguém dos meus planos, nem mesmo a minha família.

A leitura do material coletado era sempre feita de manhãzinha quando todos em casa ainda dormiam.

Abril/2001 - Deixando San Jean Pied Port, na França: meus primeiros passos no Caminho.

E como forma de me concentrar naquilo que realizaria, resolvi fazer um relevante sacrifício no sentido de melhor me preparar, para alcançar o objetivo almejado.

Assim, eu outrora um carnívoro contumaz, deixei de ingerir qualquer tipo de carne e derivados.

Nesse ínterim, meus conhecimentos relacionados ao Caminho progrediram muito, os horizontes se ampliaram, e no Réveillon do novo milênio tive a certeza de que meu sonho maior para 2001, seria percorrer o Caminho de Santiago.

Meu diploma de "Palmeiro".

Como ex-seminarista e católico praticante, estivera em Jerusalém e Roma em 1997.

1997 - Em Roma, com papai.

Já era, portanto, romeiro e palmeiro. 

Faltava-me o diploma de concheiro.

MILAGRES ACONTECEM!

Expectante, imaginava o dia de conhecer Santiago de Compostela.

Agora essa possibilidade parecia-me mais real.

O problema crucial a ser enfrentado era conseguir tempo necessário, já que pensava iniciar o Caminho a partir de Saint Jean (Fr), o que me ocuparia entre viagem e caminhada, em torno de 35 dias.

Minhas férias já marcadas para abril, concediam-me apenas 30 dias.

Observando o calendário e fazendo alguns cálculos, descobri que se conseguisse faltar mais três dias, graças à Semana Santa, teria o tempo necessário para a empreitada.

Mas antes, era preciso autorização do meu chefe.

No Caminho, próximo à cidade de Viana.

Sabia difícil o intento, vez que trabalhávamos, há muito tempo, com nosso quadro de funcionários deficitário.

Demorei alguns dias para falar com meu superior hierárquico, mas, finalmente no início de janeiro, reuni disposição, e fui entrevistar-me com ele, sabendo de antemão que uma negativa de sua parte colocaria todo o meu plano por água abaixo.

Como precaução havia deixado uma vela acesa em homenagem a Santiago.

E qual não foi minha surpresa, quando ao expor o meu pedido (sem explicitar o motivo das faltas), ele me olhou demoradamente por longos minutos, e depois sem nada perguntar, aquiesceu ao meu pleito.

Ao sair de sua sala tinha uma única certeza, que meus sonhos concretizar-se-iam.

Nesse momento, meu coração e minha alma transbordavam de alegria, pois recebia minha primeira graça.

Já podia reservar a passagem, o que fiz de imediato.

DISCRIÇÃO SOBRE O ASSUNTO

Durante o tempo todo de minha preparação, guardei segredo absoluto sobre meus objetivos tanto em minha residência, quanto no trabalho, como forma de não preocupar ninguém, nem ser sabatinado sobre minha viagem.

Relativamente ao assunto, transcrevo trecho que lera no livro do peregrino Máqui, que influenciou meus procedimentos de maneira decisiva:

...Antes de partir, alguns amigos ofereceram-me uma missa. O padre fez um discurso emocionado e pediu que todos na igreja rezassem para que eu tivesse uma caminhada cristã. Depois da missa, recebi trezentos cumprimentos efusivos. Gente simples, que me desejava o melhor, mas confesso que aquilo tudo me assustou. E se eu não conseguisse chegar ao final? E se eu voltasse depois de 400 metros de caminhada com um pé torcido, envergonhado por ter decepcionado uma paróquia inteira? Não podia falhar? Não tinha o direito de desistir?

