MINHA EXPERIÊNCIA COM OS CÃES NO CAMINHO DE SANTIAGO

A compaixão pelos animais está intimamente ligada a bondade de caráter, e quem é cruel com eles não pode ser um bom homem.” (Arthur Schopenhauer) 

O cão peregrino de O Cádavo Baleira. (Créditos da foto: Manoel Gomes da Silva)

Depois de mais de 17 anos caminhando em roteiros localizados na Europa e no Brasil, de quando em vez, me acorrem à memória situações pretéritas hilárias ou tensas, todas vivenciadas nos trajetos que já percorri.

Por sinal, globalizando-os, diria que neles ocorreram preocupações diuturnas, me perdi algumas vezes, tomei chuva, caminhei sob nevascas e sol intenso, enfrentei longas jornadas sobre asfalto, fiz inúmeras amizades, compartilhei alojamentos em diversos albergues, fiquei doente, bolhas brotaram em meus pés, passei por alguns “micos” e também sobrevivi, sem sequelas, à situações inusitadas e, muitas vezes, extremamente estressantes.

Nesse sentido, já fui picado por marimbondos, abelhas, aranhas, precisei correr de um touro enfurecido, quase pereci nos chifres de um garrote assustado, fugi de um rebanho bovino e me deparei diversas vezes, com cobras, um perigo iminente nas trilhas.

Por sinal, o episódio que mais me impactou em relação aos ofídios, aconteceu recentemente, em agosto passado, quando eu percorria a 1ª parte do CRER – Caminho Religioso da Estrada Real, na etapa Lavras Novas a Itatiaia, que relatarei numa próxima postagem.

Mas, obviamente, os incidentes que mais me marcaram envolvem os cães, porque eles habitam em todas as cidades e também na zona rural, quase sempre, soltos e em grande quantidade.

Sobre os nossos amigos “peludos e de quatro patas”, primeiramente, na Europa, passei por bons e maus “bocados”, alguns dos quais relatarei abaixo:

PARTE I - CÃES NO CAMINHO DE SANTIAGO

Ao estudar as características e a índole dos animais, encontrei um resultado humilhante para mim.” (Mark Twain) 

Em 2001 eu debutei no Caminho Francês de Santiago, na Espanha, e no retorno fiz um breve relato do que lá vi e passei:

Na Espanha eles se chamam “perros”, e estão em todos os lugares. A imensa maioria, presos ou amarrados. De todos os tamanhos e raças, desde os graciosos “bassets”, até os enormes “São Bernardos”, uns amigáveis, outros mal-humorados. Alguns soltos, porém mansos. Desses, quase todos adoram os peregrinos, possivelmente porque sentem esses um ser tão carente quanto eles.

Muitos deles mal nos avistam correm ao nosso encontro, fazem-nos festas, não raro nos acompanham por centenas de metros até certo ponto em troca de um agrado. Ali estacam e ficam a nos olhar até desaparecermos no horizonte. Então voltam ao ponto inicial à espera de novos peregrinos.

Existem alguns cães famosos na Rota. Um deles já viveu seus momentos de glória, pois apareceu em várias reportagens, chama-se Calixto e mora em San Juan Ortega. É um vira-lata branco, que transborda simpatia em sua feição canina.

Costuma acompanhar determinados peregrinos que escolhe, às vezes por muitos dias, e depois quando se cansa, não raro a mais de 100 kms de casa, então, é devolvido por conhecidos, por via rodoviária, visto que todos na região o conhecem. 

2001 - No Caminho de Santiago, próximo da cidade de Viana.

Um caso interessante ocorreu com um brasileiro que fazia o Caminho comigo, o Vânio de Florianópolis. Contou-me que tomava café da manhã num bar em Castrojeriz. Um senhor com um enorme pastor alemão que também se encontrava no bar, ofereceu-lhe o cão como companhia para aquele dia (era domingo). Ele aceitou, o dono conversou com o cão e este o seguiu e o guiou o dia todo. Conforme combinado, ao chegar em Boadilla del Camiño à tarde, 20 quilômetros adiante, deixou o simpático animal num bar determinado, pois o dono iria buscá-lo à noite. Na hora da despedida, não resistiu e abraçou o amigo por diversas vezes.

Há pessoas que fazem o Caminho todo com seu cachorro. Tive a oportunidade de encontrar no Caminho um holandês que caminhava com seu cão Bop, um lindo huski siberiano amarelo, que inclusive carregava em seu dorso a própria mochila, onde levava ração e sua vasilha de água. Presenciei a chegada deles em Santiago, uma simbiose perfeita entre o homem e o animal.

Apenas em três ocasiões os cães do Caminho tentaram me atacar. Nessa hora o cajado é de grande valia e impõe respeito. O simples fato de levantar o bastão fez com que eles desistissem do seu intento. Há, é verdade, histórias de peregrinos que foram atacados por cães, e alguns que precisaram correr. Porém, pelo que ouvi, são casos raros, e mais incomum ainda são os casos em que o viajante foi realmente mordido por algum cão feroz.

Em resumo, conselho de amigo: melhor não dar ouvidos para sensacionalismos, mas fique atento e tome cuidado. 

2014 - Com o Tonho, proprietário de "La Taberna", em Castrojeriz.

Nota do Autor: Em 2014, quando percorria o Caminho Francês pela 3ª vez, conversei com o Tonho, em sua taberna, localizada em Castrojeriz, o proprietário do animal que acompanhou o peregrino Vânio, conforme acima descrevi.

Era dele o inesquecível cão Berni, que, diariamente, acompanhava os peregrinos até Boadilla del Camiño onde era, invariavelmente, resgatado por seu dono. Infelizmente, esse mítico animal faleceu em 2003, possivelmente, envenenado.

2004 – LOURDES A SANTIAGO - I

Em 2004 eu fui a pé de Lourdes (França) a Santiago (Espanha), uma extensão de 956 km, a pé e, em minha 6ª jornada, um domingo de Páscoa, eu tinha a intenção de chegar até Ruesta, 33 quilômetros à frente, mas acabei pernoitando antes, depois de caminhar, aproximadamente, 22 quilômetros, face a um encontro que considerei obra do destino.

