2 – O CLIMA E O PEREGRINO

Sou amanhã, ou noutro dia futuro, o que estabeleço hoje. Sou hoje o que estabeleci ontem ou noutro dia anterior.” (James Joyce, romancista, contista e poeta irlandês)

Meu hotel ficava localizado, exatamente, 4,5 quilômetros da residência de meu filho e, diariamente, eu cobria essa distância duas vezes, ida e volta, para tomar o café da manhã com toda a família e, à noite, para jantar.

Durante o trajeto, que fazia com imenso prazer, eu observava tudo atentamente, coligindo informações e anotando esses indeléveis momentos e detalhes daquilo que visualizava com muito interesse.

Avenidas e calçadas por onde eu caminhava, diariamente.

Também, aproveitava o percurso, já que caminhava sempre sobre largas calçadas, situadas, quase sempre, em meio a extensos jardins, rodeados de muito verde, para realizar introspecções e finalizar minhas orações de agradecimento pelo momento que ali vivenciava.

Numa sexta-feira, quando deixei meu local de pernoite, exatamente, às 6 h 30 min, o céu se mostrava ainda nebuloso e pleno de nuvens escuras, com ameaça de chuva para breve, o que realmente aconteceu na metade no percurso.

Contudo, por precaução levava minha capa impermeável e rapidamente me protegi.

Os ônibus que trafegam em Dublin. Dois andares.

Porém, como a intempérie se acentuou e não dava tréguas, optei por aguardar que ela amainasse e, para tanto, me refugiei sob a cobertura de um abrigo existente numa parada de ônibus.

Dublin é o paraíso dos ciclistas, pois conta com mais de 500 quilômetros de ciclovias, e durante o tempo que ali estive recluso, passaram mais de 100 valentes pedaladores, ignorando além da chuva, o piso úmido e o vento gelado.

Ainda, nesse ínterim, pude contar mais de 20 corredores que por ali trotaram, perfazendo seu “footing” matinal, sem se importar com o clima reinante.

Rua localizada onde meu filho e família reside.

Por sinal, certa vez, um amigo alemão me confidenciou que se aguardasse o tempo ficar bom para envidar atividades físicas, quedaria recluso em casa desde a primavera até o outono.

Sem se esquecer que no verão ocorriam dias de intensa tempestade.

Por isso, na Europa há uma dissociação entre clima e praticantes de esportes: cada um segue seu curso, sem se importar com o outro.

E essa constatação me remeteu à Via de La Plata, um trajeto que vai desde Sevilha até Santiago de Compostela, num total de 1008 quilômetros, que percorri em 2008.

Naquela ocasião, que ora relembro, venci uma etapa duríssima, a 17ª de meu cronograma de viagem, aportara a cidade Tábara e, à noite, enquanto ingeria um copo de vinho num bar, ouvi pelo noticiário televisivo que o clima mudaria dentro de 5 dias, com promessa de muita chuva e frio.

Igreja matriz de Tábara.

Aqui me soou como um alento, pois vivíamos uma fase de muito calor e uma queda na temperatura seria muito bem-vinda.

Diga-se de passagem que, ao contrário do Brasil, onde as previsões meteorológicas quase nunca dão certo, as prognoses espanholas, salvo honrosas exceções, são extremamente confiáveis.

Não estou aqui a acusar de incompetência os profissionais dessa área que labutam em nosso país, imagino até que eles realizem suas análises em equipamentos obsoletos em relação àqueles utilizados na Europa.

De qualquer forma, a partir daquele episódio, passei a verificar as previsões todos os dias e elas se mantinham conforme fora anunciado.

Preocupava-me um detalhe, porque nesse dia em que o clima cambiaria, eu cumpriria a etapa compreendida entre as cidades de Puebla de Sanábria e Lubián, uma das mais duras do roteiro, pois ultrapassaria o Alto de Podornello, o local de maior altimetria do Caminho, onde no inverno ocorrem temperaturas negativas, além de fortes nevascas.

