Caminho da Prece - VII

Pense que em qualquer Caminho sempre vai doer alguma parte de seu corpo, até que você tenha outra lesão que doa ainda mais. Aí, então, você esquecerá da primeira..” (Carles Mass) 

O mês de agosto estava no fim e eu já sonhava em seguir, novamente, até o Santuário Mariano, com o propósito de renovar, mais uma vez, meus votos com Nossa Senhora, objetivando agradecer às graças alcançadas no ano em curso e pleitear bençãos para a minha família.

Analisando tal situação, sob vários ângulos, por excesso de compromissos, cheguei à conclusão que poderia executar tal desígnio percorrendo o Caminho da Prece, como de tradição, em duas jornadas.

Foi nesse interregno de tempo, enquanto eu meditava sobre a consecução de meus planos que, por obra divina, recebi a intimação do meu “irmão” Polly, para acompanhá-lo numa jornada do tipo “Uma Pernada Só”, como se diz em Minas Gerais, desde Jacutinga até Borda da Mata.

Seriam 71 quilômetros a vencer, e com alguns aclives importantes a serem sobrepujados, mormente, em sua parte final.

Eu já caminhara essa distância em agosto de 2016, ao lado do Ely Prado e do Polly.

Entretanto, sobrepujar tal dimensão novamente seria algo incitante e significativo, afinal, a cada dia que passa estou ficando mais velho, com reflexos importantes em meu condicionamento físico.

Ademais, seria necessário enfatizar o quesito segurança, porque a maior parte do trajeto transcorreria à noite.

Com efeito, seria, obviamente, um tremendo desafio, onde eu necessitaria suplantar a fadiga e o aguilhão do sono, especialmente, na escuridão da madrugada.

SÁBADO, INÍCIO DE SETEMBRO..

Há mais pessoas que desistem do que pessoas que fracassam.” (Henri Ford) 

Como, costumeiramente, acordei às 4 h e, ainda na cama, passei a matutar sobre a data em si, e me lembrei que já era dia primeiro.

Começou setembro, pensei, como é costume os meses se iniciarem.

A entrada desse mês (09) é, no fundo, bem discreta e completamente silenciosa.

Sem sinais nem fogueiras, insinua-se sem fazer ruído, de um modo que facilmente escapa à atenção de quem não esteja atento.

Em realidade, o tempo não tem marcas, não há trovões nem trombetas ao início de um novo mês ou de um novo ano.

E na própria estréia de um novo século somos unicamente nós, os homens, a soltar foguetes e repicar sinos.

Essas digressões escritas por Thoman Mann em seu livro “A Montanha Mágica”, me acudiram vivamente à memória, enquanto me paramentava para mais um dia, especialíssimo.

Afinal, teria uma longa jornada pela frente que, sob as bençãos divinas, só se encerria na manhã sequente.

Dessa forma, as próximas 24 horas seriam de muito estresse e esforço para os meus pés, posto que eles teriam a incumbência de me transportar por 71 quilômetros, a partir de Jacutinga/MG, cidade para onde viajarei ainda hoje.

Assim, face à magnitude do repto que me aguarda, professo minhas orações matinais com profundo fervor, suplicando luz, saúde e proteção para mais essa jornada de fé, que envidarei dentro em breve.

Em Jacutinga/MG, com meus "irmãos" e "companheiros de viagem", Ely e Polly.

PARTINDO... 

A aventura pode ser louca, mas o aventureiro sempre deve ser prudente”. (G. K. Chesterton) 

Hoje, sábado, dia 01/09/2018, estou partindo para honrar mais um compromisso valioso, firmado com minha Mãe Maior, desta vez, para algo realmente espinhoso, mas com um final, espero, gratificante. 

Poucos sabem de meus planos, pois segundo os cristãos antigos, alardear as próprias intenções é um convite ao infortúnio.

O ônibus da Viação Gardênia que tomei em Campinas, depois de 2 horas, me permitiu saltar na estação rodoviária da cidade de Jacutinga/MG, onde iniciaremos nosso trajeto rumo à Basílica de Nossa Senhora do Carmo, em Borda da Mata/MG.

Primeiramente, sigo até o Gandhi Hotel, para adquirir minha credencial peregrina, pois pretendo trazer mais um galardão dessa peregrinação: meu sétimo certificado do Caminho da Prece.

Depois, já paramentado para a aventura, caminho, se tanto, uns 100 metros, e próximo do prédio que abriga o SEGOV de Jacutinga, onde se localiza o “Marco Zero” do Caminho da Prece, reencontro meus “Companheiros de Viagem”: o Polly e o Ely Prado.