Tudo porque, numa curva da estrada, parecendo materializar-se do nada, encontrei inesperadamente, uma jovem que passeava com seu cão. Apresentou-se como Raquel, perguntou meu nome, procedência, e convidou-me a pernoitar em Artieda, cidade que eu já avistava ao longe, no cume de uma elevação. Informou-me, ainda, que o albergue era uma construção moderna e bem aparelhada, sendo a proprietária e hospitaleira sua mãe.

Enquanto conversávamos, seu cãozinho da raça Cocker Spaniel, chamado Nico, amistosamente, veio me cheirar, depois lambeu minhas mãos, o que consenti, afagando-lhe a cabeça. Nunca é demais repisar que os animais dessa estirpe são extremamente meigos, carinhosos, fiéis, e de temperamento amistoso.

Senti que houve entre nós uma compatibilidade instantânea. A provocar em meu interior, um caleidoscópio de sentimentos ambíguos. Razões e desrazões para ficar ou seguir adiante. Embora meu planejamento para o dia fosse caminhar ainda 10 quilômetros, até Ruesta, invadido por uma avassaladora sensação de afetividade, abruptamente, resolvi encerrar minha jornada.

Ao ser informada de minha decisão, a mocinha, corpo de sílfide, alegremente afiançou-me que quando aportasse à vila, já encontraria sua mãe à minha espera.

Artieda é uma minúscula povoação onde, segundo o Guia El País, vivem pouco mais de 60 almas. Todavia, para o peregrino extenuado, é uma joia plantada no meio do agreste Aragonês. Como as demais da região, também foi edificada no cocuruto de um morro, sobranceando, desdenhosamente, os intrépidos andarilhos que ousam lutar contra seus elementos naturais.

A ascensão pelos contrafortes da montanha, até atingir-se o topo, onde se localiza a cidade, se faz por uma rodovia asfaltada, extremamente íngreme e alcantilada. Por isso mesmo, magoa sensivelmente nossos joelhos, espicaça nosso ânimo, e exaure nossas derradeiras energias. Dessa forma, quando cheguei ao albergue, estava mais trôpego que mula velha debaixo de cangalha. 

2004 - No albergue de Artieda, com Dona Maria Joana e sua filha Raquel.

Conforme previra sua filha, Dona Maria Joana me aguardava à porta e acolheu-me com extrema fidalguia. Seu rosto redondo estampava delicadeza e sensibilidade, e os olhos cinzentos que davam vida à sua fisionomia, irradiavam meiguice e bondade. Enquanto eu era conduzido para o interior da residência, de maneira inusitada, ela me chamou pelo nome. Como seria isso possível, ponderei, boquiaberto?

Ante minha estupefação, ela respondeu que sua filha já lhe avisara de minha chegada pelo telefone celular. Que certamente portava escondido, pois não o havia visto. Daí o motivo de meu assombro. São as maravilhas da cibernética, refleti, vencido pelas evidências.

Próximo da hora do almoço, Raquel já havia retornado e auxiliava sua mãe no atendimento aos fregueses. O burburinho era intenso. Nico, o cão, calmamente deu um giro pelo local, inspecionando demoradamente o ambiente e as pessoas, depois, de forma conspícua, cheirou-me longamente, e deitou-se aos meus pés. Gratificado e envaidecido pela escolha, pus-me, então, a acariciar sua vasta pelugem, enquanto ele cochilava placidamente.

Depois de me alimentar, retornei ao albergue e principiei a redigir meu diário. Nico subiu logo atrás, latindo sem cessar, como querendo me dizer algo, ou, conforme interpretei, fazendo-me um convite. Depreendi, pela sua cara de “pidoncho”, que seu desejo era passear, mais precisamente, mostrar-me sua terra natal. Ante conclamação tão espontânea, acedi, e saímos para um giro.

A povoação encontrava-se silenciosa, mergulhada na modorra da tarde. O céu estava encoberto, e a espessidão das nuvens atenuava o calor reinante. Nico dava carreiras, feliz e alvoroçado, levando-me por alamedas tortuosas, embarafustando-se por becos sombrios, adentrando em portões semiabertos, enquanto voltejávamos, sem pressa, pelas floridas e empedradas ruas que compõem a área urbana da linda cidadezinha.

Quase uma hora depois estávamos de volta ao refúgio, e a alegria dele era tanta, que sua gratidão, externada em forma de lambidas e ganidos, chegava a ser comovente.

Aproveitei, então, para tirar uma soneca, sentado numa cadeira de balanço, estrategicamente colocada à sombra, sob o alpendre da habitação. Dali eu tinha uma visão ampla e privilegiada de toda a região. Nico, preguiçosamente, aninhou-se próximo ao espaldar.

Após o jantar, com Nico a me escoltar, saí para telefonar dando notícias à família. Ao retornar, senti-me fragilizado por sentimentos febricitantes, e fui acometido de uma saudade visceral de minha terra, aliada a uma recorrente melancolia. Eram tantas lembranças a assediar meu espírito, que, para espairecer, saí passear com Nico novamente.

A noite apresentava-se fria e ventosa, porém, o dia ainda estava claro. Na Espanha, nessa época, nunca escurece antes das 21 h 30 m.

E, lá fomos nós, homem e cão, numa perfeita simbiose, tal qual um helotismo. Ele, olhos rútilos, turbulento, corria à frente, depois retornava, num vaivém, sem fim. Eu, devagar e pensativo, mãos nos bolsos, seguia sobre seus passos, pelas ruas enlajeadas e sinuosas da urbe, como se fosse um pedaço de ferro atraído, sem remissão, por um poderoso magneto.

Assim que retornamos, o dia findava. Com Nico enovelado aos meus pés, do pátio superior, fiquei contemplando o belíssimo pôr do sol Aragonês, o céu cor de laranja e carmesim por trás dos Pirineus, as águas pesadas do “Embalse de Yesa”, de tão ricas evocações, a refletir os derradeiros raios solares. 

2004 - Com Nico, o cão peregrino de Artieda.

Fiquei, então, por momentos, a acariciar seu pelo cor de caramelo, e, enquanto ele se refestelava prazenteiro, como num pacto, permanecemos num silêncio conivente de quem se vê entregue a um momento de felicidade e tenta eternizá-lo, para que ele não se vá para sempre, já convertido em saudade.

