EM ARTIEDA, UMA PÁSCOA INESQUECÍVEL!

11/04/2004 - Depois de Arrés, no caminho para Martes.

A Páscoa, na era pré-mosaica, simbolizava a celebração da primavera dos pastores nômades, um ritual pagão que anunciava o fim do inverno e a chegada da primavera, e sempre representou a transformação de um tempo de trevas para outro de luzes, isto muito antes de ser considerada uma das principais festas da cristandade. 

Porque, a palavra "páscoa" – do hebreu "peschad", em grego "paskha" e latim "pache" – significa "passagem", uma transição anunciada pelo equinócio de primavera (ou vernal), que no hemisfério norte ocorre em 20 ou 21 de março e, no sul, em 22 ou 23 de setembro.

Já, para o povo hebreu, todavia, é a festa anual transformada em memorial de sua saída do Egito. Uma das mais importantes do calendário judaico é celebrada por 8 dias, e lembra o êxodo dos israelitas durante o reinado do faraó Ramsés II, historicamente, a “mutação” da escravidão para a liberdade. 

Para os católicos, no entanto, representa a data em que se comemora a ressurreição de Cristo, celebrada sempre no primeiro domingo depois da lua cheia, do equinócio de março. Um dia de alegria, em que os corações exultosos festejam a vitória da vida sobre a morte.

E foi com o espírito alvissareiro pela evocação da auspiciosa efeméride, que parti de Santa Maria de la Serós, mais especificamente do Hotel Aragon, onde passei a noite, naquele domingo festivo, dia 11/04/2004, para cumprir a 6ª etapa de minha peregrinação rumo ao Santuário de Compostela.

À saída, conferi alarmado no mostrador de um termômetro, estrategicamente instalado na fachada do edifício, a temperatura reinante no exterior, àquela hora: exatamente, 2 graus positivos.

Madrugada frígida, guiado apenas pelo brilho selênico da lua cheia e de seu séquito de estrelas madrugadoras, segui animado, almejando vencer dura jornada até Ruesta, distante dali, a 40 quilômetros.

A empreitada inicial, toda trilhada em asfalto, conduziu-me, após 3 quilômetros, à cidade de Santa Cília de Jaca, da qual passei a largo, vez que está situada a uns duzentos metros da pista. 

Depois de caminhar mais 6 quilômetros, ainda pelo acostamento da rodovia, às 7 h, cheguei à Puente de la Reina de Jaca, cidade que se situa na outra margem do rio Aragon, curso d’água de águas límpidas e azuladas, que se manteve o tempo todo à minha direita, fluindo no mesmo sentido de minha caminhada.

Atravessei, então, por sobre uma bonita e moderna ponte, e num barzinho localizado na entrada da cidade tomei café e comprei provisões, pois a partir dali eu enfrentaria, aproximadamente, 21 quilômetros, por locais ermos. 

Na verdade, nesse trecho, avança-se por uma estrada plana, e quase sempre reta, que é cruzada, em alguns locais, por vias secundárias que levam a Martes e Mianos, minúsculos povoados que não oferecem nenhum tipo de apoio ao caminhante.

Bem alimentado, retornei ao Caminho, no instante que o sol nascia à leste, já uma forte e suave explosão rosada. Segui, então, por uma estrada vicinal pavimentada de escasso tráfego, em meio a muito verde. 

Meia hora depois, alcancei um entroncamento: se seguisse em frente por mais dois quilômetros, aportaria na cidade de Arrés. Contudo, observei a sinalização das flechas amarelas, e me orientei por um transformador branco encaixado no alto de um poste de madeira, para não errar a direção a ser seguida. Assim, deixei o asfalto e prossegui à direita, por uma larga e retilínea estrada de terra batida. 

Do meu lado direito, havia enormes plantações de sorgo e cevada que seguiam até a beira do rio Aragón, que naquele local corre entre um bosque de frondosos álamos e chopos, que mais parecem lhe servir de escolta. 

No horizonte, como pano de fundo, uma visão épica e imorredoura: cintilando, como espadas brunidas, os picos nevosos dos Pirineus. A justificar o vento gélido e incessante que varria a campina, proveniente daquela direção. 

