8ª Etapa – RABAÇAL à COIMBRA – 30 QUILÔMETROS

8ª Etapa – RABAÇAL à COIMBRA – 30 QUILÔMETROS – “EM DIREÇÃO À CIDADE UNIVERSITÁRIA 

“Aproximamo-nos de outra grande cidade, e como sempre que isto ocorre, o cenário por onde discorre o roteiro, volta a ser marcado por essa eventualidade. A primeira parte da jornada é um encantador passeio por campinas de vinhedos e oliveiras, num perfil plano. Mas logo após a passagem por Poço, ocorre uma subida suave e muito bela, por um bosque de pinheiros e eucaliptos, que tem como recompensa a visita a Conimbriga, antigas ruínas arqueológicas de assentamentos celtas e, mais tarde, romanas. Trata-se de uma das cidades melhor estudadas e conhecidas de Portugal, e em que pese a similaridade de topônimos, não se trata da antiga Coimbra. Esta se chamava Aeminium e estava situada junto ao rio Mondego. Para chegar a ela faltam 17.700 metros por um labirinto de rodovias e povoados encravados entre “carreteras” nacionais e autopistas, que nos farão lembrar com saudade da quietude dos campos que atravessamos nas primeiras horas da manhã. Ao final, depois de vencer um caminho longo e labiríntico, porém muito bem sinalizado, aparece do outro lado deste grande rio português, a cidade romana, barroca e universitária.” (Traduzido/transcrito do Guia El País Aguilar, edição do ano de 2007, que utilizei na viagem)

 

Pronto para partir

A jornada não seria demasiadamente extensa, ocorre que eu tinha a esperança de aportar cedo ao meu destino, vez que a cidade de Coimbra, com suas históricas universidades e centenas de estudantes, sempre povoara meu imaginário.

E, dentro do possível, gostaria de visitar sua Universidade, bem como caminhar em suas ruas e praças.

Assim, levantei cedo, fiz minhas abluções com bastante calma, e às 6 h eu deixei o local de pernoite, seguindo pelo acostamento da rodovia N-348, que corta toda a cidade.

Mil metros à frente, as flechas me direcionaram para um caminho rural à direita, que transcorre entre muros de alvenaria e pequenas hortas.

Sem maiores problemas, em face da lanterna que eu portava, o Caminho me levou a transitar pela cidade de Zambujal, depois de 30 minutos de caminhada.

Tudo ali estava silencioso e deserto, assim, seguindo a sinalização, eu passei diante da igreja matriz e, em seguida, dobrei à esquerda, atravessei o rio del Caballo Seco, e pouco depois, saí novamente na rodovia.

Segui, então, pelo asfalto, por uns 200 metros, quando as flechas me remeteram definitivamente, à esquerda, e logo adentrei à simpática vila de Fonte Coberta.

Trata-se de uma minúscula aldeia, sem oferecer serviços ao peregrino, porém nela encontrei inúmeras referências ao Caminho, com placas elucidativas e explicações do que ali ocorreu em tempos de outrora.

Por sinal, em 22 de fevereiro de 1699, ela foi citada pelo conde Lorenzo Magalotti, que acompanhava o Duque Cosme de Médici, como um lugar de poucas casas, rodeada por montes improdutivos.

Pier Maria Baldi, que formava parte do cortejo, deixou uma pintura do lugar e, em agradecimento, os residentes puseram seu nome em uma praça.

A cidadezinha, efetivamente, valoriza seus filhos, bem como dá ênfase a outros tantos singelos monumentos, como a pequena capela de Santa Isabel, uma construção de 1688.

Deixando a pequena vila, acessei uma estrada de terra em direção à Puente Filipina, cuja construção data do século XVII, e ainda é perfeitamente utilizada por carros e ciclistas.

Porém, pouco antes de ali aportar, eu girei à esquerda, e passei a caminhar ao lado do rio de Mouros, por uma senda espetacular, que segue entre oliveiras e vinhedos, num trajeto silencioso e pleno de belas paisagens das serras ao redor.

Estava bastante frio e do sonoro regato emanavam vapores aquosos, em forma de neblina.

No céu azul, o sol dava ares de que logo brilharia com intensidade, e eu me sentia feliz e alegre por estar vivenciando aquele momento único, num local belíssimo, pleno de pura energia e paz.

