6º dia – BERDUCEDO à GRANDAS DE SALIME

6º dia – BERDUCEDO à GRANDAS DE SALIME – 25 quilômetros

Fico imensamente feliz que meu pé esquerdo coopere com meu pé direito, independente da diferença no modo como caminham.” (Angela Dalleprani Ribeiro, peregrina)

Era domingo novamente, eu me sentia bem descansado, de forma que após levantar-me, iniciei os preparativos para a jornada do dia.

Ademais, eu pretendia aportar cedo ao meu destino, posto que havia previsão de muita chuva para a parte da tarde.

Além disso, eu tinha a intenção de assistir missa no horário vespertino.

Assim, sob baixa temperatura e com uma contínua brisa a soprar dos morros circundantes, deixei o local de pernoite, exatamente às 6 h, seguindo por ruas desertas e silenciosas.

Numa das extremidades da cidadezinha, um cão ganiu, queixando-se do frio e da solidão.

Possivelmente, ele ergueu o focinho para o seu Deus, e apresentou um relato longo e detalhado da deplorável situação do mundo, no que lhe dizia respeito.

Assustado, parei para ouvir seu lamento canino, e percebi que era um cantor experiente, uma garganta poderosa, com grande versatilidade no alcance e controle.

Quanto ele cessou seu uivo, um tanto apreensivo e acabrunhado, prossegui minha jornada.

Eu havia verificado o local de saída da povoação, de forma que após transitar por uma rua ascendente e, embora estive ainda muito escuro, logo encontrei o primeiro “mojón” do caminho.

Precavido, eu portava minha lanterna e logo adentrei numa estrada em terra, em forte ascendência, que seguiu bordejando uma grande vala existente em paralelo a um pasto, pelo meu lado direito.

Trezentos metros depois, já no plano, passei por um frondoso bosque de pinheiros e logo acessei a rodovia AS-14, minha velha conhecida, e por ela segui adiante, em sentido contrário ao fluxo de veículos, que naquela horário era praticamente nulo.

Quatro quilômetros caminhados em bom ritmo, eu adentrei em La Mesa, uma vila com casas disseminadas, onde residem perto de 30 pessoas.

Albergue de peregrinos de La Mesa

E logo passava diante de sua igreja matriz, dedicada a Santa Maria Magdalena, que foi construída no século XIV.

Está rodeada por verdes pastagens e situada debaixo de uma frondosa árvore.

Na localidade não existe nenhum tipo de serviços, embora ela disponha de um albergue de peregrinos, que está alocado numa antiga escola municipal, e fora recentemente revitalizado.

Prosseguindo em descenso, passei defronte ao “refúgio”, onde notei grande movimentação de pessoas.

Inclusive, observei alguns jovens já tomando café, utilizando para tanto uma mesa de pedra, localizado no jardim e defronte ao prédio.

Fiz ali algumas fotos, cumprimentei a todos, desejei-lhes um “Bom Caminho”, depois segui adiante.

Quanto ao clima reinante, diria que o frio persistia intolerável, mas eu estava muito bem agasalhado.

O roteiro prosseguiu pela “carretera” asfaltada, agora em forte e duro ascenso que, em seu ápice, me levou a passar ao lado de inúmeras torres geradoras de energia eólica que, por conta do vento forte que varria o cume do morro, giravam a todo vapor.

E após pequeno descenso, depois de ultrapassar o topo da elevação, 2 quilômetros caminhados após La Mesa, adentrei no povoado de Buspol, onde também existiu um hospital de peregrinos.

Atualmente, ela é uma minúscula aldeia com 7 ou 8 casas, se tanto, onde nada vi que tivesse vida, mais parecendo, na realidade, uma vila fantasma.

Logo, uma flecha me remeteu para a direita, então passei ao lado de uma capela com paredes de pedra, dedicada a Santa Marina, uma construção datada do ano 1.327, em cuja porta existe uma oração que invoca a proteção de santo Antônio e santa Maria Magdalena.

O céu primaveril estava tão baixo, neblinoso e sombrio que, apesar do horário, mal se podia dizer que aquilo fosse dia.

Depois de um sábado radiante de luz, eu havia perdido o vocabulário para descrever aquela atmosfera insossa e sem cor.

A partir desse ponto, por uma senda empedrada e perigosa, iniciou-se o propalado “descenso em vertical” até o embalse de Salime, numa extensão de 8 quilômetros, sempre em terrível baixada.

Daquele local eu já avistava, à grande distância, o rio Navia e a cidade de Grandas de Salime, minha meta para aquele dia.

