Caminho da Luz

2006 - O Caminho da Luz, a pé, em 7 etapas

PREFÁCIO

Movido pela curiosidade e com o propósito de conhecer um pedaço do nosso fabuloso Brasil ainda inédito para mim, desloquei-me até o leste do estado de Minas Gerais, mais precisamente, em sua Zona da Mata, com a intenção de trilhar o Caminho da Luz, experiência indelével e gratificante que pretendo dividir com os amigos, através de uma explanação sucinta e fiel de minha aventura, norteada por breve avaliação pessoal sobre cada etapa percorrida.

A VIAGEM

Minha odisseia iniciou-se num sábado à tarde, final de abril/2006. Antes de partir, recebi abraços familiares, recomendações cercadas de carinho e votos de boa sorte. 

Esse gesto continha um significado especial porque, ao despedir, desligava-me das preocupações cotidianas, como o trânsito opressor, a violência do dia-a-dia, a poluição insidiosa, os compromissos rotineiros.

Ao depositar minha mochila no bagageiro da condução que me transportaria até a rodoviária, acorreu-me uma sensação de estar viajando em direção a outro mundo. Este, bem mais calmo e acolhedor. 

Afinal, durante oito dias teria por companhia, apenas, pássaros, montanhas, rios, florestas. Enfim, a natureza em todo o seu esplendor. Além do sol, da lua, das estrelas. E, principalmente, poderia estreitar laços e angariar conhecimentos com o povo simples e hospitaleiro que encontraria ao longo da Rota.

Confiante, embarquei num ônibus em Campinas com destino à São Paulo. Ali, após breve traslado, adentrei em outro veículo similar, desta vez com destino à Carangola/MG.

O confortável “Waybus” da Viação Itapemirim, deixou a capital paulista, pontualmente, às 19 h 05 min. Após pausas intermediárias a cada 3 horas, respectivamente, em Queluz/SP, Paraíba do Sul/RJ, e Muriaé/MG, aportei ao meu destino, passadas doze horas de viagem, exatamente, às 7 h da manhã do domingo.

Exausto e faminto procurei um táxi para seguir em frente, todavia, o custo da “corrida” (R$35,00), me fez desistir dessa ideia. Conformado, pacientemente esperei até às 9 h por um ônibus que, quarenta minutos depois, e por um preço mais acessível (R$3,90), levou-me à Tombos, ponto de partida do Caminho da Luz.

Ao desembarcar, imediatamente, dirigi-me ao Colonial Hotel, onde havia feito reserva. Depois de um relaxante banho, fui até o centenário Hotel Serpa para fazer minha inscrição no Caminho da Luz. Findas as providências de praxe, ganhei da Rogéria, a simpática representante da ABRALUZ naquela localidade, um excelente cajado de bambu, que seria meu leal e inseparável escudeiro na aventura que iria empreender.

Com os entraves burocráticos superados, saí para passear na simpática cidadezinha que, em 2002, completou 150 anos de fundação. A sua emancipação de Carangola, todavia, somente ocorreu em 1.923.  Está situada a 4 quilômetros da divisa com o estado do Rio de Janeiro e conta atualmente com 12.000 habitantes.

À tarde, após lauto almoço e rápido descanso, retornei para conhecer as principais atrações da cidade: a Cachoeira de Tombos, que abriga uma das primeiras hidroelétricas do estado de Minas Gerais, a Igreja Matriz dedicada a Nossa Senhora da Imaculada Conceição, o prédio da Antiga Estação Ferroviária onde hoje se encontra instalada a Estação Rodoviária, o Museu Municipal, a Ponte Niterói e o Balneário do Grilo.

À noite, fiz minha refeição numa “Pizzaria” localizada na área central da cidade. No retorno ao hotel constatei com satisfação, que o céu achava-se integralmente salpicado de estrelas, o que muito me tranqüilizou, pois, no mínimo, indicativo de amanhecer ensolarado.

Deitei-me por volta das 21 h, rememorando pequeno trecho da crônica “A Estrada”, em cujas palavras busquei incentivo à minha iminente partida:

“Um palácio é bonito, um arranha-céu é imponente, mas uma estrada é viva. Por isso, das construções do homem, talvez seja a estrada a que mais lhe fale ao coração, lhe sugira com aproximação maior o transitório, o inquieto, o rápido da vida. A estrada é o rio sem água – quem desce nele são os viventes. A estrada é o longe e o perto, a presença da distância, o convite à caminhada, à aventura, à fuga. A estrada leva e traz, a estrada anda, vive e participa também”.  (Rachel de Queiroz). 

E, face às digressões que vicejaram por conta do texto sobredito, o sono tardou a chegar.

1º dia: TOMBOS à CATUNÉ – 25 quilômetros

 Lá fora ainda estava escuro quando ingeri rápido desjejum no refeitório do Hotel e, com a mochila nas costas, pronto para a aventura, segui à esquerda até a base da Cachoeira de Tombos. Cumprindo a tradição, externei ali preces e pedi proteção para minha jornada.

Depois, confiante e animado, exatamente, às 6 h, iniciei minha “viagem”. Retornei, então, em direção à cidade, caminhando pela beira do rio até atingir pequena ponte calçada. Ali, virei à esquerda e, seguindo as flechas amarelas, após percorrer algumas quadras, deixei a urbe, deserta e silenciosa, àquela hora, e adentrei numa estrada de terra, larga e plana, em direção à zona rural.

O reencontro com a trilha produziu um efeito mágico em mim. Havia uma mistura de prazer e expectativa, aliada à sensação de estar realizando mais um sonho.

Uma impenetrável massa de ar branco cobria toda a paisagem. Por conta disso, o clima afigurava-se úmido e fresco, favorecendo a introspecção. Todavia, relembrei apropriado adágio popular que conheço desde a mocidade: “Se, cerração no raiar, ao meio-dia, sol de rachar!” Assim, apressei minhas passadas.

O percurso inicial todo plano, traçado sobre a estrada que vai até o município de Pedra Dourada, propiciou-me uma caminhada serena e agradável. Estava tão compenetrado em minhas intelecções, que quase não vejo a flecha fincada no alto de uma árvore, orientando entrar pela esquerda, numa bifurcação na altura do quilômetro 4.

Pouco depois, às 7 h 30 min, no quilômetro 8, atingi o portal da centenária Fazenda Oliveira, cuja fundação data de 1.845.  O casarão me chamou a atenção por seu estilo e dimensões. É um prédio bastante grande, de dois pavimentos bem edificados. Magnificente, embora um tanto desgastado pelo tempo, impressiona pelo tamanho e quantidade de janelas, cuja maioria, infelizmente, encontra-se deteriorada e sem vidros.

 Até aquele local, cruzei com alguns automóveis e, também, com algumas pessoas a cavalo que, como a ironizar a comemoração daquela data, dirigiam-se à vila para curtir, folgadamente, o “Dia do Trabalho”.

Prosseguindo, mais um quilômetro à frente, observando sempre a sinalização, fleti bruscamente à esquerda, após ultrapassar um grande silo cilíndrico, edificado junto a uma fazenda de gado vacum. 

A partir dali o trajeto tornou-se um tanto inóspito e a trilha bastante deserta e matosa, atravessa pelo Vale do Sossego, entre montanhas, rodeado por imensos campos verdejantes, duma beleza idílica, onde as pastagens eram fartas e o gado bovino abundante.

Porquanto, da aridez da estrada por onde eu caminhava, numa transição brusca, passei a circundar belíssima pradaria, onde o capim de pouca mais parecia um tapete de veludo esmeraldino. Lindos coqueiros agrupados ao longe, expostos ao vento, assemelhavam-se a cabeleiras de gigantes. 

Entretanto, o mato alto da senda deixava-me inseguro e vagaroso, pois a vegetação poderia ocultar um buraco, uma pedra ou algum réptil venenoso, em tocaia. Um “incidente” ali, seria suficiente para colocar minha aventura em risco. Mais ainda, sabendo que me movia por um agreste local, desabitado e sem recursos. Todo cuidado era pouco.

Três milhas depois, adentrei à Mata do Banco, um grande capão de floresta, integralmente preservado. A mata atlântica exibe ali, orgulhosa em seu estado original. O ambiente era fantástico e o oxigênio inspirado escaldava nos pulmões, tamanha sua concentração e pureza.

Caminhei, então, por bom tempo, em meio a enormes árvores, onde uma grande paz adormentava o ambiente, cujo silêncio era quebrado, de quando em quando, pelo piar dos pássaros que ali habitam. Uma borboleta azul, daquelas gigantes, voando à minha frente como se estivesse me guiando pelo caminho.