Depois, o levei até sua casinha no quintal, despedi-me com um afago emocionado, e fui dormir. Éramos oito peregrinos no albergue, quatro deles ciclistas, e, possivelmente, pelo barulho da calefação ligada, e a imensidade de emoções vivenciadas ao longo daquele dia, meu sono foi inquieto e cheio de sobressaltos.

Muito cedo na manhã seguinte: hora de partir. Mochila afivelada, cajado na mão, estaco por alguns instantes na porta do albergue, sob a luz imprecisa e pardacenta da madrugada. O vento enregelante que varre as ruas vazias da cidade traz até meus ouvidos os latidos estrídulos de Nico, que dorme num espaço circunscrito, localizado no piso inferior da habitação.

Indeciso sobre o que fazer, ensaio alguns passos, e então me lembro das palavras que Jesus disse a Santiago, na praia de Saídam, à beira do Lago Tiberíades: “Aprende a pensar nas consequências de teus atos. Lembre-se que a colheita é de acordo com a semeadura. Com fé viva, estas graças te sustentarão quando chegar a hora de beber o cálice do sacrifício. Não temas nunca..”

Meu coração fica apertado, confrangido, depois, resoluto. Entendo que devo beber da taça. Contudo, a proximidade do aparto definitivo, dilacerava-me por dentro. Como um sinal divino, noto a leste, um clarão amarelado, pressagiando a próxima aparição do sol.

Contorno um parapeito construído como proteção ao amplo terraço, e arremeto ao encontro de meu “amigo pascalino”. Ele me recebe com festas e lambidas.

É, porém, de compungida tristeza a expressão que observo em sua face canina. Seus olhos fixos em mim estão baços, numa melancolia de dar pena. A visão era de amolecer mesmo o peregrino mais empedernido.

Abraço-o, pela última vez, enquanto ele geme baixinho, talvez por sentir a proximidade do desenlace. Seu rosto paralisado não expressa nenhuma reação, mas um ligeiro tremor em sua pele, deixa transparecer um turbilhão interior.

Nesse derradeiro momento, enquanto acaricio seu pelo fulvo, baixa uma nuvem de tristeza em meus olhos, e as lágrimas escorrem em seguida, com profusão. Sinto–me melhor, porque sei que o choro é uma reação exclusiva do cérebro humano, fundamental para descarregar tensões emocionais, acalmar e trazer sabedoria ao espírito para aceitar a realidade.

Sei, também, que o excesso de emoção intoxica e pode distorcer a realidade, mas longe de mim a aridez do racionalismo puro. Assim, poderia jurar, Nico, com sua voz roufenha e esganiçada, chorava junto comigo.

Respiração entrecortada por soluços, parto sem olhar para trás, e enquanto desço, afoitamente, as ladeiras da cidade, em direção ao meu objetivo do dia, vou ouvindo Nico uivar, de forma rítmica e sincopada, cada vez mais distante, como a me dizer adeus. Ou, talvez, a desejar boa sorte a minha peregrinação.

E cada solfejada sua tocava uma corda no fundo da minha alma. Porque sua “amizade” desinteressada e sincera, ainda que fruto de seu instinto animal, enquanto ser vivente, representou para mim a quintessência do sublime. 

2017 - Caminho Aragonês - No albergue de Artieda, novamente.

Nota do Autor: Agora em 2017, ao percorrer novamente o Caminho Aragonês, eu tornei a pernoitar no albergue de Artieda. Infelizmente, quem dirige o estabelecimento atualmente é a Sra. Conchi; Dona Maria Joana, bastante idosa, reside nas imediações. Sua filha Raquel se casou e também mora na pequena localidade, mas não consegui visitá-las, pois ambas se encontravam viajando.

Já o cão Nico, meu amigo de infindas lembranças, faleceu em 2013, de morte natural, fruto de idade avançada, algo peculiar para a sua raça.

2004 – LOURDES A SANTIAGO - II 

Outro caso que me lembro, acontecido na peregrinação Lourdes-Santiago, relativamente a encontro com cães, ocorreu no final da 23ª etapa, quando me hospedei num albergue em Hospital de Órbigos.

Depois de tomar banho e lavar minhas roupas, fui até uma “tienda” comprar mantimentos e na volta tentei cortar caminho por uma viela estreita, entretanto, um enorme cão deitado no meio da ruela obstou meu trânsito.

Eu estava sem o cajado e, assim, aproximei-me cuidadosamente para enxotá-lo, mas fui recebido hostilmente. 

2004 -  Nas Bodegas de Irache.

Pelos eriçados, colmilhos à mostra, resistiu valentemente às minhas investidas e insultos.

Por fim deixei-o em paz e volvi sobre meus passos, perfazendo enorme trajeto para retornar ao local de pernoite.

Foi, na verdade, em termos de ferocidade, o único incidente com esse tipo de animal que tive em toda a jornada, até porque a maioria dos cães de guarda vive presa no interior das casas, e os vira-latas soltos quase sempre demostraram, à minha passagem, mais curiosidade do que agressividade.

2008 – VIA DE LA PLATA - I

Em 2008 eu percorri a Via de La Plata, um roteiro com 1008 quilômetros de extensão, que liga Sevilha a Santiago de Compostela.

Uma das mais fortes lembranças que guardo desse trajeto, relativamente a cães, ocorreu na minha 9ª jornada.

No final da etapa anterior eu me hospedara em Alcuéscar, no albergue situado dentro do “Convento e Hospital de Esclavos de Maria y de los Pobres”.

Para mim, uma agradabilíssima surpresa, pois, Angel, o hospitaleiro, me acolheu como um irmão, na verdadeira tradição da hospitalidade peregrina. 

2008 - O local onde me hospedei em Alcuéscar.

No dia seguinte, como de praxe, levantei bem cedo e pretendia seguira até Cáceres, distantes 40 quilômetros.

No albergue existia 1 máquina para venda de refrigerantes e cerveja, a preço de custo, mediante a inserção de moedas.

Havia outra que servia café, de formas variadas.

Ali tomei 2 “capuccinos” antes de partir, exatamente às 7 h e, como sempre, sozinho.

Pois os demais peregrinos ainda estavam dormindo, porque, por certo, fariam um percurso de menor extensão.