Precisei de tempo e paciência para restabelecer o verdadeiro sentido da aventura. A coisa toda estava subindo-me à cabeça. Minha carga tinha que ser leve, meu sonho, a minha única responsabilidade. A vaidade de ser peregrino estava me deixando embriagado. Cuide-se para isso não aconteça com você. Mantenha-se gentilmente distante dessas influências e não perca a humildade. Compareça a todas as festas em sua homenagem, demonstrações de carinho, respeito, admiração mas veja em tudo isso circunstâncias felizes... e passageiras. Do contrário, estará levando atrás de si uma multidão de desejos acorrentados ao seu e se sentirá responsável por muito mais do que é do seu direito e do seu dever zelar..”

(Extraído do livro Guia do Peregrino de Santiago, páginas 245/6, autor: Máqui, edição 1990)

ANTES DO PRIMEIRO PASSO!

Ir, todo mundo vai. Chegar, só chega quem se deixa atrair”. (Frei Cláudio Van Balen)

Vamos percorrer juntos o Caminho de Santiago de Compostela, uma antiga trilha que parte de vários pontos da Europa e segue em linha reta pelo norte da Espanha. Nossa caminhada terá quase 800 quilômetros de lama, pedra e asfalto. Mais de trinta dias de viagem sob o sol, a chuva e o vento, portanto, prepare-se para os desconfortos. Sono, fome, sede, dor e cansaço fazem parte do meu convite, mas vamos estar pisando sobre as pegadas de santos e imperadores e, sob a Via Láctea, mantendo uma tradição de dez séculos de magia e milagres.

No dia 22 de maio de 1990, parti de Saint Jean Pied de Port, na Baixa Navarra, e trinta e oito dias depois cheguei em Padrón, na Galícia. Foram 786 quilômetros percorridos inteiramente a pé e não há dúvida para mim de que as emoções, as imagens e, principalmente, as lições da viagem marcaram minha vida para sempre.

Durante o percurso, recolhi informações, tomei notas, entrevistei pessoas e escrevi mais de duzentas páginas em meu diário, no qual registrei tudo o que aprendi: dos cães espanhóis às bolhas nos pés, dos entalhes nos capitéis das igrejas às fontes de água do Caminho, das lendas coloridas da Espanha aos fatos do dia-a-dia do peregrino. Algumas coisas tive que aprender do jeito mais difícil: errando. Justamente por isso decidi escrever este livro. Se soubesse uma ou duas coisas antes de partir teria poupado tempo, dor e trabalho. Além disso, escrever guias sobre o Caminho de Santiago é uma velha tradição desde que o clérigo francês Aymeric Picaud escreveu, no ano de 1130, o “Códice Calixtino”, uma obra piedosa em cinco volumes sobre São Tiago. Um dos cinco livros foi justamente o primeiro guia para peregrinos do Caminho do Apóstolo.

A palavra latina peregrinus significa, numa tradução livre, “aquele que cruza os campos” e ainda “estrangeiro”. Historicamente, passou a designar aquelas pessoas que na Idade Média percorriam a pé ou a cavalo o Caminho de Santiago de Compostela. Hoje, o termo é aplicado a qualquer um que viaje por motivos místicos ou religiosos. Para quem vai a Roma, a palavra é romeiro, e os que se dirigem à Jerusalém são chamados palmeiros.

Passando pela temível Foncebadón!

As grandes viagens a pé são muito antigas. No solstício de verão, os egípcios partiam de onde estivessem para assistir às Festas de Inundação. Isso muito antes de se tornarem a nação poderosa das pirâmides. Levavam oferendas ao Rio Nilo, a quem agradeciam pelas enchentes que fertilizavam o solo. Os babilônicos caminhavam para oferecer presentes a Marduk, o deus guardião dos tesouros da cidade de Babilônia. Também na religião judaica existe a tradição das viagens religiosas. A lei determina que todos os homens maiores de doze anos devem visitar o Templo de Jerusalém nas três primeiras festas dos judaísmo: Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos. Entre os gregos, os motivos de peregrinação eram variados: festa dos Jogos Olímpicos, celebrados em honra de Zeus, os Jogos Píticos, em honra de Apolo, os Ístmicos, dedicados a Poseidon, e ainda as visitas aos Oráculos. Entre os muçulmanos, a tradição os conduz até hoje a Meca, para prestar contas dos pecados e das faltas e cumprir um antigo ritual que já existia antes mesmo de Maomé.