O caminho, muito bem sinalizado, atravessa, no seu início, pelo meio de imensas pastagens, o que me obrigou a ir abrindo e fechando cancelas.

Nesse trecho, pude observar a existência de imensos rebanhos de gado bovino e, curiosamente, nenhuma árvore, possivelmente, em face do solo pedregoso.

Mais à frente, passei a ser ladeado por ervas espinhosas, urzes e bosques de pinheiros em reflorestamento, sem grandes problemas para meu passo.

Porém, mais abaixo, o caminho se estreitou, transformando-se numa senda, onde encontrei muitas pedras soltas.

Por conta disso, a vereda tornou-se extremamente perigosa, e precisei envidar todo o cuidado para não escorregar ou cair, sobrecarregando os pés e os joelhos, algo que poderia ser fatal, vez que uma simples torção poderia colocar em risco minha peregrinação.

Após uns quinze minutos de muito sofrimento, o caminho se nivelou e passei a descer com menos velocidade, sempre em meio a muito verde, composto por matas nativas e bosques de pinheiros.

Porém, o dia continuava gelado e ameaçador, e o vento açoitava com violência um penhasco arborizado situado próximo dali.

Uma hora mais tarde, numa bifurcação, encontrei um grande aviso sinalizado por um cartaz feito de ardósia, mandando-me seguir à esquerda.

Naquele local, a atmosfera apresentava-se sinistra, nuvens baixas e escuras se espalhavam por todos os lados, me deixando inquieto e preocupado.

E, estranhamente, eu me sentia particularmente exposto, talvez por caminhar escoteiro, talvez pelo céu cinza, deixando tudo ainda mais ameaçativo ao meu redor.

Logo se iniciou um autêntico tobogã, com traçado em ziguezague, subindo e descendo continuamente, até chegar a uma castanheira, onde um “mojón” me sinalizava para adentrar à esquerda.

A partir desse ponto a trilha estreitou mais ainda, e a floresta, constituída por frondosas árvores, estava fechadíssima, lúgubre e tristemente silenciosa.

Pareceu-me que a clorofila da mata se encontrava em seu apogeu, o que a tornava ainda mais pesada e reservada.

Nesse trecho, as raízes das arvores cruzavam o caminho, segurando a terra, formando pequenos degraus, e o piso, embora estivesse bastante úmido, não continha barro, vez que nele havia uma grossa camada de folhas.

Sinceramente, se eu me deparasse com uma cobra naquela perigosa senda, não saberia o que fazer, porquanto seria impossível seguir em frente, pela estreiteza do caminho e falta de opções para desviar desse hipotético obstáculo.

Finalmente, após um derradeiro e íngreme descenso, emergi do escuro bosque, e acabei por sair na rodovia AS-14, na altura do quilômetro 7,  quando meu relógio marcava 9 horas.

Até ali eu havia percorrido 11 quilômetros, numa média de 3,8 quilômetros/h, nada mau pela rudeza do percurso que eu havia enfrentado para chegar naquele local.

Ademais, não avistara vivalma desde que iniciara minha descida e, mesmo dentro dos bosques, não conseguira ouvir o trinado dos pássaros, sinal de que naquele trajeto não existe alimentação para as aves.

O dia persistia plúmbeo, fechado, mesmo assim resolvi colocar meu boné, por saber que 40% do calor perdido pelo corpo, se faz através da cabeça.

Fiz naquele local uma pausa para reflexão, descanso e hidratação, depois prossegui adiante, marchando agora em direção à represa.

Um quilômetro vencido e já no plano, eu alcancei a parte superior do muro do “embalse”, que também é ocupado pela “carretera”, e minhas vistas se assomaram ao ver o dique, comportas e maquinarias de contenção da água.

Um cartaz próximo dali anunciava que a represa fora inaugurada em 1.954 e, perto das salas onde estão alocadas as turbinas geradoras de eletricidade, um grandioso mural narra graficamente a história de sua construção.

Depois de cruzar todo o perímetro da eclusa, eu me dirigi ao restaurante Hotel las Grandas, situado um quilômetro acima e, quando lá cheguei, constatei que o mesmo estava fechado.

No entanto, aproveitei seu terraço para fotografar novamente a imensidão das águas represadas.

Prosseguindo, aos poucos fui penetrando num cenário grandioso, fantástico, de montanhas com densas florestas.

E depois de uns 3 quilômetros, sempre em perene e dura escalada pelo asfalto, eu encontrei uma bifurcação me remetendo à esquerda, para a mata, ainda em pronunciado ascenso.

Então, segui por uma senda arborizada e fresca que transcorre paralela à rodovia, porém em plano superior.