O Polly estava ocupado atendendo a um grupo de turistas, que também veio buscar informações sobre o roteiro por eles criado. 

Foto comunitária, com os futuros peregrinos do Caminho da Prece.

Depois de apresentações, abraços, cumprimentos e manifestações de alegria, fazemos uma oração comunitária, fotos e nos preparamos para partir.

Aqueles que ficam, nos auguram sorte, proteção na jornada e, no final, recebemos a clássica saudação, que nos faz transbordar de alegria:

Bom Caminho, peregrinos! Sigam com Deus e Nossa Senhora!

Momentos antes da partida, com meus "irmãos" e "companheiros de viagem", Ely e Polly.

RUMO À BORDA DA MATA..

"Caminha-se também para dar um basta e eliminar-se: acabar com a agitação do mundo, o acúmulo de tarefas, o desgaste. E para esquecer, para não estar mais aqui, nada como a grande chatice das estradas, a monotonia sem limites dos caminhos florestais. Caminhar, desprender-se, partir, largar..." (Frédéric Gros) 

São, exatamente, 15 h 10 min da tarde e no silêncio do coração que me abraça e me sufoca, com Deus no pensamento, estou iniciando meu 7º Caminho da Prece.

Agora, só me resta botar o pé na estrada com dinamismo, porque peregrinar é encarar desafios, realizar sonhos e viver com entusiasmo.

O mais importante é acreditar que a “viagem” será rica e proveitosa, e ter confiança em encontrar o melhor Caminho.

Sob o forte calor do sol vespertino e ao lado dos meus dois “amigos-irmãos” seguimos em direção à rodovia MG-290 (João Tavares Corrêa Beral), que liga Jacutinga a Ouro Fino e Inconfidentes, depois, prosseguimos, indefinidamente, pela Rua Vereador Noé Luís Ferreira, agora, em leve ascenso.

Um quilômetro vencido, passamos diante da Tapeçaria e casa do Polly.

Pausa necessária, diante da casa do Polly.

Ali foi afixada uma placa desejando “Bom Caminho” aos peregrinos, em várias línguas, onde fazemos uma foto como lembrança.

A tarde se apresentava calorosa, com temperatura ao redor de 26 graus, mas eu me encontro agasalhado, pois sei que nessa região as noites invernais costumam ser frígidas.

Uns 2 quilômetros adiante, topamos com uma grande obra de engenharia em andamento, por conta da instalação de uma indústria multinacional naquele enclave, por isso deparamos-nos com obstáculos no caminho obrigando-nos a dar uma grande volta pela esquerda para, mais acima, retornar ao roteiro oficial. 

Trecho em obras. O Ely e o Polly seguem animados, morro acima...

O calor prossegue forte e encontramos muito trânsito de veículos nesse trecho: são trabalhadores retornando para casa ou se dirigindo à cidade para honrar algum compromisso familiar ou profissional.

E como o leito da estrada se encontra convulsionado e tomado por grossa camada de terra, aspiramos muita poeira nesse intermeio. 

O Ely e o Polly, seguindo firmes na trilha...

São 16 h 36 m, e neste momento, diante de uma bifurcação situada na Várzea da Forquilha, adentramos à esquerda, seguindo por uma estrada plana, existente ao lado de um grande e fresco bosque de eucaliptos.

São 16 h 54 min, percorridos 9.400 metros, em outra importante bifurcação, adentramos à esquerda novamente e, quinhentos metros adiante, passamos ao lado de enormes estufas, solidamente edificadas, onde são cultivadas rosas para serem comercializadas. 

Um pé de ipê florido nos dá as boas vindas nesse trecho.

São 17 h 42 min, vencidos exatos 13.500 metros, encontramo-nos diante do primeiro Cruzeiro do Caminho da Prece, onde uma placa convida o peregrino a uma reflexão, dizendo: “Ore em todas as circunstâncias e em todo lugar.” 

Primeiro cruzeiro do Caminho da Prece, ainda com luz solar...

Fazemos uma pausa para ingestão de água, depois perfilamo-nos, dando-nos as mãos e externamos pleitos a Nossa Senhora do Carmo.

Nesse primeiro aporte, o Polly assume o comando das preces e tece profícuas considerações sobre nossa abençoada jornada.

Depois, rezamos um pai nosso, uma ave-maria, respondemos a algumas jaculatórias, solicitamos proteção durante o trajeto e seguimos em frente.

São 17 h 48 min, estamos passando diante da igrejinha dedicada a São Francisco de Assis e faço uma pausa para fotografá-la. 

Igrejinha de São Francisco de Assis.