Igreja matriz de Puebla de Sanábria

Para melhor reprisar o que vivenciei nesse período, reproduzo abaixo o que escrevi em meu diário sobre aquele dia, 07/04/2008:

A meteorologia previa, já há algum tempo, chuva forte em toda Península Ibérica a partir daquela data.

O mais interessante disso tudo é que lá, dificilmente, as predições se equivocam.

E como enfrentaria um trecho de montanha, fiquei assaz preocupado, pois a serra que defrontaria abriga a cidade de Podornello, situada a 1.329 metros de altura, povoação de maior altitude de toda a Via de la Plata.

Assim, levantei-me às 6 h e desci as escadas rumo ao refeitório, meia hora depois.

Para minha surpresa, o proprietário já estava com o bar aberto.

Assim, foi gratificante e encorajador ingerir um café quente acompanhado de bolachas e frutas, antes de iniciar minha jornada.

Aliás, eu deveria seguir pela cidade até sua Plaza Mayor e ali reencontrar o roteiro do Caminho.

No entanto, o Sr. Carlos, proprietário do estabelecimento, me disse que tal providência seria desnecessária, e me orientou pegar um atalho alternativo.

A partir do Hostal, eu deveria acessar uma rua perpendicular que passaria próximo ao prédio da Guarda Civil e, logo à frente, transporia o majestoso rio Castro, cujas águas banham a cidade.

Foi o que fiz e, assim, depois de atravessar a “ponte velha”, dobrei à esquerda, seguindo por asfalto pelo acostamento da antiga “carretera” N-525, cujo tráfego era escasso.

Trilha matosa e embarreada.

Quatro quilômetros depois, com o dia amanhecendo, as flechas me direcionaram à esquerda, através de um pasto.

As trilhas que encontrei se encontravam extremamente barrentas, mal conservadas e invadidas por mato alto.

Fui labutando por meio de pântanos escorregadios, sem sinalização confiável, e na primeira oportunidade que tive, retornei ao asfalto.

Segui por mais quatro quilômetros pelo acostamento até um local em que o “roteiro” indicava seguir o lado direito.

Um trecho agradável do caminho.

Naquele local, obedecendo as flechas amarelas, adentrei em uma agradável estrada de terra entre pinheiros, castanheiras e bétulas que me levou, mais acima, até Terroso, pequena vila, onde tudo se encontrava fechado.

Prossegui através de agradáveis trilhas rurais, orladas por carvalhos centenários até atingir, às 9 h 30 min, Requejo, pós vencer 12 quilômetros.

A cidade tem forte influência “gallega”, e a maioria de suas casas foi construída com balcões e escadarias de pedra.

Ali existe um moderno e bem equipado albergue particular, além de alguns Hostais.

Num bar próximo à “carretera” fiz providencial pausa para ingerir proveitoso café com pão.

Em sequência, acessei uma estrada asfaltada, ladeada, em toda sua extensão, de castanheiras e madressilvas, árvores típicas da região.

Um quilômetro depois, adentrei numa trilha agreste em meio a uma fechada mata.

Trilha erma e silenciosa.

Nesse “tramo” o caminho é sombrio, às vezes, com túneis formados pela exuberante vegetação que o ladeia.

A trilha é efetivamente pouco transitada, no entanto, extremamente bela.

Em alguns locais, há trechos inundados, por isso, não é um roteiro adequado para trilhar na estação das chuvas.

O trajeto é efetivamente espetacular e plano, em meio a imenso bosque nativo, repleto de samambaias, sempre à beira de encachoeirado e serpenteante regato, na verdade, o rio Castro mais próximo de sua nascente. 

A trilha prossegue por locais desertos e silenciosos.

Em alguns trechos, a paisagem revelou-se tão perfeita, como um cristal finamente lavrado.

Depois de uma hora nessa toada, saí num caminho de terra, fiz um giro de 90º e iniciei a subida da temível “Sierra de Podornello”.

Vagarosamente, trilhei por caminhos ascendentes, passei ao lado de uma fábrica de fertilizantes abandonada, depois, sob a Autovia Nacional e, finalmente, no cume da montanha, saí novamente na “N-525”, que me levou até a pequena vila de Podornello, onde cheguei às 12 h, após percorrer 24 quilômetros.

