MEUS AMIGOS FRANCESES

Com Alfred, Anete e Louiz, na Praça do Obradoiro, em Santiago de Compostela, no dia de nossa chegada: 07/05/2001.

A primeira vez que os vi foi no albergue de San Jean (FR), dia 09.04.2001, quando, solitário, tenso e inseguro, preparava-me para iniciar o Caminho de Santiago.

Quatro franceses, altos, fortes, sendo três homens e uma mulher. Todos na faixa etária entre 65 e 70 anos, mostravam-se alegres, cordatos e amistosos.     

Diz a tradição ser os franceses dotados de gênios irascíveis, a tratar os outros com arrogância e sarcasmo. Orgulhosos, só falam a língua pátria, assim, aquele que desejar entendê-los deve conhecer seu idioma.

A história conta que César, Imperador Romano, ao conquistar a Gália, atual França, em 58 a.C., usava, com contumácia, uma maneira imponente e mordaz de tripudiar sobre os vencidos, à época, os Celtas.

Por isso, os gauleses, atuais franceses, salvo exceções, sempre se consideraram pessoas superiores aos demais seres humanos.

Àqueles peregrinos, a quem me referi, também só conversavam em francês, porém, mostravam-se solícitos e receptivos ao mesmo tempo que interagiam com os demais, sempre em voz baixa, e em tom afetivo. Interessado, após interrogá-los, por gestos, informaram-me que moravam numa cidadezinha perto da fronteira com a Suíça, distante dez quilômetros de Genebra.

Haviam partido de Le Puy 16 dias antes, já tendo percorrido até ali, 400 quilômetros. Houve o rompimento da barreira invisível que separa as pessoas de nacionalidades diferentes, eles como a desmentir suas heranças atávicas. Aquela empatia inicial a conjungir-nos prenunciou para mim, o início de sólida amizade, e bons augúrios para a jornada que eu estava prestes a encetar. 

No dia seguinte saí cedo e não os vi durante o trajeto, porém em Roncesvalles, à noite, assistimos à missa dos peregrinos juntos, mas face à imensidão daquele paradouro, ficamos em lugares distintos. Após esse dia, só fui revê-los novamente ao sair de Estella em direção a Irache, quando cumpri minha sexta etapa no Caminho.

Ao olhar para trás, pude vê-los de longe, com suas blusas de um vermelho intenso a denunciá-los, ainda na fímbria do horizonte. Ultrapassaram-me rápido, passos vigorosos e cadenciados, numa saudação cordial me desejaram "Bom Caminho", desaparecendo numa curva adiante. Inferi que haviam pernoitado em algum hostal, pois não haviam dormido, como eu, no albergue da cidade.

No Caminho, próximo de Hontanas.

Revi-os novamente no refúgio de Nájera, mas nossos laços se estreitaram realmente no Monastério de San Juan Ortega, pousada obrigatória, onde ocupamos camas vizinhas.

Após a missa lá celebrada, durante a sopa de alho servida pelo Padre José Alonso, iniciamos animado diálogo em truncado "francêsguês" (mistura de francês com português), entremeado de gestos, num esforço conjunto de se fazer entender, a salopar rapidamente nossas diferenças étnicas e culturais.

Fiquei sabendo então, seus nomes: Gerard, Louiz, Alfred e Anete; e compreenderam o meu, pois o repetiram por diversas vezes, a fim de harmonizar o sotaque carregado: "Oswaldôôô!!!, Oswaldôôô!!!

Depois, sempre que me viam, gritavam, além do meu nome: "Ronaldôôôô!!!" e mostravam os dedos voltados para cima, 3 numa mão e 0, na outra, a lembrar-me o placar na derrota do Brasil para a França, dia 12 de julho de 1998, em Paris, na final da Copa do Mundo daquele ano.