No firmamento, à nossa retaguarda, o sol aos poucos ia se afundando no horizonte e seus raios coavam-se pelas nuvens ralas, num festival de matizes.

Um minuto mais tarde, observo que o céu tem uma cor azul-laranja-violeta cada vez mais escura.

No frontispício de uma laje em um sítio próximo, uma placa afixada numa coluna nos avisa que restam 55 quilômetros até a Basílica de Borda da Mata, sinal de que já havíamos caminhado 14 quilômetros até aquele local.

A escuridão avança rapidamente e logo precisaremos seguir com as nossas lanternas acesas.

Mas a noite que se inicia, em sequência, lenta e inexorável, nos abraça com a tranquilidade de uma alma sem pecado.

São 18 h 45 min, e depois de caminhar 18.500 metros, estamos chegando ao bairro de Peitudos, que pertence ao município de Ouro Fino/MG. 

Igrejinha existente no Bairro de Peitudos.

O pequeno distrito está movimentado e engalanado, pois se encontra em plena festa de louvor ao seu padroeiro, São Sebastião.

A música e alegria estão presentes no ar que se respira ali e, na praça fronteiriça pessoas se movimentam apressadas em direção às barraquinhas de doces e salgados, outras trabalham na cozinha, na preparação de acepipes.

Também, haverá uma barraca especial de bingo e, aproveitando a ocasião, obtenho uma cartela numerada para concorrer a um sorteio de brindes, que me é vendida por um dos festeiros, sabendo que esses recursos reverterão para a melhoria e manutenção da capelinha existente na bucólica vila.

No minimercado Nossa Senhora Aparecida, Ponto de Apoio do Caminho da Prece nesse local, peço para seu proprietário, o Sr. Donizetti, carimbar minha credencial.

Depois, adquiro água, um isotônico e, em seguida, sento num parapeito, junto aos meus companheiros, para ingerirmos algo que nos reponha as energias gastas no percurso até aqui.

Para tanto, adquirimos uma cumbuca de arroz carreteiro, alimento que também será servido à noite aos participantes da pitoresca reunião. 

Interior da igrejinha existente no Bairro de Peitudos. Ataviada, para a "Celebração da Palavra".

Trinta minutos depois, satisfeitos e reenergizados, estamos em pé novamente.

Urge partir, afinal, ainda restam muitos quilômetros a serem vencidos até nosso destino final e nossa empolgação não pode desvanecer.

Despedimo-nos dos presentes, vamos deixando a localidade e, mais abaixo, assim que finda a iluminação urbana, ligamos nossas lanternas e seguimos em frente.

Sofremos muito no trecho sequente, em face do expressivo movimento de veículos que seguem em direção ao bairro de Peitudos.

Também, por conta da estiagem que grassa na região, aspiramos muito pó e corremos o risco de atropelamentos.

Ainda animados, passamos diante da Fazenda Talismã e Haras Zel, que se encontram profusamente iluminados, depois mergulhamos, novamente, nas trevas.

No céu, sobre nossas cabeças, não há nuvens e nele brilham milhões de estrelas, sinal de que, confirmando o que predisse a meteorologia, não choverá esta noite.

Segundo cruzeiro do Caminho da Prece.

São 20 h e depois de caminhar 22.500 metros, encontramos o segundo cruzeiro do Caminho da Prece.

Uma placa afixada ao lado da cruz nos convida a refletir a respeito da seguinte frase: “Viver é saber conviver com a diferença do outro. Com Cristo, ame, perdoe.”

Fazemos uma pequena pausa para orações e o Polly pede para que eu coordene as preces.

Impossível não lembrar e agradecer a Deus a graça recebida neste local sagrado há 2 anos, quando, enquanto compenetrados fazíamos nossa oração, veio ao mundo a minha neta mais nova, a Cecília.

O Ely pede a palavra e, emocionado, lembra de um depoimento recente, também feito neste local, por um peregrino que necessitava de uma dádiva celeste e que, por obra divina, a obteve.

Após orarmos, voltamos à lida e pelo negrume que se instalou à nossa volta, enfrentamos o trecho mais perigoso do caminho, por conta do excessivo tráfego de carros e motos, que intensificou na derradeira meia hora.

Por sorte, após caminharmos apenas mais 2 quilômetros, iniciamos um breve ascenso e acabamos por desaguar na rodovia MG-459, denominada Dr. Francisco Bueno Brandão, que liga Ouro Fino a Monte Sião.

Ali giramos à esquerda, e seguimos caminhando pelo acostamento, no sentido contrário ao fluxo de veículos que, por sinal, se mostra bastante acentuado nesse horário.