Dois quilômetros vencidos, sempre à beira do riacho, eu passei por Poço, um pequeno aglomerado de casas, onde pude observar uma perfuradora de rochas, movida por uma grande roda manual.

O caminho ainda seguiu plano por alguns metros, depois principiei a subir até atingir o topo de um morro.

Deixei o rio a correr, lá embaixo, numa espécie de “canyon”, num local tomado por grande floresta nativa.

Eu prossegui caminhando no alto, entre espessos bosques de pinheiros e eucaliptos, num trecho agradabilíssimo, de natureza exuberante, do qual me recordo com o um dos mais belos de toda a minha aventura.

Porém, depois de 3 quilômetros, iniciei um descenso, e logo transpus um riacho por uma ponte metálica, prosseguindo por uma íngreme ladeira pelo lado oposto, até sair diante de uma das ruínas romanas mais famosas de Portugal.

Na verdade, passava diante da porta da antiga cidade de Conimbriga, um dos principais e mais antigos assentamentos romanos em terras lusitanas, refundada sobre um antigo assentamento celta, da tribo de Conii, por Décimo Junio Bruto, em 139 a. C.

Apesar de ser uma das cidades clássicas portuguesas melhor estudadas, apenas uma parte do recinto se encontra escavada, o suficiente para apreciar suas muralhas, alguns mosaicos fascinantes, parte do Fórum e restos de casas de banhos particulares.

A urbe, depois de sofrer uma invasão dos suevos no ano 408, passou a declinar em favor da vizinha Aeminium (Coimbra), que por estar situada às margens de um grande rio, tinha melhores condições de desenvolvimento.

No entanto, os habitantes que aqui permaneceram, acabaram por fundar um novo povoado, a atual Condeixa Velha, situada próxima das ruínas, e o velho assentamento acabou por ser definitivamente abandonado.

Eu fiz algumas fotos do local, e tentei visitar o Museu Monográfico ali existente, onde estão expostas algumas das peças recuperadas, bem como preserva a história do lugar, porém ele só iria abrir suas portas às 10 horas, de forma que optei por seguir adiante.

Assim, logo acessei uma rodovia vicinal asfaltada que, mais abaixo, sinalizou para que eu transpusesse uma movimentada rodovia.

Já do outro lado, eu passei ao lado do bar Triplo Jota, onde fiz uma pausa para tomar um café e descansar um pouco.

O ambiente estava bastante movimentado naquele horário e minha presença foi recebida com certa surpresa, pois peregrinos são raros nesse “tramo”, entre Lisboa e O Porto, pela ausência de albergues.

De qualquer maneira, desejei bom dia a todos, me sentei numa mesa de canto, pedi um café grande e aproveitei para atualizar minhas anotações do dia.

Ainda eram 9 horas e, até ali, eu já percorrera 13 quilômetros.

Bem disposto, deixei o bar, girei à esquerda, e prossegui adiante por uma estrada retilínea e em constante descenso.

Em algum cruzamento eu deveria ter adentrado à esquerda, porém a sinalização não me chamou a atenção, de maneira que, 2 quilômetros à frente e há muito tempo sem avistar as tranquilizadoras flechas amarelas, pedi informação a um sitiante que trabalhava em sua horta.

Efetivamente, ele confirmou que eu me extraviara do itinerário, mas rapidamente me proveu de instruções de como eu deveria fazer para me reencontrar com o roteiro oficial.

Assim, eu retornei uns 500 metros, girei à direita, e logo aportei à vila de Avessada, por onde o caminho não discorre, no entanto, nesse povoado eu consegui visualizar placas me indicando o rumo de Orelhudo.

Assim, eu segui por uma estrada vicinal, ladeado por muitas árvores e, então, e aproveitei para bater algumas fotos, pois o entorno, com várias tonalidades de verde, merecia ser eternizado.

Nesse instante, um carro me ultrapassou em razoável velocidade, e logo à frente, protagonizou a cena mais chocante que vi durante essa peregrinação, e que ficou por muito tempo gravada em minha memória.

Porquanto, ele acabou por atropelar um cão que deixava um bosque pelo lado direito, e o animal, ganindo muito, saiu tropegamente debaixo do automóvel, e se internou num bosque situado à minha esquerda, gritando de dor.