Alguns raios de sol perpassavam com dificuldades por entre as frestas das copas das árvores, formando ilhas de luz sobre as sombras que cobriam o chão. Nele, em vasta extensão, uma correição de formigas se movia assanhada.

Um quilômetro à frente, ao deixar o boscoso trecho, numa casinha simples, construída à beira do Caminho, encontrei Dona Francisca, que ali reside. Travei conversa com ela, que recebe todo caminhante com extrema simpatia. 

Ralhou com seus quatro cachorros vira-latas que latiam incessantemente devido à minha presença. Depois de me acolher, ofereceu água e algumas laranjas, as quais sorvi deliciado.

Conversamos um pouco, ela me apresentou alguns de seus netos, que, naquele dia, não iriam à escola, por conta do feriado. Ao sair, me despedi e revigorado segui por uma estrada ascendente, em meio a enormes fazendas de gado leiteiro. 

Às 9 h 30 min, já no quilômetro 14, no portal da Fazenda do Banco, parei para conversar com algumas crianças que residiam num casebre próximo. A mais velha, de nome Fabrícia, contou-me que estudava juntamente com os outros cinco irmãos, na Escola Estadual Antonio Martins de Barros, uma rústica construção que eu ultrapassara um quilômetro atrás.

O sol forte principiava a incomodar, quando no quilômetro 15, acessei uma bela trilha ladeada por montanhas, em meio a muito verde, tendo um riozinho encachoeirado à minha direita. Um caboclo mourejava numa roça de feijão próximo dali. Trocamos algumas palavras e ele confessou-se ansioso por uma mudança de clima, já que não chovia naquela região há mais de mês.

Cinco quilômetros adiante, às 11 h, logo depois de ultrapassar a fazenda do Sr. Maurício Fumian, atingi o quilômetro 20, onde a trilha se abre em dois ramais. À direita, por uma estrada larga de terra batida, seguem os ciclistas e os automóveis.

Os que vão á pé, como eu, tomam à esquerda, percorrendo a via original da trilha, iniciando a subida pela centenária rota de romaria. 

Duzentos metros à frente, ultrapassa-se um pequena porteira, e o caminho segue em meio a um pasto, num aclive abrupto e irregular.

A subida é contínua e, em face do adiantado da hora e do sol flamejante, sentia, a cada passo minhas forças sendo implacavelmente minadas. Depois de percorrer 3 quilômetros ladeira acima, aportei à Gruta da Pedra Santa, local de grande mistério não só para a ciência, como, também, para os religiosos, em razão dos fenômenos inexplicáveis que ali ocorrem. 

Fiz breve visita ao interior daquele ambiente impregnado de misticismo e aproveitei para exteriorizar minhas orações junto à imagem de Nossa Senhora de Lourdes, padroeira dessa lapa.

Continuei, então, em frente, sempre em perene ascensão. O sol quase no zênite, dardejava raios de fogo e, apesar dos óculos escuros, sentia meus olhos arderem. A violenta desidratação motivada pelo suor causava-me sede e certo mal-estar.

Finalmente, por volta das 12 h, adentrei ao distrito de Catuné, cuja sede é Tombos. A povoação está situada a 580 metros de altitude, e conta com aproximadamente 1.000 habitantes. Possui algumas ruas calçadas com paralelepípedos, sendo a população composta basicamente de trabalhadores rurais, que recebem de forma simpática e cortês os peregrinos da Luz.

No local, não existem pensões ou hotéis, desse modo fiquei hospedado na casa de Dona Neuza, que possui ampla residência, com um grande porão, onde é possível acomodar, com relativo conforto, em torno de 15 pessoas.

Quando coloquei no chão minha mochila, na porta do quarto que me coube, senti estranha sensação de desequilíbrio. A estabilidade veio em seguida, depois que me lembrei de que caminhar com ela nas costas, por várias horas, altera o nosso centro de gravidade.

Ali, por módico preço, fiz minhas refeições, por sinal, preparadas com muito esmero e carinho pela minha hospedeira. 

À tarde, fui com Dona Neuza visitar a igrejinha da vila, cujo padroeiro é Santo Antonio. Gentilmente, ela que ajuda a administrar o templo, buscou as chaves na casa paroquial e abriu as portas da capela.

Ao adentrar a ermida, a brancura de seu interior clareou minha alma e avivou minha fé. Ajoelhei-me diante do altar secular e agradeci por estar ali, sem maiores percalços. 

Refleti, a imaginar quantos peregrinos me precederam, repletos de sonhos e esperanças. Talvez, muitos tenham repetido o mesmo cerimonial naquele lugar. Mais tarde, ao deixar aquele ambiente sacro, sentia-me mais leve e, surpreendentemente, revigorado não só espiritualmente, mas, também, fisicamente.

Depois de um dia estafante, o sono reparador chegou pontualmente às 21 h, logo depois que me recolhi.

AVALIAÇÃO PESSOAL: Essa etapa é muito tranquila, quase toda plana, com trânsito por locais ermos e de incomum beleza até o quilômetro 20. Todavia, a partir desse marco, exatamente quando o caminhante já se encontra exaurido pelo longo trecho vencido, com o sol praticamente em seu apogeu, inicia-se a parte mais difícil da jornada, com a ascensão por uma trilha rude e de difícil progresso em direção à Gruta da Pedra Santa. Uma sugestão interessante seria fazer uma pausa e prover-se de água, na bifurcação do caminho, exatamente na casa do Sr. Maurílio Fumian que, segundo as informações disponíveis, atende com simpatia e presteza todos os caminhantes da Luz.


2º dia: CATUNÉ à PEDRA DOURADA – 23 quilômetros

Levantei-me às 5 h e, enquanto me “paramentava”, revolvia mentalmente a etapa cumprida na véspera. Porquanto, o mais difícil em qualquer projeto é iniciá-lo, e isso já estava superado. Sob os auspícios divinos, a primeira jornada fora cumprida a contento. E o descanso noturno me restaurara completamente. 

Alegre e descontraído, subi as escadas para ingerir delicioso desjejum na cozinha da casa de Dona Neuza.  É de se enaltecer o café servido pela anfitriã, de sabor inigualável, vez que plantado, colhido, torrado e moído em terras de sua propriedade, situada nas cercanias da vila.

Iniciava-se, naquele período, a colheita desse fruto, de forma que a cidadezinha se apresentava bastante movimentada quando parti às 5 h 30 min. Trânsito intenso, também, de ônibus e caminhões, meio de transporte utilizado para condução dos trabalhadores rurais, rumo às fazendas da região.

Principiei a jornada em boa cadência, para aproveitar o frescor da manhã. No lusco-fusco da madrugada, ouvi trovejar ao longe. O tempo tenderia a mudar, pensei?

Segui, inicialmente, por uma estrada larga de terra batida, em meio a enormes cafezais, por 30 minutos. Daí, cheguei ao Balneário da Comunidade de Igrejinha, onde estaquei para fotos, face à peculiaridade harmoniosa do local.

Ali, a barra avermelhada do nascente servia de fundo às maravilhosas silhuetas de frondentes árvores que, garbosas, estendiam seus longos “braços” para o céu.

Meia hora mais tarde, obedecendo às flechas, deixei a via principal e adentrei à esquerda, seguindo por uma estradinha pouco movimentada até a entrada da Fazenda Monte Livre. A partir dali, inicia-se perene e contínua subida.

No meio da encosta, encontrei-me com o Sr. Sebastião Camilo, morador das redondezas, que descia empurrando uma carriola em direção à sua roça, pois, conforme me contou, precisava encerrar a colheita do milho que havia plantado. Curioso, perguntou sobre minhas intenções, procedência e trabalho. Depois de uma conversa rápida, nos despedimos e cada um seguiu seu destino.

Prossegui avante, sempre em franca e incessante ascensão até o topo do “Alto do Lombo do Burro”. Daquele local, a vista é deslumbrante. À frente, situado numa grande depressão, e em meio a enormes montanhas, pude vislumbrar o Vale do Silêncio, uma das visões de maior magnitude em todo o Caminho. 

A descida é feita por uma trilha matosa e em declive brusco e acentuado, até atingir no quilômetro 10 o distrito de Água Santa, tradicional reduto da família Lazaroni, local que também pertence a Tombos. 

Ali deixei minha mochila sob os cuidados de um residente, Sr. Adão, e subi abrupta rampa até o Santuário da Água Santa para beber da água milagrosa que jorra de dentro da pedra. São 4 quilômetros de caminhada, somando-se ida e volta e, dizem, o manancial que ali brota, possui extensas propriedades curativas.