O dia apresentava-se extremamente frio, com forte cerração.

Porém, a saída da cidade estava muito bem sinalizada de forma que não encontrei dificuldade em localizar o itinerário.

Inicialmente, trilhei por uma senda situada entre várias chácaras.

Em quase todas as casas encontrei inúmeros cães a ladrar com fúria à minha passagem, o que me impressionou devido à penumbra do amanhecer, quando ainda não se está de todo desperto e qualquer barulho nos causa apreensão e sobressaltos.

A maioria deles, da raça pastor alemão e que demonstravam uma violência desmedida, o que me apavorou bastante.

Por sorte, a nos separar, sempre havia muros altos, uma grossa tela de arame ou cercas especialmente construídas para evitar a fuga dos alentados animais e, ainda assim, transitei por aquele enclave, literalmente, “com o coração na boca”, tamanho o meu temor.

Oras, indagava internamente, e se alguns deles escapar e correr em meu encalço, o que farei?

Momentos de terror que superei estugando meus passos e implorando socorro, através de orações a São Roque, o protetor dos cães. 

2008 - Um pastor de ovelhas que encontrei na estrada nesse dia.

A propósito, li numa revista especializada que a “paixão canina” na Espanha começou no início dos anos 90 e expandiu-se rapidamente, como um raio.

Hoje, em toda a Península Ibérica é raro encontrar alguma habitação em que não exista um ou mais “perros”.

Aliás, segundo as estatísticas, a Galícia é a região com maior densidade de cães em todo o território espanhol.

2008 – VIA DE LA PLATA - II

No final de minha 15ª etapa eu aportei na belíssima e mística cidade de Salamanca que, para alguns peregrinos, é a meta de seu Caminho, pois, encerram sua aventura nessa magnífica e emblemática urbe.

Para outros, no entanto, é o ponto de partida rumo a Santiago.

Já, no meu caso, eu havia percorrido exatos 518 quilômetros até aquela localidade, restava continuar, porquanto, minha meta final era mesmo Compostela.

Assim, quando acordei no dia seguinte, sabia que minha meta estava 36 quilômetros adiante: a cidade de El Cubo de la Tierra del Vino.

Pois bem, eu levantei às 6 h e às 7 h, iniciei minha jornada.

Fazia muito frio, com a temperatura na casa dos 5 graus, ótima para caminhar desde que bem agasalhado.

Apesar do horário, muitas pessoas já circulavam pelas ruas, dessa forma, se eu ficasse em dúvida, confirmaria meu rumo indagando aos passantes.

Depois de deixar a parte urbana, uma grande avenida, reta e plana, com calçadão lateral, me levou, após 1 hora de caminhada, até Aldeaseca de Armuña.

Ali cheguei quando o dia já clareava e num movimentado bar situado à beira da "N-630", tomei meu desjejum.

Em sequência, seguindo as flechas e os mapas que portava, entrei à esquerda por estrada rural, em meio a imensas plantações de trigo.

Mais à frente, passei sob um grande túnel, pois ali existem canteiros de obras que servem de suporte para a construção de uma nova rodovia, e prossegui seguindo as flechas amarelas.

Dois quilômetros adiante, o Caminho se achava obstruído, pois, a cancela que deveria acessar uma "finca" se encontrava fechada com cadeado.

Cuidei de escalar o obstáculo, porém, não consegui atravessar o "Arroyo de la Encina", logo adiante, porque a ponte que antes ali existia, fora destruída.

Daquele local, eu avistava uma pequena povoação a uns 500 m de distância, se tanto, por onde eu transitaria em seguida, daí minha enorme frustração.

Porquanto, tal infortúnio acabou por obstar meus passos, vez que o rio naquele ponto é bastante largo e profundo.

Sem alternativa, precisei retornar até Aldeaseca e seguir pelo acostamento da "carretera" até uma rotatória, 2 quilômetros adiante. 

2008 - Chegando a Castellanos de Villiquera.

Ali, flechas indicavam que deveria seguir à esquerda, numa estrada vicinal asfaltada, por mais 1.500 m, até a cidadezinha de Castellanos de Villiquera.

Assim, essa manobra infeliz me fez caminhar 5 quilômetros "de graça", atrasando em uma hora meu percurso.

Eu me encontrava internamente exasperado, pois entendia que alguém já deveria ter modificado a sinalização, evitando todo o meu desgaste físico, além do estresse espiritual, por percorrer um caminho “sem saída” que, pelo visto, já se achava interditado há bastante tempo.

Pois bem, eu seguia pela única rua da minúscula aldeia e, em determinado local, sob um grande arco, havia um enorme cão policial deitando, vedando o trânsito de pedestres e veículos por aquele local.

Ao me aproximar, intimorato, ele me recebeu com os dentes à mostra, demonstrando que não estava aberto a negociações.

Ora, eu estava com pressa e sem paciência para buscar uma rota alternativa, de forma que retrocedi uns 15 passos, até um depósito de entulhos de construções, que estava alocado sobre a calçada.

Sem perder tempo, enchi minhas mãos de munição, parti na direção do animal e atirei-lhe uma saraivada de pedras, paus e pedaços de tijolos.

Mesmo rosnando ameaçadoramente e até tentando me enfrentar, o imenso cão acabou se dando por vencido, abandonou o local e pude seguir meu destino. 

2008 - Depois de Castellanos, estrada plana e reta.

Após esse povoado, o roteiro seguiu entre grandes plantações de sorgo e cevada, por uma estrada larga e plana, de terra batida.

Sob as bençãos divinas, um percurso bucólico, monótono, contudo, extremamente silencioso e agradável, que me levou, ao seu final, até o objetivo daquele dia.

2008 – VIA DE LA PLATA - III

Depois de vencer quase 46 quilômetros de estrada, numa longa travessia, ao final de minha 18ª jornada, eu pernoitei no albergue municipal de Tábara, onde encontrei já instalados 3 peregrinos alemães e dois italianos.

Até ali eu vinha caminhando escoteiro desde a 3ª etapa, porquanto, sempre que possível, pernoitava em Hostal e, mesmo quando dormia em albergues, partia muito cedo, de forma que raramente encontrava algum peregrino durante o trajeto. Dessa forma, me sentia profundamente solitário.