Em Castrojeriz, na 12ª jornada da minha peregrinação, após albergar-me, num sábado, encontrei-os numa rua, ainda de mochila nas costas. Haviam saído, como eu, cedo de Burgos, porém haviam se perdido no trajeto, assim só estavam chegando àquela hora. Infelizmente o albergue encontrava-se completamente lotado e eles haviam tentado pouso em dois hostais que lá existem, porém sem sucesso, pois os mesmos também se encontravam sem vagas face à festa que lá aconteceria naquele final de semana.

Sem alternativas, disseram-me que continuariam a caminhar, uma loucura sob meu ponto de vista em razão do adiantado da hora, e também porque já tinham, como eu, vencido até ali, 37 quilômetros naquele dia. Pernoitaram no albergue de Puente Fitero (Ítero de La Veja), soube ao reencontrá-los em Carrion de Los Condes dois dias depois. Infelizmente, na subida do Alto de Mostelares, Alfred, exaurido pela jornada cansativa, havia sofrido uma queda e torcido o tornozelo. Mesmo medicado caminhava claudicando.

Às lágrimas, e por gestos, me confessou que seguiria os companheiros de ônibus durante o percurso até Leon, e se não melhorasse, desistiria.

E foi isso que se sucedeu, contaram-me lamuriosos o fato, na cidade de Órbigos, seguiram, então, após essa baixa forçada, apenas os três. Fiquei surpreso, pois estava caminhando a tarde numa rua daquela localidade à procura de Supermercado quando ouvi alguém gritar às minhas costas: "Oswaldôôô!!! Brasillll!!!

Atônito, inocentemente pus-me a perguntar, quem poderia me reconhecer naquele local? Ao voltar-me, lá estavam eles, rostos sorridentes a me aguardar para um abraço fraterno. E assim foi, a cada dois ou três dias revíamo-nos, eles sempre a me saudar de forma calorosa pelo nome e a gritar: "Brasillllll".

Em Portomarin, dia 03.05.2001, indaguei-lhes em quantas etapas pretendiam vencer os 92 quilômetros restantes do percurso. Respondeu-me Gerard que o faria em 4 dias, chegando ao final do Caminho dia 07.05. Declinou-me os locais de pouso, porém, eram cidades desconhecidas para mim, e não coincidiam com os albergues onde eu pretendia pernoitar. Assim, conformei-me em reencontrá-los no dia 8, quando de minha chegada a Santiago de Compostela.

Porém, mister meu arrojo na etapa derradeira, acabei encerrando minha jornada no mesmo dia que eles. Após aportar à Catedral, e vencidas as tradições de praxe, como conhecer a igreja e abraçar Santiago, retornei à Praça do Obradoiro. Uma multidão de turistas por ali perambulava a fotografar a vistosa Basílica. Eu, ainda absorto pela beleza do local, em êxtase pela chegada, mochila às costas, sentia-me algo deslocado naquele burburinho humano de pessoas desconhecidas, quando de repente ouço um coro de vozes à retaguarda, a saudar-me: "Oswaldôôô!!! Brasillll!!!!

Eram eles, radiantes, banho já tomado, em suas indefectíveis blusas vermelhas a me cumprimentar. A emoção foi tão grande, que ninguém soube o que dizer um ao outro, apenas nos abraçamos emocionados, onde as limitações da comunicação verbal foram compensadas pelo calor do reencontro. Contaram-me que depois de partirem aquele dia de Pedrouzo (Arca), à vinte quilômetros dali, houve problemas com Anete que passou mal no Caminho, e chegaram apenas às 14 horas, após o término da missa diária.

Jantar Comunitário no Monastério de San Juan Ortega.

Encontravam-se hospedados numa pensão ali perto. Combinamos jantar juntos naquele dia. E assim, à noite, nos encontramos num restaurante. Foi uma refeição alegre, um brilho diferente nos olhos de cada um pela vitória alcançada, brindes e mais brindes de bom vinho, a comemorar nosso reencontro.