Após despedir-me do povo local, mochila novamente afivelada, prossegui em aclive acentuado até atingir no quilômetro 15, o Alto da Jacutinga, localizado a 1.058 metros de altitude. A partir dali, inicia-se grande descida que termina junto à entrada para a Cachoeira Dourada, no quilômetro 17. 

Nunca é demais enfatizar que as declividades são tão difíceis quanto às subidas, porquanto, nelas passamos a trabalhar com diferentes músculos, num exercício invertido, agora para frear o corpo. E isso pode causar grande desconforto.

Mas, o local próximo à cachoeira é de parasidíaca beleza, com a torrente impetuosa escorrendo em grande velocidade pelas pedras. Para amenizar o calor reinante àquela hora, fiz uso da ducha instalada junto ao pé da cascata, cujas águas frígidas concorreram para reavivar meu ânimo.

Depois, segui por uma larga estrada de terra por mais 2 quilômetros até atingir, por volta das 12 h, a pequena e graciosa cidade de Pedra Dourada, que está encravada numa depressão, tendo ao fundo duas grandes montanhas.

Conta atualmente com 1.700 habitantes, e sua emancipação deu-se em 1.962. Inicialmente denominada São João da Soca, teve seu nome modificado em homenagem à inusitada reflexão dos raios solares numa gigantesca pedra situada próxima dali, a 1.200 metros de altitude, atração turística devido sua invulgar conformação. 

Ali, fiquei hospedado na Pensão de Dona Ana, que mora em humilde casa, porém, construiu nos fundos de sua residência um grande prédio de três andares, com 20 confortáveis quartos. Nesse local, abriga, tranqüilamente, mais de 60 pessoas. As refeições são servidas na acanhada sala de estar, no entanto, o calor humano que desfrutamos supera, em muito, a simplicidade do lugar.

Um fato curioso ocorreu comigo naquele dia. 

Após, demorado banho, desci para almoçar. 

Minha sede era tamanha, que bebi, sem interrupção, metade de uma garrafa de cerveja gelada. 

Minha secura ainda era grande, de forma que após mordiscar a salada, emborquei o restante do líquido.

Produziu-se, então, curioso fenômeno, deixando-me verdadeiramente alarmado, pois, comecei a transpirar tão copiosamente, que o suor me escorria pelo rosto tombando sobre o prato a cada vez que sobre ele me curvava. 

Via as gotas surgirem dos poros e rorejarem, como se estivesse num banho de vapor. 

Em poucos minutos, minha camiseta estava inteiramente encharcada.

Muito a contragosto, abandonei o apetitoso repasto e regressei ao meu quarto para tomar novo banho. Que se prolongou até a crise cessar. Somente depois de 30 minutos é que pude, enfim, retornar para concluir minha saborosa refeição.

Dona Ana foi, talvez, a pessoa mais emblemática que conheci ao longo do Caminho da Luz. De estatura meã, corpulência retaca, pernas arqueadas, movimenta-se com dificuldade face à artrose que lhe macerou as cartilagens dos joelhos. 

Todavia, privilegiada por uma personalidade benfazeja e otimista, é dotada de temperamento conciliador, inabalável fé e extraordinária energia, mesmo após 77 anos de uma vida, permeada por decepções e infortúnios

Uma imagem que guardo indelevelmente daquela tarde é a da abóbada celeste na hora do crepúsculo, com inúmeros raios de luz descaindo através de diáfanas nuvens lilases e rosadas, por trás dos morros. Na verdade era um céu milagroso, como só Deus poderia ter criado.

AVALIAÇÃO PESSOAL: Importante comentar que nessa etapa, o trajeto entre as duas localidades conta, somente, com 19.250 metros. Estes poderão ser acrescidos de mais 4 quilômetros se, como eu fiz, o caminhante se dispuser a visitar o Santuário de Água Santa, situado fora da rota demarcada. No global, um percurso bastante interessante, com médio grau de dificuldade, mormente se levarmos em conta os 4 quilômetros vencidos, sempre em ascensão, até ao “Alto do Lombo do Burro”. Além do que, a vista esplendorosa do “Vale do Silêncio” compensa qualquer sacrifício. Para se resumir, são, na verdade, duas grandes elevações a serem sobrepujadas, sendo que a da Jacutinga é mais acentuada, porém, de menor extensão. Um percurso de, também, grandes declives e, praticamente, desprovido de sombras. 

3º dia: PEDRA DOURADA à FARIA LEMOS – 23 quilômetros

Levantei-me às 4 h e 30 min e, pontualmente, às 5 h da manhã, na cozinha da pensão, ingeri o café com bolo que as “secretárias” de minha anfitriã, gentilmente, haviam preparado na véspera. 

Cumprindo salutar tradição, Dona Ana levantou-se também naquele horário para abençoar-me antes da partida. Foi uma cerimônia tocante e inesquecível, mormente porque no meu caso específico, fui agraciado pelo cântico do Salmo 121, aquele que fala da “segurança do protegido de Deus”:

“Levantei os meus olhos aos montes donde me virá o socorro.

   O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra.

   Não permita que vacile o teu pé, nem dormite aquele que te guarda. Eis que não adormecerá nem dormirá o que guarda a Israel.

   O Senhor está em tua guarda, o Senhor é a tua proteção, ele está à tua mão direita.

   De dia o sol não te queimará, nem a lua de noite.

   O Senhor te guarda de todo o mal; guarde a tua alma o Senhor.

   O Senhor guarde a tua entrada e a tua saída, desde agora e, para sempre.””

Em verdade, sua benção é mesmo uma melopeia, uma toada doce, uma declamação agradável aos nossos ouvidos. Isto porque, os versos são cantados com fervor e objetivam augurar proteção divina ao peregrino que segue adiante. 

Ao partir, ainda emocionado pelo seu gesto carinhoso, Dona Ana fez questão de caminhar ao meu lado até a esquina onde está situada a Igreja da seita Maranata, religião da qual é devota e assídua frequentadora. No trajeto aproveitou para contar mais sobre sua vida pessoal, além de me dar conselhos para a jornada daquele dia.

Após comovente despedida, segui em frente rumo a uma enorme montanha batizada de Pedra Dourada, cujo formato é semelhante ao da Pedra da Gávea (RJ). Aliás, diz a lenda que nela reside a Mãe de Ouro, entidade fantástica que vive num palácio submerso, mas, passeia, luminosa, pelos ares. A luz sempre foi vista pelos habitantes do lugar a refletir no grande maciço, mais intensamente, nas madrugadas de lua nova.

Depois de percorrer 3 quilômetros em lenta ascensão por uma estrada larga de terra batida, com a Pedra à minha esquerda, ultrapassei a Fazenda Floresta. Passei, então, a caminhar entre vastas plantações de café. 

Mais à frente, numa curva, encontrei com uma senhora em trajes de caminhante urbana, “colant” e tênis, que vinha acompanhada por uma espalhafatosa cachorrinha da raça Basset. Simpática e comunicativa, apresentou-se como Sra. Inês, residente em Carangola. Contou-me que estava coordenando a colheita do café em fazenda de sua propriedade, localizada próxima dali e, diariamente, aproveitava aquele horário para um saudável passeio matutino. 

Conversamos por uns 15 minutos, e ela me revelou que em princípio estivera apreensiva ao saber que o roteiro do Caminho da Luz, contemplaria aquela via vicinal, imaginando o perigo que representaria aos moradores locais os estranhos que por ali transitariam.

Mas, agora, transcorridos cinco anos de sua implementação, pode notar a índole pacífica e amiga dos caminhantes que por ali passam. Confessou-me sua admiração pelo Sr. Albino, posto que, sua visão e coragem, permitiram com que o progresso e a fama chegassem àquele imenso rincão desconhecido. 

Despedimos-nos como se já nos conhecêssemos há tempos e, logo à frente, no quilômetro 6, numa bifurcação, atento às marcações, segui à esquerda, tendo, então, a me acompanhar pelo lado direito um riacho murmurante.

No quilômetro 8, sob uma grande e frondosa árvore, pude contemplar à esquerda, a famosa Pedra do Lagarto, onde, segundo a lenda, o Velho Xamã, durante o século XIX, entoava cânticos de louvor à natureza, o que, dizem, produziu ali grande concentração energética.