São 20 h 50 min e depois de percorrer 26.800 metros, deixamos o asfalto e adentramos em terra, já no bairro da Ponte Preta, que também pertence ao município de Ouro Fino. 

Bairro da Ponte Preta - Ouro Fino/MG.

Um restaurante localizado próximo dali está lotado de pessoas que conversam animadamente e o delicioso cheiro de comida se propaga pelo ar, o que é deveras tentador.

Muitos carros estão estacionados no entorno e uma dupla sertaneja destila “música raiz” pelo ar, em alto e bom som.

O ambiente é de alegria e intensa movimentação de veículos, enquanto seguimos nosso destino.

Um bar próximo, que também serve de Ponto de Apoio do Caminho da Prece nesse local, está fechado e eu aproveito bater uma foto no local, enquanto o Ely faz ajustes em seu calçado.

Na sequência, prosseguimos em frente, mergulhando novamente na escuridão da noite.

O caminho segue agora em meio a inúmeras chácaras e, quando em vez, um galo canta, ou um cão ladra, à distância, afora isso, tudo é silêncio, só quebrado, quando um automóvel ou motocicleta transita pela rodovia próxima.

Em determinado local o Polly recebe um telefonema e seu interlocutor solicita a nossa localização.

Cinco minutos depois, o Oswaldo Francisco Bueno, meu “Xará”, desce de um veículo e nos abraça, dizendo de sua tristeza em não poder nos escoltar, face a compromissos agendados anteriormente. 

Visita do Oswaldo "Xará", que nos veio trazer o seu apoio e um abraço!

Alvoroçados pela inesperada visita, cotejamos as novidades do momento, em seguida, ele caminha uns 500 metros ao nosso lado, nos presenteia com frutas, depois se despede, augurando-nos uma profícua e salutar caminhada.

Então, ele parte deixando um profundo vácuo em nossos corações, face ao indelével bom humor e a sábia verborragia que lhe são imanentes.

Uma hora depois, transitamos diante do bar Beira-rio, localizado no bairro Ponte Branca, outro parceiro do Caminho da Prece.

Ali, tomamos a estrada que segue à direita e logo o silêncio se faz total, enquanto prosseguimos firmes na trilha.

Infelizmente, uma insidiosa dorzinha se infiltrou na sola do meu pé direito e fico preocupado quanto ao seu agravamento, porquanto, ainda, nos resta muito chão para vencer.

Tive, entretanto, nesse entremeio, a oportunidade de aprender com o bom humor sempre constante de meus companheiros, o eficaz recurso contra as desagradáveis provações que ainda me aguardavam.

O caminho nesse trecho é protegido por árvores altas e eucaliptos que formam um verdadeiro túnel verde.

Em dias normais, proporcionam sombra e frescor, porém, à noite, tudo se transforma num autêntico blecaute, e as lanternas se fazem imprescindíveis para iluminar nosso rumo.

Infelizmente, o Ely manca visivelmente da perna esquerda e nos informa que uma dolorosa bolha ali se instalou, mas que conseguirá nos acompanhar até a cidade de Inconfidentes, pelo menos.

Assim, com fé e persistência, vamos solapando distâncias e logo avistamos luzes citadinas. 

Terceiro Cruzeiro do Caminho da Prece.

São 22 h 50 min e, finalmente, chegamos diante do 3º Cruzeiro do Caminho da Prece.

Uma placa afixada ao lado da cruz nos convidava a refletir a respeito da seguinte frase: “Ao caminhar na luz que é Jesus, todos seguem em direção ao Pai.”

Até aqui já caminhamos 37.400 metros e fazemos uma pausa para orarmos em conjunto, rapidamente, porquanto a fome e a sede nos assolam. 

Igreja matriz de Inconfidentes/MG.

Seguimos rápidos, já em zona urbana, passamos diante do Bar do Maurão que, face ao horário, já se encontrava fechado, depois nos aboletamos num banco fincado diante da igreja matriz de Inconfidentes, cujo padroeiro é São Geraldo Majela.

EM INCONFIDENTES... 

"Às vezes as pessoas ao seu redor não entenderão sua jornada. Eles não precisam entender, não é para eles." (web) 

Ali, descontraidamente, fazemos uma pausa restauradora para hidratação e ingestão de lanches e frutas.

O Ely retira os calçados e utilizando algodão e esparadrapo, aplica curativos nos pés, como forma de minimizar seu sofrimento atroz.

Prontamente, lhe ofereço micropore para proteção do local lesionado e um miorrelaxante muscular para aliviar sua dor.