Parei na “Fuente del Mergullo”, ponto turístico do “pueblo”, para lavar o rosto e saciar a sede, pois, a frígida água que ali escorre, provém de uma nascente localizada na base de um morro próximo e é exaltada pelos moradores em razão de suas propriedades medicinais.

Adentrando em Podornelo.

O tempo estava mudando drasticamente, nuvens carregadas vindas do sul cobriam todo o céu, e deixavam o ambiente frio e carregado.

Apressado, desci rapidamente e, logo abaixo, na saída da cidade, encontrei um Hostal/Bar onde aproveitei para ingerir providencial café com um “bocadillo” de queijo.

Depois, prossegui já em franco descenso e, logo adiante, acessei uma rodovia secundária asfaltada.

Próximo de Aciberos, quatro quilômetros à frente, as flechas me direcionaram à esquerda, por trilhas selvagens, situadas em meio a muito verde e inúmeros riachos murmurantes.

Foi extremamente agradável seguir pelos bosques nativos, sempre em declive, até atingir, às 14 h, a cidade de Lubián, minha meta naquele dia.

No caminho para Lubián: trilha mágica.

O nome Lubián provém de lobo, já que nessa zona boscosa, abundavam estes animais até pouco tempo, porém, foram lentamente dizimados e hoje não mais existem nessa região.

Um detalhe me chamou a atenção, neste povoado não existe uma única rua reta.

O fato decorre da urbe estar situada nas faldas de uma montanha.

Assim, suas vias de tráfego vão se enlaçando em diferentes alturas.

Ainda, observei que todas as casas são feitas em pedra, por sinal, material muito abundante nesta área.

E os telhados são todos em ardósia, não se vendo uma única telha convencional nas construções locais.

O albergue de Lubián: espetacular!

O prédio do albergue é uma edificação nova e moderna, composto de dois andares, todo revestido de pedra talhada, tornando-o muito acolhedor e mais parecia uma Casa Rural.

Pode abrigar até 20 peregrinos e possui calefação, grande cozinha, banheiros funcionais, um verdadeiro luxo, tudo isso cedido ao peregrino, por 3 Euros o pernoite.

A hospitaleira, Dona Conchi, me forneceu um cobertor para dormir, pois, no local não havia mantas.

Às 15 h, depois de tomar meu banho e lavar minhas roupas, teve início uma forte ventania, seguida de uma tímida garoa que se avolumou, paulatinamente e, às 16 h, desabou um pesado temporal.

Nesse mesmo horário, ouvi pancadas na porta principal e, ao abri-la, deparei-me com Miquelle que, mesmo trajando portentosa capa de chuva, encontrava-se literalmente, “molhado até os ossos”.

Mais tarde, a chuva amainou e pudemos ir até o centro do povoado fazer compras em uma “tienda”.

Ao saber que eu completava 57 anos naquela data, meu amigo propôs cozinhar uma “pasta italiana” na cozinha do albergue, no intuito de me homenagear.

Compramos, então, os ingredientes, depois entramos no bar do Javi para um brinde merecido, regado a um encorpado vinho regional, para festejar meu “cumpleaños”.

Brindando meu aniversário!

Quando a noite caiu, nossa alegria transbordava ao sabor do delicioso vinho.

Enquanto conversávamos, Miquelle preparou e serviu saborosa macarronada, acompanhada de salada mista, ovos fritos e pão.

Tudo isto, mais o consistente vinho “Crianza de la Rioja”.

Lá fora a chuva caía sem cessar, enquanto, no aconchego da sala de jantar, nos deliciamos com o saboroso repasto e brindamos, por diversas vezes, aquele inolvidável dia, para mim, sem dúvida, de gratíssima recordação.”

Choveu com intensidade a noite toda e quando me levantei, às 6 h, o mau tempo persistia.

Mesmo assim, otimista, fiz minhas abluções e preparativos, como de costume.