Apesar do céu estar translúcido, com o astro-rei brilhando a toda intensidade para àquela hora da manhã, eu não sentia calor, pois a viração constante e intensa concorria, decisivamente, para que a temperatura permanecesse abaixo dos 10 graus.

Do meu lado esquerdo, campos recentemente arroteados, maculados por algumas touceiras do tenro capim primaveril, eram ladeados por exuberantes pradarias e relvados resplendentes de flores silvestres pintalgadas. Para completar o maravilhoso panorama, sentia o ar impregnado pelo perfume disseminado na atmosfera, espargido pela forte brisa que cortava a planície.

11/04/2004 - No Caminho para Artieda (ao fundo)

Marchei num ritmo uniforme e 40 minutos depois, pude apreciar ao longe, à direita, no cimo de um outeiro, o “casco viejo” de Berdun, cidade que dista uns 5 quilômetros da Rota, por isso mesmo, local impróprio a uma visita, entrementes, uma opção de hospedagem em casos de emergência. 

Dali em diante, a me acompanhar na jornada, de ambos os lados, imensos campos de trigos a perder de vista. Os cuidados com essa cultura ali são maximizados, porque o solo aragonês é extremamente árido e pedregoso. 

Do lado direito, no meio da plantação, avistei um grandioso pivô central, com seu aspecto de monstro mecânico. Na verdade, um intrincado sistema de irrigação por aspersão, formado por um conjunto de tubulações, rodas e engrenagens. Sua extensão cobria uns duzentos metros de trigal, e os pés cilíndricos de metal, utilizados para movimentá-lo, estavam estrategicamente alinhados com as valas que separavam as áreas cultivadas.

No Caminho, pouquíssimos peregrinos seguiam viagem, possivelmente nesse dia não seríamos mais que 4 ou 5, perdidos no imenso planalto do antigo reino de Aragon. Ao longe avisto solitário, um desses caminhantes, que prossegue a passos lentos. Quando faz uma pausa para o lanche, ultrapasso-o. Ao cumprimentá-lo amistosamente, corresponde com um aceno de mão. Posteriormente, soube ser austríaca sua nacionalidade.

Uma hora depois passei ao lado uma enorme granja, e pouco mais à frente, segui à esquerda contornando um galpão abandonado, erigido dentro de um terreno matoso, repleto de pequenas construções espandongadas e em ruínas. 

Parei para breve descanso num banco de pedra, colocado providencialmente por trás de uma árvore próxima a um curral de ovelhas. Naquele local, o vento fustigante gemia agourento. Em compensação, notei à esquerda uma plantação de canola que coloria o campo do tom verde-amarelo, o que, instantaneamente, soergueu meu espírito patriótico. 

Quando voltei a caminhar, a paisagem mudou radicalmente, a vegetação foi substituída por enormes paredões de rochas híspidas, entremeados por montes de areia e imensas crateras de terra nua, local onde erosão moldou, tal qual numa paisagem lunar, esculturas de perfis inimagináveis. Nessa consonância, uma montanha de rochas esbranquiçadas que avisto ao longe, batida pelo sol, adquire uma configuração meio fantástica, como o cenário de outro planeta.

Mais à frente, após ultrapassar grande depressão, deixei a Província da Huesca para adentrar na de Zaragoza. Quase em seguida, surgiu o rio Sobresechos, cujo caudal tímido formava apenas um fino espelho d’água, permitindo-me seguir por cima de pedras caprichosamente alocadas em seu leito por algum benfeitor, evitando com que eu molhasse a parte superior de minhas botas.

Pouco tempo depois, numa curva da estrada, parecendo materializar-se do nada, encontrei inesperadamente, uma jovem que passeava com seu cão. Apresentou-se como Raquel, perguntou meu nome, procedência, e convidou-me a pernoitar em Artieda, cidade que eu já avistava ao longe, no cume de uma elevação. Informou-me, ainda, que o albergue era uma construção moderna e bem aparelhada, sendo a proprietária e hospitaleira, sua mãe.