Depois de flexionar vigorosamente os pés, ele calça as meias, o tênis e nos faz um sinal positivo de que tudo voltou ao normal. 

Confraternizando com os "novos" amigos, em Inconfidentes/MG.

Estamos próximos de um movimentado carrinho que vende “cachorro-quente” e o Polly, com seu inextinguível carisma, logo faz contato com um grupo de pessoas que se encontrava no local.

Ali trocamos informações, somos sabatinados pelos motivos de nossa peregrinação, fazemos novas amizades virtuais, enquanto nos alimentamos para enfrentar o trecho sequente. 

O Polly e o Ely se despedem dos "novos amigos", em Inconfidentes/MG.

Bem fornidos e reidratados, batemos algumas fotos, depois nos despedimos do pessoal, que custa acreditar que após vencer 39 quilômetros de percurso, ainda teremos gás e motivação para caminhar, ainda, mais 32 quilômetros.

São 23 h 25 min e, após despedidas emocionadas, estamos partindo novamente, levando conosco votos sinceros de boa sorte.

RUMO À BORDA DA MATA, NOVAMENTE... 

A coragem e a perseverança possuem um talismã mágico perante o qual as dificuldades se anulam e os obstáculos desaparecem.” (John Quincy Adams) 

Apesar do horário tardio, ainda há muita gente circulando pela cidade.

Seguimos retilineamente pela Avenida Alvarenga Peixoto, enquanto vamos comentando amenidades.

Quinhentos metros depois, ultrapassamos a rodovia MG 295, e prosseguimos adiante, agora sobre bloquetes hexagonais de cimento, por locais onde a iluminação urbana é um tanto falha, obrigando-nos a acender nossas lanternas.

Numa bifurcação, mais adiante, tomamos à esquerda, e notamos que há intensa movimentação no local, por conta de um baile que acontece numa grande casa fronteiriça.

Três quilômetros percorridos sobre piso duro, finalmente, adentramos em terra e, então, prosseguimos em leve ascenso.

Daqui em diante, o terreno começa a acidentar-se, pois já atingimos os contrafortes da serra da Mantiqueira.

Lentamente o roteiro vai se empinando, porquanto estamos escalando a Serra do Monjolinho, o obstáculo mais proeminente do Caminho da Prece.

A partir de determinado patamar, inicia-se forte e extensa escarpa, que vamos vencendo, lentamente, passo a passo.

A lua, em seu derradeiro dia de cheia, finalmente, deu as caras, eclodindo maviosa no firmamento.

Além de nossa respiração acelerada, ouvimos apenas uma leve brisa agitar a natureza em nosso entorno, bem como o barulho de uma nascente que escorre pelo lado direito da trilha.

Já passa da meia-noite, ou seja, já estamos vivenciando um domingo, e seguimos adiante, como de praxe, animados e compenetrados em nosso objetivo.

Sobre o tema, disse o venerável Dalai Lama: Determinação, coragem e auto-confiança são fatores decisivos para o sucesso. Se estamos possuídos por uma inabalável determinação, conseguiremos superá-los. Independentemente das circunstâncias, devemos ser sempre humildes, recatados e despidos de orgulho.

Em determinado patamar, fazemos uma pausa para encher nossas garrafas de água, utilizando uma fonte que foi, graciosamente, ali instalada por um colaborador do Caminho da Prece.

Contudo, para nossa decepção a torneira está seca e nada jorra de seu bocal.

Após algumas diligências, o Ely constata que a mangueira que alimenta o reservatório está cortada, daí a razão da inoperância desse dispositivo.

Desapontados, seguimos adiante e vencidos mais alguns degraus altimétricos, atingimos o topo do morro. 

Aos pés do cruzeiro, depositando as minhas pedrinhas...

São 00 h 35 min e, percorridos 43.500 metros, finalmente, chegamos ao Cruzeiro do Caminho da Prece, localizado a 1.046 m de altitude, no cume do morro do Monjolinho.

No local nos perfilamos para orar em conjunto, depois, aproveito a ocasião para deixar aos pés do madeiro as seis pedrinhas que eu levava guardadas na mochila, com a intenção de repetir o ritual existente no Caminho de Santiago, na Cruz de Ferro.

Lá também se deve deixar uma pedra, que simboliza o que há de errado em sua vida, fazendo referência a um milenar ritual, que ainda se repete, diuturnamente. 

O Polly também participa da cerimônia. No céu, atrás dele, a lua altaneira...

Como de praxe, agradecemos o dom da vida, proferimos orações, nos persignamos, depois seguimos em frente.

