14ª etapa - MONREAL a PUENTE LA REINA - 32 quilômetros

Os sonhos antecedem as conquistas.

O percurso seria de razoável extensão, e entremeado de bruscos ascensos e descensos em sua primeira parte.

Levantei no horário costumeiro, e me aprontei no andar térreo, tentando não fazer barulho para não acordar os demais peregrinos, que dormiam a sono solto.

Como de hábito, ingeri meu frugal desjejum, deixei o local de pernoite às 5 h 45 min e segui em direção ao centro da pequena urbe.

Ali, prontamente me enlacei com o roteiro do caminho e, mais à frente, quando a iluminação urbana se findou, acendi minha potente lanterna de mão e prossegui adiante, intimorato.

Para o peregrino experiente, a saída de Monreal transforma-se num grande dilema. 

O sol querendo aparecer...

Porquanto, os guias não relatam, de forma clara, as dificuldades que serão encontradas pelas sendas que conduzem a Tiebas, pelos barrancos da Serra de Alaiz.

Nas imediações de Yarnoz e Otano, a senda é perigosa e segue os contornos da serra.

Tudo porque os moradores locais cultivaram até a base da montanha, deixando o peregrino a sua própria sorte, em um sobe e desce constante, pelos despenhadeiros existentes no local.

Em caso de chuva, acredito que torne-se impraticável circular pelo local.

Outra alternativa possível que, inclusive, eu utilizei em 2004, foi seguir diretamente pelo acostamento da rodovia N-240, por 2.500 metros, depois adentrar, à esquerda, na rodovia secundária NA-234, que segue na direção à cidade de Tiebas.

Por sinal, o tráfego de veículos na “carretera”, nesse horário, é praticamente nulo.

Cabe aos peregrinos decidir o que fazer e desta vez resolvi enfrentar o caminho sinalizado que, conforme eu já sabia, é terrivelmente escarpado.

O primeiro trecho, aproximadamente 5 quilômetros, foi bem tranquilo e percorrido sobre caminhos planos, localizados próximos de mata nativa ou em meio a trigais.

O sol logo deu as caras e deixou tudo mais claro e brilhante.

O caminho foi se empinando e além de me defrontar com ascensos difíceis, também precisei tomar muito cuidado nas bruscas descensões.

Trilha selvagem, mas bem demarcada.

Na realidade, foi um sobe e desce o tempo todo.

Por sorte, a visão que se tem do alto da montanha acaba por compensar todo o esforço despendido.

Nesse 14 quilômetros iniciais, passei ao lado dos povoados de Yárnoz, Otano, Ezperun e Gerendiain, mas nenhum deles oferece qualquer tipo de comércio ou apoio ao peregrino.

Finalmente, depois de brusco ascenso por asfalto, adentrei em Tiebas, esse sim um povoado maior que os anteriores e com mais comodidades.

As ruínas do castelo de Tiebas.

Nele também há um excelente albergue de peregrinos.

Essa povoação foi residência real de Teobaldo I, a cujo mando se construiu um castelo, que fotografei na entrada da cidade.

Embora, atualmente, ele se encontre em ruínas, está em marcha um trabalho de reconstrução do vetusto edifício.

A igreja matriz de Tiebas.

A igreja matriz, em estilo românico, que fica no início da zona urbana, é dedicada à Santa Eufêmia.

Eu deixei a povoação caminhando por uma estrada de terra que seguiu paralela rodovia A-15, por uns 30 minutos.

Nesse trecho o caminho segue paralelo à rodovia.

Mais adiante, a sinalização me orientou a passar, primeiramente, sob a rodovia, por um túnel.

E logo em seguida, por outro túnel, ultrapassei a Autovia Nacional.

O barulho no entorno, como era de se esperar, era infernal, por conta do ininterrupto trânsito de caminhões.

Na sequência, passei próximo do povoado de Muruarte de Reta, porque o roteiro apenas ladeia essa vila, que também não oferece nenhum tipo de serviço.

Então, o silêncio e os campos cultivados retornaram, para minha alegria.

Prosseguindo, ainda por uma estrada vicinal asfaltada, situada entre imensos trigais, passei por Olcoz.

Trata-se de um povoado agrícola que se encontra integralmente rodeado por campos de cereais.

A famosa torre medieval de Olcoz.

Por curiosidade, já que o caminho ladeia a povoação, eu fui até o centro da vila fotografar uma estupenda torre medieval, edificada no século XVI, que se encontra em excelente estado de conservação.

Prosseguindo, num banco situado em local estratégico, de onde eu detinha uma maravilhosa visão do entorno, fiz uma pausa para descanso, hidratação e aproveitei para ingerir uma banana.