Gianfranco, um dos italianos, necessitava comprar sua passagem de retorno à sua casa (Santiago de Compostela a Milão), e estava preocupado, pois, talvez, não encontrasse mais lugar disponível na data aprazada.

Tentara no dia anterior fazer tal operação, via internet, porém, seu limitado conhecimento de informática não lhe permitiu executar essa "difícil" tarefa.

Porém, como me viu "teclando" com desenvoltura, solicitou ajuda em tal mister, visto que simpatizou comigo, de imediato, face às minhas origens, pois meus dois avôs nasceram no Vêneto, uma província localizada no norte da Itália.

Prontamente acedi, de maneira que resolvemos seguir juntos na etapa sequente e na primeira localidade onde pudéssemos "navegar", eu tentaria solucionar seu problema.

Assim, levantamos às 6 h, tomamos proveitoso desjejum na cozinha do albergue e, às 7 h 20 min, quando o dia principiou a clarear, saímos para cumprir uma jornada muito tranquila que seria, em princípio, de apenas 23 quilômetros. 

2008 - Com o amigo Gianfranco, no albergue de Tábara.

O percurso seguiu por estradas rurais de fácil acesso, agradável e plano.

Entretanto, confesso que estava um tanto preocupado pela parceria.

Contudo, Franco, apesar de mostrar certa idade e carregar uma mochila que pesava inimagináveis 12 quilos, caminhava rápido e fizemos uma boa dupla.

Durante o trajeto fomos conversando e ele me contou um pouco de sua vida como desportista: Disse-me que na juventude sempre praticara esportes, tendo disputado campeonatos nacionais nas modalidades de esqui, montanhismo, escalada, corrida e natação.

De maneira que, aos 71 anos, recentemente completados, esbanjava saúde e dinamismo.

Numa larga pista de terra vimos um rebanho de ovelhas que se movimentava em nossa direção.

Um pastor e quatro mastins as guardavam, contudo, repentinamente os cães nos avistaram e partiram ao nosso encontro.

Prosseguimos caminhando sem demonstrar medo, cajado em posição de defesa, mas, internamente, eu estava em pânico.

Quando os animais estavam a ponto de nos alcançar, pararam de chofre e deixaram de ladrar ao ouvir o som estridente de um apito.

Mansamente, quase contrariados, deram meia-volta e retornaram de onde vieram.

Ufa, foi outro belo susto que passei na Espanha!

2011 – CAMINO DO NORTE

No início de 2011, quando estudava o percurso do “Caminho do Norte”, roteiro que percorri em abril/maio daquele ano, lembro-me de haver encontrado num site peregrino, um alerta feito por dois caminhantes diferentes, sobre um cão que avançava nos peregrinos na saída de uma cidade, sempre de surpresa.

Tal animal morava no quintal de uma residência, que não continha muros, e já havia pregado sustos inimagináveis aos peregrinos que por ali eram obrigados a passar, face ao traçado do caminho.

Eu anotei tal dica, mas ao iniciar o “Camiño del Norte”, me sentindo muito bem acolhido pelos “perros” espanhóis, esqueci do alerta que registrara em meu cronograma de viagem.

Pois bem, na minha 24ª jornada, quando deixei a cidade de Ribadeo em direção a Lourenzá, 29 quilômetros à frente, passei por uma grande atribulação.

Ao estudar a jornada daquele dia e pelo que depreendi na ocasião, aparentemente, por já estar em terras galegas, o percurso se faria em quase sua totalidade por caminhos de terra.

Contudo, para não fugir à rotina, os primeiros quilômetros seriam por asfalto.

Segundo o guia que eu portava, a cidade fora um ponto de partida de novas rotas jacobeias, porquanto a essa localidade aportavam inúmeros peregrinos em barca, desde Figueiras, Castropol e outros portos fluviais, e dela partiam diversos caminhos em direção à cidade de Montoñedo.

Então, como forma de evitar confusão a “Xunta de Galícia” traçou um roteiro único que, por desgraça, contempla muitos “tramos” novos, já que desprezou boa parte dos traçados históricos em vários trechos, mormente porque a maioria deles hoje se encontra asfaltado.

Como de praxe, no dia anterior havia verificado o itinerário urbano que deveria cumprir na saída.

Assim, resolvi partir, bastante “temprano”, como forma de minorar o efeito do sol que, de acordo com a previsão meteorológica, prometia ser abrasador após as 10 h. 

2011 - A cidade de Ribadeo, onde pernoitei na 23ª jornada pelo Caminho do Norte.

Nesse pique, levantei às 5 h e, quando os sinos da igreja matriz soavam seis baladas, deixei o local de pernoite e segui à esquerda, pela rua San Lázaro até o edifício que abriga o Complexo Polidesportivo Municipal, onde localizei o primeiro “monjón” dessa etapa.

Embora eu caminhasse um tanto evasivo, estava compenetrado no trajeto, e quando dobrei uma esquina, já quase no final da zona urbana, ouvi um latido raivoso à minha retaguarda.

Fazia frio, meu corpo ainda não se aquecera e me sentia um tanto sonolento, fruto de uma noite mal dormida, por conta de inúmeros pesadelos.

Ao me voltar, observei um cão escuro, de porte médio, avançando rapidamente em minha direção, com os dentes arreganhados.

Pego de surpresa, eu entrei em pânico, mas consegui visualizar próximo dali uma mureta de um metro de altura, talvez um pouco mais, e nela subi apressado.

O animal, ao me alcançar, se apoiou nas patas traseiras, marinhou pela parede e tentou morder as pontas de minhas botas, com uma ferocidade desmesurada.

Apavorado, eu olhei para baixo, visando proteger os meus pés, e só então me dei conta que estava armado.

Incontinenti, desferi uma tremenda cajadada no lombo do cão que, imediatamente, se virou, contorcendo-se em dores.

Aproveitando o momento favorável, eu saltei do muro e o acertei novamente, desta vez no dorso esquerdo.

Ganindo de dor, ele refez o percurso inverso e adentrou ao local de onde saíra, com a mesma velocidade com que me acossara, sem ao menos se voltar para trás uma vez sequer.

Recuperado do susto, revi, demoradamente minha indumentária e acessórios, constando que nada de mal me ocorrera.

