1ª etapa: SAINT JEAN PIED DE PORT a RONCESVALLES – 25 quilômetros

Vieira incrustada no piso da rua Citadelle, mostando o rumo a seguir.

Sabia, pela experiência vivenciada em 2001, que seria uma jornada difícil, pois o primeiro trecho do Caminho é todo feito em severa ascensão.

Ademais, por mais preparado fisicamente que esteja o peregrino, sua mochila ainda está com a capacidade máxima e as pernas e o corpo ainda não estão adequados para a longa jornada desse primeiro dia.

Assim, levantei bem cedo, ingeri frutas e chocolate, fiz alongamentos, pronunciei minhas orações matinais e, às 6 h 45 min me postei diante da igreja de Notre Dame.

Enquanto ali permaneci, passaram por aquele local mais de 50 peregrinos que se dirigiam ao Caminho, alguns alegres, outros apressados e taciturnos.

Ainda estava escuro quando, no horário aprazado, a Mariana apareceu, juntamente com a Andreia, uma peregrina brasileira que também se hospedara no mesmo albergue onde ela pernoitou.

Início do Caminho, na Port de Espagne, em San Jean!

Fizemos uma foto na saída da cidade, depois iniciamos nossa caminhada.

Logo teve início uma pronunciada ascensão e como eu estava fisicamente bem preparado, e sabendo que as duas amigas não se perderiam pela grande quantidade de peregrinos que iniciavam o Caminho naquele dia, me despedi delas e segui em meu ritmo.

Albergue de Huntto

Caminhei tranquilo e depois de 5 quilômetros vencidos, passei pelo albergue de Huntto.

Início de agudíssimo aclive, à esquerda, em terra.

Logo adiante o roteiro abandonou a rodovia, adentrou em terra e, então teve início uma agudíssima ascensão, em meio a muito verde.

No topo do morro, derradeira visão de San Jean, incrustada no fundo de um vale abaixo, a 8 quilômetros de distância.

Já no topo da elevação, onde existe um mirador e uma fonte, fiz algumas fotos dos locais por onde eu viera caminhando, podendo observar, pela última vez, encravada no fundo do vale a cidade de San Jean, porque, na sequência, passei a caminhar pelo outro lado da montanha.

Albergue de Orisson

Depois de 8 quilômetros percorridos, passei diante do Albergue Orisson, onde fiz uma pausa para adquirir uma garrafa pequena de água, pois, embora estivéssemos no início da primavera, curiosamente, apesar do vento frio, o dia se apresentava claro e ensolarado.

O Caminho nesse trecho, segue em perene aclive, sempre por asfalto.

Muitos peregrinos no Caminho, trecho em íngreme aclividade.

Na sequência, sempre em ascensão, pude observar inúmeros peregrinos caminhando à minha frente, sendo que a maioria eu ultrapassei com meus passos cadenciados e sem pausas.

Cruz de Thibault, início do caminho em terra.

No topo do morro, deixei definitivamente a estrada asfaltada para adentrar à direita, num local onde está fincada a Cruz Thibault, um referencial nesse trecho.

Caminho logo após a fronteira, já do lado espanhol, ainda levemente ascendente.

Então, prossegui por uma pista larga e íngreme, em terra, que me levou a atravessar um difícil “passo” da montanha, localizado a oeste do pico Leizar Atheka, já próximo do Collado Benrtartea, a 1380 metros de altitude.

Ainda encontrei muita neve nos Pirineus.

Na sequência, do outro lado da elevação, passei a caminhar num local plano e arborizado, onde o piso se encontrava bastante úmido, por conta da neve que se derretia a beira do caminho.

Logo depois de ultrapassar a fronteira encontrei essa placa, cuja quilometragem está um tanto defasada, o correto seria: restam 805 quilometros!

Alguns metros à frente, eu ultrapassei a fronteira espanhola e, uns duzentos metros depois, fiz uma breve pausa na Fonte de Rolando, para beber água e ingerir uma banana.

A partir da entrada na Espanha, existem postes de madeira numerados e com a indicação do nº 112 de emergência, fincados a cada 50 metros, e que servem de referencial aos peregrinos em dias de cerração, neve ou climas inóspitos.