Agradecer aos deuses, participar de festas, jogos, todas essas razões me parecem boas para se calçar os sapatos, empunhar o bastão e pegar a estrada. Mas o que há realmente por trás de vontade de partir? O que peregrinar significa do ponto de vista espiritual? O que tanto atraiu homens e mulheres de todas as raças e de todos os tempos?

Abril/2001 - No Albergue de Manjarín.

Partir dá uma ideia de movimento. O movimento nada mais é do que uma sucessão de partidas e chegadas. Só há vida quando há movimento. Só há evolução se partirmos de uma condição e atingirmos outra melhor. Partir e chegar, buscando no percurso uma condição sempre melhor é a síntese da própria vida. O peregrino das longas caminhadas é o ser humano que levou a sério essa história de movimento. Está fora de casa, numa cidade estranha ou talvez num país estranho, onde sequer falam a sua língua. Sentiu um impulso irresistível de aventurar-se para além das suas próprias fronteiras, pagando o preço dos perigos e dos desconfortos. Voluntariamente, tornou menos importante a realidade marcada pelos sinais cotidianos do tempo e espaço, como casa, família, amigos e trabalho. Trocou tudo isso por uma nova condição, onde está cercado pela densa noite escura do Desconhecido. Terá que construir novas referências, novas relações e nesse processo irá descobrir a responsabilidade que tem em relação ao próprio destino. Construirá passo a passo o seu próprio caminho. E construir o próprio destino é um poder que só é dado àqueles que são verdadeiramente humildes.

A palavra humilde vem do latim humus, que significa terra. Uma rica associação com aqueles que têm o pé no chão, que conhecem a Realidade. O peregrino é um sonhador, justamente por isso mais disponível para se aproximar da Realidade. Deseja uma transformação, quer tornar o sonho de estar vivo uma emoção intensa e concreta. Está disposto a abandonar as garantias, o conforto, a segurança e a “eficiência” das grandes cidades pela “vivência” de seus sonhos. O peregrino é sem dúvida um sonhador, a ponto de descobrir que um sonho realizado amplia a consciência, dá uma nova dimensão aos nossos poderes e nos aproxima da Verdade porque nos torna mais humildes.

Para buscar a realização na poeira da estrada, é necessário um profundo sentimento de humildade e desapego que podem conduzir à feliz descoberta de que os valores essenciais são poucos e estão ao alcance de qualquer um. Essa descoberta não é uma conclusão teórica, uma ideia que simplesmente passa a ser aceita, mas transforma-se de fato numa forma prática de se conduzir a vida. Na peregrinação, percebem-se os limites da condição humana ao mesmo tempo em que se aprende a usar o único combustível capaz de nos levar sempre mais além: a fé. Toda vez que alguém tenta ampliar os seus limites, guiado por um impulso do espírito, está na verdade acercando-se de Deus, seja o que Deus for e seja qual for a religião.

Existem as festas, as oferendas e outros pretextos para se pôr a caminho, mas apenas simbolizam uma razão que é interior, universal e atemporal, que existe no espírito, além das certezas e das garantias da vida e da morte.

Descendo o Cebreiro, debaixo de forte nevasca.

Percorri a pé o Caminho de Santiago de Compostela porque pensei que seria uma boa maneira e um bom lugar para mostrar a mim mesmo o quanto eu estava disposto a buscar as minhas respostas, apesar de saber que há outras maneiras igualmente boas e legítimas de fazer isso. Algumas peregrinações autênticas poder ser realizadas até mesmo dentro de casa. O que todos os diferentes caminhos têm em comum é que são todos profundos e tão pessoais que se tornam intransferíveis, daí secretos e herméticos. É impossível revelar a experiência de uma peregrinação sem que se perca muita da grandeza dessa aventura.