Internamente, me encontrava em ebuliente sublimação.

Pois, estava próximo de cumprir meu almejado objetivo, sonho de qualquer peregrino que faz o Caminho: aportar a Compostela.

Assim, quando se vem de muito longe, como no meu caso, o ato de estar quase pisando em terras galegas, nos deixa consternado e nos anima a afrontar com mais força e intrepidez as derradeiras etapas faltantes, já que nosso destino final parece estar ao “alcance das mãos”.

Às 7 h, quase pronto para partir, acordei Miquelle, conforme havíamos combinado na noite anterior.

O italiano levantou-se, olhou pela janela, coçou a barba por fazer, observou o temporal que se abatia lá fora e confessou:

- “Eu já tenho 62 anos e, sendo assim, não sou mais criança, muito menos “doido varrido”.

Santiago me aguarda em sua Catedral, mas, me quer saudável, jamais enfermo.

De forma que já decidi: não caminharei hoje!

Aguardarei a hospitaleira vir limpar o albergue e vou solicitar-lhe que me providencie um táxi!

Dito isto, entrou novamente em seu saco de dormir e, pouco depois, ressonava tranquilamente.

Assim, esperei, pacientemente, o aguaceiro amainar e bem protegido, vesti minha capa de chuva e segui pelo asfalto até o bar do Javi.

Como previsto, o estabelecimento já se encontrava aberto e repleto de trabalhadores digerindo a refeição matinal.

Lá dentro, enquanto deglutia o desjejum, me entrevistei com um morador local sobre a melhor maneira de chegar a La Gudiña, naquele dia.

Ele reforçou o que eu ouvira no dia anterior, qual seja, desaconselhou-me a caminhar pelas trilhas, em face do traçado contemplar obrigatoriamente as serras locais e, com certeza, deveriam estar encharcadas e perigosas.

Incentivou-me, então, a seguir sempre pelo asfalto que, embora representasse um trajeto insípido e duro, ao menos era seguro em razão do clima reinante.

Após tomar meu café, segui em uma estrada secundária asfaltada, uns 2 quilômetros, até o Santuário de “la Virgem de la Tuíza”.

Naquele local, seguindo as instruções recebidas, virei à direita e, ainda pelo asfalto, prossegui mais 6 quilômetros até me encontrar com a “carretera” N-525.

Naquele lugar, a chuva ainda caía forte, tingindo a paisagem em volta de branco.

A partir dali, restavam 16 quilômetros para atingir meu destino final.

Uns dois quilômetros à frente, deixei a Província de Zamora e adentrei em Orense, ou seja, estava finalmente na Galícia.

E ela, fazia jus a fama de ser um dos locais mais úmidos do mundo, recebendo-me a caráter, pois, a chuva não deu trégua o dia todo.

Às 10 h 30 min, quando ainda faltavam 10 quilômetros para chegar no meu destino, uma perua de transporte escolar parou ao meu lado, buzinando intensamente.

Dentro estava Miquelle que me convidou para seguirmos juntos no inusitado “táxi”.

Respondi-lhe que estava bem e completaria o restante do percurso a pé.

Nessa etapa, utilizei sempre o acostamento da rodovia em sentido contrário ao fluxo de veículos e, passei nos povoados de Vilavella, O Pereiro e O Canizo, até atingir, às 12 h 30 min, La Gudiña, cidade situada nos contrafortes do sistema montanhoso que divide as Províncias de Orense/León, meu objetivo naquele dia.

Enquanto caminhava, aproveitei para fazer breve retrospecto do que tinha vivenciado até aquele momento, quase 800 quilômetros percorridos:

Sevilha é o início, a aventura, as grandes extensões sem “pueblos”, água ou presença humana, além do clima extremamente quente.

Já, na Extremadura, o caminho transforma-se em história. Os vestígios romanos, a Emérita Augusta, a “Calçada Romana”, Cáceres, o Arco de Cáparra, etc..

Mais à frente, adentrando à Provincia de Castilla e Leon, vão se esbatendo os vestígios da dominação itálica.