O percurso seguiu sempre plano e agradável até a Fazenda Boa Vista, situada no quilômetro 10. Ali, um grande barulho intermitente chamou minha atenção. Na verdade, explicou-me um funcionário com quem conversei, se tratava de um moderno compressor, sendo que, seu funcionamento ininterrupto, servia para refrigerar e garantir a conservação do leite ali ordenhado.  Logo à frente, numa bifurcação, segui à direita e, pouco depois, à esquerda, onde pude observar extasiado, fruto da torrente que desce do Cafarnaum, a belíssima Cachoeira Surpresa, que encanta vivamente o expectador pela abundância e limpidez de suas águas.O percurso a partir dali, mostrou-se realmente belo, com o rio São Mateus encachoeirado em vários trechos pelo lado esquerdo do caminho, e magníficas montanhas, integralmente tomadas por cafezais, à minha direita. Sem dúvida, foi um dos segmentos mais empolgantes que vivenciei em toda a extensão do Caminho.Mais à frente, deixando a beira do caudal líquido, ao dobrar à direita, sobrepujei breve, contudo, inclinada ladeira. No topo da elevação, sob uma frondosa árvore centenária, pude contemplar uma vista espetacular, cuja abrangência circundava 360 graus. 

A partir dali, primeiramente por entre as árvores, depois em meio a grandes fazendas de criação de gado, iniciou-se uma desabalada descida que se estendeu por uns 3 quilômetros.

No quilômetro 20 ultrapassei uma fábrica de ração, cujas instalações fazem parte do complexo da Fazenda São José da Fortaleza. A enorme propriedade, com mais de 1.200 alqueires de extensão, pertence a conhecido empresário, dono de renomada fábrica de tinturas para cabelos.

Após passar em frente ao Laticínio Cortez, localizado no quilômetro 22, transpus a rodovia MG 111 que liga Tombos à Carangola e prossegui por uma estradinha asfaltada, caminhando ainda mais 4 quilômetros, até meu destino final. 

Por sorte, o sol forte e o calor opressivo foram logo abrandados, vez que a estrada é ladeada, em quase todo seu percurso, por frondosas árvores, que oferecem acolhedoras sombras. Infelizmente, contrariando a expectativa, o tráfego de veículos era intenso, colocando em risco minha integridade física, já que todos, sem exceção, desenvolviam expressiva velocidade. 

Um fato inusitado a se ressaltar nesses derradeiros quilômetros. Trata-se de enormes placas colocadas na margem direita do caminho, a cada 300 metros, as quais são patrocinadas por comerciantes locais. Nelas se vê insculpidos, em ordem decrescente, cada um dos 10 mandamentos da nossa Bíblia Sagrada.  

Aportei à urbe por volta das 12 h, e fiquei hospedado no Hotel Ventura, que oferece o conforto necessário nos apartamentos que disponibiliza aos viajantes. 

Faria Lemos é cidade plana, arborizada, agradável. Está localizada na zona da mata mineira. Anteriormente denominada São Mateus, emancipou-se em 1953, sendo rebatizada em homenagem ao engenheiro que construiu a estrada de ferro local. Conta atualmente com 3.600 habitantes.

Fiz minhas refeições no Restaurante “Feijão Sem Bicho”, onde recebi atenção especial do seu proprietário, o Sr. Derli.

Depois do almoço saí dar uma volta pela cidade. Surpreendeu-me sua praça central, uma das mais bonitas e simpáticas que já vi em toda minha vida. Muitas árvores, jardins, bancos, quadras esportivas. Além de um belo chafariz.

Em sua volta, as casa parecem sair de um sonho, algumas emolduradas por um banquinho na porta, lugar propício para uma conversa amiga nos fins de tarde. Identifica-se, com aquela paz incomensurável de cidade do interior.

Por volta das 16 h o clima modificou-se. Eu retornava ao hotel, quando o primeiro ribombo da trovoada estrondeou sobre o rio, próximo dali. Raios riscaram perigosamente o firmamento, incitando-me acelerar os passos. 

Logo em seguida, o temporal abateu-se com fúria. Durou, 30 minutos, se tanto, o tremendo dilúvio. Entretanto, o céu permaneceu escuro e fechado, concorrendo para que a noite chegasse mais cedo.

Por via das dúvidas, face à instabilidade reinante, resolvi providenciar meu jantar com mantimentos que adquiri no supermercado localizado providencialmente sob o hotel. Sendo que ambos os estabelecimentos comerciais pertencem à mesma família.

AVALIAÇÃO PESSOAL: Uma etapa bastante interessante e repleta de belezas naturais, coroadas pela imponente cachoeira Surpresa. Em todo o percurso, praticamente, duas subidas “de peso”, uma logo na saída, e outra no quilômetro 15, ambas de pequena extensão. A dificuldade maior fica no trecho final, todo ele trilhado em asfalto, piso inadequado para aqueles que utilizam botas, como em meu caso. Enfim, vale salientar a extrema perfeição do trecho entre os quilômetros 11 e 15 dessa etapa, em que o rio São Mateus corre à nossa esquerda, para mim, um dos momentos mais tocantes de todo o caminho. 

4º dia: FARIA LEMOS à CARANGOLA – 25 quilômetros

Graças à providencial ajuda da Sra. Tininha, proprietária do Hotel, que preparou o café da manhã às 5 h, pude partir meia hora depois, ainda no escuro. 

Alguns “rurais” madrugadores já aguardavam condução numa esquina, sob uma grande árvore.  Depois que passei, trechos de seus murmúrios persistiam em flutuar até a mim. Soava estranho, pensei, como as pessoas sempre falam em voz baixa na escuridão que antecede o alvorecer.

O primeiro quilômetro foi vencido em área urbana, sob piso empedrado, e quando deixei a cidade e segui por uma estrada de terra larga e batida, já principiava a clarear. 

A brisa picante da madrugada bafejou-me o rosto. Galos cantavam ao longe. Havia no campo um silêncio leve e úmido, um certo ar de expectativa, como se toda a terra estivesse se preparando para o mistério do amanhecer. Eram em momentos como esse, que eu sentia com maior lucidez a “mão” intensa do Criador.

Notei, consternado, um cão que vinha trotando atrás de mim, o ar timidamente inquisitivo e pateticamente súplice de quem anda em busca de um dono, um amigo. Mesmo com o coração apertado, precisei dissuadi-lo de sua intenção, primeiramente, com palavras, depois, ante sua insistência, com pedras. Pois, não teria condições de fornecer-lhe guarida até meu destino final.  

O percurso plano propiciou um ritmo uniforme e às 6 h, na Fazenda Boa Esperança, quilômetro 2, fiz uma pausa para admirar a sua sede, um imponente casarão datado do século XIX, que nos seus primórdios serviu de vivenda ao sanguinário Coronel Novaes. A edificação, toda forjada em taipa corrida, foi esmeradamente restaurada, cuidando-se de manter suas características originais. 

Logo à frente, após atravessar pequena ponte, a estrada se bifurcou. Como não havia flechas indicativas no local, estaquei em dúvida para qual lado seguir. Salvou-me da indecisão um morador local que transitava numa bicicleta. Afirmou-me, cortesmente, que o correto era seguir à direita, beirando o rio, por onde prossegui, após agradecer-lhe a informação. 

O caminho seguiu plano, bastante arborizado, sempre em meio a imensas áreas, onde se avistava, amiúde, inúmeros e variados rebanhos de gado bovino. Todavia, a trilha apresentava-se bastante escorregadia, devido à chuva derramada na noite anterior.

A paisagem, sempre verde, persistia quase imutável, proporcionando-me belo panorama das montanhas que pareciam formar, ao longe, um paredão intransponível. 

Às margens da estrada sucediam-se incontáveis propriedades e, de vez em quando, avistava uma casinha branca, com portas e janelas pintadas de azul, como era tradição nas antigas fazendas.

O dia seguia ambivalente, céu ora azul, ora carregado de nuvens cor de chumbo, com garoas ocasionais, alternadas com súbitos acessos de sol.

Às 8 h, no quilômetro 10, num trevo localizado defronte à Fazenda Cláudio Machado, contrariando minhas expectativas, virei à esquerda no cruzamento, seguindo por uma estradinha enlameada, repleta de excrementos bovinos e de enormes poças de água.

Às 8 h 30 min, ultrapassei a Fazenda das Palmeiras, e logo depois iniciei a escalada da majestosa Serra dos Cristais, assim denominada devido à abundância de tal mineral, constituído por pedras lustrosas, brilhantes, de extrema transparência, alocadas no leito da e

A subida é bastante dificultosa, todavia, de pequena extensão. Quase no final, uma brisa fria e reconfortante, característica de alto do morro, principiou a soprar, infundindo-me novo ânimo. Próximo dali, um casal de papagaios cortou o céu em alegre algazarra.Às 9 h, já no cume da elevação, a 600 metros de altitude, pude ver ao longe a cidade de Carangola, meu objetivo naquele dia. Também consegui distinguir, embora a grande distância, uma extensa serra, que faria parte do traçado que eu percorreria na etapa seguinte. Enquanto fazia algumas anotações, notei que o céu, finalmente, se desanuviara e o sol brilhava intensamente.A partir dali iniciou-se uma grande declividade, prosseguindo, no final da serra, por uma estrada larga e plana que passa defronte a Fazenda São Pedro e, mais à frente, à beira do rio Carangola, em sentido contrário ao seu fluxo líquido.Às 10 h, no quilômetro 18, encontrei uma grande árvore, localizada no entroncamento do caminho pelo qual eu transitava, com a estrada municipal que liga Carangola até Caiana. Segui, então, à esquerda, caminhando em direção à cidade próxima, sobre uma via pedregosa, larga e bastante movimentada, mormente por caminhões e máquinas que trabalhavam açodadamente, em vista de iminente asfaltamento daquele leito.