Se você estiver trocando velhas certezas e velhas referências guiado por um impulso do espírito, se estiver disposto a esvaziar-se do que é para tornar-se alguém melhor, se estiver buscando acercar-se um pouco mais da sua própria definição de Deus, estará percorrendo um caminho sagrado que o torna peregrino. Um caminho exclusivamente seu. São desnecessárias as distâncias percorridas a pé, são apenas formalidades visitar os lugares considerados sagrados, porque todo o planeta é sagrado. Deus não está presente em um lugar mais do que em outro. A única condição absolutamente indispensável para tornar-se peregrino é estar vivo, em movimento, deslocando-se de um estágio a outro, e aprendendo de todos eles até transformar-se num só com todo o Universo. A peregrinação será sempre uma tarefa difícil, mas você já fez isso antes ainda que não se lembre.

Por um instante todos nós arriscamos tudo e nos sentimos como estrangeiros. Por um ato de fé, abandonamos as certezas e garantias e transpusemos um limiar sagrado. E foi justamente porque arriscamos tanto que recebemos a maior recompensa que poderíamos esperar, o maior dom a nós conferido por Deus: a vida.

Um feto vive aquecido e alimentado no útero. Por nove meses, o pequeno ser vai se formando, construindo suas referências, aprendendo a explorar aquele mundo. Mas chega um momento em que tem que abandonar tudo isso. É o tempo do ato de fé, porque é um salto além das certezas. Ao nascer, irá ingressar num mundo onde terá que construir novas referências e sobre o qual não sabe absolutamente nada. O certo, o seguro, é o calor, o conforto e o alimento. Num impulso sagrado, ele troca a segurança carinhosa e a penumbra do útero pela incerteza e pela luz ofuscante do mundo exterior, troca a imobilidade pelo movimento, a proteção pelo livre e arriscado exercício da vida. Uma peregrinação autêntica. Ao nascer, somos todos heróis. Essa é a nossa primeira peregrinação e está ligada à última: a morte. Partir e chegar. Esse movimento nos conduzirá ao Criador, tarefa que é destino e dever de toda Criatura.

Algumas pessoas acreditam que o Caminho de Santiago de Compostela é um bom lugar para se procurar Deus. Todos os lugares sã bons. Deus está em toda parte e pela minha experiência sei que não há nada que eu não tenha feito no Caminho que não pudesse ser realizado em qualquer outro lugar. O Universo inteiro é mágico, desde que você esteja realizando sua busca com o coração. Mas se por qualquer razão você se sente atraído pelo Caminho percorrido pelos místicos peregrinos medievais, este livro é para você. Ele pretende lhe oferecer algumas informações que o ajudarão a percorrer esta trilha, mas, para ser sincero, meu objetivo é ainda mais ambicioso. Gostaria que estas indicações também lhe fossem úteis no dia-a-dia. Ficaria imensamente feliz em pensar que alguma coisa do que escrevi fez com que você percebesse com um pouquinho mais de nitidez, a grandeza da sua verdadeira peregrinação, o mágico poder do Caminho que só pertence a você e a mais ninguém no Universo.

(Extraído do livro “Guia do Peregrino do Caminho de Santiago”, páginas 15/20, autor: Máqui)

A FESTA DO MEU ANIVERSÁRIO

Embora estivesse, à época, intensamente absorvido pelo trabalho profissional, preparei-me fisicamente e também espiritualmente para enfrentar da melhor maneira possível, o desafio a que me propus.

Aprofundei-me, então, em leituras sobre a rota, suas histórias, tradições, misticismos, relatos peregrinos, etc..

Para harmonizar, fiz longas caminhadas, bastante natação, um pouco de musculação, e alterei meus hábitos alimentares. Também entrevistei pessoas que já tinham feito essa viagem anteriormente, a fim de complementar meus conhecimentos e aplacar minhas dúvidas.

Na última sexta-feira em que trabalhei, procurei não demonstrar emoção, nem dar pistas de meus planos, embora os colegas me pressionassem de todas as maneiras para saber meu destino.

