14º dia: SILLEDA à SANTIAGO DE COMPOSTELA: 40.920 metros

14º dia: SILLEDA à SANTIAGO DE COMPOSTELA: 40.920 metros

Para viajar, basta existir”. (Fernando Pessoa)

Era meu último dia no caminho e seria bastante longo.

Assim, levantei-me cedo e, às 6 h, deixei o local de pernoite e segui pela “carretera” N-525, minha grata companheira, até a saída da cidade.

Ali as flechas me direcionaram para um caminho de terra, à esquerda.

No entanto, face às pesadas chuvas do dia anterior, inferi que as trilhas deveriam estar enlameadas e escorregadias.

Ademais, uma grande e densa névoa cobria todo o ambiente, de modo que, certamente, eu teria dificuldades para localizar as setas sinalizadoras.

Passando pelo povoado de Bandeira.

Diante disso, resolvi seguir pelo acostamento da rodovia e, após 1 hora, sempre descendo, cheguei à Bandeira, pequena povoação, onde encontrei um bar aberto.

Então, face o frio reinante, entrei e ingeri um café espesso e quente.

Lentamente, o dia amanhece.

Depois segui adiante e, logo à frente, fleti à direita.

Nessa bifurcação, eu segui à direita.

E, sempre por asfalto, passei Vilariño, Pinheiro e, mais tarde, quase sem perceber, em San Martin de Dornelas.

Parei diante da igreja de São Martinho de Dornellas, uma construção de 1171, para admirar seu singelo formato e saber de sua história, escrita numa placa, que dizia:

Igreja de Dornellas.

Em 1115 o Coto de Dornellas foi doado pela rainha Dona Urraca a igreja compostelana.

A paróquia é muito antiga e sua igreja é considerada um exemplar do românico rural. De uma só nave, com abside semicircular, singularidade que nessa comarca só está presente no Monastério de Carboeiro, se abre com uma porta principal, de folhas duplas, duas laterais, tem contrafortes, seteiras e detalhes de cães abaixo de sua lateral, possuindo todos os elementos que definem um românico rural do século XII. Conserva, inclusive, o clássico Anus Dei, no frontispício da nave.

Num muro lateral, se lê a data de 1171.

Faz parte da Rota do Românico, sendo o último enclave religioso do Caminho Mozárabe (Via de La Plata), em Trasteza”.

O sol finalmente deu o ar da graça..

Logo depois, em Besteiros, um “mojón” estrategicamente colocado numa encruzilhada, me avisava que faltavam 30 quilômetros para chegar a Santiago.

A manhã era sempre uma benção.

Caminhos frescos e silenciosos.

Eu me sentia um tanto diferente, algo novo brotava dentro de mim, uma certa ternura existia, talvez, saudade e esperança.

Como todo ser humano que demanda Santiago, pensando, repensando, conferindo tudo e introspectivo, rememorando os indeslembráveis acontecimentos que vivera nos últimos 13 dias.

Piso bastante molhado, em face das chuvas do dia anterior.

Também agora sentia, com mais vigor, minhas emoções à flor da pele.

Momentos solitários e únicos no Caminho.

Cada flor me enternecia, todo novo amanhecer me tocava profundamente.

Como diz Zélia Duncan em sua canção O Lado Bom (da solidão) - “Sem ninguém por perto, meus olhos ficam mais abertos...”

A cada passo, mais próximo de Santiago.

Era o prenúncio de final da caminhada, que nós peregrinos vivenciamos com mais profundidade, quando estamos sós, num país estranho, longe de nossa terra natal.

Assim, sentindo a comoção provocada pelos derradeiros passos no Caminho, segui em meio a grande plantação de eucaliptos e carvalhos até San Miguel de Castro.

Fonte dos Carballiños.

Mais abaixo, já em asfalto, parei para matar a sede na “Fonte dos Carballiños”.

Um local místico, testemunha da passagem dos devotos do Santo Apóstolo há mais de mil anos.

Muita neblina no entorno.

Prosseguindo, iniciou-se fortíssimo descenso em pista asfaltada, culminando quase no final, com a visão impressionante de uma ponte construída sobre portentosos blocos de pedra viva, por onde correm os trens.

Um ciclista me ultrapassara mais acima, filmava esse belo espetáculo de um local estratégico, e me pediu que o fotografasse.

Muita cerração sobre o rio Ulla.

Tratava-se de Santiago, um peregrino que saíra de Valência, sua terra natal, e viera pedalando pelo Caminho do Levante, num total de 1400 quilômetros.

Curiosamente, assim como eu, ele também encerraria sua peregrinação naquele dia, o 14º de nossas jornadas.

Ao fundo, a ponte da estrada de ferro sobre o rio Ulla.

Conversamos um pouco, ele também me fotografou, depois seguiu rápido, pois ansiava em tomar seu café da manhã num bar situado em Ponte Ulla, logo abaixo.

Mais à frente, ao final da rodovia, cheguei a uma ponte de pedra medieval sobre o rio Ulla e, ao ultrapassá-la, deixei a Província de Pontevedra e adentrei na de A Corunã, a última onde caminharia até meu destino final.

Ponte rodoviária sobre o rio Ulla.

Então, passei diante da igreja de Santa Maria Madalena de Ponte Ulla e, prosseguindo, agora pelo piso da N-525, principiei a ascender forte.

Caminho em ascensão.

Assim, tive que superar, nos primeiros 4 quilômetros, um desnível de 250 metros.

Pausa para descanso e hidratação.

Em determinado trecho, fiz outra pausa para hidratação e ingestão de uma banana, num local agradável e fresco, situado em um fresquíssimo bosque de carvalhos.

Caminho soberbo nesse trecho.

