Caminho das Missões

2003 - O Caminho das Missões, a pé, em 7 etapas

Em São Miguel das Missões

Foto Oficial do Grupo

Palestra em Santo Ângelo

Palestra em Santo Ângelo

Objetivando concretizar um sonho acalentado no final de 2002, rumei ao Rio Grande do Sul no último mês de Maio, para percorrer o Caminho das Missões, num total de 180 quilômetros trilhados a pé, em seis dias e meio.

Para tanto, após contatar a Agência de Viagem responsável pela integração dos participantes, juntei-me a um seleto grupo de 13 pessoas, formado por 6 homens e 7 mulheres, sendo que do total, 5 eram procedentes de Brasília, 2 paulistas, 1 mineiro e 5 gaúchos.

É interessante destacar que desse grupo heterogêneo, 7 já tinham percorrido o Caminho de Santiago de Compostela, o que facilitou sobremaneira a caminhada e a interação entre os participantes.

Necessário esclarecer que este relato representa ponto de vista pessoal, exclusivo do autor, sobre o que vivenciou e observou durante a caminhada, não obrigatoriamente o que as demais pessoas do grupo viu, pensou ou sentiu.

A História do Caminho das Missões

Na área atual do Rio Grande do Sul, os índios guaranis ocuparam as terras férteis do rio Uruguai até o litoral, impondo aos outros grupos existentes sua cultura e seu modo de ser. Viviam em aldeias coletivas, eram horticultores, conheciam a cerâmica e a pedra polida. Desenvolveram a plantação de muitos vegetais nativos - comestíveis e medicinais - nas suas roças em meio à floresta.

Entre as contribuições que legaram para o povo gaúcho, estão os termos linguísticos, entre eles os nomes de rios e localidades, o folclore, com suas lendas e cantos, o cultivo de plantas e, também, alguns hábitos alimentares como o churrasco e o chimarrão . 

Foi junto a estas comunidades indígenas, por volta de 1600, que os jesuítas desenvolveram o projeto da conquista espiritual a serviço da Coroa Espanhola. As Missões Jesuíticas representam uma das formas de colonização na América, com uma dupla função de assegurar territórios conquistados e catequizar os povos nativos.

No período de pleno desenvolvimento, em uma vasta área hoje pertencente ao Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai foi criada uma rede de 30 povoados, além de estâncias, ervais, invernadas, tudo ligado por estradas, formando uma complexa malha viária, com as mais diversas funções.

O encontro de duas culturas diferenciadas: a guaranítica e a européia deu origem a um novo modo de ser, o “missioneiro”. O povo missioneiro tem uma base inicial de sua formação étnica nos índios, portugueses e espanhóis (origem do gauche ou gaúcho, andarengo e peleador no período pós-jesuítico-guarani), que contribuiu decisivamente para a formação cultural do gaúcho atual e seu forte identidade em defesa de sua terra.

As disputas e interesses políticos entre Portugal e Espanha determinaram como guerras Guaraníticas (1754-1756), a expulsão dos jesuítas da América (1767/1768) e a conseqüente decadência das Missões. Os índios missioneiros, vencidos, espoliados, despojados de sua terra, aos poucos abandonaram os povoados, dispersando-se pelo território platino. E a floresta tomar como cidades abandonadas, e toda a experiência desenvolvida em mais de 150 anos ruiu junto às paredes de pedra e barro.

O Projeto Caminho das Missões

O “Caminho das Missões Jesuítico-Guarani” é a realização de um roteiro místico / cultural de peregrinação que percorre os mesmos trajetos que ligavam os antigos povoados missioneiros e que compunham o conjunto - urbano e rural - das Missões Jesuíticas, situados hoje, em parte no território brasileiro, argentino e paraguaio.

Uma etapa inicial, com 180 milhas, abrange a região dos 7 Povos das Missões Orientais, localizada no noroeste do Rio Grande do Sul. A concepção original do Caminho, como parte integrante do produto turístico das Missões Orientais, surgiu da própria potencialidade místico / religiosa, histórica e ecológica do espaço em questão.

Da fusão de idéias e conhecimentos específicos provenientes de pessoas ligadas aos setores de turismo, marketing, história e holística surgiram a intenção da “redescoberta” e planejamento do Caminho como um roteiro alternativo a ser disponibilizado aos interessados.

Das antigas trilhas guaranis, passando pelos caminhos missioneiros e depois pelas velhas estradas dos tropeiros é que se orientou e traçou o caminho que ora se apresenta como uma jornada, seja de peregrinação mística, tradição, lazer, pesquisa ou esporte. O percurso indicado segue naturalmente a orientação dos antigos caminhos, hoje relativamente modificados pela ação do homem e suas necessidades de exploração do espaço, segue, também, pontos de interesse que servem como referenciais históricos e místicos para o caminhante.