Na sequência, enfrentamos terrível descenso, depois, mais adiante, quando o caminho se aplaina, passamos diante de uma gruta onde foi entronizada a imagem de Nossa Senhora Aparecida.

Ali também foi disponibilizada um fonte de água para os peregrinos e, desta vez, levamos sorte, pois ela está funcionando normalmente.

Alguns quilômetros adiante, transitamos pelo Bairro Boa Vista da Adelaide, onde tudo se encontra escuro e silencioso, apenas alguns cães ladram ao perceber nossa passagem pelo local.

Ali, giramos à direita e principiamos a descender novamente.

Mais três quilômetros superados em bom ritmo, passamos diante da Venda da Ziza, outro local de Apoio do Caminho da Prece.

São 02 h 19 min e, vencidos 51 quilômetros, chegamos a residência do Sr. Sérgio, um primo do Polly, que nos preparou uma mesa farta de comida, além de um café quentinho, para animar nossa jornada.

Fazemos, então, uma pausa para hidratação, descanso e ingestão da abençoada refeição que nos foi oferecida, gratuitamente, sobre a mesa. 

Lanche na casa do Sérgio, primo do Polly. Restam 20 quilômetros até o final.

Ao mesmo tempo, guardamos o máximo de discrição e silêncio em nossos atos, tencionando não acordar nosso hospedeiro e seus familiares.

Ali comemos à farta, pois havia leite, doces, pães, queijos, frutas, enfim, um diversificado arsenal de alimentos para aplacar o insaciável apetite que é inerente aos caminheiros.

De minha parte, deixo consignado um agradecimento sincero ao Sr. Sérgio, por disponibilizar tão farta e saudável alimentação, rogando a Nossa Senhora do Carmo para que sempre haja abastança em sua mesa.

Está sendo deixado pelo Polly um Livro para Registro dos Peregrinos que ali se hospedarão futuramente e o Polly pede ao Ely e a mim para inaugurá-lo, registrando nossas impressões do momento. 

O Ely inaugura o Livro de Visitas do Sérgio, deixando as suas impressões..

Por fim, fazemos algumas fotos, depois nos preparamos para partir.

São 03 h, quando estamos deixando a abençoada residência do Sr. Sérgio e retornando ao Caminho.

Ainda restam 20 quilômetros até o nosso objetivo, mas estamos bem alimentados e com o astral elevado, assim, prosseguimos em frente com grande determinação.

São 03 h 25 min e, depois de percorrermos 53.500 metros, chegamos ao 5º Cruzeiro do Caminho da Prece.

Ele está localizado junto a uma árvore e uma placa fincada ao seu lado nos convida novamente a refletir, com a seguinte expressão: “Começamos a ser feliz a partir do momento que fazemos algo para a felicidade do outro.”

Diante do quinto Cruzeiro do Caminho a Prece.

Como de hábito, fazemos uma pausa para orações e agradecimentos.

O Polly, que coordena as preces e externa as jaculatórias, nos convida a rezar um rosário, assim que o caminho se aplainar.

Seguindo adiante, logo passamos diante da Fazenda Jerusalém, depois seguimos em ascenso e, logo em seguida, em forte descenso.

Mais dois quilômetros vencidos, a estrada finalmente se nivela, e logo passamos pelo bairro Paredes, onde uma placa nos avisa que restam 15 quilômetros até Borda da Mata.

Então, na sequência, principiamos a rezar o rosário.

São momentos de intensa comoção, que vivenciamos olhando fixamente para o chão, para verificar, com cuidado, onde colocamos nossos pés, enquanto vamos rezando ave-marias, pai nossos, externando nossas preces com fé e fervor.

Prosseguimos compenetrados em nossas orações e, mais adiante, exatamente, quando o roteiro volta a se empinar, nosso terço chega ao fim, após finalizarmos sua execução com uma fervorosa “Salve Rainha”.

São 04 h 20 min, percorridos 60.400 metros, chegamos diante da igrejinha de São Francisco de Assis, e o cansaço já se faz sentir, e uma grande sonolência me invade.

A partir desse marco, o caminho prossegue em ascensos duros e íngremes declives, mas, veteranos no roteiro, seguimos em bom passo.

Entretanto, em determinados locais, não sinto meus membros inferiores, por estarem entorpecidos.

Um forte cansaço toma conta do grupo, então, seguimos em profundo silêncio, apenas, a batida dos cajados na terra dura, marca o compasso de nossa difícil caminhada.

Trôpegos, avançamos quase cambaleando de fadiga e sono, mas a fé nos fortalece e ninguém pensa em desistir ou sentar para descansar. 