Enquanto conversávamos, seu cãozinho da raça Cocker Spaniel, chamado Nico, amistosamente, veio me cheirar, depois lambeu minhas mãos, o que consenti, afagando-lhe a cabeça. Nunca é demais repisar que os animais dessa estirpe são extremamente meigos, carinhosos, fiéis, e de temperamento amistoso.

Senti que houve entre nós uma compatibilidade instantânea. A provocar em meu interior, um caleidoscópio de sentimentos ambíguos. Razões e desrazões para ficar ou seguir adiante. Embora meu planejamento para o dia fosse caminhar ainda 10 quilômetros, até Ruesta, invadido por uma avassaladora sensação de afetividade, abruptamente, resolvi encerrar minha jornada. 

Ao ser informada de minha decisão, a mocinha, corpo de sílfide, alegremente afiançou-me que quando aportasse à vila, já encontraria sua mãe à minha espera.

Artieda é uma minúscula povoação onde, segundo o Guia El País, vivem pouco mais de 60 almas. Todavia, para o peregrino extenuado, é uma jóia plantada no meio do agreste Aragonês. Como as demais da região, também foi edificada no cocuruto de um morro, sobranceando, desdenhosamente, os intrépidos andarilhos que ousam lutar contra seus elementos naturais. 

A ascensão pelos contrafortes da montanha, até atingir-se o topo, onde se localiza a cidade, se faz por uma rodovia asfaltada, extremamente íngreme e alcantilada. Por isso mesmo, magoa sensivelmente nossos joelhos, espicaça nosso ânimo, e exaure nossas derradeiras energias. Dessa forma, quando cheguei ao albergue, estava mais trôpego que mula velha debaixo de cangalha. 

Conforme previra sua filha, Dona Maria Joana me aguardava a porta e acolheu-me com extrema fidalguia. Seu rosto redondo estampava delicadeza e sensibilidade, e os olhos cinzentos que davam vida à sua fisionomia, irradiavam meiguice e bondade. Enquanto eu era conduzido para o interior da residência, de maneira inusitada, ela me chamou pelo nome. Como seria isso possível, ponderei, boquiaberto? 

Ante minha estupefação, ela respondeu que sua filha já lhe avisara de minha chegada pelo telefone celular. Que certamente portava escondido, pois não o havia visto. Daí o motivo de meu assombro. São as maravilhas da cibernética, refleti, vencido pelas evidências.

Dona Joana mostrou-me três amplos quartos, cada um contendo dois beliches. O ambiente era limpo e arejado, e usufruindo a prerrogativa de ser o primeiro, escolhi uma cama num canto retirado, já me precavendo contra possíveis roncadores. Depois, cuidei de lavar as roupas.

Após, profícuo banho, por uma escada interna, desci para o piso inferior, onde se localizava o Bar/Restaurante explorado pela proprietária do albergue e sua família. Face o terreno acidentado, as portas do edifício abriam-se para a ruela que contemplava esse patamar. 

Na calçada, defronte ao estabelecimento, algumas mesas, esmeradamente decoradas, estavam ocupadas por famílias da localidade que bebericavam ao sol, ao tempo que esperavam a hora da “bóia”. 

No local havia mais três peregrinos: dois deles eram ciclistas holandeses; o outro, um agradável senhor espanhol de nome Pablo. Conversamos por alguns minutos, e houve entre nós uma incrível e substancial empatia.

11/04/2004 - Albergue de Artieda, com a hospitaleira M. Joana e filha Raquel

Sua intenção era lanchar e seguir em frente. Todavia, face aos rasgados elogios que teci relativamente às instalações ali existentes, resolveu dar por encerrada sua marcha daquele dia, e se instalou no mesmo aposento que eu. 

Depois, desceu para dividir uma garrafa de vinho, enquanto aguardávamos o almoço ser servido. Foi o prelúdio de notáveis ​​descobertas.

Pablo tinha 67 anos, mas esbanjava jovialidade. Baixo e atarracado, seus olhos castanhos eram francos e diretos, e sua cortesia e gentileza estavam acima de qualquer crítica. O que não notei de pronto foi seu refinado senso de humor, uma qualidade que emergiu, com mais propriedade, depois que nosso relacionamento se estreitou. 