Localização e Proposta do Caminho

O Caminho das Missões está situado a noroeste do Rio Grande do Sul, na encosta ocidental do Planalto Riograndense e apresenta um clima ameno com temperatura média que varia de 38º no verão e 5º no inverno, sua altitude é de aproximadamente 280 metros acima do nível do março 

Inerente à duro para a qual foi criado, o Caminho das Missões surgem uma jornada de autoconhecimento e também de contato com o passado missioneiro. Percorre, ele, parte das antigas estradas dos jesuítas e guaranis. E mais que tudo, propicia uma integração com o povo atual das Missões, que encanta a todos por sua hospitalidade, autenticidade e solidariedade.

A Minha Caminhada

No sábado, dia 09/05/2003, às 14 horas, os futuros caminhantes se reuniram na sede da Associação dos Amigos do Caminho das Missões, localizada na Praça Central da cidade de Santo Ângelo (RS).

Ali, após as apresentações formais, fomos encaminhados até a igreja Catedral para assistirmos uma palestra feita pela Sra. Estela, onde os participantes receberam informações sobre o Caminho que iriam trilhar e esclarecimentos sobre a História das Missões.

Depois, cada caminhante melhorada um cajado, uma camiseta e uma Cruz Missioneira, devidamente benzida, símbolo do Peregrino das Missões. Foi feita então a foto oficial do grupo.

Encerrada a informa que nos acolheu com boas vindas, foram conduzidos (numa Perua Van) por estradas asfaltadas até o ponto inicial de nossa caminhada, a cidade de São Nicolau (RS), distante 180 milhas por estradas vicinais de terra batida que percorreríamos até o ponto final da nossa caminhada, a Catedral da cidade de Santo Ângelo.

Integrado ao grupo tínhamos um guia do caminho, o ROMALDO, gaúcho de Três Passos, que nos conduziria pelos pagos riograndenses nos sete dias seguintes.

A chegada ao marco inicial da caminhada aconteceu por volta das 17 a 30 min, a tempo de, monitorados pelo guia local Andréia, percorrermos as ruínas da Redução (do latim “reducere”, no sentido de conduzir, encaminhar, que se origina no objetivo dos jesuítas em delimitar o espaço físico dos índios), bem como o Museu Arqueológico.

A cidadezinha de São Nicolau, atualmente com 5 mil habitantes, foi fundada em 1626 pelos Padres Jesuítas, às margens do Rio Uruguai, situando-se a 20 milhas da fronteira com a Argentina. No entanto, com o ataque dos bandeirantes e catástrofes naturais, o povoado foi destruído e abandonado, para mais de meio século depois, em 1687, ser reconstruído próximo ao local da 1ª fundação. Parte das ruínas daquele tempo foram preservadas no Sítio arqueológico situado na praça principal; algumas estruturas arquitetônicas se mantêm até hoje, como uma adega, paredes do cabildo (espécie de prédio administrativo), cotiguaçu (construção destinada às crianças, aos órfãos e às viúvas) e igreja.

Após o jantar gostoso servido no bar do “Dito”, onde recebemos com muito carinho pelos proprietários, Sr. Nicolau e Dona Gleida, rumamos até o CTG local onde estava ocorrendo um Concurso de Trovas e Poesias Gauchescas, e, após, o encerramento desse evento, haveria um baile. Ali, fomos festivamente recepcionados e homenageados pelo Prefeito Municipal, Sr. Heitor Paveglio, bem como pelas demais autoridades presentes. 

Para pernoitar, nos alojamos numa construção recente, especialmente adaptada para tal fim. Num salão único distribuímos nossos pertences diretamente no chão e, deitamos em colchonetes de pouca espessura, cada um utilizando o seu “saco de dormir”. O local bastante simples, ainda em fase de estruturação, conta com apenas um banheiro, obrigando todos a repensar o conforto de suas casas e o objetivo comum ali naquele momento.

1º dia: São Nicolau a Rincão dos Teixeira - (Em São Nicolau) - 31 milhas

No dia 10 de maio, domingo, “dia das mães”, acordamos cedo e, após um proveitoso café da manhã, fomos conhecer um casarão antigo, com mais de 100 anos, tombado pelo Patrimônio Histórico, “O Sobrado da família Silva”, que foi integralmente construído com pedras retiradas da antiga Redução, já serviu inclusive para aquartelamento de militares, hoje, infelizmente, em ruínas. 

Depois, saindo da cidade, visitamos uma adega jesuítica recentemente descoberta nas ruínas da Missão, a toda construída em pedras de arenito que resistiu ao tempo e persistiu intacta até os dias de hoje. Então, depois de uma oração com todo o grupo reunido, iniciamos nosso trajeto pelo Caminho das Missões.