Prosseguindo, depois de ultrapassar um grande renque de eucaliptos, o caminho se tornou plano e logo depois passei em Outeiro, onde existe um novo e excelente albergue.

Albergue de peregrinos de Vedra.

Sentei-me para um breve descanso junto a uma fonte existente atrás da Capela de Santiaguiño, uma interessante construção do século XVII, onde há uma estátua de Santiago e de seus fiéis discípulos, Teodoro e Anastásio.

É um local agradabilíssimo que nos convida a uma pausa e, ante o iminente final do Caminho, também, a uma reflexão.

O caminho ainda plano e silencioso.

Depois, a subida continuou por uma estrada empedrada até o sopé do “Pico Sacro”.

A partir dali tudo fica plano e mais à frente passei por Rubial e Lestedo.

Ao longe, a cidade de Santiago.

Daquele local, a 10 quilômetros de distância, já conseguia divisar os contornos da cidade de Santiago.

Quando reiniciei a marcha, custou-me acreditar que o roteiro iniciado há 13 dias estava inevitavelmente se findando.

O caminho nesse trecho é integralmente por asfalto.

Mentalmente, fiz uma rápida compilação dos acontecimentos pretéritos, etapa por etapa.

E, em cada recordação agradável, sentia uma pequena pontada em meu peito.

Por uma rodovia vicinal asfaltada em meio a um frondoso bosque de eucaliptos, cheguei à Susana.

Parreirais sobre a cabeça do peregrino.

Próximo ao centro dessa cidadezinha, toma-se um atalho à esquerda que, mais à frente, está coberto por uma enorme e frondosa parreira que une duas chácaras situadas de ambos os lados dessa senda.

Na sequência, sempre por asfalto, atravessei Cañoteira, Vixoi e, depois transitei em meio a muito verde, mas quase sempre em piso asfáltico.

Finalmente, no alto de uma encosta, pude vislumbrar, ao longe, a uns cinco quilômetros de distância, as agulhas da Catedral Compostelana.

Não avistei nenhum peregrino a pé nesse dia. Ao longe, a cidade de Santiago.

Interessante notar que não encontrara desde minha saída de Silleda, até aquele momento, nenhum outro peregrino, a não ser o ciclista Santiago.

Se estivesse na última etapa do Caminho Francês, certamente, teria feito parte de um fluxo contínuo de pessoas, pois, aquele roteiro é muitíssimo mais movimentado do que este que finalizava.

Caminho Real de Pineiro.

Por fim, passei pelo Camiño Real de Piñero, Angrois e cheguei à “calzada medieval de Sar”, já na parte urbana de Santiago.

Do topo, pude divisar com nitidez, próximas dali, as torres da Catedral, reluzindo ao brilho do sol vespertino.

"Calzada medieval de Sar". Ao fundo, as torres da Catedral de Santiago.

Instantaneamente, meu coração disparou jubiloso, meu passo acelerou e as recordações do Caminho sobrevieram em tropel: as obrigações, os bons desejos, as orações pelos meus entes queridos que, de um modo ou de outro, também fizeram o roteiro comigo.

Pois, não foi na igreja, mas, neste último quilômetro que externei meus pedidos e anseios.

Assim, mentalmente fui orando pela minha família, amigos e, também, por todas aquelas pessoas que me auxiliaram na consecução de meu objetivo.

E, ainda, por aquelas que durante o Caminho, especificamente, me socorreram com seus préstimos e deferência.

O amigo Aurélio Simões, de Lisboa, que me proveu de preciosas dicas sobre o CPI, a quem espero um dia ter o prazer de conhecer pessoalmente.

Nesse passo, lembrei-me com mais efusão do amigo Aurélio Simões, que me proveu de preciosas dicas sobre o roteiro, especialmente, para o trecho situado em terras portuguesas, sem as quais eu não teria alcançado o sucesso em meus objetivos.

Orei, também, pelo Hernani Carvalho, bravo caminhante de Vila Real, que deixou seus afazeres para ir me cumprimentar e incentivar em Vidago, num gesto de fraterna solidariedade que jamais olvidarei.

O amigo Hernani, de Vila Real, que espero um dia ter o prazer de abraçar novamente. Um peregrino pelo qual tenho o maior respeito e admiração.

Em continuação, prossegui por avenidas movimentadas, rompendo, depois, pelas empinadas ruas del Sar, do Castro de Ouro e, finalmente, após, ultrapassar a porta de Mazarelos, a única que resta da antiga muralha que protegia a urbe, saí diretamente na Praça de Praterías, pela qual, finalmente, eu aportei à Praça do Obradoiro.

Imediatamente, meus olhos nublaram ao rever novamente o majestoso Templo do Santo Apóstolo.

Finalmente, diante da Catedral Compostelana.

Em seguida, bati algumas fotos para deixar registrado à posteridade o momento mágico e único que vivi.

Findos estes, passei pela “Oficina del Turismo” para retirar a “Compostelana” e, na sequência, me hospedei no confortável Hostal Mapoula, localizado próximo ao “casco viejo” da cidade.

Missa com batafumeiro no final.

No dia seguinte, descansei, depois, às 12 horas, assisti e comunguei na emocionante missa dos peregrinos, com direito a cantos gregorianos e botafumeiro.

Almoçando no restaurante Manolo!

E, para coroar a festa, fui almoçar no bar Manolo: imperdível!

Minha 8º Compostelana, da qual muito me orgulho!

IMPRESSÃO PESSOAL: Uma jornada de larga extensão, sendo que, aproximadamente, 2/3 dela foi trilhado por asfalto. Mas existem tramos belíssimos no trajeto, contemplando bosques frescos e silenciosos. No global, uma etapa bastante exigente, mas, por ser a derradeira, emocionante e inesquecível.

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