Salamanca é grandiosa, com sua Catedral majestosa e igrejas onipresentes, o seu saber, a Universidade, tudo intimamente ligado à Igreja Católica.

Em continuação, cheguei à cidade de Zamora, famosa pelas Confrarias, os encapuçados, a Páscoa.

Para mim, uma religiosidade difícil de compreender, pois privilegia a crucificação de Jesus.

Todavia, embora uma cidade austera e carrasquenta, tem seu lado melífluo.

Porquanto, é afamada pelos seus farináceos, posto que oferece em cada esquina uma “tienda” de pães e doces deliciosos.

Próximo à Granja de Moreruela optei em deixar a Via de la Plata, que prossegue até Astorga, onde se atrela ao Caminho Francês.

Preferi, então, seguir pelo roteiro Sanabrês, este sim, uma senda de espiritualidade e interiorização.

Na sequência, são uma constante os “pueblos” praticamente abandonados, mas não esquecidos, uma vez que placas fincadas pela Fundação Ramos de Castro falam da povoação, de seus habitantes, da história, remetendo-nos sempre a uma reflexão...

“Caminante, el cordón de la vida és lo que importa, los demás son verdades relativas. Que la andadura te entrañe com la esencia del vivir”...

Sem dúvida, a emoção maior que senti foi adentrar à Província da Galícia, pois, ali já estava próximo da consecução de mais um sonho, qual seja, rever pela terceira vez Santiago de Compostela, meu destino final.

Em La Gudina, no local onde ocorre a divisão de caminhos. Nós fomos pela direita.

Em La Gudiña, fiquei hospedado no albergue de la Xunta, por certo, o melhor que pernoitei. No piso superior ficam os dormitórios, que contêm 24 beliches. Ainda, 4 duchas, 4 lavabos, e 8 banheiros. No piso inferior há cozinha, sala de estar, banheiros, escritório, sala de TV, etc. Um verdadeiro luxo!

Ali encontrei instalado, além de Miquelle, um peregrino alemão de nome Olaf, que naquele dia ficara de “molho”, pois, segundo me contou, não se sentira bem ao acordar. Em compensação, confidenciou-me que os outros seis hóspedes, inclusive meu amigo Gianfranco, tinham seguido de trem para Laza, devido à intensidade da chuva que desabara, qual seja, naquele dia ninguém caminhara.

Um detalhe me chamou a atenção no espaçoso “refúgio”, que dispõe de um quadro onde várias cópias da chave da porta de entrada são disponibilizadas aos peregrinos. Dessa forma, aquele que resolver dar uma volta no “pueblo”, pode retornar sem problemas de acessibilidade ao edifício, um confortável sistema não oferecido em qualquer outro.

Para almoçar utilizei os serviços do bar Oscar (9 Euros), que recomendo, mormente pelo seu delicioso “Caldo Gallego”.

O edifício da Biblioteca Municipal está localizado próximo ao albergue e lá pude acessar a Internet, graciosamente.

Mais tarde dei um breve giro pelo povoado e aproveitei para conhecer a igreja de San Martinho, cuja construção data de 1.619.

Comprovei, ainda, por onde deveria prosseguir no dia seguinte, pois, a partir desta cidade existem duas opções para se chegar à Ourense. 

Uma, mais plana e longa, passa pela cidade de Verín. E a outra, mais curta e acidentada, segue através de Laza. Escolhi este último, por onde seguiria.

À tardinha, Miquelle entusiasmado com o conforto e funcionalidade da ampla cozinha do albergue, resolveu ser “mestre-cuca” novamente, de maneira que nós três, os únicos ocupantes do imenso estabelecimento, saímos para comprar mantimentos e, depois de pronta a refeição, jantamos com fartura, comunitariamente.

Em La Gudina, no albergue, jantando com Miquelle.

A intempérie havia dado ligeira trégua ao anoitecer, mas retornou com fúria logo depois e seguiu noite adentro, proporcionando-me um sono reparador, e, ao mesmo tempo, inquietante, em razão da dura jornada que enfrentaria na manhã seguinte.