A informação de que dispúnhamos sobre o nível de dificuldade atribuída àquele percurso, é que seria médio. A estrada vicinal pela qual trilhamos estava bastante movimentada, e éramos constantemente envolvido em nuvens de poeira fina e vermelha, deixadas pelos veículos que por ali trafegavam. O grupo logo se dispersou pois cada um escolhido o Caminho no seu ritmo. O clima ameno e o piso de terra batida, quase sempre plano, proporcionaram uma caminhada tranqüila por umas seis milhas. 

Depois, uma pavimentação passou a ser feita por pedras pequenas e irregulares, muitas soltas, que dificultavam sobremaneira nosso avanço. Além disso, à beira da estrada não havia nenhuma árvore que poderia mitigar a força do sol que se abatia sobre todos. Depois de caminharmos 19 milhas, às 11 minutos, chegamos ao Rincão do Conde, sendo recepcionados no sítio do Sr. Ciro Botti para o almoço dominical especialmente preparado pela sua esposa Dona Irene e pela Gleida (a senhora que nos recepcionou no Bar do “Dito”), que nos surpreenderam com um cardápio especial. Após o lauto repasto, ficamos debaixo das árvores a descansar até 14 horas, quando novamente mochilados, reiniciamos a caminhada. 

Foram mais 12 milhas, por uma estrada bastante acidentada, pedregosa e totalmente sem árvores a rodeá-la. O sol forte castigou a todos, cansados, porém felizes, às 17 horas chegávamos ao Rincão dos Teixeiras, ainda Município de São Nicolau, onde nos alojamos na Escola Olavo Bilac, hoje desativada, local de pouso naquele dia. Fomos recebidos pela Dona Antônia e suas filhas, que nos prepararam um saboroso jantar. Pernoitamos em locais distintos, pois havia dois ambientes, um com 9 camas, outro com 6. Ali como instalações para higiene eram melhores que a anterior, visto que a escola tinha de dois banheiros: masculino e feminino, entretanto apenas esse último possui chuveiro.

Um fato interessante chamou-nos a atenção, encontrou ali no terreiro de Dona Antônia, uma porquinha extremamente mansa, criado junto com os cachorros da proprietária. Não por acaso, foi imediatamente batizada de “Palmeiras”, ou melhor, “Palmeirinhas”, em homenagem ao tempo do qual esse animal é símbolo, tornando-se, enquanto ali estivemos, a mascote do grupo. 

O percurso desse dia foi trilhado, num terreno quase sempre plano, com bilhar coxilhas (elevações), que nos permitia observar à distância a paisagem árida e vazia, vez que toda aquela região é utilizada para o plantio da soja (transgênica), que havia sido recém colhida. No horizonte sem fim, de vez em quando pudemos apreciar um pequeno bosque ou, então, árvores esparsas, quase sempre de pequeno porte.  

 Com a porquinha "Palmeirinhas"

2º dia: Rincão dos Teixeira (Em São Nicolau) a São Luiz Gonzaga - 21 milhas

Após o café da manhã e a oração em grupo, partimos às sete horas por uma estrada poeirenta e pedregosa, para vencer um trajeto também considerado de média dificuldade. O sol forte, a falta de sombra à beira da estrada, bem como a pavimentação em terra vermelha, impregnada de pedras pontiagudas e irregulares, fizeram com que alguns dos caminhantes contraíssem nos pés bolhas ou algum tipo de lesão muscular. Por volta das 11 horas alcançamos o trevo de acesso à cidade de São Luiz Gonzaga, progressista urbe, que conta atualmente com 40 mil habitantes. 

A redução jesuítica foi ali fundada em 1687 e, a atual cidade desenvolveu-se a partir das ruínas existentes no local. A história daquela Missão pode ser apreciada no Museu Arqueológico e no centro histórico que conserva algumas evidências nas pedras das construções, no traçado das ruas e, principalmente, na coleção da estatuária missioneira exposta no interior da Igreja Matriz. 

Prosseguimos, então, caminhando pelo asfalto por uns três quilômetros, até a famosa Gruta de N.S de Lourdes construída, em 1926, como promessa à retirada das tropas guerrilheiras da Coluna Prestes, em 1924. Após uma pausa para visita ao local, continuamos o trajeto pelas ruas da cidade e nos alojamos numa bela casa situada próxima à praça central, onde fomos recepcionados pela Sra. Margareth, seu marido Paulo e sua filha Carolina.

A residência, recentemente adaptada para albergue, possui 4 quartos, 2 banheiros e uma ampla sala, onde nos dividimos, cada qual ocupando colchonetes colocadas diretamente no chão dos ambientes. Ali, pela primeira vez no Caminho, pudemos dispor de travesseiro para dormir. Após o almoço e um merecido descanso, retornamos ao centro da cidade para visitar o Museu Pinheiro Machado, o Museu Arqueológico Municipal e a Catedral da cidade.