Fonte de Rolando, único local que oferece água potável nesse trecho final.

Prosseguindo, ultrapassei duas peregrinas brasileiras que haviam pernoitado em Orisson, mas como elas estavam num ritmo bastante tranquilo, logo me despedi e prossegui novamente escoteiro.

O roteiro prosseguiu fresco e ondulante até o “Passo de Bentarte” e, ao dobrar à direita, seguindo a sinalização, passei diante do “Passo de Izandorre”, onde existe um pequeno abrigo com telefone de emergência para ser utilizado em casos críticos.

Caminho próximo do “Passo de Izandorre”.

Inclusive, soube que em janeiro deste ano, três peregrinos coreanos foram ali resgatados “em extremis”, hipotérmicos e desidratados, mas que sobreviveram.

Contornando o “Collado Lepoeder”, ponto de maior altimetria dessa etapa.

Na sequência, passei pelo “Collado Lepoeder”, depois prossegui subindo por um caminho pedregoso e úmido, até atingir o ápice da elevação, a 1.430 m de altitude, o ponto de maior altimetria dessa etapa.

A 1.430 m de altitude, no ponto de maior altimetria da etapa, avista-se Roncesvalles à esquerda, abaixo e ao fundo.

Daquele local privilegiado eu podia divisar, ao longe e abaixo, a Collegiata de Roncesvalles.

Então, iniciou-se penoso descenso, que fui vencendo com extremo cuidado.

Bifurcação importante: o melhor é seguir à direita, embora seja mais longo, é menos perigoso e seus pés agradecerão.

Mais abaixo, numa bifurcação, são oferecidas duas opções aos peregrinos, sendo que a primeira, a mesma que eu havia percorrido no ano de 2001, importa em descer por um vale, num trajeto perigoso, por conta de extrema declividade.

Descendendo em direção à Roncesvalles, alcancei esse casal português, Emidio e Vanda.

A segunda alternativa, a que eu escolhi, seria preciso fazer o descenso pela direita, num trajeto que acresce 800 metros a mais no percurso, porém seu descenso é menos acentuado.

Igreja de Ibañetta.

Em determinado trecho do roteiro, eu encontrei um casal de nacionalidade portuguesa, o Emídio e a Vanda, e fizemos o restante da etapa juntos, trocando informações.

Monastério de Roncesvalles, ao fundo.

Exatamente às 14 horas, eu aportei à Roncesvalles, e rapidamente me alojei no hostal Casa Sabina onde havia feito reserva.

Depois de um reconfortante banho e um excelente almoço, curti uma bela soneca, que proporcionou pronto restabelecimento em meu estado físico e mental.

Monastério de Roncesvalles, entrada principal.

Às 17 horas, eu fui até o albergue paroquial carimbar minha credencial, e ali e reencontrei a Mariana e a Andréa, que haviam chegado um tanto cansadas, mas felizes por ter vencido essa dura etapa.

Às 20 horas, compareci à missa dos peregrinos que ali se realiza diariamente e, após a cerimônia, fomos todos abençoados em meio a sonoros e afinados cantos gregorianos, entoados pelos padres celebrantes.

Depois houve a tradicional benção aos peregrinos e, emocionados, ao final desta, fomos Mariana, Andréa e eu, jantar num restaurante próximo.

 

Estranho monumento alocado diante do Monastério de Roncesvalles.

Roncesvalles (em basco = Orreaga) fica na comunidade autônoma da Navarra, dentro do país basco, e possuía no censo de 2007, apenas 24 habitantes.

Sua importância histórica está diretamente associada ao massacre das tropas de Carlos Magno, no ano de 778, em emboscada atribuída aos bascos, feita nos bosques por onde atualmente o peregrino caminha.

Contudo, está longe de ser um local abandonado e decadente.

O local atrai muitos turistas, como se pode aferir pelo número de carros estacionados.

É um dos locais mais vivos e mais luminosos do Caminho, e aqui, de uma maneira única e mágica, ocorre um sincretismo histórico e mitológico em que se mesclam a imortal tradição jacobeia da Espanha, com o inesquecível ciclo carolíngio da França.