No dia seguinte assistimos à missa do peregrino, a nossa missa, porque seríamos homenageados nela. Ao pé do altar, num local reservado pela equipe litúrgica, juntei-me a meus amigos franceses que gentilmente acolheram-me no meio deles.

Os demais peregrinos estavam ali reunidos, uns acomodados em bancos de madeira, outros em pé, lado a lado, alguns sentados ao chão em completo estado de sublimação. Eram semblantes que em outros tempos já vira contritos e angustiados.

Hoje, brilhavam seus olhos, jubilavam suas almas. Nessa hora mágica o companheirismo aflora, como é bom rever amigos de tantos momentos difíceis.

A beleza da Catedral é resplandecente, o altar de um dourado que ofusca. Precedeu o início da missa, um cântico sacro gregoriano. Ao término deste, o padre celebrante, com eloquência, pede aos peregrinos para ficar em pé, identifica-os numa relação escrita e dá início a apresentação aos demais fiéis presentes.

Todos os que buscaram suas "Compostelanas", certificado que é emitido para aqueles que, comprovadamente, fizeram mais de 100 quilômetros a pé, ou 200 quilômetros de bicicleta, desde às 12:00 horas do dia anterior até às 11:00 horas daquele dia, estão nela relacionados.

Ele principia então a leitura: "José González, peregrino espanhol, iniciou sua caminhada dia 9 de abril em Roncesvalles, Willian..., alemão, in...(atentos, aguardamos nosso nome ser proferido).., Oswaldo..(sou eu!)., peregrino (minha garganta se aperta, um nó impede-me a fala) brasileiro, iniciou..(lágrimas copiosas enchem meus olhos,)..seu caminho..(meu coração bate descompassado)..dia 10 de abril em San Jean..(sou amparado e cumprimentado pelos meus amigos, não consigo falar nem emitir som algum, minha garganta se aperta, a emoção é muito forte),...     

O padre continua sua leitura, Robert White, peregrino americano, iniciou.., de repente..!, Gerard..., Louiz...., Anete....(são eles!), iniciaram seu Caminho (observo-os, de soslaio, estão pálidos, emocionados)..dia 24 de março..(seus olhos úmidos, fixos em Santiago) em Lê Puy (cumprimento-os, um abraço apertado, eles também não conseguem falar), França,....Carlos Al.., .." e a apresentação prossegue até o último nome, num ritual solene, que embarga corações.

Acomodo-me para assistir à missa, o coração ainda bate forte, o padre no sermão exorta-nos como testemunhas de fé, de tenacidade, a vencer os obstáculos diários que nos eram impostos, sempre com os olhos voltados em Santiago, centenas de quilômetros à frente, na certeza da chegada. Por uns instantes fico a imaginar mergulhado num sonho. Mas estou ali, diante do altar, ao meu lado rostos radiantes não se cansavam de contemplar Santiago. Eu fazia coro a eles.

Finalmente, chegou o momento tão esperado, à hora da Eucaristia sinto-me sereno, alma lavada, olhos marejados, vamos todos ao encontro de Cristo, na certeza que após esse ato, compulsoriamente, chegamos ao final da nossa peregrinação.

Após a missa, assistimos emocionados, a tradicional e lendária, cerimônia do Botafumeiro. Encerrada a celebração, há sempre uma grande confraternização entre os peregrinos, porque muitos já se viram e se dispersaram no Caminho. Mais abraços e cumprimentos foram trocados, e para completar a festa que havia se instalado em nossos corações, fomos almoçar os quatro, no Restaurante Manolo.

Nesse dia, a Anete, abstêmia de longa data, emborcou um cálice de vinho, quebrando seu jejum voluntário, apenas, segundo ela, para brindar nossa augusta amizade. A uma indagação minha responderam-me que sabiam falar em inglês. Aquiescendo, ante meu pedido, passamos a conversar todos nesse idioma, que eles dominavam com fluência. Soube então que deixaríamos Santiago no mesmo dia, sexta feira, 11 de maio, eu retornaria com o avião das 16 horas, eles no trem que partiria às 20:00 horas.

