7º dia: BENEDITO ZINCO à RODEIO – 26 quilômetros

7º dia: BENEDITO ZINCO à RODEIO – 26 quilômetros

 

“Nem eu, nem ninguém pode viajar essa estrada por você. Você deve atravessá-la sozinho.” (Walt Whitman)

 

 

Hoje você também voltará uma parte do caminho para seguir no circuito. Leve lanche e água. O caminho promete um show em mirantes naturais. Prepare-se para observar o que de belo a natureza ainda lhe reserva através da estrada de terra. As pequenas comunidades que você encontrará no percurso são de descendentes de italianos, pessoas receptivas e que gostam de uma boa conversa. Mirantes naturais deixaram você vislumbrar o vale, suas escarpas, montanhas e vegetação. Na Cidade dos Anjos pare e descanse um pouco, dedique alguns minutos para captar bons fluidos. Quando chegar à hospedagem e, se estiver ainda com vontade de caminhar um pouco, sugerimos que você vá ao centro da cidade de Rodeio para interagir um pouco com as pessoas da cidade ou, ainda, conhecer a Igreja Matriz e seu interior.”  (Extraído do livro guia do roteiro, que é entregue ao caminhante quando da retirada da credencial, em Indaial/SC)

Conforme ficara combinado no dia anterior, exatamente às 5 h 30 min, o Francisco estacionou seu táxi defronte ao hotel, então eu embarquei rapidamente, e seguimos conversando.

O motorista contou-me, dentre outras notícias, que é uma espécie de “faz tudo” na cidade, pois possui uma danceteria, uma lanchonete, dá expediente na Prefeitura Municipal, no Conselho Tutelar, além de fazer “bicos” como taxista e trabalhar como “DJ”, animando festas na região.

No trajeto, embora ainda estivesse escuro, pudemos ver em vários locais os estragos causados pela intempérie que se abatera sobre a região no dia anterior.

Inúmeras árvores caídas, galhos decepados à beira da estrada, eucaliptos que não haviam resistido ao vendaval caído ao chão, porém, a Prefeitura já providenciara a desobstrução da estrada e não tivemos problemas no percurso.

Assim, exatamente às 6 horas, aportamos novamente à “esquina” do Zinco, local onde desci, afivelei a mochila e preparei para prosseguir meu périplo.

Antes, no entanto, fizemos uma foto juntos, como forma de preservar a memória e nossa recente, mas profícua amizade.

Após as despedidas finais, verifiquei que o dia se mostrava fresco e úmido, excelente para caminhar.

Animado e confiante, dei início à etapa daquele dia que, por sinal, seria bastante curta, pois iria caminhar apenas 19 quilômetros, vez que inibira o percurso desde a Pousada Zinco até aquele local.

Enquanto me deslocava, lentamente, aguardando meus músculos se aquecerem, segui rezando:

“Abençoa, Senhor, o meu dia, ajuda-me a vencer não apenas as montanhas e outros obstáculos físicos que encontrarei ao longo do meu caminho, mas, também, os meus limites, dentro da minha condição humana, tão pequena e frágil.

Que eu possa crescer em conhecimento, dilatando meus limites, tanto na horizontal quanto na vertical.

Que o meu dia seja de luz. Amém!”

 

A primeira parte do trajeto transcorreu por locais planos e intensamente arborizados, tendo eu transitado diante de numerosas residências, todas com floreiras na porta e pequenos cães de guarda.

Embora tudo estivesse silencioso, pela fumaça que evolava da chaminé de algumas casas, pude inferir que já havia alguém acordado e já trabalhando no preparo do café ou almoço.

Três quilômetros adiante, numa bifurcação, segui à esquerda, transpus um pequeno riacho por uma ponte e, na sequência, passei a transitar, já em leve descenso, por uma estrada situada em meio a muito verde.

O clima persistia fechado, sendo que nesse trecho, caía uma leve e fina garoa, mas não o suficiente para me molhar com intensidade, de forma que mantive a capa de chuva de prontidão, mas dentro da mochila.

Mais adiante, passei diante de uma igreja luterana, já no bairro Alto Ribeirão Liberdade, onde além de algumas casas disseminadas, existem também um grupo escolar e uma fábrica de móveis.

A partir desse marco, eu adentrei em uma grande área de reflorestamento, sendo ladeado em toda a extensão por imensas plantações de pinheiros e eucaliptos.

Cinco quilômetros depois, eu transitei diante de duas grandes fazendas, situadas num vale fértil e imensamente verde.

Então, principiou uma leve aclividade que me levou ascender a 850 metros, já no topo da Serra dos Oitenta, um local extremamente arejado e pleno de mata nativa.