Choveu durante a noite toda e a tempestade sucedia, ininterruptamente, sempre acompanhada de fortes trovoadas e intensa ventania.

A água batia na janela próxima de minha cama e me deixava preocupado, porquanto sabia que a jornada daquele dia seria, deveras, complicada.

Acordei às 6 h, surpreendentemente, com o barulho feito pelo despertador do celular de Miquelle.

Levantei-me e perguntei-lhe porque sairia tão cedo, visto que nunca iniciava sua trajetória antes do dia clarear.

Para minha surpresa, respondeu que novamente não caminharia naquele dia, pois, não era nenhum “maluco”, haja vista o clima reinante.

Prevendo que o tempo não melhoraria, pesquisara no dia anterior os horários disponíveis e tomaria o trem que fazia o percurso La Gudiña/Laza, diariamente, às 7 h. 

Instou-me a seguir com ele.

Seu convite feito à “queima-roupa”, me deixou confuso e indeciso, visto que também prezava por minha saúde.

Olaf se levantara também e fazia alongamentos num dos cantos do imenso salão onde pernoitáramos. Quando o inquiri, respondeu que ao contrário de Miquelle, naquele dia, iria “à luta”, pouco lhe importava a intensidade do frio ou da chuva que caía lá fora.

Complementando, explicitou-me que em sua pátria existe um ditado contundente que ele ferrenhamente exercitava, qual seja: clima e pessoas são agentes dissociativos e excludentes, isto queria dizer, algo físico e atemporal não pode nem deve interferir, necessariamente, na decisão da outra.

Imediatamente, minha hesitação desapareceu e, confiante, afirmei-lhe que iríamos juntos afrontar o destempero celeste, com o qual, prontamente concordou.

Assim, após o desjejum matinal preparado na cozinha do albergue, partimos por volta das 7 h 15 min, sob forte aguaceiro.

Seguimos por uma rua paralela à “carretera” até um marco que assinala os dois caminhos possíveis a seguir para chegar à Orense: À esquerda, passando pelas cidades de Verin e Xinzo de Limia, segundo as informações disponíveis, era o percurso mais bonito e fácil. Todavia, mais longo, acrescendo à jornada, um total de 9 quilômetros.

Assim, optamos em fazer o recomendado pelo guia que portávamos e prosseguimos à direita, em direção às cidades de Laza e Vilar de Barrio. O trajeto inicial foi feito por uma estradinha asfaltada, sempre em perene ascensão.

Lentamente o dia foi clareando, sem, no entanto, a chuva dar sinal de parar.

Mesmo assim, em bom passo, fomos vencendo as distâncias, passando, primeiramente por Venda do Espiño, depois, Venda Tereza, Venda Capela e Venda Bolaño, todas pequeníssimas vilas que não oferecem nenhum tipo de serviço ao peregrino.

Na trilha, sob muita chuva, em direção à cidade de Laza.

Praticamente, toda primeira metade dessa etapa foi trilhada na crista de altos morros, acima de 1.100 m de altitude e, deslumbrados, podíamos observar abaixo de nossos pés as nuvens que rodeavam as montanhas.

Infelizmente, a magnífica vista que dali se descortinava, era prejudicada pelo mau tempo reinante.

Creio que num dia ensolarado a paisagem ao derredor deve ser algo incomensurável.

Porém, às vezes, havia mais claridade propiciada pela intensa movimentação dos vapores aquosos, tínhamos então uma exuberante visão dos profundos vales que nos cercavam, de ambos os lados da rota.

Em algumas situações, parecia-nos estar caminhando praticamente sobre um tapete branco, com a terra abaixo de nossos pés.

Em determinado ponto, contemplamos, ao longe, um pântano no sopé de uma grande serra, na verdade, o “Embalse de las Portas”. 

"Embalse de las Portas", visto desde a trilha.

E, de trecho em trecho, via-se a linha do trem que serpenteava, aqui e acolá, num vai e vem até Orense. Trata-se, na verdade, da imensa “Sierra Seca”, cujo traçado é conhecido por “Verea Vella”.