Com o semblante altivo, em linguagem escorreita, confessou-me, orgulhoso, que já para um hospitaleiro no passado. Por anos a fio, de forma gratuita, dedicava-se a vinte inolvidáveis ​​dias, em atender aos peregrinos. A amizade, falou-me, é a referência de como devemos zelar para que o frágil tecido do amor paciente, recíproco e diferenciado, pode nunca se romper.

Sobre o Caminho, foi enfático: “Cada ser humano viaja para seu destino, no bojo de um paradoxo, e Santiago, sob a égide de Cristo, vela e zela por ele, porque só Ele sabe o que é melhor para cada um, em seu tempo, hora e lugar ”.

Depois, discorreu sobre suas experiências como caminhante, pois essa era a sexta vez que peregrinava à Compostela, a primeira pelo “tramo” Aragonês. Conhecia diversas passagens interessantes e declinou-me algumas vezes, com a voz embargada de emoção. Eu ouvia-o embevecido, e cada nova história narrada, era um jorro de oxigênio que renovava minha fé no Santo, e fortalecia nossos ideais e laços de afetividade.

Raquel já havia retornado e auxiliava sua mãe no atendimento aos fregueses. O burburinho era intenso. Nico, o cão, calmamente deu um giro pelo local, inspecionando demoradamente o ambiente e as pessoas, depois, de forma conspícua, cheirou-me longamente, e deitou-se aos meus pés. Gratificado e envaidecido pela escolha, pus-me, então, a acariciar sua vasta pelugem, enquanto ele cochilava placidamente. 

Às 14 h, transformaram para adentrar ao “Comedor”. Na parede do salão, quadros ornamentavam o recinto, a maioria com fotos de antepassados ​​dos proprietários, quase sempre rostos vetustos e em poses rígidas.

O almoço foi faustoso, acompanhado do cerimonial que o dia e as circunstâncias comportavam. A ocasião ensejava alegria, e a Páscoa foi lembrada com um brinde por todos os presentes. Sobre toalhas primorosamente bordadas, uma refeição foi servida com fartura. Estava deliciosa, e degustei-a acompanhada de encorpado vinho tinto riojado. 

Depois de me alimentar, retornei ao albergue e principiei a redigir meu diário. Nico subiu logo atrás, latindo sem cessar, como querendo me dizer algo, ou, conforme interpretei, fazendo-me um convite. Depreendi, pela sua cara de “pidoncho”, que seu desejo era passear, mais precisamente, mostrar-me sua terra natal. Ante conclamação tão espontânea, acedi, e saímos para um giro. 

A povoação encontrava-se silenciosa, mergulhada na modorra da tarde. O céu estava encoberto, e a espessidão das nuvens atenuava o calor reinante. Nico dava carreiras, feliz e alvoroçado, levando-me por alamedas tortuosas, embarafustando-se por becos sombrios, adentrando em portões semi-aberta, enquanto voltejávamos, sem pressa, pelas floridas e empedradas ruas que compõem uma área urbana da linda cidadezinha. 

Quase uma hora depois da volta ao refúgio, ea alegria dele era tanta, que sua gratidão, externada em forma de lambidas e ganidos, chegava a ser comovente. 

Aproveitei, então, para tirar uma soneca, sentado numa cadeira de balanço, estrategicamente colocado à sombra, sob o alpendre da habitação. Dali eu tinha uma visão ampla e privilegiada de toda a região. Nico, preguiçosamente, aninhou-se próximo ao espaldar.

Acordei por volta das 18 horas ouvindo o cão ganir baixinho, em falsete. Ele mirava intensamente na direção da estrada por onde eu viera, olhar atento, latidos em volume crescente.

Dona Maria Joana preparava o jantar no andar de baixo, mas ao ouvir a estrepitosa sinfonia, acorreu apressada. Observou a planície atentamente, depois disse, como se comentasse consigo mesmo: - Ah, mais um peregrino chegando, certamente alguém extraviado, pois já é muito tarde para se estar na trilha a estas horas. Vou preparar mais uma cama, dentro de 40 minutos ele estará aqui, complementou ela.

