4º dia – MUXÍA a FINISTERRA – 30 quilômetros

"Na proposta de caminhar o tempo não corre, o tempo caminha através dos pés dos caminhantes."

Acordei sob o fragor de raios e trovões às 5 h, e fiquei a matutar como seria a etapa daquele dia.

Eu pretendia sair bem cedo, no entanto, como a tormenta não dava trégua e o dia só amanheceria às 7 horas, resolvi aguardar esse horário, posto que no escuro eu teria dificuldades para encontrar a sinalização.

Desse modo, quando a chuva passou a ser uma leve garoa, bem protegido pela capa de chuva, dei início a minha derradeira jornada no Caminho.

Para tanto, segui à beira mar e logo, próximo a um supermercado, acessei à rodovia que segue em direção a Finisterra, a famosa CP-5201.

Apesar do horário, o dia se mantinha enfarruscado e transitando por um calçadão localizado à beira da “carretera”, podia ver que o mar estava agitado e nuvens escuras viajavam céleres pelo céu.

Eu me sentia um pouco inseguro, por isso, várias vezes, olhei a minha retaguarda na esperança de avistar algum peregrino iniciando seu caminho, pois uma companhia seria muito bem-vinda naquele tempestivo dia.

Para minha decepção não avistei vivalma, então, prossegui solitário em meu périplo.

Aliás, pensava que os caminhantes que haviam pernoitado em Muxía como eu, sairiam bem mais tarde, contudo, como narrarei mais adiante, encontrei alguns corajosos peregrinos à minha dianteira.

Bem, eu segui aproximadamente uns 3 quilômetros pela rodovia que nesse trecho ladeia a imponente e selvagem praia de Lourido.

Superado o desastre ocorrido com o navio Prestige, tentei não pensar no tremendo trauma provocado nessas imediações.

Tal infortúnio e seu posterior afundamento, ocorreu em 2002, e sua lama negra afetou 2000 quilômetros da costa espanhola e francesa.

Ele se acidentou em 13 de novembro de 2002, quando carregava 77.000 toneladas de petróleo, bem defronte à Costa da Morte, no noroeste da Espanha, e após vários dias de manobras para afastá-lo do litoral galego, acabou por afundar a uns 250 quilômetros dali.

Sua carga acabou por causar uma das maiores catástrofes ambientais da história da navegação, tanto que foram gastos 12 milhões de dólares para tentar revertê-la.

Seu acidente é considerado o terceiro mais custoso da história, atrás apenas da explosão da nave Challenger, pela desintegração da Colúmbia, e o acidente nuclear de Chernobil.

Segui pensando em arquivar definitivamente tais traumáticas lembranças e obtive sucesso. 

Dia chuvoso..

Porquanto, mais adiante, os sinais me remeteram à esquerda, para uma estrada de terra úmida e lisa, por onde prossegui com muito cuidado.

Na sequência, transitei pela minúscula aldeia de Xurarantes e ali acessei um espetacular caminho de terra, que seguiu sempre em forte ascenso. 

Muita neblina no entorno.

Desse local em diante, a sinalização se mostrou impecável e minhas dúvidas e temores desapareceram.

A me ladear, nesse agradável trecho, pés de pinheiros e eucaliptos.

Porém, a nebulosidade seguia forte e a garoa persistia interminável. 

Fui galgando sem maiores dificuldades as aclividades que se sucediam porque, como sempre afirmo, escalar uma montanha de manhã, sem sol e bem-disposto, é uma coisa.

A outra, é enfrentar um morro sob o sol ardente, depois de ter percorrido boa parte da jornada, quando o cansaço já se instalou no corpo do peregrino.

Assim, confiante e lépido, segui firme e fui vencendo sem maiores problemas os ascensos que se mostravam infinitos.

Contudo, depois de 23 dias caminhando, minhas pernas estavam fortes e eu nem sentia o peso da mochila.

O piso socado, sem pedras, também me auxiliava muito, pois nem via o chão correr sob meus pés. 

