25ª Jornada - LOURENZÁ a ABADIN

25ª Jornada – Lourenzá a Abadin - 25 quilômetros: “Chuva, o dia todo!”  

O percurso seria de grande variação altimétrica, além de conter inúmeros trechos em asfalto, portanto, eu teria que enfrentar mais um grande desafio para os meus já sofridos pés.            

Chovera a noite toda e, às 6 h, quando me levantei, uma fina e persistente garoa deixava todo o ambiente triste, frio e enevoado.

Após ingerir um “capucino” bem espesso, que eu mesmo preparei no quarto do hostal, acompanhado de frutas e chocolates, deixei o local de pernoite às 7 h, seguindo em direção à praça central do município.

O “tramo” inicial, a partir do albergue de peregrinos, contemplava um percurso por meio da mata, contudo, em face da chuva, meu guia aconselhava evitá-lo, pois certamente estaria intransitável, de forma que, sem opção, resolvi seguir diretamente pelo asfalto.

Assim, depois de vestir minha capa impermeável, acessei uma rodovia vicinal de pouquíssimo tráfego e, ainda no escuro, porém, com minha potente lanterna à mão, segui caminhando, enquanto a chuva caía lentamente.

Depois de um quilômetro, obedecendo as flechas, adentrei à direita e segui por uma estrada de terra plana e ladeada por um espesso bosque de eucaliptos, onde o piso, composto de terra pilada, estava úmido mas não barrento, de maneira que pude seguir sem maiores riscos.

Logo passava por Arroxo, pequeníssima vila, onde tudo estava fechado e silencioso.

Isto me fez recordar de uma informação que li numa das cidades do Caminho, cujo nome não me lembro, de que na Galícia existem mais de 6.500 aldeias, todas devidamente catalogadas, cuja população não alcança 15 habitantes.

O roteiro prosseguiu à direita, mas logo tive meus passos obstados porque ali existiam obras da Autovia Nacional e, em dúvida para onde seguir, pois a sinalização havia desparecido, me socorri com um morador local, que passava montado numa motocicleta.

Ele me deu as instruções corretas, de forma que retornei até um cruzamento, depois segui em frente, por terra, mas logo derivei à esquerda e voltei ao asfalto, prosseguindo até Grove, outra minúscula aldeia situada à beira da “carretera” nacional.

Ali a chuva engrossou, assim, resolvi fazer uma pausa sob a proteção de um abrigo numa parada de ônibus.

Aproveitei para checar meus pertences, bem como as condições de minha bota que, àquela altura, se encontrava integralmente molhada, causando-me grande desconforto.

Ocorre que a sola de meu pé esquerdo persistia bastante sensível, mesmo utilizando palmilhas de silicone e uma grande camada de algodão, firmando-a com esparadrapo, como forma de proteger o ferimento ainda aberto.

No entanto, com a intempérie, sentia o algodão ensopado e se deslocando debaixo de meu pé, o que podia causar atrito e, consequentemente, recrudescer a antiga bolha ou causar novas “ampolas”.

Pensei em refazer as ataduras, mas certamente levaria tempo e, em face das condições reinantes, resolvi seguir assim mesmo, rezando para que nada de mal me acontecesse.

Na sequência, passei sob a Autovia Nacional e logo acessei uma rotatória.

Porém, obedecendo à sinalização, prossegui em frente, primeiro em ascensão, depois em brusco descenso e logo passei por San Pedro de la Torre, outro diminuto povoado.

Na altura da igreja que dá nome a essa vila, girei à esquerda, seguindo por uma estrada úmida e enlameada que, pouco a pouco, foi se transformando numa perigosa e estreita senda, por onde segui, ora escorregando, ora chafurdando em lama, porém, depois de três quilômetros nessa toada, após passar defronte a um cemitério, retornei ao asfalto.

E foi pelo acostamento da minha velha conhecida rodovia N-634, através do bairro de San Pelayo, que aportei em Mondoñedo, uma povoação fundada em 1.112.

Antigamente, uma das sete capitais da Província da Galícia, há muito tempo declarada “Conjunto Histórico Artístico” pela massiva convivência de igrejas, palácios, conventos e sóbrias vivendas em seu centro monumental.