Dali eu tinha visão privilegiada e pude, sem pressa, apreciar os vales e montanhas que se descortinavam no horizonte à minha frente.

Fiz naquele local uma pausa para fotos e hidratação, e aproveitei a ocasião para fazer alongamentos, pois a partir desse patamar, iniciou-se violento descenso, localizado já do outro lado da montanha, nominado de morro do Ipiranga, que perfaz 8 quilômetros de extensão.

Exatamente a distância que me restava para aportar à cidade de Rodeio, sendo que eu deixaria a altitude de 750 metros para, literalmente, “despencar” em zona urbana, a 100 metros de altura.

Nesse trajeto, de forte declividade, encontrei dois ciclistas empurrando suas bicicletas, vez que eles trafegam em sentido contrário aos mochileiros, e esse trecho, abrangendo a serra, é considerado o mais longo e difícil de todo o percurso.

Mais adiante, ainda descendendo forte, passei diante de várias construções, todas muito bem cuidadas, situadas próximos de exuberantes matas e, em duas delas, pude fotografar a graciosa estátua de um anjo.

Num pequeno platô, já no bairro Ipiranga, eu passei diante da igreja de Nossa Senhora de Lourdes e, na sequência, transitei diante de inúmeras esculturas representando anjos brancos, todos segurando uma hortênsia azul entre as mãos.

Na verdade, eu estava adentrando ao famoso “El Picol Paradis” ou “O Pequeno Paraíso”, também conhecido popularmente como “A Cidade dos Anjos”, um projeto desenvolvido pelo lavrador de descendência italiana, o Sr. Paulo Notari, uma pessoa extremamente católica.

Trata-se, na verdade, da realização de um sonho, representado pelo trabalho de dedicação e força de vontade.

No ponto mais alto daquele vale, pude notar a presença de bandeiras representativas do Brasil, da Alemanha e da Itália, que inferi ser uma homenagem aos colonizadores da região.

O prazer de conhecer o Sr. Paulo Notari, 84 anos, o criador e construtor da fantástica "Cidade dos Anjos", localizada próximo da cidade de Rodeio/SC.

Eu logo encontrei o Sr. Paulo, próximo de uma portentosa estátua de braços abertos, uma réplica do Cristo Redentor, que mede quase 10 metros de altura.

Depois das apresentações, conversamos um bom tempo sobre sua realização que, conforme me confessou, nasceu e floresceu numa fase em que esteve doente, permanecendo quase um ano de cama.

Espalhados pelo entorno, existem 64 anjos, segundo me disse, criados para protegê-lo, e que estão assentados em pedestais à margem da estrada e em algumas colinas próximas, mas dentro de sua propriedade.

Contou-me, ainda, que todos os pés de hortênsias que estão plantadas à beira do caminho, desde o cimo do morro do Ipiranga até aquele local, fora obra sua, depois imitada e conservada pelos outros sitiantes da região.

E não bastasse tudo isso, ele confidenciou-me que ainda deseja criar um portal, com mais de 10 metros de altura, para ser fixado próximo ao Cristo, cuja denominação será “A Porta de Entrada do Céu”.

 

Importante notar que, nos bairros periféricos, como naquele onde eu estava, predomina a atividade rural e uma cultura imigrante forte, porquanto seus moradores descendem principalmente da etnia italiana e alemã.

As paisagens verdes colorem o entorno e lhes dão ares bucólicos, mormente porque nesses locais a vida é essencialmente colonial.

Interessante, que quase todas as edificações dessa região, por onde eu transitei nesse dia, são feitas em madeira, possuem fogões a lenha, e estão ornadas com  lambrequins em seus típicos telhados de outros tempos, quase sempre revestidos por ardósia.

Para completar, a água vem ainda do poço ou diretamente dos riachos, prova cabal de que seus mananciais ainda não estão contaminados.

 

 

Após despedidas fraternas, eu deixei o Sr. Paulo e prossegui adiante, sempre em descenso e em meio de dois morros, onde a vegetação era exuberante e, em minha opinião, talvez seja esse o trecho mais verde que encontrei em todo o Circuito.

Para completar, pelo lado esquerdo corria rápido, pleno de pequenas cachoeiras, um rumorejante regato, me acompanhando desde o início da serra e que, em seu final, se apresentava bastante encorpado.

Porquanto, ele recebia em seu leito todos os regatos que descendiam das montanhas próximas, e que não eram poucos.

Mais alguns quilômetros por terra, sob uma agradável temperatura, adentrei em zona urbana e, depois de fazer algumas indagações, acabei por aportar no centro da cidade, mas especificamente, na Cama e Café Stolf, local onde havia feito reserva.