Sexto Cruzeiro do Caminho da Prece.

São 05 h 26 min, percorridos 63.100 metros, chegamos ao 6º Cruzeiro do Caminho da Prece.

Ao seu lado, uma placa também nos convida a refletir, estampando a seguinte frase: “A oração nem sempre nos livra do sofrimento, mas sempre nos reveste de força para suportá-lo.”

Desta vez é o Ely quem comanda as orações, que externamos com ânimo reduplicado, sabendo que nossa meta está bem próxima.

Daquele local, situado a 1101 m de altitude, o ponto de maior altimetria do Caminho da Prece, podemos observar ao longe, no horizonte, uma feérica iluminação.

O Ely me esclarece que se trata da cidade de Pouso Alegre, que calculamos esteja situada, em linha reta, uns 30 quilômetros dali.

Curiosamente, a cidade de Borda da Mata ainda não invade nossa visão, vez que se encontra escondida por detrás de um protuberante morro.

Seguimos em frente e o descenso que se avizinha é extremamente inclinado e exige muito dos nossos joelhos.

Como sabem todos os caminhantes, os declives longos e abruptos são muito mais perigosos que as ladeiras que necessitamos escalar.

E no Caminho da Prece isto fica demasiadamente claro.

Dessa forma, face ao perigo iminente, seguimos os três em silêncio, novamente, distantes alguns metros um do outro, concentrados na marcha, coração em suspenso.

Para nossa sorte, dizem os ensinamentos budistas que os infortúnios acontecem com menos frequência àqueles cujos motivos são puros. 

Igrejinha existente no bairro Moji.

Já no plano, passamos diante da igrejinha do bairro Moji e, como nos demais locais pretéritos por onde transitamos, tudo se encontra deserto e silencioso.

São 5 h 48 min e até aqui já vencemos 65.100 metros e a estrada, com altos e baixos, vai passando rápida sob nossos pés; agora falta pouco.

Um galo canta ao longe, repetidas vezes, anunciando mais um alvorecer.

Percorremos mais um pequeno trecho plano, depois vencemos ainda mais duas pequenas elevações e, a partir da derradeira, já conseguimos avistar a cidade de Borda da Mata, que nos contamina de renovada energia.

Olhando à minha direita observo que, lentamente, as trevas vão fugindo ante os primeiros fulgores da aurora.

No nascente, a cor do céu cambia para o azul esmaecido, dando um toque de ternura à paisagem sertaneja que nos envolve em ambos os lados do caminho. 

Finalmente, o sol mostra a sua cara....

São 6 h 26 min, quando o sol, finalmente, mostra seu brilho, deixando tudo radioso e a paisagem esfuziante.

Infelizmente, nosso ritmo cai vertiginosamente, mas estamos quase chegando.

Fruto dessa estafa medonha que vivencio, em alguns momentos, penso que mãos celestes me amparam, pois meus pés estão anestesiados e não os sinto caminhando.

Na verdade, minhas pernas ficaram meio esquecidas, insensíveis que estão, pela endorfina circulante.

Percorremos os derradeiros metros por ruas frias e vazias, poucas pessoas e veículos circulando pela cidade, afinal, hoje é domingo.

Quando restam algumas dezenas de metros para a chegada, ainda arrumamos tempo de fazer uma foto diante da casa onde reside o irmão do Polly, o Sr. Benedito. 

Diante da residência do irmão do Polly, em Borda da Mata/MG.

Depois, sequiosos pelo final da jornada, intrépidos, vencemos o derradeiro aclive e, de imediato, nos dirigimos ao “Marco Zero” do Caminho da Prece, onde nos perfilamos para uma foto do grupo.

Agora são 7 h 10 min e, finalmente, Deus seja Louvado!

Porquanto, depois de 71 quilômetros percorridos, estamos defronte à Basílica de Nossa Senhora do Carmo, em Borda da Mata.

Faz frio e venta um pouco, porém, estamos aquecidos pela euforia de mais uma chegada vitoriosa.

O abraço festivo que trocamos pelo êxito alcançado, é emocionante e chama a atenção do pessoal que trabalha na feira dominical, muito próximo a nós.

Jubiloso pelo nosso feito, compreendia, naquele momento, mais do que nunca, que a felicidade é uma condição da alma, que não depende – não obstante a opinião dos cépticos – de bens terrenos. 

Enfim, chegamos....!

Apesar do cansaço acumulado, ainda me vem ao pensamento uma frase do poeta e ensaísta inglês, Joseph Addison, que assim diz:

Se quiser triunfar na vida, faça da perseverança a sua melhor amiga; da experiência, o seu conselheiro; da prudência, o seu irmão mais velho; e da esperança, o seu anjo da guarda.