A concha apontando para baixo, uma tônica nessa etapa de mão dupla.

A sinalização prosseguiu impecável e, interessante ressaltar, que nessa etapa a concha peregrina se mantém apontada para baixo, pois o caminho é de mão dupla.

Então, cheguei ao Facho de Lourinho, situado a 269 m de altitude, o ponto culminante dessa etapa. 

Quase no topo...

Nesse local, antigamente, as pessoas acendiam fogueiras à noite, para avisar os navegantes sobre os perigos da Costa da Morte.

Atualmente, existem os faróis e essa prática há muito tempo caiu em desuso. 

Início de forte descenso.

Então, principiei a descender por um caminho belo e agradável.

A chuva dera uma trégua, e embora eu estivesse extremamente suado, o dia se mantinha fechado e, por segurança, preferi seguir com a capa no corpo. 

Logo acessei uma estrada vicinal asfaltada, por onde prossegui solitário, com ótima disposição física e espiritual. 

Caminho belíssimo.

A primavera se mostrava avançada na Galícia e muitas flores me ladeavam nesse trajeto.

Dez quilômetros percorridos, duas horas mais tarde, transitei por Morquintián, um minúsculo povoado onde havia uma pequena área de descanso.

Para minha surpresa, avistei 5 peregrinos lanchando, a quem cumprimentei e travei breve diálogo, pois eles falavam fluentemente minha língua.

Afinal, eram portugueses, que haviam iniciado sua peregrinação no Porto, onde residiam.

No dia seguinte, quando tomamos o ônibus de Finisterra em direção a Santiago, um deles se sentou ao meu lado e contou que todos pertenciam ao quadro da Polícia Civil Portuguesa.

Prosseguindo, o caminho se mostrou estupendo, pleno de verde no entorno. 

Caminho vazio e silencioso.

O trajeto foi mesclando asfalto com terra, mas quase sempre em descenso.

Outra vez, os silenciosos e hidratados bosques galegos foram minha companhia nesse trecho.

Eu curtia cada instante e, em determinados momentos, me sentia triste, porque eu estava vivenciando o 24º dia de peregrinação, o derradeiro de minha jornada pela Espanha.

Inevitável não fazer um retrospecto de tudo o que havia vivido pelo Caminho do Ebro, depois, no Caminho Francês.

E o Caminho de Finisterra se mostrava soberbo e eu que, em termos de Santiago, não gosto de repetir Rotas Jacobeias, já estava com saudades.

Quiçá, retorne a esse Caminho novamente, pois seu roteiro muito me encantou.

Em Guisamonte, outra pequena aldeia, creio eu, ocorreu um fato interessante. 

Muita umidade nesse trecho.

Eu atravessei o minúsculo “pueblo”, transpus uma estrada vicinal asfaltada, observei à sinalização e segui em frente confiante.

Repentinamente, ouvi um grito vindo de uma casa assobradada, localizada no lado direito do caminho dizendo: Você está errado!

Surpreso, avistei um senhor à janela me acenando e me mostrando o caminho correto.

Retornei, então, uns 10 metros e verifiquei que deveria ter dobrado à esquerda, e vi a flecha ali pintada que passara despercebida. 

Se não fosse o alerta recebido, certamente eu caminharia por um bom tempo, até perceber o engano.

Esse, em minha opinião, é o lugar mais vulnerável para peregrinos solitários de toda a travessia até Finisterra.

Encaixado novamente no trajeto correto, segui em frente agradecendo a Deus. 

Afinal, quem pensaria encontrar um “Anjo da Guarda” de plantão, num dia sombrio como aquele.

O roteiro prosseguiu soberbo, com flores e muito verde, um caminho realmente espetacular.

Efetivamente, havia muita umidade no entorno e muitos trechos se mostravam embarreados.

Nada traumático, pois o piso era praticamente todo plano e não oferecia dificuldade para a minha movimentação. 

Peregrinas polonesas.

Mais uns dois quilômetros percorridos, estupefato, avisei ao longe duas peregrinas caminhando a minha frente.