O jantar foi servido no mesmo local do pouso, e ao fim deste teve início uma sessão de piadas comandada pelo Gustavo Engel, de Brasília. Logo depois o pessoal se recolheu, já que a etapa do dia havia sido extremamente cansativa e a do dia seguinte prometia bis. 

O percurso desse dia teve uma paisagem um pouco diferente, pois em quase toda sua extensão observou-se fazendas bastante arborizadas, dedicadas quase que exclusivamente à criação de gado bovino e “ovelhum”.

 Gruta Nossa Senhora de Lourdes

3º dia: São Luiz Gonzaga a São Lourenço Mártir – 27 quilômetros

Como nos dias anteriores, depois de substancial café e da oração matutina grupal, partimos por volta das sete horas, saímos da cidade pelo lado oposto ao de nossa entrada. A informação de que dispúnhamos era de que o percurso daquele dia fora avaliado como de média dificuldade. Depois de 3 quilômetros por asfalto adentramos a uma estrada vicinal bastante reta e arborizada. O sol ameno e o piso sem pedra e plano, propiciaram uma caminhada bastante agradável.

Depois de 14 quilômetros fizemos uma pequena parada numa casa à beira da estrada, onde fomos recebidos com extrema cordialidade pela Sra. Vera, que ofertou a todos, como hábito naquele local, broas de milho de fabricação própria, sendo de sabor incomparável. Após breve degustação seguimos por mais um quilômetro até o Bairro de Laranja Azeda, onde fomos recepcionados numa fazenda pelo proprietário, Sr. Algemiro, sua esposa Maria Terezinha e seu filho Robson.

Enquanto aguardávamos o almoço, seu Algemiro nos brindou com um solo de Acordeom. O grupo se animou por conta de algumas “caipirinhas” ofertadas pelo anfitrião e encetou um baile à moda gaúcha, somente encerrado quando fomos convocados a sentar à mesa para almoçar. Depois de um bom descanso, partimos por volta das 14 horas para percorrer mais 12 quilômetros, numa estrada agradável, sem pedras, bastante plana e arborizada.

Por volta das 17 horas, aportamos no distrito de São Lourenço Mártir, onde fomos recepcionados pela Sra. Cecília, ficamos alojados numa casa antiga, construída em estilo português, que possuía vários ambientes e 2 banheiros. Após um merecido banho e um rápido descanso, fomos visitar as ruínas missioneiras ali existentes.

A Redução Jesuítico-guarani de São Lourenço Mártir foi fundada em 1690, pelo Padre Bernardo de La Veja, coadjuvado por mais de 3.500 índios. Entre os vestígios materiais ainda conservados se destacam algumas paredes da Igreja, da casa de armas, da cozinha e da escola. O local guarda muito das lendas e da magia do período missioneiro. No interior das ruínas, que estão cingidas por providencial cerca de tela, existe uma criação pioneira de ovelhas “crioulas”, que além de servirem como atração turística, prestam um serviço à comunidade, por manterem a área limpa e a grama aparada.

O jantar foi excelente e, ao término deste, o grupo fez uma surpresa oferecendo ao guia ROMALDO um sonoro “Parabéns a Você”. Depois foi fatiado um bolo especialmente preparado para a ocasião, pela nossa anfitriã Dona Cecília. Naquela data, 13/05/2003, o ROMALDO completava 41 anos, e, ainda como parte das festividades, algumas pessoas do grupo foram até um bar próximo ao albergue, onde o aniversariante patrocinou a todos, bebidas e a degustação de uma famosa lingüiça missioneira cozida, de fabricação artesanal.

O percurso desse dia foi trilhado em quase toda extensão por uma estrada bastante arborizada, ladeando algumas plantações de milho e trigo, fazendas de gado leiteiro e de corte e, enormes extensões de terra vazia, fruto da colheita recente da soja ali plantada. A caminhada, na maior parte do trajeto, desenvolveu-se sem percalços, acompanhada por uma atmosfera agradável, com horizontes claros e límpidos.

4º dia: São Lourenço Mártir a São Miguel Das Missões – 23 quilômetros

Entre São Luiz Gonzaga e São Lourenço Mártir

Levantamos às 5 horas e 30 min e às 6 horas e 40 min, após a oração em grupo, partimos animados, eis que o grau de dificuldade esperado para o percurso do dia, era fácil. O tempo estava nublado e frio, o piso de terra batida e a estrada ladeada por inúmeros bosques, tornavam a caminhada extremamente rápida e deleitável.