Com Dona Irene e o Sr. Dande, pessoas especialíssimas, proprietários do Hotel onde me hospedei em Rodeio/SC.

Ali fui excepcionalmente bem acolhido pelo simpático casal Dona Irene e Sr. Dande, que utilizam a própria residência para receber hóspedes, visto que, segundo eles, a casa se tornara imensa e vazia após o casamento de seus três filhos.

Isto tudo relatado com muito bom humor pelo Sr. Dande, que me serviu um copo de laranjada no alpendre, enquanto sua esposa terminava de fazer a limpeza e arrumação do quarto que me fora destinado.

Por sinal, atualmente, esse é o único local disponível para pernoite na cidade, posto que um antigo e famoso hotel que existia nessa simpática urbe, sem maiores explicações, fechou suas portas.

Após um merecido banho e a tradicional lavagem das roupas, fui almoçar no restaurante La Spuntino, de excelente qualidade.

 

A cidade de Rodeio foi fundada por imigrantes italianos vindos do Tirol Trentino, norte da Itália, no ano de 1875, época em que o Tirol Meridional ainda pertencia ao Império Austro-Húngaro.

Ela recebeu esse nome após seus desbravadores perceberem que só andavam em círculo, e essa derivação torna-se mais forte quando se olha para as montanhas em volta do vale (rodeiam o lugar).

Inicialmente, vieram 114 famílias distribuídas em 3 turmas, sendo que os grupos partiram de Trento em viagem de trem, depois seguiram por via marítima em navios, até aportar no Rio de Janeiro.

Em seguida, aportaram em Itajaí, para serem conduzidos até Blumenau, em carroças. De Blumenau foram conduzidos a pé, até Timbó, a fim de escolherem seus lotes de terra em meio à floresta virgem.

A Primeira estrada aberta no meio da floresta foi a “Picada de Rodeio”, ou “Linha Caminho de Rodeio”, feita a golpes de facão e machado.

A cidade de Rodeio/SC, abaixo, que é rodeada por inúmeros morros onde a natureza está intocada e o clima é puríssimo.

Inicialmente, trataram de derrubar a mata para as primeiras plantações, trabalho duro e sofrido, que lhes acarretou toda espécie de sacrifícios e dificuldades.

Sendo, porém, católicos fervorosos, tinham por princípios inabaláveis a fé e a coragem, e como valores insubstituíveis a família e o trabalho, fatores com os quais contaram para vencer,  conseguindo assim implantar a semente da colonização.

Sua população estimada em 2004 era de 10.898 habitantes, com diversas etnias espalhadas pelo município, que derivam quase sempre dos Alpes Europeus.

Trata-se de uma urbe relativamente pequena, mas que é a pura demonstração de um pequeno pedaço do Trentino (Tirol Italiano), vez que seus habitantes, na maioria de origem trentina, buscam sempre preservar as crenças e os costumes da origem de seus antepassados.

A bananicultura e a rizicultura são as principais atividades agrícolas do município, sendo que é comum nas famílias rodeenses as gerações passarem às outras a lida na agricultura, começando com o Avô (Nono), que transfere seus conhecimentos para os filhos que, posteriormente, seguem para seus netos.

Seus lavradores alavancam culturas de alta produtividade, graças ao clima favorável para esta prática, porquanto o mesmo é considerado bem definido, com estações regulares e poucas variações nas precipitações.

 

Depois de revigorante descanso, fui dar uma volta pela cidadezinha e me surpreendi, pois ali a fé e a religiosidade estão presentes em cada curva, em cada casa ou esquina.

Suas ruas já se encontravam garbosamente preparadas para o Natal, com luzes coloridas, enfeites, presépios em praça pública, etc..

Aproveitei a ocasião, para verificar o local por onde partiria na manhã seguinte, pois pretendia sair ainda no escuro, vez que transitaria no início, por zona urbanizada.

No retorno, aproveitei para visitar sua igreja matriz dedicada a São Francisco de Assis, e que foi edificada no topo de uma pequena colina existente no lado sul da cidade.

À noite, retornei ao local onde havia almoçado, e pude ingerir um gostoso lanche, acompanhado de uma cerveja excepcionalmente gelada.

E, na sequência, me recolhi, já prelibando a etapa seguinte, minha derradeira no Circuito.

 

 

IMPRESSÃO PESSOAL: Uma jornada tranquila, de pequena extensão, e uma das mais belas de todo o Circuito. De se enaltecer a visita à “Cidade do Anjos”, um local emblemático e que chega a emocionar, mormente para quem é católico. No global, talvez seja esse trecho, o mais verde, dentre todos aqueles por onde transitei anteriormente.