A presença de Carlos Magno dá força e prestígio ao culto de Santiago, enquanto a presença do apóstolo engrandece e santifica o imperador dos francos.

Um pouco antes, fica Valcarlos, o vale onde Carlos Magno acampou enquanto seus guerreiros combatiam em Roncesvalles.

Na igreja de Valcarlos encontra-se a rocha partida ao meio por Rolando, com a sua espada Durandal, e na baixada do vale está o Bosque de las Lanzas, que nos traz a lenda das cinquenta mil donzelas que deram a vitória ao imperador dos francos.

Monastério de Roncesvalles, entrada principal.

No alto, em Ibañeta, de onde se avista a Espanha a Oeste, a França a Leste, e o "mar Britânico" ao norte, encontra-se a antiga Cruz de Carlos Magno.

Diz a lenda que o imperador, à frente de seu exército, abrindo caminho pelas florestas dos Pireneus, aí chegando, ajoelhou-se em direção à Galícia e rezou a Deus e a Santiago.

Os peregrinos, seguindo a tradição também se ajoelham, rezam ao Apóstolo, e cravam uma cruz, onde já há muitas centenas delas.

Embora a batalha de Roncesvalles tenha sido travada no ano 778, trinta e cinco anos antes da redescoberta do sepulcro de São Tiago, naquela época já era forte o culto ao Santo que morreu na Galícia.

A veracidade da história possa talvez ser posta em dúvida, porém o caráter sagrado dessas rochas, banhadas pelo sangue dos guerreiros, e o peso histórico do lugar, fazem com que ao longo dos séculos as lendas permaneçam vivas no coração do peregrino.

Pensão La Pousada, também bastante concorrida.

Pois, por este passo nas montanhas atravessaram os povos da Idade do Bronze, as migrações celtas, os legionários romanos, as tribos bascas, as hordas de vândalos, de suevos e visigodos, os guerreiros indo à luta da Reconquista, os reis exilados de Pamplona, a artilharia de Luís XIV, os refugiados da Guerra Civil, e os eternos peregrinos em busca de Santiago.

Em Roncesvalles tudo é história.

Aqui morreram Rolando, Oliveros, o rei Marsílio e quarenta mil guerreiros, mouros e cristãos.

E aqui foi fundada em 1132, a Real Colegiata de Nuestra Señora de Roncesvalles.

Em 1209, foi erigida a igreja, por iniciativa de Sancho, o Forte, que nela foi sepultado.

Monastério de Roncesvalles, visão lateral. Ao fundo, a mata lentamente despertando para a primavera.

O chamado Silo de Carlos Magno, com sua antiga cripta, que serviu como ossuário de peregrinos, remonta ao século XII, e, assim, a velha cruz de pedra, do século XIV, parece "moderna" para os padrões de Roncesvalles.

Imperdível, independente da crença de cada um, a missa dos peregrinos, rezada em latim, às 20 horas, na igreja da Collegiatta, com cantos gregorianos e, ao final, com a gloriosa benção aos peregrinos feita da mesma forma como era no século XII.

Após a missa, jantar em uma das duas tabernas que existem nos dois hostais, com reserva previa, já que no albergue não há possibilidade de se fazer refeição.

Por sinal, o albergue, um dos maiores em quantidade de leitos do Caminho - cerca de 130 camas e outros 20 colchonetes pelo chão - fecha suas portas religiosamente as 22 horas.

 Distância que resta até Santiago de Compostela: bastante animadora.

Finda a refeição, e após despedir de minhas conterrâneas, rapidamente retornei ao meu quarto e passei a estudar a etapa seguinte, pois tinha intenção de fazer jornada dupla no dia imediato.

Hostal Casa Sabina, local onde fiquei hospedado.

Interiormente, sentia uma intensa alegria, vez que havia sobrepujado um grande desafio, ao vencer a primeira etapa de minha longa jornada.

Na verdade, aquela que considero a mais difícil, dentre todas que vivenciei nesse memorável Caminho Francês.

02ª etapa: RONCESVALLES à PAMPLONA – 42 quilômetros