Foi uma experiência terrível, e como eu estava a uns 500 metros do local, e tentei me aproximar rapidamente da lá, para ver se podia auxiliar em alguma providência de resgaste, que minorasse o sofrimento daquele pobre ser vivente.

O condutor desceu do veículo, observou demoradamente os danos causados em seu para-choque, depois retornou ao volante e acelerou forte, pois certamente estava indo para o trabalho.

Quando cheguei ao local, pude perceber outros 3 cães, sujos e magros, que também atravessavam a rodovia, em busca de seu companheiro ferido, e constatei que um dos animais era uma fêmea.

É extremamente raro encontrar cães abandonados na Europa, de maneira que provavelmente eles haviam se perdido pelo fato da cadela estar no cio.

De qualquer maneira, eu nada pude fazer para ajudar o cãozinho ferido, visto que eu estava a pé e não tinha informações se existiria algum resgate ou ajuda a animais que atendesse nas redondezas.

O animal já não emitia ruídos, porém imagino que pelo tamanho da pancada sofrida, ele teria traumatismos internos, o que forçosamente o levariam a morte, já que quedaria sem assistência e alimentação, naquele local ermo.

Sem ter o que fazer no local, eu prossegui em frente, e aquela cena dantesca, que ficou gravada em minha memória por vários dias, acabou por estragar meu humor na jornada, pois fiquei triste e abatido, pensando na fragilidade da vida.

Nesse pique, mais abaixo eu reencontrei as flechas amarelas, passei rapidamente pela pequena vila de Orelhudo, acessei uma rua em aclive, transpus a rodovia nacional e logo adentrei em Cernache, uma cidade de razoável tamanho, que cruzei integralmente por sua rua principal.

Depois de prosseguir por um labirinto de becos e ruas, sempre muito bem sinalizados, passei por Loureiro e Palheira, até que, surpreendentemente, acabei por sair num agradável bosque, orlado por alconaques e encinas.

Foi um trajeto agradável, porque logo alcancei um caminhante, acompanhado por seus dois cães, que se apresentou como Sr. João, e ficou interessado, quando lhe contei que vinha a pé, desde Lisboa.

Seguimos juntos conversando, até que mais acima ele alcançou seu automóvel e me ofereceu carona, a qual prontamente recusei.

Mas, fiquei surpreso quando ele me perguntou se a peregrina que ele vira passar sozinha, instantes atrás, era minha companheira de aventura.

Assim, depois de me despedir do amigo, estuguei meus passos, curioso por conhecer a pessoa que seguia à minha frente.

Dez minutos depois, já próximo da cidade de Cruz dos Mauroços, principiei a descer uma brusca ladeira, e alcancei a Marie, uma peregrina francesa, que também saíra de Lisboa, e caminhara até ali integralmente solitária.

Por sorte, ela além de se expressar em inglês, francês e espanhol, também entendia razoavelmente o português, de maneira que pudemos nos entender perfeitamente, e seguimos em frente a conversar animadamente.

Nesse ritmo, passamos por Santa Clara, acessamos algumas ruas laterais, descendemos pela calçada de Santa Isabel, e logo ultrapassávamos o belíssimo rio Mondego, por uma moderna ponte.

A Marie estava encerrando naquele dia a sua peregrinação, em razão de problemas familiares que solicitavam sua presença no lar, norte da Franca, com urgência.

De qualquer forma, ela iria tomar o trem somente às 22 horas, de forma que ficaria alojada num Hostel e, à tarde, ela iria conhecer o “casco histórico” da cidade.

Assim, combinamos fazer um lanche às 19 h, antes de seu embarque.

Então, eu me dirigi à Pensão Lorbelo, situada logo na entrada da urbe, no Largo da Portagem, onde havia feito reserva.

Para almoçar, utilizei um dos inúmeros restaurantes que estão instalados na Avenida Ferreira Borges, que nasce defronte ao local em que me hospedara, e onde o comércio é forte.

Cidade de ruas estreitas, pátios, escadinhas e arcos medievais, Coimbra foi berço de nascimento de seis reis de Portugal da Primeira Dinastia, assim como da primeira Universidade do País e uma das mais antigas da Europa.

Os Romanos chamaram a cidade, que se erguia pela colina sobre o Rio Mondego,  de Aeminium.

Mais tarde, com o aumento da sua importância, passou a ser sede de Diocese, substituindo a cidade romana de Conimbriga, donde derivou o seu novo nome.

