3ª Etapa – AZAMBUJA à SANTARÉM – 33 QUILÔMETROS

3ª Etapa: AZAMBUJA à SANTARÉM – 33 QUILÔMETROS – “A GRANDE PLANÍCIE” 

“Adentramos, definitivamente, no coração da região do Ribatejo e do rio Tejo. Um curso d’água de avenidas caprichosas (em 1912 ele alcançou um recorde com 8 metros acima do seu nível normal, em Santarém), que nas palavras de José Valentim Filho, um grande cronista português, produz uma “urgente sensação do Vale do Nilo, uma terra de promessas vasculares, um úbere de abundância.” Nos espera uma jornada por um cenário minimalista e retilíneo, de campos intensamente cultivados, todo coberto por grandes canais de irrigação. Sobre essas férteis terras despontam, a duras penas, algumas árvores copadas como chopos e álamos, bem como os campanários brancos das aldeias agrícolas. O perfil segue sendo, como no dia anterior, radicalmente plano (se excetuarmos a subida final a Santarém), e há menos asfalto, contudo, sendo a linha do horizonte sempre lisa, e face à ausência de sombras (cada palmo de chão está cultivado), faz com que essa etapa seja um tanto monótona.” (Traduzido/transcrito do Guia El País Aguilar, edição do ano de 2007, que utilizei na viagem)

 

Estava bastante escuro ainda, quando deixei o hotel onde me hospedara, exatamente às 6 h 15 min.

Ainda aquecendo minhas pernas, eu desci por uma rua fria e silenciosa e, ao seu final, dobrei à esquerda, e acessei as escadarias de uma grande passarela coberta, na qual eu atravessei o complexo das vias férreas.

Ao descer do lado oposto, eu passei ao lado da Estação Ferroviária, fleti à esquerda, e adentrei em uma rodovia asfaltada, que seguiu por um bom tempo paralelo a um grande canal de irrigação, visto do meu lado direito.

Dois quilômetros à frente, eu ultrapassei por uma ponte de ferro, o imenso Canal de Azambuja, cuja obra foi realizada a mando do Marquês de Pombal, traz as águas do Tejo para distribuí-la em novos canais de irrigação, em terras situadas mais abaixo de onde eu me encontrava.

Então, obedecendo a sinalização, eu dobrei à esquerda e prossegui por uma estrada de terra, que seguiu paralela ao canal que eu acabar de transpor.

Nesse local foram encontrados fragmentos da antiga calçada romana que por ali passava.

Depois de mais um quilômetro vencido, e com o dia já clareando, eu me vi diante de um pesadelo, pois encontrei o derradeiro trecho da senda por onde eu caminhava, integralmente alagado, em razão das intensas chuvas que ali haviam caído recentemente.

Voltar seria impensável, assim prossegui adiante, tentando de todas as formas circundar os atoleiros, subindo em barrancos, quando possível, mas em várias ocasiões eu tive água até o meio da perna.

Para complicar, em algumas oportunidades eu quase perdi minhas botas, porque elas aderiam ao lodo espesso, existente no leito da vereda, me deixando um tanto preocupado com a possibilidade de me quedar descalço naquele lugar solitário.

Esse tormento perdurou por quase uma hora, até que, depois de passar diante da Quinta das Quebradas, finalmente consegui superar esses obstáculos e sair numa larga estrada de terra.

Eu me encontrava molhado, cansado e extremamente dolorido pelo esforço despendido nesse trecho específico, talvez o pior pedaço em toda a minha aventura.

Então, fiz uma pausa para hidratação e relaxamento, enquanto avaliava os estragos sofridos nos pés e em minha vestimenta.

Já que eu me encontrava totalmente molhado até os joelhos, e havia barro até em meu boné.

Na sequência, passei ao lado de um aeródromo, e logo acessei uma rodovia vicinal asfaltada que, depois de 3 h de percurso, 11 quilômetros percorridos, me fez transitar pela cidade de Reguengo.

Calmamente, atravessei a pequena vila, utilizando uma pista que segue acima do dique de contenção do rio Tejo.

Mais 3 quilômetros caminhados em bom ritmo e cheguei à cidade de Valada, onde Dom Pedro I teve seu palácio real.

Pude, ainda, fotografar a igreja de Nossa Senhora do Ó, edificada em 1211, pelo rei Afonso II.

Em face de infiltrações, ela foi reformada em 1528, e novamente em 1901 e 1962, pelo que se encontra um tanto desfigurada, embora ainda conserve um retábulo com pinturas maneiristas, da época de sua construção original.

Valada, é uma pequena povoação, que atravessei por sua avenida principal, seguindo paralelo ao dique de contenção do rio Tejo.