Firmando meus olhos pude contemplar um pontinho insignificante, que se movimentava ao longe, na nua e vasta extensão de terra, que dali eu divisava. Todavia, no tempo aprazado pela anfitriã, eis que adentra ao albergue um francês alto e magro, manquejante e esbaforido, pela longa jornada cumprida.

Confessou, num intricado espanhol, que havia subestimado as distâncias, pois saíra de Jaca pela manhã, ou seja, havia percorrido nada menos que 45 milhas. Sem dúvida, um percurso difícil e perigoso, mormente pelo trecho final, todo ele vencido num terreno áspero e coalhado de pedras.

Aguardávamos o jantar, por isso fiquei a conversar com Pablo. Ele estava vivamente interessado em minha aventura, vez que observou um escassez de tempo que detinha para cumpri-la. Debatemos o assunto, exaustivamente, ao mesmo tempo em que ele analisava minha planilha de viagem. Depois, perquiriu-me sobre distâncias e locais de pernoite. No final, deu-me sugestões e conselhos, estribado em seu vasto conhecimento sobre o Caminho.

Quanto a ele, não tinha pressa na jornada, assegurou-me. Era viúvo, tinha os filhos criados. Pretendia pernoitar em Undés de Lerda no dia seguinte, ou seja, caminharia, apenas, 23 milhas. Dessa forma, fez-me prometer que o acordaria antes de partir, para nos despedirmos.

Após a refeição, com Nico a me escoltar, saí para telefonar dando notícias à família. Ao retornar, senti-me fragilizado por sentimentos febricitantes, e fui acometido de uma saudade visceral de minha terra, aliada a uma melancolia recorrente. Eram tantas lembranças a assediar meu espírito, que, para espairecer, saí passear com Nico novamente.

A noite apresentava-se fria e ventosa, porém, o dia ainda estava claro. Na Espanha, nessa época, nunca escurece antes das 21 h 30 m. 

E, lá fomos nós, homem e cão, numa perfeita simbiose, tal qual um helotismo. Ele, olhos rútilos, turbulento, corria à frente, depois retornava, num vaivém, sem fim. Eu, devagar e pensativo, mãos nos bolsos, seguia sobre seus passos, pelas ruas enlajeadas e sinuosas da urbe, como se fosse um pedaço de ferro atraído, sem remissão, por um poderoso magneto. 

Assim que retornamos, o dia findava. Com Nico enovelado aos meus pés, do pátio superior, fiquei contemplando o belíssimo pôr-do-sol Aragonês, o céu cor de laranja e carmesim por trás dos Pirineus, as águas pesadas do “Embalse de Yesa”, de tão ricas evocações, a refletir os derradeiros raios solares. 

E enquanto o astro-rei ia lentamente desaparecendo no horizonte, num instante único e mágico, percebi lágrimas a afluir no canto de meus olhos. Porque sentia que havia algo de grandioso naquela visão. Algo de eterno.

Alguns instantes depois, quando o crepúsculo vespertino cobria de cinzento as cores do mundo, e as nuvens de algodão lá fora começavam a refletir as luzes da cidade, senti o coração leve e lírico. E, com um copo de vinho na mão, fiz um pomposo brinde a Santiago.

Quedei-me, então, por alguns instantes a pensar novamente, no significado litúrgico, daquele dia que se ia para sempre. Lembrei-me, outra vez, que Páscoa significa, teratologicamente, ressurreição, júbilo e esperança. E isso nos faz mergulhar no mistério da renovação da vida e da vitória da fé. 

Em harmonia, a luz da revivescência manifesta-se como alegria de viver, sonho de realizações e convite à fraternidade. Nesse contexto, aquela “passagem” significara, para mim, um dia de gratas surpresas, imensas beatitudes, e pródiga em novas conquistas. Nico, um cão amigo, a maior delas. 