Em 711, os mouros chegaram à Península Ibérica e a cidade passou a chamar-se Kulūmriyya, tornando-se num importante entreposto comercial entre o norte cristão e o sul árabe, com uma forte comunidade moçárabe, e apenas em 1064 a cidade foi definitivamente reconquistada por Fernando Magno de Leão.

Com o Condado Portucalense, o conde D. Henrique e a rainha D. Tereza fizeram dela a sua residência, e na segurança das suas muralhas, iria nascer o primeiro rei de Portugal, Dom Afonso Henriques, que fez dela a capital do condado, substituindo Guimarães, em 1129.

Foi, aliás, esta mudança da capital para os campos do Mondego que se revelou vital para viabilizar a independência do novo país, em todos os níveis: econômico, político e social.

Qualidade que Coimbra conservou até 1255, quando a capital passou a ser Lisboa.

Atualmente, com 145 mil habitantes, é um grande núcleo urbano, e centro de referência na região das Beiras, Centro de Portugal, que conta com mais de dois milhões de habitantes se somarmos “a grande Coimbra”.

Cidade historicamente universitária, por causa da Universidade de Coimbra, fundada em 1290, conta atualmente com cerca de 30 mil estudantes.

É considerada uma das mais importantes cidades portuguesas, devido a infraestruturas, organizações e empresas, além da sua importância histórica e privilegiada posição geográfica no centro da espinha dorsal do país.

Ela é também referência nas áreas do Ensino e da Saúde.

Foi Capital Nacional da Cultura em 2003, e é uma das cidades mais antigas do país e da Europa, apresentando como principal ex-libris a sua Universidade, a mais antiga de Portugal e dos países de língua portuguesa.

Depois de um merecido repouso, saí para conhecer a cidade e, para tanto, me dirigi a parte alta, onde pude visitar, ainda, que rapidamente, a Faculdade de Medicina.

Em seguida, fui até a Sé Velha, onde aproveitei para externar minhas orações.

Depois, calmamente, transitei por praças e ruas dessa belíssima e inesquecível cidade, onde impera a juventude, porquanto é uma urbe francamente voltada aos estudantes.

Com o dia já se findando, me dirigi até a um supermercado, com a intenção de adquirir mantimentos e água para a jornada seguinte.

Às 19 h, a Marie apareceu arrumada e com a mochila, já pronta para viajar.

Antes, porém, conforme havíamos combinado, fizemos um lanche regado a um saboroso vinho tinto, num bar localizado próximo ao “casco viejo”.

Foi uma excelente ocasião para trocar experiências, fazer planos sobre futuras peregrinações, enfim, foram momentos descontraídos e únicos, porque, provavelmente, jamais voltarei a encontrá-la.

Com 68 anos de idade, e frente a sua experiência de caminhante, posto que entre a África, a Ásia e a Europa ela já havia percorrido mais de 30 caminhos diferentes, eu me senti um verdadeiro “pigmeu” em termos de vivência peregrina, e tentei absorver ao máximo seus conselhos e princípios.

Foram momentos de grande descontração e alegria, mas às 20 h 30 min nós nos despedimos, e ela marchou firme em direção à Estação Ferroviária, onde enfrentaria 14 horas de viagem rumo à sua residência.

Eu retornei à Pensão e logo me recolhi, preparando-me para o dia seguinte, quando prosseguiria meu périplo.

Lanchando com a Marie, em Coimbra

IMPRESSÃO PESSOAL – Uma jornada longa, vivida sob intensas emoções. Primeiramente, pelo especialíssimo trecho situado entre Fonte Coberta e Conimbriga, sem dúvida, um dos mais belos locais por onde transitei em minha aventura. Depois, pelo meu extravio, quando passei o acesso à cidade de Valada, bem como a compungida e traumática cena que presenciei com os cães perdidos. Em compensação, o encontro com a peregrina francesa Marie, me trouxe uma nova dimensão sobre as peregrinações, porquanto ela esbanjava experiências, das quais pude absorver alguns ensinamentos, já que percorrera inúmeros Caminhos pelo mundo. No geral, uma etapa plena de acontecimentos, coroando com meu tão sonhado aporte à belíssima cidade de Coimbra.

09ª Etapa – COIMBRA à MEALHADA (SERNADELO) – 25 QUILÔMETROS