A imensa variação desse grande rio, que pode passar de 23 m3 na época de seca, para 11.000 m3 no inverno, tem sido uma maldição secular para essas terras ribatejanas, mas, também uma fonte de riqueza.

A lama que ele deixa agregada ao solo, tal qual um Nilo em miniatura, tem fertilizado essas planícies desde tempos imemoráveis, convertendo-as em uma das terras mais férteis de Portugal.

Através de métodos proativos, hoje os embalses e as represas regulam o ritmo do curso d’água e evitam o alagamento das áreas cultivadas e dos povoados.

Contudo, antigamente, a única defesa existente ante o crescimento das águas, eram os diques de contenção, como este por onde agora discorre o Caminho.

O roteiro seguiu por 12 quilômetros, sempre ao lado de um grande muro de proteção, que vai margeando o rio, tendo eu pelo meu lado esquerdo, imensas áreas cultivadas, onde o trabalho no campo era intenso, com tratores fazendo aração ou colheita de víveres ali plantados.

O percurso variou bastante, algumas vezes em solo asfáltico, outras por terra, e nesse trecho específico, eu passei diante das belas Quinta das Adélias e da Mota de Frade.

Na realidade, elas correspondem ao que no Brasil chamamos de fazendas, sendo que a segunda acima, se encontrava ornada por vistosas palmeiras.

Posteriormente, transitei por uma pequena vila chamada de Porto de Muge e, na sequência, sob a grande ponte Dona Amélia, que transpõe o rio Tejo e vai em direção a Cartaxo.

O trajeto prosseguiu em terra, e extremamente bucólico, nesse trecho eu prossegui sempre junto ao dique pela estrada rural que o acompanha, passando pela Quinta do Pedroso, Quinta das Varandas, Quinta do Malpique e Quinta da Caneira.

Depois de 20 quilômetros vencidos, observei surpreso um peregrino caminhando no horizonte a minha frente.

Ao alcançá-lo e, após cumprimentá-lo, soube que se tratava do Sr. Júlio, um italiano, que naquela noite pernoitara em Porto de Muge.

Contou-me que caminhava sempre ao redor de 20 quilômetros diariamente, pois estava com um grave problema no tendão de Aquiles e não podia forçá-lo, sob pena de encerrar sua aventura.

Logo adiante, nós dobramos à esquerda, nos afastamos do rio Tejo, e prosseguimos caminhando agora em meio a imensos vinhedos.

No horizonte, sobre um morro, eu já podia avistar a cidade de Santarém, mas ainda me restavam uns 10 quilômetros para lá aportar.

A conversa prosseguiu animada, enquanto nós prosseguíamos num ritmo confortável, mas intenso.

Contudo, logo notei que o italiano ofegava intensamente, até porque exibia um razoável sobrepeso.

Assim, me despedi dele, desobrigando-o de acompanhar minhas passadas, ficando acertado que nos encontraríamos à tarde em Santarém, porque ele também iria lá pernoitar.

Infelizmente, não o encontrei, bem como não o vi mais, assim, espero que ele tenha conseguido realizar seu sonho a bom termo, posto que ele iria prosseguir pelo Caminho de Fátima.

Novamente solitário, comecei a suar em bicas, porque o sol estava intenso e crestava já sem dó.

Depois de meia hora, eu deixei o belíssimo casarão da Quinta do Carqueijo, à minha esquerda, e logo a seguir, o piso em terra por onde eu vinha caminhando se converteu em asfalto, quando acessei uma rodovia vicinal.

Por ela eu passei ao lado de um Aeródromo, e logo teve inicio uma penosa e íngreme aclividade, já na rua denominada Calçada da Junqueira, que fui vencendo lentamente, em face do sol quente, que brilhava intenso num céu azul e sem nuvens.

Nesse trecho, passaram alguns ciclistas, que também subiam.

Um velho atencioso que vinha em sentido inverso, me deu interessante dica de como melhor enfrentar a elevação, que me foi muito proveitosa.

Esse trecho final, em duro ascenso, foi um bom teste para a minha resistência física, porque depois de ter caminhado 32 quilômetros, precisei muita tenacidade para suplantar os metros derradeiros.

Finalmente, às 13 horas, eu adentrei em Santarém, minha meta para aquele dia, quase desfalecendo de cansaço.

Esta cidade, muito antiga, teria sido contatada por Fenícios, Gregos e Cartagineses, porquanto sua fundação se reporta à mitologia greco-romana e cristã, reconhecendo-se nos nomes de Habis e de Irene, as suas origens míticas.

Os primeiros vestígios documentados da ocupação humana remontam ao século VIII a. C.

A população do povoado teria colaborado com os colonizadores romanos, quando estes aportaram à cidade em 138 a. C. e a designaram como Scalabis.

Durante este período se tornou o principal entreposto comercial do médio Tejo, e num dos mais importantes centros administrativos da província Lusitânia.