A pequena quantidade de propriedades rurais naquele trecho e a quase inexistência de tráfego de veículos propiciaram uma trilha prazeirosa, sendo que, depois de percorrermos 18 quilômetros, às 10 horas e 30 min, chegamos ao asfalto que liga a BR 285 à cidade de São Miguel das Missões. Fizemos ali uma pequena parada na Lancheria do Nenê para descanso, chimarrão e uso de banheiro. Naquele local fomos festivamente recepcionados pela proprietária Dona Laura que nos ofereceu, graciosamente, água e café.

Seguimos, então, pelo asfalto, trilhamos mais 5 quilômetros até a Pousada das Missões, que se localiza ao lado das ruínas da cidade. Ótimas acomodações para pernoite aguardavam-nos, sendo distintos os albergues para homens e mulheres. Mediante o pagamento de pequena diferença alguns casais optaram por alojar-se em apartamentos individuais, uma vez que a Pousada oferecia esse conforto.

O almoço aconteceu na Churrascaria Casarão distante um quilômetro da Pousada e ao término deste, retornamos para um merecido descanso. 

Por volta das 15 horas fomos visitar o Sítio Arqueológico ali existente, o qual foi declarado Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade pela Unesco em 1983. Ele sintetiza a grandeza do sonho de jesuítas e guaranis de formarem uma nova sociedade, alicerçada na solidariedade e no coletivismo. O Sítio compreende uma série de estruturas arquitetônicas, com destaque para a igreja e o Museu das Missões projetado, em 1940, pelo arquiteto Lúcio Costa, o qual preserva as características do barroco guarani, possuindo em seu acervo mais de 80 obras da estatuária missioneira, além de sinos e fragmentos de pedra e madeira da época de sua fundação. O Sítio conta também com uma sala de multimídia e uma maquete da Redução de São Miguel.

Lá fomos assessorados pelo guia local Salete, que nos explicou com muita propriedade a história e a origem daquelas ruínas cuidadosamente preservadas. Mostrou-nos todo imenso Sítio, com destaque para alguns locais devastados pela ação do tempo, onde as pedras de muros e paredes semidestruídas estão sendo renumeradas e remontadas por um grupo de arqueólogos.

Nas ruínas do Sítio reside um grupo de índios guaranis, remanescentes dos ancestrais que ali habitavam à época da colonização jusuítica. Eles sobrevivem comercializando artesanato junto ao Museu e fazem parte de um grupamento que mora numa aldeia indígena instalada na cidade de Caiboaté, distante 25 quilômetros ao sul daquele local, onde ainda restam em torno de 100 famílias guaranis. 

Após o jantar iniciado às 19 horas, retornarmos às ruínas para assistir o emocionante espetáculo de Som e Luz que é apresentado diariamente às 20 horas naquele local. Foram 48 minutos de diálogos que são externados por vozes conhecidas como Fernando Montenegro, Lima Duarte e outros que não identifiquei. As luzes e as caixas acústicas espalhadas estrategicamente pelo Sítio, reproduzem o som das vozes cuja história recordam as personagens daquele enigmático cenário, numa atmosfera impregnada de extrema emoção.

Ao término do show, retornamos ao albergue para dormir, vez que o dia seguinte prometia ser o mais difícil de todos.

Infelizmente, nosso guia ROMALDO, face compromissos profissionais, nos deixava naquela noite. Para substituí-lo, veio o “baixinho” CLÁUDIO, que seguiu conosco até o final da caminhada.

O trajeto nesse dia, foi sem dúvida, o mais bonito de todo o Caminho. Muitos bosques, pássaros em quantidade, diversas lagoas em meio a enormes pastagens, onde coabitavam gado e ovelhas. Também nesse trecho observei, com mais freqüência, bandos de Quero-Quero, pássaro típico do Estado do Rio Grande do Sul. 

    Defronte ao Albergue de S. Lourenço

5º dia: São Miguel das Missões a Carajazinho – 34 quilômetros

Levantamos às 5 horas e 30 min e após um lauto café e a oração matutina, partimos exatamente às 7 horas. Nosso guia informativo nominava aquela etapa com um grau acentuado de dificuldade. Na saída da cidade, depois de percorrermos um pequeno trecho pelo asfalto, paramos para visitar a Fonte Missioneira recentemente descoberta, quando da escavação do local para a construção de uma casa. Depois trilhamos uma estrada excessivamente pedregosa, de piso irregular, com uma intensa movimentação de veículos.

huma árvore que pudesse aplacar o sol forte que nos atingia de frente, vez que estávamos caminhando em sentido Leste. A estrada apresentava subidas e descidas íngremes, forçando-nos a diminuir o ritmo das passadas sob pena de sofrermos alguma lesão muscular.

Depois de 4 horas de caminhada fizemos uma pausa para visitar a Pedreira Missioneira, distante 16 quilômetros a sudeste de São Miguel, onde existe um afloramento de arenito (eólico silicificado) avermelhado, de onde foram retirados grandes blocos, utilizados na construção da Igreja de São Miguel Arcanjo. No local podem ser constatadas marcas como ranhuras, estrias, fendas, perfurações e escavações de origem antrópica, feitas com auxílio de ferramentas de ferro utilizadas pelos índios há mais de 200 anos atrás.