Com meus pais, no dia em que completei 50 anos. Uma alegria inesquecível, pois no dia seguinte eu embarcaria para a Espanha.

No sábado, dia de meu aniversário, reuni minha família para um churrasco em Itu, na casa de minha irmã Neusa.

Eu estava tenso e preocupado, mas a festa transcorreu em alto-astral e sem maiores intercorrências.

No final, recebi a benção de minha mãe, algo muito ansiado e que, diariamente, me deu um ânimo extraordinário no Caminho.

A PARTIDA

Assim, após meses de preparação, expectativas, ansiedades, angústias, incertezas, finalmente, dia 08 de abril, um dia após completar 50 anos, sozinho e esperançoso, deixava o Brasil rumo à Espanha.

Levava no coração a certeza da luta, e uma enorme esperança de aportar, sem intercorrências, à Santiago de Compostela.

No dia 09, pela manhã, desembarquei no Aeroporto de Barajas, em Madri.

Após breve conexão, outro voo me levou até Pamplona, onde cheguei às 11 horas. Ali, um táxi me transportou até Saint Jean de Pied de Port.

Após 75 quilômetros por rodovia, lá chegando, dirigi-me imediatamente à Rua Citatela, onde me apresentei na Sede da Associação Internacional dos Amigos do Caminho de Santiago.

No albergue onde me hospedei, 30 horas após deixar minha residência, tentei em vão descansar.

Maio/2001 - Muita neve no Cebreiro.

A todo momento chegavam novos peregrinos, e o ruído dos preparativos para o dia seguinte, a conferência do material na bagagem, a arrumação da mochila, fizeram com que meu sono se esfumaçasse.

Meio a contragosto, levantei-me e saí conhecer aquele lugar distante da minha realidade.

Até a hora do jantar completei três caminhadas por dentro da cidade, indo ao encontro das muralhas que a circundam, perfazendo um total aproximado de 10 quilômetros.

Isto funcionou como aquecimento para meus músculos inativos, pois desde a saída de minha casa, não me exercitava.

Mais tarde, após um frugal jantar, lembro como se fosse hoje, meu coração batia acelerado pelo chamado iminente da partida.

Ondas de íons positivos excitavam meu coração também.

Não havia mais preparativos ou preocupações abstratas.

Para quem conhece essa sensação, sabe não existir mais nada que supere essa maravilhosa entrega ao fatalismo.

No Caminho, próximo da cidade de Palas de Rei.

Pois é o mesmo alvoroço que os paraquedistas sentem quando dão o primeiro passo para fora do avião, a mesma sensação experienciada pelos que praticam descida de rio em botes, quando entram numa corredeira bem forte e depois são arrastados para aquele funil de água que, enfim, os despeja no redemoinho.

Vez que, de fato, não há como voltar atrás!

Apesar do dia amanhecer nublado, com um vento frio e uma chuvinha fina, alegremente fiz meu café na cozinha do albergue e às 7 horas eu parti, descendo pela Rue de La Citadelle.

Alguns metros à frente os sinos da igreja de Notre-Dame badalavam. Estávamos na Semana Santa, e fiéis acorriam para a via-sacra matutina.

Entrei rapidamente no templo e fiz um pedido: que Santiago me concedesse a graça de vê-lo no altar mór, em todo seu esplendor, são e salvo, ao final do percurso, noutra igreja, em outro país, oitocentos quilômetros adiante, na majestosa Catedral de Santiago de Compostela, esse era o meu ideal maior.

A fé era a minha companheira fiel, me orientando firme e convicto, óbice algum me faria desistir do meu sonho.

Resoluto, saí da igreja e iniciei minha caminhada, transpondo as muralhas que circundam a cidade pela Ponte D`Espagne.

Ao longe, os Pirineus envoltos àquela hora numa bruma espessa, a me aguardar

07/05/2001 - Finalmente em Santiago de Compostela!