Caminhando pelo topo da montanha, mas em descenso.

Em movimento novamente, passei a descender pela crista de um morro, por um bem cuidado caminho de terra.

Um canal de irrigação passa sob a montanha.

Em determinado local, transitei sobre um grande canal de irrigação que, passa sob a montanha, por um túnel.

Já no plano, caminhei por outra larga estrada de terra, ainda em descenso, sempre em meio a plantações e locais arejados, pois também não há sombras nessa etapa.

Caminho largo e em ainda descenso.

Depois de vencer pequeno trecho matoso, acessei outra larga e retilínea estrada de terra, por onde segui, num trajeto extremamente agradável.

O céu se mantinha nublado, temperatura na casa do 12 graus, excelente para caminhar.

Por sinal, nesse dia não avistei e nem ultrapassei nenhum peregrino.

Sem maiores dificuldades, por esse trecho todo plano, depois de vencer mais 5 quilômetros, transitei por Enériz, um povoado algo maior que os anteriores e onde há comércio em funcionamento.

Ali eu vi bares, restaurantes e há também um hostal.

Eu transitei pelo centro do povoado, fotografei sua igreja matriz, depois, seguindo as flechas, prossegui por larga avenida e logo voltava aos campos.

Prossegui caminhando solitário por uma estrada plana e retilínea, por onde segui integralmente solitário.

O ciclista Miguel segue o seu caminho.

Em determinado ponto, fui alcançado pelo ciclista Miguel, que havia pernoitado no mesmo alberque que eu, no dia anterior.

Ele freou a bicicleta e seguimos conversando por um bom tempo sobre caminhadas e planos futuros.

Naquele dia ele pretendia pernoitar em Los Arcos, assim, logo ele se despediu e seguiu o seu caminho.

Eu caminhei mais uns 3 quilômetros e logo chegava a Eunate o ponto alto dessa jornada.

Mais um longo retão antes de aportar à Eunate.

Igreja de Santa Maria de Eunate – Navarra

Localizada próxima à cidade de Puente la Reina, mais precisamente, no município de Muruzábal, e isolada no campo, a igreja românica de Santa Maria de Eunate (“cem portas”, em euskera) tem atraído, ao longo dos tempos, a curiosidade humana pelos mistérios que a cercam.

Construída, provavelmente, na segunda metade do século XII, possui uma peculiar silhueta poligonal, e está rodeada por uma “arquería” octogonal exterior, que cumpre a função de claustro.

Placa Explicativa.

Em relação às suas origens, poucos são os dados concretos disponíveis que, aliados à sua singular arquitetura, fez surgir uma série de lendas e teorias sobre sua função e construção.

O monumento é uma das construções românicas mais conhecidas da península, sendo local obrigatório de visita para peregrinos, amantes da arte medieval e esotéricos.

Carente de comprovação, uma tradição secular e constante atribui sua construção à Ordem Templária, por seu formato poligonal, tão característico desta ordem militar.

Outra versão, mais respaldada na realidade, vincula o templo à Ordem dos Cavalheiros Hospitalários de San Juan, cuja presença na rota jacobeia está mais que documentada.

A igreja situa-se num ponto estratégico do Caminho a Santiago, em que se unem as duas vias do denominado caminho francês.

A igreja que mais se assemelha a Santa Maria de Eunate é a também poligonal igreja de Torres del Rio, igualmente situada em Navarra, mas que não apresenta a “arquería” exterior daquela, cujo nome em euskera é uma referência deste característico elemento, e que significa “cem portas”.

O que não há dúvidas, é que a igreja cumpria a função de cemitério de peregrinos, graças aos enterramentos encontrados com a concha, símbolo maior daqueles que realizam a rota de peregrinação.

Desta forma, o templo pode ser uma construção funerária, relacionado com um complexo hospitalar de assistência ao peregrino.

A fantástica igreja de Eunate, de outro ângulo.

Parece ser que também funcionava como um farol de orientação para os caminhantes, através de uma espécie de lanterna localizada na torre, dentro da qual se mantinha aceso o fogo que servia de ponto de referência para o peregrino.

A igreja possui planta octogonal, em cujos lados se abre uma cabeceira absidial semicircular.

Todo seu perímetro está cercado pela “arquería”, também octogonal, mas ligeiramente irregular, ao ter os lados situados a leste um pouco mais alargados.

Os muros do templo principal estão formados por arcos de descarga apontados, alguns dos quais se abrem pequenas janelas.

A portada principal, localizada no lado norte, está composta por arquivoltas, suportadas por dois pares de colunas. 

Porta de entrada da igreja.