Na entrada da cidade, próximo a uma velha ponte medieval, as flechas me direcionam para a direita, e prossegui, então, por uma rua paralela à carreteira, em meio a bonitas casas de edificação recente.

Mais à frente, atravessei novamente a rodovia e prossegui por uma “calle” lateral, passando defronte a um velho cruzeiro, depois por novos e belos conjuntos habitacionais, bem como de um novíssimo complexo polidesportivo.

Logo acima, adentrei ao “casco viejo” da urbe e, depois de dobrar à direita, cheguei à Catedral de Santa Maria, uma igreja no estilo românico, construída no século XIII, onde se destaca uma grande roseta gótica em sua fachada principal.

Ali também se abriga o Museu Catedrático e Diocesano, com um importante acervo sacro.

 A cada tarde, às 19 h, os religiosos canônicos rezam, entoando sonoros cânticos.

 Ainda que suas ruas principais sejam calçadas em granito, elas representam a vida campestre e bucólica ali vivida na Idade Média, e por elas passeava o famoso escritor Álvaro Cunqueiro, um dos que melhor retratou a Galícia rural e provinciana, do início do século XX.

 O município, como um todo, ensejava uma visita mais demorada, porém eu necessitava seguir minha vida peregrina, e ainda que a chuva tivesse dado uma trégua, ameaçava voltar novamente, com nuvens baixas e negras cobrindo o firmamento.

 Assim, obedecendo à sinalização, segui em direção à “Fuente Vieja”, depois prossegui por uma tortuosa rua em ascendência e, logo acima, no final da zona urbana, acessei uma rodovia vicinal asfaltada, por onde eu caminhei, sempre em lento ascenso.

 O roteiro seguiu em meio a muito verde, tendo um complexo montanhoso à minha direita, com uma extensa variedade de espécies arbóreas.

 Depois de 3 quilômetros percorridos, já em Moariz, passei defronte a uma antiga vivenda, onde visualizei uma curiosa capelinha, que, ao me aproximar, pude ler a seguinte inscrição que ali está gravada:

 “O Ilmo. Sr. Bispo de Mondoñedo concede quarenta dias de indulgências aos fiéis que devotamente, ante esta imagem, rezarem o Pai-Nosso e o Credo - 2 de janeiro de 1.903.”

 Por três vezes, surpreendentemente avistei veados caminhando pela pista, contudo, ante minha aproximação, adentraram na mata, o que me impediu de fotografá-los, pela rapidez com que fugiram de minha presença.

 À minha esquerda, eu tinha uma ampla perspectiva de terras cultivadas e pequenas aldeias, todas à beira do rio Valiñadares, que eu pude admirar a beleza da paisagem, onde a água corria lentamente, no fundo do penhasco, enquanto se sucediam raquíticos "pueblos", como Paadin, Casabella, Pacio e outras.

 O clima oscilava, chuvoso, às vezes nublado, porém, no geral, bastante fresco e arejado, facilitando minha solitária caminhada.

 De quando em vez, eu cruzava alguma pequena vila e tudo inspirava tranquilidade e silêncio, pois praticamente não cruzei com ninguém nesse trecho e, tampouco, vi outros peregrinos.

 Após decair em breve baixada, passei defronte a um cemitério e, na sequência, prossegui em meio inúmeras fazendas, onde o forte era a criação de gado.

 Depois de 9 quilômetros percorridos desde Mondoñedo, em uma bucólica e vergel rodovia, cheguei à Lousada, pequeníssimo “pueblo”, onde não existem atividades comerciais, apenas algumas rústicas casas cobertas em ardósia, típicas residências dos agricultores que exercem sua atividade naquela região serrana.

Logo à frente, as flechas me remeteram à esquerda, para um largo caminho de terra, que na verdade corresponde ao histórico “Caminho da las Fiosas”, um velho e medieval roteiro de ligação entre inúmeros vales, antes da invenção do automóvel, e por onde transitavam os peregrinos que se dirigiam à Compostela.

Rapidamente, comecei a baixar, transpus um encorpado riacho, passei ao lado de um antigo e grandioso forno de cal e, mais adiante, avistei as ruínas de uma fábrica de mármores.