Vinte e oito dias depois, aportava incólume em Santiago de Compostela, mais um sonho e uma conquista realizada!

Com certeza, durante o percurso, sentia a todo momento a proteção de minha mãe, que eu deixara no Brasil, e de Nossa Senhora Aparecida, minha Santa de devoção, pois evocava suas bênçãos sempre que me se sentia em apuros ou desorientado.

E sempre fui atendido em minhas preces!

O DEPOIS..

Transcorridos alguns meses daquela experiência maravilhosa, ainda sentia pancadas surdas de um vazio, de uma ânsia que não conseguia satisfazer: a chamada de amigos muito distantes, o aceno de espaços ilimitados, a simplicidade elegante dos albergues, os pernoites imorredouros com o pessoal contando histórias, as longas trilhas recortando a natureza intacta.

E, por conta disso, algumas noites, eu ainda acordava de repente, nas horas mais estranhas, sentindo meu corpo sobre o estrado duro de um beliche ou numa simples pensão de alguma aldeia.

Nada parecia mais esquisito do que piscar e me ver numa cama com lençóis limpos, sem a música dos cães ou a melodia do vento frio.

Para resumir meu drama, três anos depois estava de volta ao Caminho.

Abril/2004 - Em Lourdes, na França, antes de iniciar meu segundo Caminho.

MARÇO DE 2015

O conceito de peregrinação parece tão antigo quanto a primeira ideia religiosa do ser humano, tendo, talvez, a idade do próprio homem.

Peregrinar é andar numa direção, fazendo do meio o fim, do percurso a chegada, da busca da dádiva o próprio encontro com a Graça.

Diz um provérbio antigo que o bom peregrino é aquele que já chegou, antes mesmo de partir. 

O encanto das viagens não está nas mudanças de cenário, ou na fuga à vida de todo dia, mas nas descobertas que se sucedem no espírito.

Se a viagem externa, aquela que nos leva de um lugar a outro no mapa, não se fizer acompanhar de uma viagem interior, talvez, o cavaleiro esteja vivendo no percurso, a mesma experiência de sua montaria.

Assim, num domingo qualquer do mês de março me levanto e, após as abluções matinais, saio para caminhar vários quilômetros.

São 5 h 30 min, o dia ainda não raiou, e sigo tranquilamente por um trajeto já conhecido, sob a confortadora iluminação urbana.

Tudo isso faz parte de meu treinamento diário para os “Caminhos”, uma situação que tem se repetido nos últimos catorze anos.

Com meus pais, no dia em que completei 50 anos. Mamãe faleceu em 2009, mas papai prossegue vivo e lúcido aos 87 anos. Mais uma benção divina!

Dois quilômetros percorridos em boa velocidade, sinto uma onipresença confortadora ao meu lado: minha mãe.

Ela viajou para o plano celeste há mais de cinco anos, porém, sua comparência espiritual no meu coração prosseguirá imorredoura em todos os dias de minha existência.

Como por obra de mágica, as lembranças eclodem aos borbotões, e meus pensamentos regridem ao primeiro Caminho de Santiago. 

Imediatamente, um vaivém de rememorações felizes ocorre em minha movimentação cotidiana. 

Porquanto, as longas jornadas despojadas desenvolvem uma forma de reflexão próxima da “inteligência intuitiva”, que sabe adaptar-se perfeitamente às situações, sem paixão, para além das manipulações sociais, longe da modelagem intelectual e dos modos de vida dos quais a pessoa é, inconscientemente e sempre, mais ou menos vítima. 

Sem dúvida, um banho de jovialidade para o espírito.

Neste momento, jubiloso e sagrado, em que me preparo intensamente para meu oitavo Caminho em Portugal/Espanha, mãe querida, sinto sua inabalável fé fortificando minha mente, e me dando forças e confiança para atingir meus objetivos.

Nossa Senhora Aparecida, rogai por todos nós!

Que Santiago me guarde e me aguarde!

Amém!

Bom Caminho a todos!

Março/2015