Quando as alcancei, acabei por reconhecê-las.

Tratavam-se de 2 jovens de nacionalidade polonesa, Alícia e Kate, com quem já tinha me comunicado desde a primeira etapa, visto que elas falavam o idioma inglês fluentemente. 

Com a Alícia, na ponte sobre o rio Castro.

Ultrapassamos o rio Castro, juntos e conversando, por uma moderna ponte, de construção recente.

Pelo que li, até o outono de 2010, a passagem nesse local era feita caminhando-se sobre blocos de cimento.

Mais duzentos metros percorridos, adentramos em Lires,

Ali, paramos num bar para carimbar nossas credenciais.

Por sinal, essa é a única cidade da etapa que oferece serviços aos peregrinos, pois além de dois bares, existem 1 pensão e 3 casas rurais.

Aproveitei a ocasião para desvestir minha capa de chuva, tomar café e descansar um pouco, pois o clima melhorara.

Como minhas companheiras, além de descansar, também pretendiam lanchar, segui em frente, depois de me despedir.

Catorze quilômetros me restavam de percurso e, como na primeira etapa, encontrei o trajeto muito bem sinalizado. 

Igreja de Santo Estevão, em Lires.

Logo na saída da localidade, passei diante da igreja de Santo Estevão, uma interessante edificação do século XVII, feita de pedras. 

Depois de caminhar por um fértil e plano vale, principiei a ascender por um caminho pedregoso e logo ultrapassei duas peregrinas que, pelo andar lento e em aquecimento, haviam partido de Lires naquele dia.

Então, transitei pela aldeia de Canosa e voltei a adentrar em silenciosos e intermináveis bosques. 

Quase sempre, orlado por pequenos muros de pedra e pés de eucaliptos, a tônica nesse roteiro.

Mais adiante, cruzei com um caminhante que vinha em sentido contrário, visto que havia pernoitado em Finisterre. 

Muito verde... sempre!

Depois dele, sucederam-se outros, mas não muitos. 

O mar, nesse local, muito próximo.

Eu esperava mais, posto que no dia em que pernoitei em Olveiroa, contei mais de 30 peregrinos e pouco mais de 10 seguiram, como eu, para Muxía.

Sem maiores problemas, passei por Padris, Castrexe e Buxán. 

Depois de Rial, enfrentei leve aclive e, depois de vencê-lo, pude avistar o mar muito próximo à minha direita.

O trajeto seguiu sempre bucólico e, em determinados trechos, arejado.

Imensa reta nesse trecho.

Também encontrei muitas flores nesse tramo, a maior parte delas, de cor amarela, típica da vegetação galega.

Sentia o caminho se desvanecendo, por isso curtia, à exaustão, esses derradeiros momentos. 

O roteiro seguiu fazendo grandes rodeios e, em determinados locais, fletia radicalmente para os lados, por isso seguia extremamente atento à sinalização, para não me perder. 

Piso empedrado..

Ainda, alterna asfalto e terra, porém é um autêntico prazer percorrê-lo, visto que além das estupendas paisagens, esse trecho é belíssimo e praticamente não oferece dificuldades em termos altimétricos. 

Flores e árvores, simbiose sem fim nessa etapa.

Nesse passo, transitei por San Salvador, Hermedesuxo de Baixo e Escaselas, todas aldeias minúsculas, com casas disseminadas ao lado de uma rodovia vicinal.

Mais à frente, agora definitivamente por asfalto e em área urbana, passei por San Martiño de Duio.

A igreja que ali avistei é do ano 1717, e foi edificada em estilo barroco.

O nome Duio remete à legendária cidade de Dugium, submergida pelas águas, e foi esse o lugar que os discípulos de Santiago visitaram para solicitar permissão para enterrar o Santo Apóstolo, segundo cita o Códice Calixtino, do século XII.

Dali me restavam 1.700 metros do meu destino final. 

Famoso cruzeiro de Baixar;

Poucos minutos depois, adentrei na zona urbana de Finisterra, percorrendo quase toda a localidade, até o cruzeiro de Baixar, localizado defronte à praia da Langosteira.