Fiquei, então, por momentos, a acariciar seu pêlo cor-de-caramelo, e, enquanto ele se refestelava prazenteiro, como num pacto, permanecemos num silêncio conivente de quem se vê entregue a um momento de felicidade e tenta eternizá-lo, para que ele não se vá para sempre, já convertido em saudade. 

Depois, o levei até sua casinha no quintal, despedi-me com um afago emocionado, e fui dormir. Éramos oito peregrinos no albergue, quatro deles ciclistas, e, possivelmente, pelo barulho da calefação ligada, e a imensidade de emoções vivenciadas ao longo daquele dia, meu sono foi inquieto e cheio de sobressaltos. 

Levantei-me cedo, na Espanha ninguém trabalhava naquela segunda-feira. Como já era tradicional, comemorava-se em todo o país a “Pascoela”. Mas, para o peregrino que ruma à Compostela, não existe domingo, nem feriado. A cada dia, uma nova etapa há que ser sobrepujada. 

E minha jornada seria ríspida e longa, pois pretendia pernoitar em Sanguesa, distante 34 milhas dali. Silenciosamente, para não acordar os demais companheiros, preparei breve desjejum na cozinha do refúgio.

Bem sei que a vida de peregrino é uma sucessão de encontros e despedidas. Assim, por não gostar de dizer adeus, propendia protagonizar uma escapulida à sorrelfa. Talvez por isso, taciturno, tristonho, sinto o clima opressivo e sombrio, teor de prenunciação de fatalidade, que só as separações provocam.

Entretanto, lembrei do que havia combinado na noite anterior, e acordei Pablo exatamente às 6 h. Cinco minutos depois ele adentrava o acanhado refeitório onde eu ingeria um capuccino, feito às pressas. Trocamos algumas palavras e, antes de nos separarmos, dei-lhe de presente, um pequeno broche, com a bandeira do Brasil. 

Ele prometeu ornado-la, fixada no peito, até Santiago. Perguntou-me se manteria contato. Sem hesitar, respondi que deixaria mensagens nos “livros-de-visita” dos albergues em que pernoitasse. E, também, sempre que possível, daria notícias pela Internet. 

À saída, me abraçou. Por ser mais alto e forte que ele, sem amplexo, senti-me um tanto desajeitado. Para fragmentar barreiras e paradigmas, osculei-lhe a face. Quando ele me soltou, notei que estava chorando.

Hora de partir. Mochila afivelada, cajado na mão, estaco por alguns instantes na porta do albergue, sob a luz imprecisa e pardacenta da madrugada. O vento enregelante que varre as ruas vazias da cidade traz até meus ouvidos os latidos estrídulos de Nico, que dorme num espaço circunscrito, localizado no piso inferior da habitação.

Indeciso sobre o que fazer, ensaio alguns passos, e então me lembro das palavras que Jesus disse a Santiago, na praia de Saídam, à beira do Lago Tiberíades: “Aprende a pensar nas consequências de teus atos. Lembre-se de que a colheita é de acordo com a semeadura. Com fé viva, estas graças te sustentarão quando chegar a hora de beber o cálice do sacrifício. Não temas nunca .. ”

Meu coração fica apertado, confrangido, depois, resoluto. Entendo que devo beber da taça. Contudo, a proximidade do aparto definitivo, dilacerava-me por dentro. Como um sinal divino, noto à leste, um clarão amarelado, pressagiando a próxima aparição do sol.

Contorno um parapeito, construído como proteção ao amplo terraço, e arremeto ao encontro de meu “amigo pascalino”. Ele me recebe com festas e lambidas. 

É, porém, de compungida tristeza a expressão que observo em sua face canina. Seus olhos fixos em mim estão baços, numa melancolia de dar pena. A visão era de amolecer, mesmo o peregrino mais empedernido.

Abraço-o, pela última vez, enquanto ele geme baixinho, talvez por sentir a proximidade do desenlace. Seu rosto paralisado não expressa nenhuma reação, mas um ligeiro tremor em sua pele, deixa transparecer um turbilhão interior.