Dois quilômetros depois adentrei a zona urbana. Pouco à vontade, procurei, então, afivelar uma das minhas canhestras máscaras mundanas. 

Transitei a partir dali, sobre paralelepípedos, em meio a rústicas moradias, algumas desprovidas das mais elementares necessidades básicas. Porém, habitadas por um povo humilde, simples e, certamente, de boa índole, pois, todos me cumprimentaram efusivamente.

Em seqüência, atravessei defronte o Horto Florestal, depois, o campus da Universidade do Estado de MG, até atingir às 11 h, o Hotel Gran Palace, localizado na praça principal da urbe, onde fiquei hospedado.

Para quem passou a manhã no mato, em meio a muito verde, respirando ar puro do campo, a parte final do trajeto é realmente desgastante, pois, caminha-se por entre pedestres apressados, ruas movimentadas, carros que trafegam em alta velocidade, calçadas irregulares, além da azáfama natural de uma razoável “metrópole regional”, hoje próxima de 35 mil habitantes.

Depois de alojar-me e tomar refrescante banho, almocei próximo dali, no Restaurante Jurandai’s. Terminada a refeição, entrei em contato, via telefone, com o Sr. Albino Neves, o fundador do Caminho da Luz, pois tinha um imenso desejo de conhecê-lo pessoalmente.

Prontamente ele me atendeu e marcamos encontro para as 17 h. Logo após uma passeata que ocorreria à tarde. Tal manifestação, promovida por políticos e entidades de classe, tinha por objetivo apoiar o Prefeito Municipal em sua decisão de asfaltar uma estrada vicinal até o Laticínio Marília, motivo de acirrada polêmica entre a população e comércio local.

Após um descanso reparador, saí para conhecer os principais pontos turísticos da “Princesinha da Zona da Mata”, cognome pelo qual Carangola é nacionalmente conhecida. Pude então adentrar em sua igreja principal, cuja padroeira é Santa Luzia. Aproveitei, também, para fazer algumas compras num supermercado, sacar dinheiro e navegar na Internet.

Quando soaram 16 h no relógio da Matriz, as casas comerciais rapidamente cerraram suas portas. Havia no ar essa alegria nervosa e expectante que se nota nas proximidades das grandes expressões públicas de opiniões e sentimentos coletivos.

Iniciou-se, então, rumorosa carreata, seguida por populares, a pé, que bradavam inflamadas palavras de ordem. Houve ainda, barulho de rojões, carros de som, banda de música, discursos eloqüentes. Enfim, a manifestação foi ruidosa e movimentada. Toda ela orquestrada em arrimo à decisão do Alcaide. 

Na hora aprazada retornei ao Hotel e, conforme combinado, lá já se encontrava o famoso Albino a me aguardar. De pronto, o que me saltou aos olhos foi sua privilegiada estatura física, bem como a veemência de suas palavras, ao falar do filho dileto: O Caminho da Luz. Que nasceu por conta de brilhante inspiração, durante uma de suas inúmeras “incursões” ao Pico da Bandeira.

Findas as apresentações de praxe, ficamos amistosamente a conversar, enquanto sorvíamos um delicioso café. Conforme pude observar, persistência, loquacidade e otimismo são outras características de sua marcante personalidade.

Jornalista, carioca de nascimento, mas, carangolense por opção, Albino é proprietário de um periódico de publicação quinzenal, denominado “Folha da Mata”, que circula na região desde 1.980. 

Disse-me que durante a implementação do Caminho, sua maior preocupação era resguardar intocada a cultura regional, por isso, cuidou de preservar, a qualquer preço, as tradições locais.

Além do mais, ressaltou ser uma iniciativa que oportuniza a atividade turística rural dentro da perspectiva do desenvolvimento local, pois, considera o aproveitamento dos aspectos ambientais, da infra-estrutura e das especificidades inerentes a cada localidade por onde a rota passa, valorizando adequadamente os ambientes campestres da Zona da Mata mineira.

Ademais, sua constante inserção na mídia, divulgando as belezas naturais da região e a hospitalidade do povo nativo, concorreu decisivamente para despertar o orgulho de todos pela sua terra natal.  Não se esquecendo, ainda, que o Caminho propiciou um benfazejo intercâmbio cultural, além de se converter em excelente fonte de rendas e empregos.

Didático, discorreu sobre estatísticas que comprovam sua viabilidade e a propagação desse roteiro pelo Brasil e exterior. Em vias de completar 5 anos de existência, afirmou que o Caminho da Luz já se consolidou como opção insofismável para os peregrinos que buscam autoconhecimento, introspecção e pleno contato com a natureza.

Sobre a passeata recém finda, foi enfático ao afirmar que tal manifestação seria inócua, vez que, na sua opinião, a obra de asfaltamento da LMG 834 seria embargada, em breve. Segundo ele, havia flagrante favorecimento ao proprietário do Laticínio e tal fato fora noticiado ao Ministério Público, que já estava investigando tal denúncia.

A conversa fluía franca, motivada por assuntos interessantes, porém, o Albino devido a outros compromissos agendados, precisou partir em seguida. Não antes de autografar seu livro-guia e me dar um forte abraço ao se despedir.

AVALIAÇÃO PESSOAL: Uma das etapas mais fáceis e agradáveis de todo o percurso. Caminha-se sempre entre fazendas de gado leiteiro, com muito verde, em meio a bucólicas paisagens, avistando-se, quase no final do percurso, a maravilhosa Serra da Caiana, que nos acompanha, ao longe, do lado direito, emoldurando um cenário de impoluta beleza. Em todo o percurso, apenas um desafio: a Serra dos Cristais. Entretanto, de pequena extensão. E, os cafezais, tão abundantes nas duas jornadas que antecederam a esta, desaparecem por completo neste trecho. A lamentar, somente, o final, quando o peregrino é oprimido pelo barulho, a poluição e a correria inerentes às grandes urbes.

 

5º dia: CARANGOLA à ESPERA FELIZ – 33 quilômetros

Levantei-me, por volta das 4 h, após uma noite mal dormida. A madrugada fora tumultuosa e barulhenta por conta de fogos de artifício e carros que passavam buzinando, intermitentemente, defronte meu apartamento. O motivo para tanto foi o resultado de um jogo de futebol entre Corinthians e River Plate (Argentina), válido pela Copa Libertadores da América, transmitido pela TV, onde o time paulista terminou derrotado.

Às 5 h ingeri uma xícara de café preparada pelo funcionário noturno do Hotel. E, logo parti, aproveitando a claridade propiciada pela iluminação urbana, já que os primeiros quatro quilômetros coincidiam com aqueles que eu havia palmilhado no dia anterior. Lá fora fazia um frio de doer!    

Uma opção interessante para não repetir esse trajeto inicial, seria contratar um táxi que, por módico preço (R$12,00), deixa o caminhante na bifurcação com a estrada proveniente de Farias Lemos. Eu, entretanto, por amor próprio, preferi refazer esse trajeto a pé, já que a tranqüilidade imperava naquele horário, em que a cidade ainda dormitava.

A madrugada apresentava-se gélida e úmida. O orvalho deixara sua marca, branqueando a relva de um jardim por onde passei. Numa casa de esquina, detive-me por alguns minutos a admirar um imenso portão cujas grades encontravam-se cobertas por uma buganvília pintada de flores escarlates. 

O silêncio era quebrado, freqüentemente, pelo latido dos cães de guarda e, também, por galos que cucuritavam amiúde, em quintais próximos e distantes.

Ao deixar a área urbana, as últimas estrelas se desvaneciam. Um restinho delas ainda insistia em enfeitar o céu, que principiava a roxear, mesclado de azul-escuro. Não demorou muito, adquiriu uma tonalidade alaranjada e hastes de luz projetaram-se nas águas do rio Carangola que corria sereno do meu lado direito. A primeira beirada do sol ergueu-se no horizonte e esparramou um feixe de raios amarelados pelo firmamento. E, inopinadamente, fez-se dia. 