Depois, segui adiante, mas um tanto compungido pela agressão cometida.

Consolava-me, no entanto, saber que o mal por mim perpetrado poderia servir de desestimulo futuro, eventualmente, ao animal que atormentava diariamente os peregrinos que por ali eram obrigados a transitar.

2013 – CAMINHO PORTUGUÊS – (LISBOA a SANTIAGO)

Desse roteiro, relativamente a cães, lembro de um episódio que me impactou, e acabou por empanar minha alegria de aportar à cidade de Coimbra, naquele belíssimo dia de primavera europeia.

Tal fato ocorreu em minha 8ª jornada e no final da etapa anterior eu pernoitei na pequena vila de Rabaçal, no Centro de Promoção Turística, um edifício muito bem conservado, e que disponibiliza excelentes instalações para os peregrinos, tanto que fiquei alojado num belo apartamento, e dispendi apenas R$15,00 Euros pelo pernoite, à época.

Na verdade, anteriormente, funcionava neste local um Centro de Acolhimento aos idosos do município, por isso o prédio está muito bem conservado e dispõe de sala de estar, cozinha, lavanderia, etc..

Ao iniciar minha preparação no dia seguinte, constatei que a jornada não seria demasiadamente extensa e me ocorreu que eu tinha a esperança de aportar cedo ao meu destino, vez que a cidade de Coimbra, com suas históricas universidades e centenas de estudantes, sempre povoara meu imaginário.

E, dentro do possível, gostaria de visitar sua Universidade, bem como caminhar em suas ruas e praças.

Assim, levantei cedo, fiz minhas abluções com bastante calma, e às 6 h eu deixei o local de pernoite, seguindo pelo acostamento da rodovia N-348, que corta toda a cidade.

Alguns quilômetros adiante, eu transitei pela simpática vila de Fonte Coberta. 

2013 - Placa existente na simpática Vila de Fonte Coberta.

Trata-se de uma minúscula aldeia, que não oferece serviços ao peregrino, porém nela encontrei inúmeras referências ao Caminho, com placas elucidativas e explicações do que ali ocorreu em tempos de outrora.

Por sinal, em 22 de fevereiro de 1699, ela foi citada pelo conde Lorenzo Magalotti, que acompanhava o Duque Cosme de Médici, como um lugar de poucas casas, rodeada por montes improdutivos.

Pier Maria Baldi, que formava parte do cortejo, deixou uma pintura do lugar e, em agradecimento, os residentes puseram seu nome em uma praça.

Deixando a pequena vila, acessei uma estrada de terra em direção a Puente Filipina, cuja construção data do século XVII, e ainda é perfeitamente utilizada por carros e ciclistas.

Porém, pouco antes de ali aportar, eu girei à esquerda, e passei a caminhar ao lado do rio de Mouros, por uma senda espetacular, que segue entre oliveiras e vinhedos, num trajeto silencioso e pleno de belas paisagens das serras ao redor.

Estava bastante frio e do sonoro regato emanavam vapores aquosos, em forma de neblina.

No céu azul, o sol dava ares de que logo brilharia com intensidade, e eu me sentia feliz e alegre por vivenciar aquele momento único, num local belíssimo, pleno de pura energia e paz.

Mais adiante, transitei junto de uma das ruínas romanas mais famosas de Portugal.

Na verdade, passava diante da porta da antiga cidade de Conimbriga, um dos principais e mais antigos assentamentos romanos em terras lusitanas, refundada sobre um antigo assentamento celta, da tribo de Conii, por Décimo Junio Bruto, em 139 a. C. 

2013 - Entrada para as ruínas de Conimbriga.

Apesar de ser uma das cidades clássicas portuguesas melhor estudadas, apenas uma parte do recinto se encontra escavada, o suficiente para apreciar suas muralhas, alguns mosaicos fascinantes, parte do Fórum e restos de casas de banhos particulares.

A urbe, depois de sofrer uma invasão dos suevos no ano 408, passou a declinar em favor da vizinha Aeminium (Coimbra), que por estar situada às margens de um grande rio, tinha melhores condições de desenvolvimento.

No entanto, os habitantes que aqui permaneceram, acabaram por fundar um novo povoado, a atual Condeixa Velha, situada próxima das ruínas, e o velho assentamento acabou por ser definitivamente abandonado.

Eu fiz algumas fotos do local, e tentei visitar o Museu Monográfico ali existente, onde estão expostas algumas das peças recuperadas, bem como preserva a história do lugar, porém ele só abriria suas portas às 10 horas, de forma que optei por seguir adiante.

Assim, logo acessei uma rodovia vicinal asfaltada que, mais abaixo, sinalizou para que eu transpusesse uma movimentada rodovia.

Já do outro lado, eu passei ao lado do bar Triplo Jota, onde fiz uma pausa para tomar um café e descansar um pouco.

O ambiente estava bastante movimentado naquele horário e minha presença foi recebida com certa surpresa, pois peregrinos são raros nesse “tramo”, entre Lisboa e O Porto, pela ausência de albergues.

De qualquer maneira, desejei bom dia a todos, me sentei numa mesa de canto, pedi um café grande e aproveitei para atualizar minhas anotações do dia.

Ainda eram 9 horas e, até ali, eu já percorrera 13 quilômetros.

Bem disposto, deixei o bar, girei à esquerda, e prossegui adiante por uma estrada retilínea e em constante descenso.

Em algum cruzamento eu deveria ter adentrado à esquerda, porém a sinalização não me chamou a atenção, de maneira que, 2 quilômetros à frente e há muito tempo sem avistar as tranquilizadoras flechas amarelas, pedi informação a um sitiante que trabalhava em sua horta.

Efetivamente, ele confirmou que eu me extraviara do itinerário, mas rapidamente me proveu de instruções de como eu deveria fazer para me reencontrar com o roteiro oficial.

Assim, eu retornei uns 500 metros, girei à direita, e logo aportei à vila de Avessada, por onde o caminho não discorre, no entanto, nesse povoado eu consegui visualizar placas me indicando o rumo de Orelhudo. 

2013 - Próximo daqui, vila de Orelhudo, foi onde, terrivelmente, visualizei o acidente ocorrido com o cão perdido.