Finalmente, adentrei em zona urbana, e pela larga avenida del Ferreiro, aportei no centro de Grandas de Salime, minha meta para aquele dia.

Na cidade, atualmente, com 1.100 habitantes, fiquei hospedado na pensão Arraigada, com certeza, não foi das melhores que já pernoitei em todo o Caminho, pela precariedade de suas instalações.

Depois de um reconfortante e necessário banho, fui almoçar no bar e restaurante Ocidente.

Mais tarde, após necessária e repousante soneca, fui visitar a Colegiata de San Salvador, situada numa praça, defronte ao prédio “del Ayntamiento”.

Documentos históricos datados do ano 972, reconhecem a doação feita pela igreja de Oviedo para a construção do monastério de San Salvador de Dubris, em Grandas, do qual, infelizmente, nada mais resta.

A igreja paroquial de San Salvador, conforme li num painel informativo colocado defronte ao templo, foi edificada no século XII.

Porém, do projeto original ainda se conservam a antiga porta romântica e o interior da ermida, sendo que o restante do conjunto foi sendo agregado ao longo de séculos posteriores.

Trata-se de um complexo de grande harmonia e beleza de proporções, em que pese a evidente sensação de solidez, por conta do tamanho de suas paredes, porquanto as intenções, quando de sua elaboração, não eram apenas espirituais, mas, prioritariamente, defensivas.

Mais tarde, fui conhecer o Museu Etnográfico, famoso pela diversidade e fidelidade de suas obras, onde recebi ajuda de um guia, que foi me instruindo pelas distintas dependências.

O local, um dos mais visitados das Astúrias, está instalado numa “casona”, que é uma construção típica da pequena nobreza rural asturiana.

Ele foi inaugurado em 1.984, com o objetivo de conservar, estudar e divulgar o patrimônio etnográfico de um amplo território integrado por vários municípios daquela região.

Trata-se de uma obra pessoal de José Navieras, o último ferreiro daquele "pueblo", e durante a visita pude distinguir os utensílios necessários para que uma casa campestre pudesse funcionar normalmente.

Todo o conjunto gira em torno da sociedade rural tradicional, tentando mostrar como era, há muitos anos atrás, o “modus vivendi” no campo.

Na realidade, se tratava de uma economia de subsistência, em que a maior preocupação era conseguir seu autoabastecimento, para não depender do comércio e mercados locais.

O patrimônio, em que se incluía a vivenda e seus residentes, bem como a fazenda, animais, árvores e demais utensílios, tinha o nome e o brasão da família proprietária.

Além de cultivar a terra e criar o gado, eles precisavam amassar e assar o pão, matar os porcos para fabricar embutidos, ter a lã e o linho para fazer roupa, além de elaborar o vinho e o orujo, dentre outras atividades.

Todas essas tarefas exigiam amplos conhecimentos, que eram repartidos entre todos os familiares, observando-se o sexo e a idade.

Ali pude ver também tudo o que uma família precisava para seguir sua vida independente, desde a vivenda, um hórreo, os currais, a bodega, cabanas, assim como todos os aparatos e ferramentas utilizados nos deveres domésticos.

Até um moinho pude observar funcionando, e produzindo farinha.

Todo o conjunto me transportou a eras passadas, e me deu uma ideia bastante objetiva da economia de subsistência, à época.

Sem dúvida, uma visita muito interessante.

Após deixar o local, embora estivesse ventando e ameaçando chover, como forma de agilizar meu trânsito na jornada subsequente, eu segui as flechas amarelas e fui conhecer o local por onde partiria na manhã seguinte.

À noite, em face do frio reinante, atravessei a rua e ingeri um singelo lanche acompanhado de uma taça de vinho, no bar existente defronte ao local onde me hospedara.

Já no quarto, fiz um breve retrospecto do que vivenciara naquela data, e constatei que, por alguma razão específica, fora o dia em que eu me sentira mais tenso na caminhada, num misto de solidão, apreensão, medo e ansiedade.

Logo fui dormir, pois a jornada seguinte era de razoável extensão e prometia ser bastante cansativa, em vista dos obstáculos naturais que necessitaria sobrepujar.

E, graças ao bom Deus, tive um sono tranquilo e profundamente restaurador das energias perdidas no trajeto do dia.

 

IMPRESSÃO PESSOAL – Uma jornada de média extensão, todavia, com vastas alterações altimétricas. A descida que se inicia na cidade de Buspol e persiste até a represa de Salime, é extremamente cansativa e perigosa. De se ressaltar, no entanto, que a maior parte do percurso foi feito em terra, entre muito verde e com belíssimas vistas da paisagem circundante.

Com Pablo José, proprietário do bar Arraigada