Marchando num rito uniforme, às 6 h 30 min, me encontrava novamente debaixo da enorme árvore que serve de ponto de referência na intersecção dos caminhos. A partir dali, prossegui por larga estrada de terra batida, e mais à frente, passei defronte ao Laticínio Marília. Este era o pivô da crise que desaguara na passeata da véspera, já que uma verba federal seria utilizada para o asfaltamento da via vicinal até aquela indústria, em detrimento de outras obras de maior urgência e relevância social no município.

Hoje, quando escrevo essas linhas, relembro as palavras premonitórias externadas pelo Sr. Albino durante nosso encontro, pois, tive notícias de que a obra foi realmente embargada, conforme transcrição que faço abaixo, sobre parte final da sentença prolatada em julho/2006, nos autos do processo. 

....Resolveu: "Encaminhar recomendação, dirigida ao Secretário Estadual de Transportes e Obras Públicas, Secretário Estadual de Fazenda, Secretário Estadual de Planejamento e Gestão e ao Diretor Geral do DER/MG, para imediata e incontinenti paralisação das obras, a fim de evitar maiores danos ao erário estadual, posto tratar-se de obra dispendiosa, não prioritária e com veementes indícios de interessar a pequeno grupo de favorecidos”. 

Ponto para o Albino!

Às 7  h 30 min, no quilômetro 8, ultrapassei o portão do Sítio São José e principiei a escalar uma grande serra, já que o trecho passou a ser de topografia montanhosa. Depois de um quilômetro, em acentuada ascensão, deparei-me com a Parada General, antiga estação da Estrada de Ferro Leopoldina. Infelizmente, a construção encontra-se abandonada e em ruínas. Vê-se que um clima de extrema desolação paira sobre o local.

O dia estava nublado e aquele lugar encontrava-se envolto por densa neblina. Seguindo as flechas, abandonei a estrada pela qual transitava e adentrei à direita. Ultrapassei uma porteira de madeira e reiniciei o percurso, agora caminhando sobre o antigo leito da saudosa Leopoldina, fazendo-me viajar, na imaginação e fantasia, por um “trem” que não mais existe.

Pus-me a sonhar, como se estivesse sentado em um de seus bancos de madeira, encostado à janela, por onde meu olhar curioso de viajante observava as crianças a brincar defronte suas casas. Ao verem passar o “monstrengo de ferro”, interrompiam a brincadeira, punham-se de pé e acenavam para os passageiros...Acordei desta gostosa letargia, quando um bando de maritacas passou voando raso, fazendo enorme zoeira. Face à chuva recente, a trilha se encontrava úmida e corredia.  E, também, com o mato bastante alto, dificultando sobremaneira meus passos. Entretanto, o trecho é realmente um dos mais belos de todo o Caminho. Isto porque a senda se situa numa altitude aproximada de 1.000 metros, tendo do lado esquerdo extensos paredões adornados por uma enorme diversidade de plantas e flores, de encher olhos e palpitar corações.Do lado direito, descortinava-se muito embaixo, até onde o olhar alcançava, uma paisagem estupenda, podendo-se divisar as fazendas da região, com suas matas nativas, verdes pastagens, manadas de bois, além de imensas plantações de café.O ar puro e a temperatura amena, além da extasiante beleza do local, contribuíam para que eu me sentisse em permanente bem-estar. E, quanto mais seguia pela trilha, mais bela e silenciosa ela se tornava, de tal forma, que me sentia caminhando numa outra dimensão, tamanha a beatitude que experimentava. 

Das encostas, inúmeras nascentes transbordavam e desciam caudalosas cortando o caminho, para depois desaparecerem rumorejantes, em meio aos bosques. Isso tudo me deixava absorto e enlevado, porquanto, a água escorrendo pelas pedras, dava a impressão de um enorme cordão umbilical que nos une à “mãe” natureza. Ali estava verdadeiramente a obra divina, estampada em árvores e montanhas, tudo de exuberante beleza, num verdadeiro recanto de paz e serenidade. 

Em seqüência, passei pela mina dos cristais, a fonte de Santa Clara, o túnel de pedra, a antiga morada do eremita José Maurino e, depois, entre grandes capões de mata nativa. 

Cada passo me envolvia em novas surpresas. Os cenários deslumbrantes que se sucediam, transmitiam-me imensa paz e uma sensação de reconfortante comunhão espiritual. Após 2 horas caminhando por “sítios” de excelsa beleza, cheguei à Ernestina, também antiga estação férrea, cuja construção, como o de Parada General, se encontra, além de abandonada, semidestruída.

O caminho seguiu cortando um capão de mato fechado, até que, finalmente, no quilômetro 20, emergi definitivamente do boscoso trecho. E foi com o coração apertado, que deixei para trás essa maravilha da natureza, recanto único e parasidíaco, para ingressar em uma larga e movimentada estrada de terra, com destino à Caiana.

Às 11 h, no quilômetro 23, cheguei ao entroncamento do Divininho. Ali reencontrei, novamente, o caminho que havia deixado ao adentrar no quilômetro 9, em Parada General. 

Um senhor idoso saiu um bar próximo e veio gentilmente conversar comigo. Afirmou que em dias ensolarados, seria possível avistar o Pico da Bandeira daquele local. Infelizmente, o céu estava nublado, o que frustrou minha expectativa de lobrigar o almejado píncaro.

Logo depois, às 11 h 30 min, cheguei em Caiana. A cidade é pequena, dinâmica, esparramada e jovem. Tornou-se município em 1.962, ao emancipar-se de Espera Feliz. É banhada pelo rio São João, afluente do rio Itabapoana, que deságua no Oceano Atlântico.  

Uma rua da cidade de Caiana

Possui uma área territorial de 121 quilômetros quadrados na Zona da Mata, em pleno maciço da Serra do Caparaó, fazendo fronteira com os Estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro. Está situada a 750 metros de altitude e conta atualmente, com 4.300 habitantes. Um dado interessante é que mais de 60% de seus moradores residem na área rural.

Nota-se, de plano, que o povo dali é cortês e acolhedor. Pessoas simpáticas e agradáveis me cumprimentaram pelas ruas. No Bar do Bruno carimbei minha credencial, tomei um suco e degustei um lanche.  Aproveitei para relaxar conversando amistosamente com alguns fregueses, antes de, finalmente, partir.

Ultrapassei, então, pequena ponte, e segui por uma estrada larga, primeiramente, em meio a muitas árvores. Mais à frente, prossegui cercado, de ambos os lados, por enormes cafezais que parecem desafiar a “lei da gravidade”, vez que avançam quase até o cimo dos escarpados morros que guarnecem a região.

Ao sobrelevar pequena ladeira, de seu topo, no quilômetro 31, pude avistar a cidade de Espera Feliz, minha meta para aquele dia. Já descendo a encosta, encontrei o início do calçamento urbano. Por uma rua larga e movimentada, segui direto, até desaguar em seu final, na antiga estação de trem, cujo prédio hoje abriga a estação rodoviária local.

Na cidade existem três hotéis credenciados pela Abraluz. Entretanto, por sugestão de um comerciante local, hospedei-me no hotel Pico da Bandeira. Estabelecimento este, que recomendaria pela excelência das instalações e qualidade de seus serviços.

Situada a quase 1.000 metros de altitude, Espera Feliz conta hoje com 19.000 habitantes. O grande impulso para seu desenvolvimento aconteceu em 1.910, com a chegada da estrada de ferro Leopoldina. Atualmente, o caulim é importante na economia local, juntamente com a mica.

Igreja Matriz de Espera Feliz

Às 20 h e 30 min, após sóbrio jantar, o sono bateu forte e o cansaço me derrubou.

AVALIAÇÃO PESSOAL: Uma etapa de razoável dificuldade, mormente pela distância a ser percorrida, podendo ser abreviada, se o percurso inicial (4.350 metros), for vencido de táxi. Realmente, o trecho entre Parada General e Ernestina (8 quilômetros) é imperdível. Seguramente, o mais belo de todo o Caminho. No global, o percurso é bastante interessante e diferente, com praticamente nenhuma ladeira importante a ser sobrepujada.

                                                                                                                      

6º dia: ESPERA FELIZ à ALTO CAPARAÓ – 34 quilômetros

Levantei às 4 h 30 min, após um sono contínuo e repousante.  Ingeri um gostoso café preparado com grãos colhidos na própria região, e parti às 5 h 30 min, sob um vento frio e cortante.