Junto à Pedreira, no campo, em agradável sombra de frondosas árvores, encontra-se um centro espírita e um banheiro que pode ser utilizado pelos peregrinos. Antes de partirmos, junto à cerca, o nosso Guia Cláudio plantou 2 mudinhas de vergamotas (mexerica paulista) que trouxe na mochila, na intenção de marcar nossa passagem por aquele campo. 

Dali, seguimos por mais um quilômetro e paramos para almoçar num Galpão do Centro Comunitário do local denominado de Esquina Ezequiel. Ali fomos recebidos pelo Milton, sua esposa Sandra, e sua filhinha Sandrine, que nos proporcionaram uma acolhida maravilhosa e um almoço de excepcional qualidade, regado a batidas de pinga com Butiá.

Após um merecido descanso, por volta das 13 horas, partimos para percorrer os 17 quilômetros restantes da jornada. A estrada, então, apresentou-se bastante plana, com poucas pedras, alguns bosques, porém com muitas coxilhas (elevações) sempre ascendentes. Por voltas das 17 horas aportamos em nosso destino final, o Bolicho (armazém) do Sr. João Matos onde fomos recebidos por ele e também pela sua simpática senhora, Dona Neli.

No jantar fomos brindados com pratos típicos e um excelente churrasco missioneiro, especialmente assado pelo nosso anfitrião. 

Ali, utilizamos como alojamento coletivo um espaço naquela casa bicentenária, num barracão que antes abrigava uma estrebaria, hoje reformado, dispõe de 7 beliches para pernoite. O albergue é bastante rústico, um tanto abafado e apertado, externamente possui dois locais para banho, porém apenas um com vaso sanitário.

O percurso nessa etapa, tal qual no primeiro dia, foi feito em meio a enorme extensão de terra onde se cultiva soja, nesta época, toda ela já colhida, deixando uma paisagem nua e triste, num horizonte devassado e sem árvores.

6º dia: Carajazinho a Parque das Fontes (Entre-Ijuís) – 28 quilômetros

Defronte às ruínas de São Miguel

Embora o despertar tivesse sido marcado para as sete horas, às seis horas todos já se encontravam em pé arrumando seus pertencentes, eis que quase ninguém dormiu, incomodados que fomos por nuvens de pernilongos que nos atacaram sem trégua durante a noite toda. Após um caprichado café da manhã e a oração em grupo, partimos por volta das 8 horas, para vencer um percurso considerado de grau difícil.

O trecho inicial mostrou-se bastante plano, piso de terra batida e um clima ameno, que propiciou-nos uma caminhada tranqüila. Porém, os últimos dois quilômetros foram trilhados com muita paciência, pois a estrada encheu-se de pedras irregulares, de todos os tamanhos, a magoar sensivelmente nossos sofridos pés. Então, depois de 12 quilômetros, chegamos à pequena vila de São João Batista, que pertence ao Município de Entre-Ijuís. 

Ali, com o guia local Elói, visitamos as ruínas daquele Sítio, fundado em 1697 pelo Padre Antonio Sepp, resultante do excedente populacional de São Miguel Arcanjo. Em São João Batista foi implantada a primeira fundição de ferro do sul da América, sendo usado como matéria prima a pedra Itacuru ou pedra cupim, que também era utilizada nas construções, visíveis naquele local.

Esse Sítio arqueológico foi tombado como Patrimônio Nacional em 1970 e é composto pelo conjunto de remanescentes arquitetônicos e alguns arqueológicos expostos na recepção. Lá também assistimos a um vídeo sobre a antiga Redução e apreciamos o monumento erguido, em 1959, pelo austríaco Valentim Von Adamovich, em homenagem ao Padre Sepp e à fundição de ferro.

O guia Elói levou-nos pelo Sítio e conhecemos a trilha ecológica bem conservada, ali existente, em meio a frondosas árvores. Além das ruínas, pudemos conhecer alguns espécimes da floresta nativa bastante interessantes, como o Branquilho (de cujo tronco se faz carvão), a Pororoca (sua casca quando jogada no rio, tal qual o timbó, dopa os peixes), a Timbaúba (cuja casca contém tanino e é usada para curtir couros), o Cobrilho (cuja casca é eficientemente utilizada como antídoto à picada de cobras), e outras mais, inclusive vários pés de erva-mate.

Fato emocionante ocorreu quando num daqueles locais visitados, o guia nos mostrou as torres da Catedral de Santo Ângelo, que embora estivessem localizadas há uns 50 quilômetros de distância, podiam ser perfeitamente visualizadas, eis que nos encontrávamos numa elevação e a Igreja em outra.