Assim, eu segui por uma estrada vicinal, ladeado por muitas árvores e, então, aproveitei para bater algumas fotos, pois o entorno, com várias tonalidades de verde, merecia ser eternizado.

Nesse instante, um carro me ultrapassou em razoável velocidade, e logo à frente, protagonizou a cena mais chocante que vi durante essa peregrinação, e que ficou por muito tempo gravada em minha memória.

Porquanto, ele acabou por atropelar um cão que deixava um bosque pelo lado direito, e o animal, ganindo muito, saiu tropegamente debaixo do automóvel, e se internou num bosque situado à minha esquerda, gritando de dor.

Foi uma experiência terrível, e como eu estava a uns 500 metros do local, e tentei me aproximar rapidamente da lá, para ver se podia auxiliar em alguma providência de resgaste, que minorasse o sofrimento daquele pobre ser vivente.

O condutor desceu do veículo, observou demoradamente os danos causados em seu para-choque, depois retornou ao volante e acelerou forte, pois certamente estava indo para o trabalho.

Quando cheguei ao local, pude perceber outros 3 cães, sujos e magros, que também atravessavam a rodovia, em busca de seu companheiro ferido, e constatei que um dos animais era uma fêmea.

É extremamente raro encontrar cães abandonados na Europa, de maneira que provavelmente eles haviam se perdido pelo fato da cadela estar no cio.

De qualquer maneira, eu nada pude fazer para ajudar o cãozinho ferido, visto que eu estava a pé e não tinha informações se existiria algum resgate ou ajuda a animais que atendesse nas redondezas.

O animal já não emitia ruídos, porém imagino que pelo tamanho da pancada sofrida, ele teria traumatismos internos, o que forçosamente o levariam a morte, já que quedaria sem assistência e alimentação, naquele local ermo.

Sem ter o que fazer no local, eu prossegui em frente, e aquela cena dantesca, que ficou gravada em minha memória por vários dias, acabou por estragar meu humor na jornada, pois fiquei triste e abatido, pensando na fragilidade da vida.

Por sorte, alguns quilômetros depois, para levantar meu astral, eu alcancei uma peregrina francesa que além de se expressar em inglês, francês e espanhol, também entendia razoavelmente o português, de maneira que pudemos nos entender perfeitamente, e seguimos em frente a conversar animadamente.

Infelizmente, a Marie estava encerrando naquele dia a sua peregrinação, em razão de problemas familiares que solicitavam sua presença no lar, norte da Franca, com urgência.

De qualquer forma, ela tomaria o trem somente às 22 horas, de forma que ficaria alojada num Hostel e, à tarde, ela conheceria, como eu, o “casco histórico” da cidade.

Assim, combinamos nos encontrar às 19 h, antes de seu embarque, para um festivo “happy hour”.

No horário aprazado, a Marie apareceu arrumada e com a mochila, já pronta para viajar. 

2013 - Lanchando com a peregrina Marie, num bar, em Coimbra/Portugal.

Assim, fizemos um lanche regado a um saboroso vinho tinto, num bar localizado próximo ao “casco viejo”.

Foi uma excelente ocasião para trocar experiências, fazer planos sobre futuras peregrinações, enfim, foram momentos descontraídos e únicos, porque, provavelmente, jamais voltarei a encontrá-la.

Com 68 anos de idade, e frente a sua experiência de caminhante, posto que entre a África, a Ásia e a Europa ela já havia percorrido mais de 30 caminhos diferentes, eu me senti um verdadeiro “pigmeu” em termos de vivência peregrina, e tentei absorver, ao máximo, seus conselhos e princípios.

Foram momentos de grande descontração e alegria, mas às 20 h 30 min nós nos despedimos, e ela marchou firme em direção à Estação Ferroviária, onde enfrentaria 14 horas de viagem rumo à sua residência.

Eu retornei à Pensão e logo me recolhi, preparando-me para o dia seguinte, quando prosseguiria meu périplo.

Contudo, em meu cérebro persistiu, ainda por muitos dias o triste acidente por mim presenciado que, certamente, deve ter resultado na morte do pobre cão atropelado.

E essa dor, infelizmente, me acompanhou por toda a peregrinação, até aportar em Santiago.

FINAL

Nós, seres humanos, estamos na natureza para auxiliar o progresso dos animais, na mesma proporção que os anjos estão para nos auxiliar.” (Chico Xavier) 

A OUTRA FACE DO CAMINHO DE SANTIAGO 

(Por Laura L. Ruiz / Tradução de Nelson Paim) 

A grandeza de um país e seu progresso podem ser medidos pela maneira como trata seus animais.”(Mahatma Gandhi) 

Um pobre cãozinho abandonado...

Faz anos que peregrinos do famoso Caminho de Santiago denunciam a quantidade de cães soltos, alguns abandonados e outros não, que existem em seu caminho pelas localidades galesas. A associação APACA denuncia a inatividade da administração que não oferece resposta frente aos avisos dos peregrinos sobre cães que necessitam de ajuda.

O Caminho de Santiago é um destino turístico localizado no norte da Espanha, parte de Portugal e França, que atrai milhares de peregrinos de centenas de nacionalidades. A imagem que estes levam para casa de sua experiência é vital para que na próxima temporada o êxito se repita, e sejam muitos mais os visitantes que mexam com a economia nas localidades pelas quais passam.

Uma parte deste êxito é que o Caminho de Santiago transcorra sem incidentes, justamente o contrário que ocorre quando se encontra a um cão abandonado.

Erika, uma italiana que fez o percurso em abril junto com amigas, lembra que encontraram a um filhote sozinho. Sua primeira reação foi chamar a polícia. “Disseram-me que neste momento iriam comer e que não tinham tempo para cães”, lembra. Depois chamaram ao abrigo de animais de Santiago de Compostela e obtiveram outra negativa. “Disseram-nos que tinham muitos cães e que não havia espaço para outros mais”, Explica Erika.

Xavi teve uma experiência similar a outros oito quilômetros de Arzúa, em La Coruña. Ali encontrou a um cão que quase e que segundo o próprio peregrino “apenas podia mover-se”. Quando lhe perguntam quem o ajudou, se mostra decepcionado. “Ajudaram-me dando-me comida e uma corda, ouros peregrinos que havia conhecido. Os aldeões do local somente diziam ‘ tenho pressa’, ‘vou trabalhar’ ou ‘que vai ser meu este cão’. Chamei três vezes a defesa civil e me disseram que já vinham. Mas estive cinco horas esperando ali e não apareceu ninguém”. Finalmente, como no caso de Erika, Xavi comentou com um amigo e juntos encontraram a APACA pela Internet. 