Ao deixar a zona urbana, acessei uma estrada de terra, larga e arborizada, a mesma que serve de ligação entre as duas cidades acima. Em razão disso, é intenso o tráfego de veículos, inclusive, com ônibus intermunicipais, de hora em hora,    que fazem a integração entre as duas urbes.

O trajeto é belo e o mais fácil de todos, pois, por incrível que possa parecer, assemelha-se a uma grande “mesa de bilhar”, ou seja, o percurso é todo plano, sem que haja uma única ladeira, ou qualquer acidente geográfico importante. Parece até que estamos caminhando sobre um enorme tabuleiro.

Assim, às 7 h, no quilômetro 6, ultrapassei o bairro de Quicé, e, logo depois, o de Pedra Menina, com sua igrejinha dedicada a Nossa Senhora Aparecida.

Às 8 h 30 min, fiz uma pequena parada para descansar no bairro de Água Empoçada, quilômetro 15, onde existe um pequeno coreto e singela igrejinha, ambos pintados caprichosamente de verde.

O caminho seguiu bastante arborizado e, praticamente, no percurso todo, anda-se entre grandes fazendas e com enormes plantações de café. Não fosse pela expressiva quantidade de veículos que se movimentavam pela estrada, diria que foi o trajeto mais “light” e agradável que enfrentei em todo o Caminho da Luz.

Dessa forma, pude manter um ritmo uniforme, caminhando em média, 5 quilômetros por hora. Assim, às 10 h já estava em Caparaó, mais precisamente no Restaurante do Daniel, onde carimbei minha credencial. 

A cidade se emancipou em 1.952 de Espera Feliz. Está situada a 814 metros de altitude e conta hoje com 4.600 habitantes, sendo que, digno de nota, 2/3 da população reside na área rural.

O sol se apresentava quase no ápice e o calor era intenso. Sabendo que ainda teria mais 14 quilômetros pela frente, tentei negociar com um taxista a remessa de minha mochila até a cidade de Alto Caparaó. Todavia, a exorbitância do preço solicitado pela “corrida” (R$35,00), me fez desistir da idéia. 

Dessa maneira, às 10 h 15 min, com minha inseparável “companheira” nas costas, parti em direção ao meu objetivo final. O caminho segue, ainda, sobreposto ao leito da estrada municipal que liga Caparaó a Alto Caparaó. 

Talvez por ser um sábado, o percurso transcorreu concomitante ao intenso trânsito de veículos que ao passarem, deixavam-me envolto numa sufocante e desanimadora nuvem de poeira.

Depois de adentrar a zona rural e vencer pequena elevação, iniciei grande descida que se encerrou quando transpus o córrego Galiléia. A partir dali, cuidei de manter a mesma cadência, segredo de longas caminhadas, mesmo em situação precária.

O percurso seguiu nesse trecho praticamente sem nenhuma sombra, tendo como “pano de fundo”, do lado direito, o imenso maciço do Caparaó, com seus inúmeros pináculos. 

Minha expectativa era visualizar o Pico da Bandeira, porém, um morador local explicou-me que ele se acha situado por trás da cadeia de montanhas, sendo impossível avistá-lo daquele lugar em que nos encontrávamos.

No total foram 4 grandes subidas e outras tantas declividades. Em alguns trechos do caminho existem algumas sombras, no entanto, em sua parte final, face o adiantado da hora, o sol me castigou com intensidade, deixando-me no limite da exaustão. 

O calor apresentava-se abrasador e, por conta disso, eu transpirava abundantemente. Minhas forças se encontravam no extremo, quando, finalmente, às 13 h 30 min, quilômetro 32, adentrei em zona urbana, caminhando, a partir dali, sobre piso asfáltico. 

Alto Caparaó mais parece uma grande vareta, cidade de uma rua só. Prossegui por ela, sempre em perene subida. Digno de ser lembrado foi um cãozinho que me seguiu durante uns quatro quarteirões, rosnando baixinho e tentando abocanhar meu calcanhar.

O cansaço já debilitava minha coordenação motora quando, às 14 h, adentrei à Pousada Serra Azul, localizada na praça principal da cidade, a 1.000 metros de altitude. Ali, fui magnificamente recebido pelo tranqüilo Waldir e por sua esposa Alani, ambos de simpatia e simplicidade cativantes.

Depois de ingerir um copo de chá de erva-cidreira caprichosamente preparado pelo meu anfitrião, no intuito de recompor meu ânimo e humor, hospedei-me em acolhedor chalé. E, após um longo e revigorante banho, descobri que a fome era maior que a fadiga.

Então, saí e fui almoçar em frente, no restaurante da Pousada do Vale.

Mais tarde, pós-proveitoso descanso, manifestei a Sra. Alani, minha intenção de escalar o Pico da Bandeira no dia seguinte, um domingo, muito embora dispusesse de escasso tempo para tal mister, já que nele, embarcaria para São Paulo. 

Prontamente, ela chamou o Sr. Daniel, competente guia local, que traçou um panorama das dificuldades que eu enfrentaria na arriscada empreitada. Segundo afirmou, com a experiência acumulada em anos de profissão, a subida até o cume demoraria, em média, 4 horas, para uma pessoa com boa disposição física. E mais 3 horas para a descida.

Eu, no entanto, dispunha de somente 5 horas para completar todo o percurso. Ou seja, seria na verdade, uma corrida “maluca” contra o relógio.

Mesmo ciente dos obstáculos que necessitaria sobrepujar, combinamos horário de saída, bem como o preço da “corrida” (R$70,00), já que ele me conduziria até a “Tronqueira”, no início da manhã, depois, retornaria me buscar, por volta das 12 horas. 

À noite a temperatura baixou e precisei de dois cobertores para me aquecer e conciliar um sono profícuo e reparador. Que, em alguns momentos, revelou-se agitado em vista da ansiedade natural que emergiu, fruto da difícil jornada que enfrentaria no dia seguinte.

AVALIAÇÃO PESSOAL: Um percurso antagônico, de considerável dificuldade, face à quilometragem percorrida. Os primeiros 20 quilômetros são vencidos sobre uma estrada invariavelmente plana, num dos percursos mais fáceis de todo o caminho. E, também, em meio a grandes belezas naturais, pois, caminha-se entre montanhas, quase todas com suas encostas tomadas por enormes cafezais, que parecem querer domar os espigões por onde se esparramam. Depois de ultrapassar Caparaó, o peregrino inicia lenta, porém, inexorável ascensão em direção às faldas da Serra do Alto Caparaó.  A chegada à praça principal da cidade, ponto final da etapa, é um exercício de paciência e obstinação para o caminhante extenuado, já que é todo feito em asfalto, num constante e interminável aclive.

 

7º dia: ALTO CAPARAÓ ao PICO DA BANDEIRA – 36 quilômetros

Bem disposto, levantei-me às 5 h, e arrumei alguns apetrechos, em vista da peculiaridade e extensão do trecho a vencer. O evento seria, sem dúvida, inolvidável, de forma que não poderia esquecer nenhum pormenor.

Pontualmente, às 6 h, subi para o saboroso café, com direito a provar uma fatia do delicioso pão caseiro, elaborado com capricho pelo dileto Waldir. Depois, saí e, ainda no escuro, postei-me a matutar sobre a “viagem” próxima, enquanto observava a sombria silhueta das montanhas ao longe. 

Recordei, então, de minha primeira escalada de “peso”, ocorrida no ano de l.962, quando era ainda seminarista. Segundo a tradição, uma vez por ano, sempre durante o mês de novembro, todos os noviços demandavam ao majestoso Saboó” que, com seus 1.100 metros, simbolizava o morro de maior altitude em toda a região do município de São Roque/SP. 

Eu acalento em meu coração e memória, alguns acontecimentos inesquecíveis daquele dia, tal qual uma tatuagem, difícil de se apagar. Porque, ocorrida no termino de minha infância e primícias de minha feliz juventude, já que contava, com apenas 11 anos.

Fui arrancado desse devaneio pela lívida luz da madrugada que, sorrateiramente, invadia o espaço ao derredor. E, com ela, no horário combinado, eis que aparece o Daniel com seu potente Jeep Toyota. Antes da partida, entrou para tomar um cafezinho na Pousada.

O sol já nascente dardejava seus raios sanguinolentos quando embarcamos. Após três quilômetros em asfalto, ultrapassamos a portaria do Parque Nacional do Caparaó. Antes, porém, deve-se cumprir os preceitos legais, recolher a taxa de R$3,00 para adentrar em seu interior, vez que o lugar é área de preservação ambiental.

A viagem prosseguiu morro acima, com o veículo em sua potência máxima para vencer as íngremes ladeiras, as quais, nos proporcionavam em seu ápice, quase sempre à beira de profundos precipícios, um panorama espetacular da região. 