Depois da visita, almoçamos no Bolicho do Adão que se localiza fronteiro ao Sítio Histórico, onde foi servida uma comida simples, porém farta, com muita salada e de ótimo sabor.

Às 13 horas partimos para vencer os restantes 16 quilômetros programados para aquele dia. As subidas e descidas tornaram-se uma constante, houve um considerável incremento no trânsito de carros e caminhões, além do piso ser quase todo formado por pedras que oprimiam os pés sobremaneira. Máquinas compactadoras trabalhavam em vários locais fazendo melhorias na estrada, ocasionando poeira e barulho, dificultando ao máximo nossa caminhada. Sem dúvida, para mim, o pior trecho que percorri no Caminho.

Depois de atravessarmos o rio Moinho, o Sanga, e o rio Ijuizinho, pela famosa “Ponte de Ferro”, finalmente, às 17 horas, atingimos o balneário “Parque das Fontes”, um oásis maravilhoso, onde fomos recepcionados pela Sra. Irene e o Sr. Cláudio, proprietários do local. O grupo mostrava-se exausto, alguns com muitas bolhas nos pés e dores nas pernas, entretanto, ninguém desistira.

O jantar foi servido às 20 horas no Bolicho do Parque, sendo véspera do último dia de caminhada houve uma confraternização geral, todos já saudosos daquela convivência amiga e pacífica. Para dormir utilizamos dois traillers lá montados, que continham, em seu interior, camas e beliches. Os banheiros disponíveis localizavam-se a alguma distância do local de pernoite, mas além de divididos em feminino e masculino, tinham espaço e conforto.

Nesse dia, o trajeto foi feito quase sempre em meio a plantações de trigo e milho, havia alguns bosques nativos e, no final, quando da travessia dos rios, imensos capões de mata ciliar bem preservada.

7º dia: Parque das Fontes a Santo Angelo – 16 quilômetros

Barracão Esquina Ezequiel

7º dia: Parque das Fontes a Santo Ângelo – 16 quilômetros

Levantamos às 5 a 30 min, todos animados e com muita disposição e, após a última oração em grupo, saímos todos às sete horas. O percurso a ser cumprido não apresentava muitas dificuldades e era considerado fácil, porém o piso irregular da estrada, aliado a poeira deixada pelos veículos que nos ultrapassavam amiúde, tornado-na inóspita até atingirmos o asfalto.

Dali nós seguimos primeiramente por ruas empedradas, depois por estradas vicinais sem tráfego, até atingirmos, após 8 milhas de caminhada, como margens do rio Ijuí, bastante largo e profundo aquele local. 

O grupo de vanguarda precisou esperar a chegada dos demais caminhantes, para que, todos juntos, fizéssemos a travessia do rio numa balsa, pois os últimos milhas do percurso, bem como a entrada em solo urbano, nivelamento ser efetuados em conjunto.

Depois de mais algumas centenas de metros por asfalto, adentramos a cidade de Santo Ângelo, e, finalmente, às 10h 45 min, a sua praça central. Em silêncio caminhamos até defronte a Catedral Angelopolitana onde recebemos a benção do Pároco local, Padre Rosalvo. Os sinos badalavam anunciando nossa chegada, algumas pessoas curiosas se reuniam na escadaria da igreja para nos saudar, meus olhos marejavam de emoção por finalizar o Caminho sem percalços de qualquer espécie.

Após todos do grupo se abraçarem e se cumprimentarem, solitário, adentrei a Catedral e, ali, naquele ambiente calmo e sereno, pude, enfim, agradecer a Deus pela vitória alcançada, mais um sonho realizado.

Mais tarde, num restaurante da cidade, houve um magnífico almoço de confraternização e, ao final deste, iniciaram-se as despedidas, eis que os peregrinos gaúchos retornariam para suas moradas naquele mesmo dia, privilegiados, radiantes de alegria, saíram todos num coletivo às 14 horas.

Eu parti mais tarde, já com saudades, segui num ônibus às 23 horas com destino a Porto Alegre, onde tomo um avião até São Paulo e, depois, outro ônibus para minha cidade onde aportei às 15 horas de domingo, uma maratona cansativa de dezesseis horas ininterruptas de viagem. 

Impressões Pessoais e Dicas

Monumento à Fundição de Ferro - S. João Batista

Impressões Pessoais

Diferentemente de uma peregrinação na qual se caminha em direção a um lugar santo ou de devoção, o Caminho das Missões é, na verdade, uma rota mística e cultural. Ele é comercializado por uma agência de viagem como pacote turístico que só se realiza se houver entre 10 e 14 pessoas compromissadas e, por preço previamente acertado, são responsáveis por todos pernoites e as refeições servidas durante a caminhada, além de destacar um guia especializado que acompanhará o grupo diuturnamente. 