A partir desse marco, iniciou-se fortíssima subida, que fui vencendo lentamente, enquanto a chuva retornava com grande intensidade, forçando-me a lançar mão de minha capa de chuva, já otimisticamente, guardada dentro de minha mochila.

Nessa parte da elevação a vegetação era escassa, composta quase sempre de pequenos arbustos, posto que as encorpadas árvores, próprias dos grandes bosques, ali haviam desaparecido.

Com grande esforço, fui vencendo o duríssimo aclive, até aportar no cume do morro, onde encontrei a capela de San Cosme da Montaña, já no povoado de Galgao, fincada num lugar agreste, a 630 metros de altitude, sendo esta a segunda maior altura que atingi em todo o Caminho do Norte.

Chamou minha atenção, essa grande construção religiosa dedicada a San Cosme, estar localizada num local tão ermo, sem um único núcleo de povoação em seus arredores.

Na minha opinião, um fato bastante estranho e inusitado: ver uma igreja no meio do nada.

Mais à frente, topei com extensas obras da Autovia Nacional e fiz a travessia dos canteiros com grande cuidado, porque a visibilidade, face à nebulosidade reinante, estava bastante prejudicada.

Quinhentos metros depois, eu reencontrei a “velha” N-634 e, as flechas indicavam que eu deveria transpô-la, para seguir por um caminho paralelo à pista, em terra.

Contudo, inferi que, devido ao temporal que se abatia sobre a região, naquele momento, possivelmente encontraria o roteiro bastante liso e embarreado.

Desse modo, optei por prosseguir pelo acostamento da rodovia, em sentido inverso ao fluxo de veículos e, depois de passar a entrada para o povoado de Gontán, ainda andei mais 1 quilômetro até aportar em Abadín, minha meta para aquele dia.

A cidade, na verdade, é um “pueblo” antiquíssimo, cuja fundação remonta ao ano de 1.207.

Hoje não passa de um pequeno povoado, localizado à beira da rodovia nacional, contando, atualmente, com 3.200 habitantes, onde a principal atividade comercial é a criação de gado.

Ali fiquei hospedado na Pensão Niza, local em que paguei o menor pernoite de toda a minha aventura, pois para utilizar um apartamento com banheiro interno, calefação, cama de casal, TV, etc., dispendi apenas 10 Euros.

Para almoçar utilizei os serviços do restaurante instalado no próprio edifício, de propriedade de duas simpáticas irmãs que, sozinhas tomam conta de todo o complexo comercial ali existente, incluindo ainda um bar, por sinal, bastante movimentado.

Depois de uma necessária e imprescindível soneca, ainda debaixo de chuva, coloquei minha capa impermeável e, pela rodovia, retornei cerca de 1.000 metros até a cidade de Gontán, e fui visitar o excelente albergue ali existente.

O local, uma construção nova e bastante confortável, abrigava, naquele instante, 25 peregrinos, porém, mais gente chegava, e pelo visto não haveria problemas, pois pude observar a existência de acomodação para 48 pessoas em seu interior.

Ali, após ter minha credencial carimbada, aproveitei para conversar com o uruguaio Augustin, que havia conhecido em Lourenzá e que, aproveitando o ensejo, me apresentou outros companheiros, inclusive um casal de franceses, extremamente simpáticos e calorosos no trato com brasileiros.

O vinho corria solto e o pessoal conversava descontraidamente em meio a grande animação, porém, após as despedidas, retornei ao meu local de pernoite, aproveitando antes para passar em um supermercado, adquirir víveres para meu lanche noturno, bem como para suprir o farnel do dia seguinte.

A chuva persistia, de forma que preferi me recolher cedo, já me preparando para a próxima jornada, pois sabia que ela seria, basicamente, como as anteriores, toda em asfalto. 

Albergue de peregrinos de Gontan

IMPRESSÃO PESSOAL – Uma etapa de razoável amplitude e com expressivos aclives, quase toda feita em asfalto e sob uma fina e persistente garoa, que se transformou em intempérie nos quilômetros derradeiros. No geral, uma etapa plena de bosques e muito verde, porém, uma das mais desgastantes, que enfrentei em todo o meu périplo.

26ª Jornada - ABADIN a VILALBA