Dos romanos recebeu o nome de Scalabi Castro.

Com as invasões dos Alanos e dos Vândalos passou a ser designada por Santa Irene.

Passou para a posse dos mouros em 715 até que D. Afonso Henriques a conquistou definitivamente em 1147.

Num golpe audacioso, perpetrado durante a noite, a cidade caiu na posse de um escasso exército reunido pelo Rei de Portugal.

A cidade, capital do gótico português, um baluarte estratégico sobre o leito do rio Tejo, foi sede das cortes portuguesas, posição desejada por todos os reis, e freio estratégico a todos os avanços dos muçulmanos e castelhanos.

Dizem que em tempos de revolução, na idade medieval, apareceu próximo à cidade um cadáver de uma donzela que se defendeu, até a morte, à tentativa de ultraje de um monge.

A jovem virtuosa se converteu em Santa Irene (ou santa Eira), e a cidade passou, a base de contradições, a adquirir o topônimo atual.

Confalonieri e o Monselhor Biondo passaram por aqui numa quinta-feira, dia 21 de abril de 1594, e chamou-lhes a atenção seu tamanho e riqueza: “É um lugar tão grande que existem muitas cidades na Itália que não chegariam aos seus pés, mesmo crescendo muito.”

Descreveu, ainda, três milagres acontecidos na cidade, que lhe impressionaram muito.

 

Para pernoite eu utilizei o Residencial Beirante, de excelentes acomodações, situado próximo do Mercado Municipal, no Caminho que vai em direção à Fátima.

Antes de almoçar, precisei lavar toda minha indumentária, desde calça e camisa, além das meias, boné, cueca, blusão e joelheiras, pois se encontravam todas cheias de barro, em face do terrível obstáculo encontrado de manhã, na travessia da senda alagada.

Após uma soneca rápida, saí passear pela cidade, e pude visitar a igreja da Sé, dedicada a Nossa Senhora da Conceição, edificada sobre o solar do antigo palácio dos reis portugueses.

Depois me dirigi à Igreja de Santo Agostinho da Graça, edificada em 1380, um grande monumento gótico, onde se encontra enterrado Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil, mas, infelizmente, talvez por ser um sábado, o templo se encontrava fechado.

Então, me dirigi à Puerta de São Tiago y Salinas, local por onde eu deixaria a cidade na manhã seguinte.

Em seguida, retornei uns cem metros e fui visitar as Portas do Sol.

Na verdade, o valor estratégico de Santarém só se compreende quando o peregrino chega nesse local, onde estão presentes os restos de uma antiga fortaleza que ali existiu, e que recentemente foi convertido num belo parque urbano.

Um mirador exclusivo foi colocado à disposição dos visitantes, e dali se tem uma vista privilegiada de todo o vale por onde moureja o rio Tejo, sem descanso, bem como de toda a área circunvizinha.

Voltando para o Hostal, pedi informação a um velhinho defronte à Torre das Cabaças, também conhecida simplesmente como Torre do Relógio.

Uma simples pergunta se transformou numa agradável conversa com o senhor Joaquim, ribatejano da melhor cepa.

O povo Santarense é acolhedor e caloroso, e a cidade era um espetáculo, ainda mais vibrante naquela noite por causa do jogo da seleção portuguesa de futebol.

Simplesmente, as ruas e os cafés naquele sábado à tarde fervilhavam de gente.

Na verdade, pelo que pude observar nas terras lusas, a vida social, a convivialidade e o encontro de pessoas e famílias acontecem muito nos bares, que regurgitam de gente na virada do meio dia e à noitinha.

Finalmente, depois de tomar um aperitivo no balcão de um botequim, o que é normal ali, retornei ao local de pernoite, com o espírito mais de turista interessado em história do que de peregrino.

À noite, preocupado porque teria outra acidentada jornada no dia imediato, optei por fazer um singelo lanche no quarto.

E logo fui dormir, pois me encontrava bastante cansado, em razão da dura jornada vivenciada naquele dia.

 

IMPRESSÃO PESSOAL – Uma jornada toda plana, contudo de razoável extensão, feita praticamente 50% em terra, o restante em piso asfáltico. Agravada, terrivelmente, pelo trecho alagado que me surpreendeu no início do trajeto. Porém, o percurso transcorre sempre em meio a muito verde, com imensos espaços cultivados ladeando o peregrino. A dificuldade maior situa-se na chegada à Santarém, pois no derradeiro quilômetro, é preciso sobrelevar uma elevação de 100 metros, algo bastante sofrível, para quem já venceu 32 quilômetros, e necessita encontrar forças extras para superar mais esse difícil obstáculo.

4ª Etapa – SANTARÉM à GOLEGÃ – 32 QUILÔMETROS