É de bom tom alertar os peregrinos que demandarem esse Caminho que lá não encontrarão o conforto de suas residências, muito menos privacidade. Alguns locais utilizados para pernoite carecem de infra-estrutura mínima, como banheiros separados para homens e mulheres, camas ou beliches, evitando-se assim que se tenha contato diretamente com o chão frio sobre colchonetes de espessura extremamente fina, oferta de travesseiros em todos os pousos, bem como albergues, em alguns locais, arejados e desempoados com maior freqüência.

Por outro lado, podem contar com comida farta e da melhor qualidade, além disso irão provar do autêntico churrasco missioneiro e alimentos naturais altamente salutares, que repõem com folga, tudo aquilo que perdemos nas caminhadas, já que os percursos diários são quase sempre longos e desgastantes.

Catedral de Santo Ângelo

Algumas Dicas

1) Fui um aquinhoado pela sorte, pois durante todo período da caminhada o tempo se manteve estável, com temperaturas oscilando entre 10 e 24 graus. O terrível frio dos pampas não se fez presente, algo inusitado no Rio Grande do Sul para o mês de maio; também não choveu, sem dúvida uma graça providencial, eis que a terra vermelha que pavimenta as estradas percorridas, característica em toda a região missioneira, transforma-se em densa poeira na estiagem e em aderente lamaçal nos dias de chuva. Como lá, no verão, as temperaturas costumam ser elevadíssimas e o sol castiga inclemente, minha recomendação pessoal aos futuros peregrinos das Missões, é que esse Caminho seja trilhado preferencialmente entre os meses de abril e outubro, época de temperaturas mais amenas e de baixa precipitação pluviométrica.

2) O Caminho tem o piso composto de pedras pontiagudas e irregulares em quase toda a sua extensão, dificultando sobremaneira nossos passos. Minha recomendação é que, ao invés de tênis, se caminhe preferencialmente de botas como forma de evitar lesões e entorses e, se possível, prover o interior destas com uma palmilha de silicone, de forma a amenizar o impacto perfurante das pedras sobre o solado dos pés. 

3) O repelente é item imprescindível na mochila, já que em vários locais de pernoite a presença de pernilongos e de outros insetos é uma constante.

4) Um razoável preparo físico é muito recomendável, eis que as etapas a serem cumpridas são quase sempre longas e cansativas.

5) Por uma questão de princípio e condição física, carreguei minha mochila ao longo do trajeto, entretanto, é possível, mediante o pagamento de módicas taxas, contratar transporte para as mesmas. Portanto, é possível caminhar sem peso algum sobre os ombros, uma prática confortável e muito utilizada pelos componentes do nosso grupo.

Almoço de confraternização em Santo Ângelo

Finalizando

O Caminho das Missões poderia ser nominado como o “Caminho das Pedras” ou “O Caminho da Poeira Vermelha”, mas também poderia se chamar: “O Caminho da Fraternidade” ou “O Caminho do Amor ao Próximo”, tamanha solicitude, humildade e preocupação em nos agradar, eis o sentimento externado pelas pessoas que nos receberam em suas residências para almoço ou pernoite.

Muito mais que uma Rota de lazer e descontração, o Caminho das Missões, traz em sua concepção, um profundo legado de cultura e misticismo. Nele, caminhamos em estradas e trilhas por onde já passaram milhares de índios, desbravadores, invasores europeus, bandeirantes, catequizadores, tropeiros e tantos outros, que evocam em nosso espírito uma sensação de imponência, magnitude e irradiante energia. 

Depois de trilhar o Caminho de Santiago em 2001 e o Caminho do Sol em 2002, percorrer o Caminho das Missões agora em 2003 foi para mim uma emoção diferente, pois me proporcionou conhecer uma região do Rio Grande do Sul, que mesmo localizada longe do mar e das serras, mostra-se também pungente e forte, habitada pelo gaúcho missioneiro, povo alegre e trabalhador, extremamente preocupado em cultuar suas tradições e manter vivas suas características próprias.

Foi também uma lição de vida, porque pude compartilhar vários dias da amizade de pessoas especiais como o Gustavo Engel, a Dra. Vera (Brasília), o João de Canoas (Jonny Boy), a Vera (gaúcha), a Carmem, a Luíza, o Dr. Valderez, o Elísio (lobo-guará), a Ceres e demais componentes do grupo, aos quais agradeço pelos momentos inesquecíveis de convivência.

Por derradeiro, um agradecimento especial ao pessoal da Agência das Missões: MARTA, CLÁUDIO e ao excelente guia ROMALDO, pela extrema amabilidade e cortesia com que nos receberam e nos trataram.

    Sempre em frente, ou melhor, “JAHA NONDE” Á TODOS! 

 Maio/2003