A exterior é a mais interessante, pois está decorada com figuras humanas e de animais.

Outros capitéis possuem temática vegetal.

No interior, a sensação de sacralidade é potencializada pela própria disposição da estrutura, que faz com que o olhar se dirija inicialmente ao abside e depois à cúpula.

A cúpula denota uma influência muçulmana, própria do sincretismo cultural que caracteriza o Caminho de Santiago.

Dentro visualizamos também uma cópia de uma imagem românica da Virgem de Eunate, cuja original do século XIII, foi roubada anos atrás.

Fonte: www.umbrasileironaespanha.wordpress.com

Ali fiz uma pausa, visitei demoradamente o templo, bati fotos do entorno e aproveitei para descansar um pouco.

Depois, como meu corpo já principiava a esfriar, prossegui meu périplo.

O caminho seguiu então na direção da rodovia que vai a Puente La Reina, minha meta para aquele dia.

O correto seria seguir a sinalização na direção de Obaños, dando uma inútil volta dentro do povoado, para depois retornar a estrada novamente.

Como já havia passado por Obaños em três oportunidades, optei por girar à esquerda e prossegui diretamente pelo acostamento da rodovia.

Um quilômetro abaixo, me enlacei com o caminho novamente, prossegui algum tempo por terra e logo chegava a Puente la Reina.

Logo na entrada da cidade, levei um susto, porque encontrei um batalhão de peregrinos transitando pelas ruas estreitas dessa histórica cidade.

Para quem caminha sozinho por, praticamente, 450 quilômetros, foi difícil me acostumar com a balburdia e o barulho de uma cidade grande, ponto de encontro do Caminho Francês e do Aragonês.

Ali fiquei hospedado no Hostal la Plaza, onde paguei 30 Euros por um excelente quarto individual.

Com a amiga Maria José, em Puente la Reina.

Sua proprietária, a Maria José, é minha amiga desde 2004 e, como de praxe, me recebeu com todo carinho e atenção.

Após a necessária lavagem das roupas, fui almoçar no restaurante La Plaza, onde degustei um supimpa “menu del dia” por 9,50 Euros.

E, na sequência, deitei para reparadora soneca.

Uma rua medieval de Puente la Reina.

Puente la Reina alberga monumentos históricos à profusão, porém, seu maior destaque é a famosa ponte românica.

Seus 6 arcos foram construídos no século XI, provavelmente, sob ordens da rainha Dona Mayor, esposa de Sancho III, da Navarra, visando facilitar o trânsito de peregrinos sobre o rio Arga.

Sem dúvida, é uma das pontes mais belas e emblemáticas de todas as existentes na rota jacobeia.

A famosa ponte que dá nome a cidade.

Mais tarde, calmamente, transitei pelas ruas milenares dessa mística cidade e fui até o Albergue dos Padres Claretianos, carimbar minha credencial.

Em seguida, fiz demorada visita à igreja de Santiago, um templo romântico, que remonta o século XII.

Igreja de Santiago, século XII.

Energizado, me dirigi à ponte medieval que dá nome à cidade para fazer algumas fotos.

Por esse local, em princípio, eu transitaria na manhã seguinte, ao deixar a urbe.

Após me suprir de mantimentos num supermercado, ainda passei um bom tempo conversando com a amiga Maria José, proprietária do bar La Plaza, que eu conhecera quando ali pernoitara, no longínquo ano de 2004.

Na verdade, na ocasião, fomos apresentados por uma amiga em comum que, infelizmente, faleceu em 2015.

Fato que a Maria José desconhecia e que a deixou bastante triste e desconsolada.

Já no quarto, passei a estudar a jornada seguinte, onde, se possível, tentaria fazê-la dupla, pois o clima finalmente esfriara e como conhecia seu relevo, sabia da possibilidade de completar o trajeto sem grandes sacrifícios.

Em seguida, fui dormir.

Feliz por estar aqui novamente!

CONCLUSÃO PESSOAL: Uma jornada de razoável extensão, e que apresenta dificuldades de grande monta em seu trecho inicial, até a cidade de Tiebas. Nesse trajeto ocorre um sem fim de ascensos e descensos, que acabam por minar a resistência do peregrino, por melhor que esteja preparado fisicamente. O restante da etapa é tranquila, por campos arejados, e com ampla visão do horizonte. O ponto alto do percurso foi, sem dúvida, a visita a igreja de Eunate, um local místico e venerado. Meu aporte a Puente la Reina foi traumático e me fez repensar e desistir das próximas etapas, pela excessiva quantidade de peregrinos que encontrei nessa localidade.

15/18ª etapas – SARRIA a SANTIAGO DE COMPOSTELA - 119 quilômetros