Ou, como bem afirmou o filósofo grego Epicuro:

O que dá beleza a um ideal é o fato dele ser inatingível. Os deuses riem dos homens que alcançam seus objetivos.” 

Chegada ao Marco Zero do Caminho da Prece. 

Cansados, mas felizes! Viva Nossa Senhora do Carmo!

A Basílica de Nossa Senhora do Carmo já está aberta, então nos reunimos em seu interior, onde professamos nossas orações finais de agradecimento e louvor pelo objetivo conquistado.

Estamos alegres, mas uma tristeza invisível parece dominar nosso grupo.

Durante mais de dezesseis horas vivemos lado a lado e vencemos juntos os obstáculos.

E apesar da enorme diferença de nossos modos de vida e referências, um forte vínculo afetivo cresceu entre nós.

Pelo menos, é assim que gosto de pensar.

Posteriormente, nós tomaríamos rumos diferentes, mas sabíamos que nossos laços de amizade duraria pela vida afora. 

Prece final,  no interior da Basílica de Nossa Senhora do Carmo, em Borda da Mata/MG.

Assim, na sequência, nos despedimos do Polly, que passará o dia em Borda da Mata, descansando e festejando com seus parentes e amigos.

Bem, eu havia encerrado minha aventura sem queixas, mas quando aportei ao Hotel San Diego, junto com o Ely, eu me sentia extremamente exaurido, sedento, ardente, sonolento e retorcido internamente.

Fui para um banho retemperador e conforme a água quente fluía sobre mim, a vida também começou a se infiltrar de novo em minha alma esgotada.

Fiquei ali uns 10 minutos até sentir confiança para sair, depois fiz curativo num dedo e massageei os pés vigorosamente, para que eles voltassem a ter a sensação de existência.

Findas tais providências, gradualmente, minhas forças retornaram.

Então, ingerimos um rápido café da manhã, disponibilizado pelo hotel, depois, o Ely e eu caminhamos até a Estação Rodoviária da cidade, onde embarcamos num ônibus da Viação Gardênia e regressamos aos nossos lares.

FINALIZANDO...

"A estrada está lá, e sempre estará lá. Você apenas tem que decidir quando irá percorrê-la." (web) 

Toda travessia de longa distância pressupõe desafios dos mais variados tipos, tanto físicos quanto emocionais, e esta não foi diferente.

Por isso, nós não podemos ficar angustiados ou preocupados, especialmente se nos depararmos com um campo cheio de armadilhas ou dificuldades ao avançar em direção ao nosso objetivo.

Ao revés: devemos entender que cada obstáculo é a prova de que estamos fazendo algo realmente valioso, que deve nos ajudar a reafirmar o nosso compromisso com Nossa Senhora e nos manter conectados com o verdadeiro significado de nossa experiência de autênticos peregrinos.

Muitas vezes, vale a pena acreditar que os problemas não estão lá para nos derrotar, mas justamente para nos fazer melhor, fazer-nos crescer, sermos mais fortes e confiar no poder de nossa Mãe Maior. 

Meu 7º Diploma do Caminho da Prece.

No entanto, talvez você acredite que, pela forma como eu contei os fatos vivenciados, essa travessia foi “mamão com açúcar” todo o tempo, mas, não, passamos por momentos muito delicados e extremamente difícultosos, em alguns aspectos.

De minha parte, eu senti frio, desconfortos variados, corri riscos múltiplos de quedas, tive fome, me cansei fisicamente, tive pequenas lesões, ainda que superficiais, senti saudades de minha cama e, inclusive, fiquei entediado em algumas situações específicas, mas garanto a todos que aproveitei o caminho muito mais do que sofri.

E, por mais difícil que tenha sido esse trajeto, a parte mais negativa ou complicada ocupou uma porcentagem mínima de minha sensação, da minha mente e de minhas lembranças.

Muito ao contrário, pois todos os obstáculos e sofrimentos que me afetavam não faziam mais do que aumentar o valor da experiência que estava vivendo, por isso agradeço a Deus pela excelente saúde que possuo.

Porquanto, durante a caminhada, de uma maneira geral, eu sempre me senti muito feliz.

Para finalizar essa despretenciosa resenha, deixo aqui consignado um agradecimento especial aos meus parceiros Polly e Ely Prado, inolvidáveis “Companheiros de Viagem”.

Saibam que: Vocês vivem distantes de minhas andanças e longe de minha casa, mas sempre residirão em meu coração!

Bom Caminho a todos!

Setembro/2018