Catedral de Santiago de Compostela.

Trata-se da Associação Protetora dos Animais do caminho que oficialmente foi fundada há um ano, mas que tem bastante tempo ajudando a peregrinos e, sobretudo, a animais abandonados ou perdidos. Maria e Fátima são duas mulheres comprometidas, incapazes de olhar para o lado quando um animal tem necessidades. “Nos chamamos assim porque a imensa maioria dos cães que resgatamos vem do Caminho de Compostela”, nos comenta Maria, que indica que começaram este trabalho convencidas de que o município de Arzúa lhes ajudaria nesta tarefa, já que desde Sarria até Santiago não tem nenhuma outra protetora ou refúgio que possa ajudar nestes casos.

Mas não fosse assim. “Lhes oferecemos um convênio aberto, para que participassem da maneira que pudessem, cedendo locomoção ou com apoio econômico, mas não temos recebido nenhuma resposta desde março”, ainda que, como ela explica, coincidindo com a campanha eleitora das comunidades autônomas da Galícia, parece que tem acontecido de ser um tema interessante. De fato, faz umas semanas o prefeito de Arzúa, o independente José Lu´ss Garcia López, anunciou que reuniria as comunidades para buscar soluções no caminho francês.

Contudo, a APACA acredita no pior. “Esta suposta solução vai significar contratar a uma empresa que recolha e faça desaparecer os cães”, explica Maria, professora aposentada que animada por suas filhas mantém aos cães que resgatam tanto ela mesma quanto os peregrinos. “Uma resposta rápida que poderia reverter em votos, poderia ser inclusive pior”, lamenta e lembra que em muitas populações se tem denunciado que as empresas encarregadas deste serviço não têm como objetivo a adoção dos cães. Ela e sua companheira Fátima insistem na necessidade de criar um abrigo, gestionado pelos amantes dos animais que desejem dar uma segunda oportunidade a cães e gatos abandonados e em torno da localidade corunhesa de Arzúa. 

O VERÃO, A ÉPOCA MAIS NEGRA DO ABANDONO.

Tendo em conta que a APACA se mantém graças aos esforços de duas mulheres e de seus recursos econômicos, surpreende falar de números: 195 cães recolhidos, dos quais 25 foram recuperados de seus tutores e outros 55 adotados por terceiras pessoas. Os demais convivem em um grupo cuidado e protegido de atropelamentos, fome ou coisas piores. “A estes dados tem que acrescentar uns 45 casos a mais que não pudemos atender”, explica Fátima, a outra fundadora da APACA, que trabalha de noite e sacrifica muitas horas de descanso pelos animais. Contam com quatro mãos e dois carros e são muitas vezes que não se pode chegar a todas as partes, e menos no verão quando podem chegar a receber três ou quatro chamados por dia. Ainda assim, jamais olham para o outro lado. “Quando não podemos recolhê-los tentamos diversificar, olhamos pela área e mesmo pagamos os gastos veterinários que necessitam”, comenta Fátima, que suspira ao pensar em todos os casos que sequer chegam a elas.

Um dos principais problemas que enfrentam na APACA é a quantidade de animais que recolhem e que realmente não estão abandonados. “Sempre levamos um leitor de chip no carro, é uma alegria se chegamos e vemos que tem identificação. Contatamos com os tutores e levamos a um lugar seguro até que venham buscá-los”, comenta Maria, consciente de que quem não tenha vivido na Galicia rural se surpreenderá que a maioria dos cães estejam soltos nas ruas das cidades e voltem de noite para suas casas.

Uma idiossincrasia galega que surpreende a assusta a muitos peregrinos é que ou se preocupam com o bem-estar animal ou tem medo de que os cães se aproximem demasiado deles. Por isto a APACA lançou uma campanha para pedir aos peregrinos que sejam responsáveis e não alimentem aos animais. “Lhes dão carinho ou alimento e eles vão com os peregrinos. Muitas vezes se desorientam e não sabem voltar”. O que acaba gerando um novo problema. Por isto lhes pedem que “não permitam que o animal vá com eles, mas se acabam indo com eles que chamem as autoridades”. Ou que os adotem uma vez confirmado que se trata de um cão abandonado. 

Cartaz de uma ONG brasileira.

Este é o caso de inúmeros peregrinos que contataram o APACA ao recolher um animal. Muito tem que chegar até Santiago de Compostela e não podem fazê-lo com o cão já que não são todos os refúgios para peregrinos que aceitam animais e no verão as opções de abrigo estão bastante limitadas. Por isto, alguns como Èrika, pedem a Maria e a Fátima que cuidem do cão até que possam voltar para adotá-lo. “Enquanto tenha uma casa e espaço vou adotar um cão da APACA”, assegura com firmeza a peregrina italiana. Além das dificuldades pessoais de cada um estão as dificuldades administrativas para que um peregrino estrangeiro possa levar com ele um cão ou gato galego. “Se estão decididos a adotar ajudamos nos trâmites legais e na preparação do animal”, comenta Maria. Já que às vezes supõe quarentena e, na maioria dos casos, vacinas, documentação e certificados de saúde.

Além do APACA enfrentar as denúncias de peregrinos que denunciam o maltrato animal pelas aldeias, existem os cães permanentemente presos, alguns feridos. “Parece mentira que o Caminho de Santiago, sendo patrimônio da humanidade, não se preocupe para dar uma melhor imagem com o tema dos animais”, se lamenta Maria. O mesmo que Xavi e Erika, que esperam que as autoridades o resolvam. “Alguém tem que fazer algo, o problema são as pessoas que não se interessam pelos animais”, conclui a peregrina. Há um abaixo-assinado que já está com o apoio de 82.000 pessoas no Change.org que esperam que os políticos eleitos da comunidade também apoiem e que os municípios próximos se comprometam com a erradicação do abandono.

Fonte: El Diário / www.olharanimal.org

BOM CAMINHO A TODOS! 

Novembro/2017