Às 7 h 15 min, finalmente, depois de 6 quilômetros encosta acima, chegamos à “Tronqueira”, fim da linha para veículos. No local, situado a 1.970 metros de altitude, existe um edifício que abriga os funcionários do Ibama. Dali avistava a cidade de Alto Caparaó, abaixo e muito ao longe, além de uma seqüência de serras a perder de vista.

A partir desse marco, o caminhante precisa seguir a pé, em trilhas muito bem sinalizadas com tinta amarela. A “puxada” até o cume é feita em grande aclividade, dividida em duas etapas, de 4.500 metros cada uma.

Rubro, ao revérbero do disco solar que se levantava no horizonte, o Pico da Bandeira destacava-se esplendoroso, parecendo dar-me boas vindas. Para tanto, emergia da neblina que sempre o cerca. Tenso e emocionado observei o impávido gigante, o escopo principal daquela jornada.

Rapidamente, despedi do Daniel, me orientei para qual lado seguir, e parti sozinho e apressado, “marinhando” por um piso rude e de difícil progressão. 

Mais à frente a trilha descaiu para a esquerda, depois seguiu em brusca ascensão, margeando o “Vale Encantado”, tendo ao meu lado esquerdo um riachozinho que, em seu acidentado percurso, com as águas cristalinas rolando pelas pedras, formava uma sucessão de esplêndidas cachoeirinhas. Com a temperatura em elevação, aos poucos sentia me fundindo com o cenário, como se fizesse parte dele.

Às 8 h 30 min, alcancei o “Terreirão”, um oásis plano, área de acampamento, que contém algumas construções que servem de abrigo noturno, para aqueles que pretendem atingir o pico de madrugada, com o objetivo de assistir o nascer do sol daquele local privilegiado. 

É famosa ali uma casa de pedra que, segundo dizem, foi edificada por guerrilheiros opositores ao regime militar vigente na década de 60, para lhes servir de esconderijo.

No local existem churrasqueiras, bancos de pedra, água encanada e banheiros, de maneira que fiz breve pausa restauradora. Para complementar, a manhã estava serena, dourado era o sol e, malgrado a altitude de 2.350 metros, me sentia perfeitamente bem de corpo e espírito. Dez minutos depois, reanimado, prossegui em frente, focado no “ataque” final.

Trezentos metros acima cruzei com um grande grupo de pessoas extremamente agasalhadas, que descia lentamente, após ter subido ao cume, no escuro. Disseram-me que a temperatura lá oscilara entre 1º C a 4º C negativos, antes de o sol raiar. 

Quarenta e cinco minutos depois cheguei à base do pico. A vegetação ali era basicamente formada por gramíneas, bambuzinhos, bromélias, musgos e orquídeas, já que os afloramentos rochosos não permitem o desenvolvimento de plantas que exigem solos mais profundos.

Na seqüência, trilhei, literalmente, o caminho das pedras, tamanha a quantidade de rochas soltas naquele patamar.

Mais quarenta minutos, finalmente, alcancei os contrafortes do meu objetivo. Esquecendo a fadiga, boquiaberto contemplei o encorpado rochedo e, em seu topo, quase sobre minha cabeça, uma enorme cruz erguia-se imponente. Bem a tempo, pois, meu físico estava se estiolando com rapidez, face às dificuldades do percurso.

Exatamente, às 10 h, depois de arriscadas acrobacias alpinísticas, alcancei o pináculo tão almejado. Um vento límpido e fresco soprava no cimo da montanha e me envolveu como uma carícia, anunciando que acabara de atingir o fabuloso Pico da Bandeira. 

Sua denominação, conforme conta a história, emana de ordem manifesta por D. Pedro II, que em 1.859 mandou fincar ali uma bandeira, após o ter reconhecido como o ponto mais alto do Brasil, àquela época. Décadas depois, ele foi desbancado por outros dois: O 31 de Março e o da Neblina (hoje, o mais proeminente do Brasil, com 3.014 metros), ambos localizados na Amazônia.

Estou a 2.892 metros de altitude, e observo tudo nitidamente, gravando na retina os menores contornos do estupendo quadro que se descortina a meu redor. Consubstanciado pelos belos cenários que avisto, traduzidos por uma sucessão interminável de morros e montanhas, vales e gargantas, duma deslumbrante riqueza cromática e plástica.

Uma extraordinária sensação de vitória me invade a alma, adentra em meus poros e, como um vinho suave, me deixa numa espécie de lânguida embriaguez que é, a um tempo, paradoxalmente, exaltação e paz.

Durou pouco, entrementes, aquela empolgação. Fiz rapidamente algumas fotos, antes que uma traiçoeira nuvem neblinosa cobrisse de branco toda a paisagem, o que dificultou sobremodo meu retorno. Desconsolado, mas feliz, às 10 h 15 min, iniciei a descida, que me pareceu mais perigosa que a escalada. 

Novos contorcionismos, pulos atrevidos, pespegados com rara felicidade, tombos inevitáveis, deslizamentos pelas bordas das pedras, arranhões na palma das mãos, saltos simiescos pelos rochedos, sempre amparado pelo fiel cajado. Sem dúvida, a volta foi bastante complicada e meus joelhos reclamaram bastante.

Exatamente às 12 h 15 min, satisfeito e realizado, eis que me encontrava novamente na “Tronqueira”, onde o pontual Daniel já estava a me aguardar. A descida até a cidade em sua tosca e dura condução mostrou-se sofrida e sacolejante, todavia, pouco me importei, tamanha a felicidade que invadira meu ser. 

Porque me encontrava, concludentemente, “em estado de graça”, dominado por uma sensação de êxtase e bem-estar que não conseguia compreender perfeitamente, na verdade, uma profunda e comovente alegria pela magnitude do feito realizado.

De volta à Pousada Serra Azul, após o banho, orgulhoso, recebi da Sra. Alani o meu Certificado de conclusão do Caminho da Luz. Fiz rápido lanche num bar próximo e, às 14 h, lépido, iniciei o retorno para casa. 

Com os amigos Waldir e Alani, proprietários da Pousada Serra Azul

 Tomei, então, um ônibus até Alto Jequitibá. Ali, mais tarde, entrei em outro com destino à Carangola, de onde, pontualmente, às 18 h, parti com destino à São Paulo. Quinze horas depois, me encontrava de volta ao aconchego do lar.

A “viagem”, então, terminou?

Meu cansaço desapareceu e minhas pernas, mais fortes, estão à espera de novos desafios. A mochila, o cajado, as histórias que um dia contarei a meus netos, tudo isso terá vida sempre...

O turbilhão e o burburinho da cidade me angustia. Meus pensamentos solertes insistem em se refugiar nas bucólicas trilhas percorridas, nas faldas da cordilheira do Caparaó. 

Em espírito eu procuro refúgio naqueles momentos e lugares de silêncio e paz, que haverão de ficar-me na memória, como um mágico retalho recortado no tecido do tempo.

 

FINAL

O Caminho da Luz, um roteiro traçado na esteira e nos moldes do Caminho de Santiago, também poderia ser nominado de “O Caminho das Águas”, tal a quantidade de nascentes, fontes, rios e cachoeiras, que encontramos em seu leito. Ou, então, “O Caminho da Amizade”, tamanha a hospitalidade e calor humano com os quais somos agraciados ao longo de sua Rota.

E, para vencê-lo com galhardia, face às dificuldades inerentes ao percurso, é necessário uma boa dose de estoicismo, fé, bravura, anseios de glória, humildade, encantamento, abnegação e, sobretudo, determinação.

O Caminho, como toda senda de peregrinação, imita a vida. A cada dia que nasce, uma nova etapa, um novo desafio, com seus encantos e obstáculos, porém, jamais igual ao da véspera. Um convite a uma reflexão mais profunda sobre nossa breve passagem por esse plano celeste.

Afinal, peregrinar, é isso: viajar a lugares próximos ou distantes, em busca de recados, descobertas e “insights” que possam ampliar os limites de nossa consciência de mundo, de vida, de nós mesmos.

Finalizando, reproduzo um poema de Fernando Pessoa, inerente ao tema:

    "Viajar? Para viajar basta existir.

      Vou de dia para dia, como de estação para estação, 

      No comboio do meu corpo, ou do meu destino,

      Debruçado sobre as ruas e as praças, 

      Sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes,   como, afinal, as paisagens são.

      A vida é o que fazemos dela.

      As viagens são os viajantes.

      O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos".

 Bom Caminho a todos!

Junho/2006

* Texto Original publicado no Portal Peregrino: www.caminhodesantiago.com.br