Nesse derradeiro momento, enquanto acaricio seu pêlo fulvo, baixa uma nuvem de tristeza em meus olhos, e como lágrimas escorrem em seguida, com profusão. Sinto – me melhor, porque sei que o choro é uma reação exclusiva do cérebro humano, fundamental para descarregar tensões emocionais, acalmar e trazer sabedoria ao espírito para aceitar a realidade. 

Sei, também, que o excesso de emoção intoxica e pode distorcer a realidade, mas longe de mim a aridez do racionalismo puro. Assim, poderia jurar, Nico, com sua voz roufenha e esganiçada, chorava junto comigo.

Respiração entrecortada por soluços, par sem olhar para trás, e enquanto desço afoitamente, como ladeiras da cidade, em direção ao meu objetivo do dia, vou ouvindo Nico uivar, de forma rítmica e sincopada, cada vez mais afastado, como a me dizer adeus . Ou, talvez, a desejar boa sorte a minha peregrinação. 

E cada solfejada sua, tocava uma corda no fundo da minha alma. Porque sua “amizade” desinteressada e sincera, ainda que fruto de seu instinto animal, enquanto ser vivente, representou para mim, a quintessência do sublime.

Sigo obstinado pela trilha, e me lembro que piso em solo sagrado. Sim, porque desde a Idade Média, essa era uma Rota aproveitada por aqueles que procediam do sudeste Francês e, por consequência, da Itália. Ou seja, dentre inúmeros outros, São Francisco de Assis também passou por aqui, quando de sua peregrinação à Compostela, em 1.221.

Em razão disso, meu pensamento retroage a raciocinar sobre mais esse fortuito “milagre” que me acontecera no caminho. Obra do eventual, ou teria sido a mão divina guiando meus passos?

11/04/2004 - Com Nico, o cão peregrino de Artieda

Isto, porque minha intenção precípua era pernoitar em Ruesta no dia anterior, ou seja, se tivesse mantido meu cronograma de viagem, ladearia o morro que acolhe Artieda, pelo seu sopé, e seguiria em frente.

Não fosse, a casualidade e o sincronismo do encontro com Raquel. E, a centelha que me afeiçoara instantaneamente a Nico, criando, de pronto, um vínculo afetivo, significativo entre nós dois, o que motivou, intuitivamente, minha mudança de planos. 

Porque, segundo dizem, o acaso não existe. E “A sincronicidade é uma das línguas que Deus usa para permitir que alcancemos nossos desejos e sigamos corretamente o curso de nosso destino na Terra. Enfim, uma seta-amarela na vida”. (Auro Lúcio Silva, “Caminho das Pedras”).

Bem, com Pablo mantenho contato até hoje, por meio virtual. Sei que está bem disposto e, irrequieto, tem planos para em 2.006 repetir sua epopeia no Caminho, desta vez pela “Via de La Plata”.

Já, quanto a Nico, tive notícias no final de outubro. Ao folhear um opúsculo, deparei-me com o seguinte pensamento: “A saudade se parece com a fome. A fome é um vazio. O corpo sabe que alguma coisa está faltando. A fome é a saudade do corpo. A saudade é a fome da alma”. (Rubens Alves).

Incontinenti, movido por insana e mórbida curiosidade, telefonei para a Espanha, mais especificamente, no albergue de Artieda. Com voz clara, entonação perfeita, Dona Maria Joana atende e se emociona quando lhe conto que estou no Brasil. Agradece-me, efusivamente, pela lembrança, e garante que todos por lá estão bem, inclusive sua “hija” Raquel. 

Com o coração aflito e expectante, indago-lhe sobre Nico. 

Alegremente, me assegura que “El Perro” completou 2 anos em agosto, e continua saudável e travesso. E, como de sua índole, persiste a se envolver com os peregrinos que, diariamente, lá se hospedam. A ratificar, com propriedade, o epíteto que lhe dediquei.

Nessa conformidade, faço um pedido: Se alguém passar por Artieda um dia, por favor, dê um abraço no “amigo” Nico, por mim. E, diga-lhe, de minha imensa saudade e gratidão, por aquele inesquecível Domingo de Páscoa que passamos juntos.

Bom Caminho a todos!

  Setembro/Outubro-2.005