Muito embora tenhamos nos perdido quase no final e, por conta da ausência de sinalização, feito grande e desnecessário volteio por uma rodovia asfaltada, depois de 20 quilômetros percorridos, exaustos e ensopados, aportamos a Campobecerros, às 11 h 45 min.

Na cidade encontramos o bar da Isabel aberto e ali fizemos providencial e necessária pausa para lanche e café com conhaque.

Existia um aquecedor a lenha instalado no meio do recinto e aproveitamos para secar nossas roupas e aquecer mãos e pés que estavam a ponto de congelar.

Refeitos, passamos ao lado de “la Iglesia de la Asunción, e prosseguimos por uma estrada asfaltada situada entre grandes montanhas, sempre subindo, até alcançar Porto Camba, pequena vila que também não oferece nenhum tipo de serviço.

A se destacar neste pequeníssimo “pueblo” que todas as casas foram construídas com pedras de ardósia.

Inclusive a igreja de San Salvador, de estilo barroco, também foi edificada com esse tipo de material.

Continuamos em frente, ainda em ascensão, até atingir, às 13 h, uma cruz fincada no topo da encosta pelos frades do “Monastério de los Milagros”, em memória aos peregrinos falecidos enquanto trilhavam o Caminho.

Ali, finalmente, abandonamos o piso asfáltico e seguimos por uma larga estrada de terra à esquerda, agora em grande descenso. 

Quase chegando a Laza, quando a chuva já havia parado.

O céu continuava cinzento e pesado, porém, a chuva tinha cessado.

As visões que se sucediam lá de cima eram realmente maravilhosas e alcançavam a linha do infinito horizonte.

Depois de mais uma hora de caminhada, ultrapassamos dentro de “As Eiras”, pequeno e deserto “pueblo” galego.

A partir desse povoado, tudo se faz por asfalto.

Assim, prosseguimos descendo entre grandes bosques de pinheiros, num constante ziguezague, até atingir, às 15 h 15 min, a cidade de Laza, nosso destino, naquele dia.

Um simpático morador nos conduziu até a escritório da Proteção Civil, onde preenchemos uma ficha cadastral e foi-nos entregue uma chave do albergue que, por sinal, encontra-se a uns 400 metros do centro da cidade.

O Albergue de Laza.

O edifício está situado num centro polidesportivo e possui quatro dormitórios, com oito camas em cada um deles.

Além disso, disponibiliza cozinha, frigorífico, secadores, ampla sala de estar, abundante e moderno mobiliário, é amplo, sólido, confortável e muito bem gerido.

Ali, além do amigo Miquelle, encontrei o Francisco, um peregrino português que chegara pelo “tramo” de Verín.

Nos instalamos os quatro confortavelmente num único quarto e tivemos uma noite bastante agradável.

Fiz, à tarde, após breve “siesta”, um giro pelo povoado e pude ver que o lugar é cheio de alusões aos seus animados e peculiares carnavais.

Famoso ali é um bonito e original cruzeiro, do século XV, construído sobre quatro grandes pilares, ainda que se encontre atualmente num espaço restrito e tenha sua visão obstruída pela fiação aérea que conduz eletricidade às casas contíguas.

Para jantar, utilizamos os serviços do bar Blanco (10 Euros).

Em Laza, jantando com Olaf e Miquelle. Saudades...

Imperioso enaltecer a refeição preparada pela esposa do proprietário, pois, estava deveras supimpa, seguramente, uma das mais saborosas que ingeri em todo o Caminho.

De Olaf jamais esqueci, até hoje mantemos contato e, pelo que sei, tornou-se um profissional de sucesso em sua profissão.

Rememorando esses fatos pretéritos, emerge de forma límpida em meus pensamentos a sábia decisão de nossos amigos europeus que sabem conciliar compromissos físicos com mau tempo, não se abatendo diante de chuvas ou nevascas quando perseguem um objetivo, seja em termos de peregrinação ou exercícios que lhes beneficiem a saúde.

Bom Caminho a todos!