Prossegui pela rua paralela até o centro e, passando pelos Paços do Concelho e pelas ruas características do seu centro histórico.

Na cidade fiquei hospedado no Hostal Mariquito, onde paguei 25 Euros por um excelente quarto individual.

Depois fui almoçar no Restaurante O Pirata, onde o menu del dia saiu por 12 Euros.

Bem alimentado, de volta ao quarto, deitei para descansar. 

Monumento aos imigrantes galegos, em Fisterra.

Finisterra foi a última porção conhecida de terra habitável durante séculos e séculos para muitos.

Onde o sol sucumbia ao ocaso e desaparecia nas escuras águas do Atlântico, num tenebroso cenário, um lugar ideal para o aparecimento de criaturas fantásticas e monstruosas.

Foi povoada por tribos celtas, como os nérios, que adoravam em seus altares ao deus sol, e também por romanos.

Até aqui chegou o general Décimo Junio Bruto e seu exército, quando conquistaram o que seria a futura Galícia.

Em Duio, um dos distritos do município, há vestígios da legendária cidade de Dugium que, ao que parece, foi sepultada debaixo das águas.

Ela é citada no livro III do Codex Calixtinus, que narra o translado do corpo de Santiago, quando seus discípulos visitaram o prefeito de Duio e este ordenou sua prisão, mas eles conseguiram fugir. 

Finisterra é, agora mais que nunca, e desde sempre, lugar de viagens e peregrinações.

Já no século XII, há documentos que citam a chegada de peregrinos a este confim apartado e são vários os viajantes que nos séculos XIV, XV y XVI relatam suas experiências pessoais até “Finis Terrae”.

O atual município tem 5.000 habitantes e está formado por um núcleo principal e os distritos de San Vicenzo de Duio, San Martiño de Duio e San Xoán de Sardiñeiro.

A cidade é um claro expoente de vila marinheira, com seu porto, marinas, embarcações de pesca, cais e um traçado urbano povoado de casas de pedras, dispostas em ruas estreitas.

Uma de suas mais emblemáticas igrejas é a de Santa Maria de Áreas, localizada junto à rodovia que segue em direção ao farol.

Sua origem remonta ao século XII e ela alberga a tala gótica do Cristo de Finisterra, uma imagem envolta em lendas.

Esse templo possui Porta Santa e uma estátua de Santiago Peregrino, do século XVII. 

Minha Finisterrana.

À tarde, dei um giro pela pequena vila, depois fui até o Albergue Municipal de Peregrinos, onde recebi minha Finisterrana, mais um diploma que guardo com muito carinho.

No dia seguinte, levantei bem cedo, e me dirigi ao Farol do Cabo, local onde se encontra o “monjón” que assinala o “Marco Zero”.

Na verdade, os romanos pensavam que este era o ponto mais ocidental do mundo conhecido.

Porém, sem dúvida, o Cabo da Roca, em Portugal, se encontra mais a oeste.

O farol ali existente foi construído em 1853 e sua torre mede 17 metros.

A luz por ele emitida, situado a 143 metros sobre do nível do mar, alcança mais de 30 milhas náuticas.

Ele foi um cenário, por excelência, de inúmeros naufrágios, como o do ano 1870, quando um barco com 482 pessoas afundou, convertendo-se no mais triste evento ocorrido nesse litoral, também conhecido como Costa da Morte. 

Em Finisterra...

Ali pude fazer fotos e, definitivamente, dizer adeus ao Caminho. 

Marco zero do Caminho... Ponto final de minha "viagem"...

Avistei apenas um peregrino nas imediações e nem pensei em queimar alguma peça de roupa do vestuário que utilizara na “viagem”, pois fazia muito frio e ventava forte. 

Na sequência, tomei um ônibus e retornei a Santiago de Compostela.

No dia seguinte assisti à Missa dos Peregrinos na Catedral Compostelana, e à noite embarquei de volta ao Brasil.