Dia 09 fomos, de ônibus, a Finisterre e, lá, juntos, fizemos a cerimônia do "queima-roupa". À noite, novo jantar festivo. Na quinta feira, dia 10, fomos novamente à missa dos Peregrinos. Após o término desta, combinamos que almoçaríamos juntos novamente. Eles precisavam ir até ao banco, assim, ficamos de nos encontrar no Manolo's dali uma hora. Eu já aguardava quando eles chegaram, vestidos a caráter, com suas blusas vermelhas flamejantes.

Descendendo do Cebreiro em meio à forte nevasca.

Mostravam-se radiosos e me confessaram que pegos conseguido comprar as passagens e partiriam ainda naquela tarde para sua cidade de origem, com o trem das 16 horas. Eufóricos, anteviam o momento do reencontro, no lar, com seus entes queridos. De minha parte, não consegui controlar o profundo sentimento de tristeza que me invadiu. O almoço transcorreu, para mim, em clima nostálgico e, no final, denúncia o brinde derradeiro. Depois, discretamente, acertei a conta com o garçon, como deferência pela amizade conquistada.

Chegou então o momento da partida. Resolutos, arrumam os detalhes, afivelam suas mochilas, empunham os cajados que destacam os guardados na entrada do restaurante. Lágrimas afluem intensamente a encobrir meus olhos. Confrange-me o coração o aparto derradeiro.

A despedida doer à alma. Um abraço apertado em cada um, eu apenas a murmurar "até um dia" (até um dia), eles também emocionados, palavras em francês desconhecidas para mim, lágrimas furtivas a escorrer pela face, a pressentir, como eu, ser esse adeus, muito provavelmente, definitivo em nossas vidas terrenas.

Partem altivos e empertigados, e antes de virarem a primeira esquina se voltam, me acenam, e eu quero em uníssono, um "ou revoir", que até hoje ainda ecoa em meus ouvidos. Atordoado, pela repentina perda, saí e caminhei a esmo e, quase por acaso, quando dei por mim, estava novamente defronte da majestosa Catedral de Santiago. Lentamente galguei os degraus que me separavam do seu interior e ali, solitário, num banco a contemplar a fulgurante imagem do Santo Apóstolo, fui me acalmando, sentindo uma grande paz interior a me invadir. Aquietava-se meu coração.

Evidenciava-se para mim, de forma cristalina, de maneira pungente, uma transitoriedade das coisas neste mundo. O fato de estar ali naquele momento, nada mais era que algo circunstancial e intertemporal. Tal qual num filme, revi minha performance from 33 dias atrás, when vacilante and exausto aportava em San Jean para dar início à minha caminhada.

Seguiram-se dias de chuva, sol, neve, frio, porém sempre com gratas lembranças, a maior delas, os amigos que fui conhecendo ao longo da Rota, dentre todos, a luzir, os gentis franceses que agora me deixavam.

Compreendi, no fundo, somos todos viajores efêmeros por esse mundo de Deus, e o importante é que aproveitemos esses bons momentos que nos são oferecidos. Santiago tinha-me propiciado uma jornada sem percalços, e eu ao provocar de lamentar, extasiado, pus-me a agradecer-lhe pelos incontáveis ​​instantes mágicos vivenciados ao longo do Caminho.

Não me senti mais triste, compreendia estar sim enriquecido, com a mente repleta de inesquecíveis lembranças boas, que só o Caminho pode nos proporcionar. Alegre, coração aliviado, deixei o templo e, no dia seguinte, retornei ao Brasil.

Hoje, quando são passados ​​exatos quinhentos dias do meu abraço derradeiro a meus amigos franceses, e no Santo Apóstolo, uma saudade avassaladora invadiu meu ser, então, lembrei-me deste poema:

"Despedidas!

Ah! Como seria bom se não houvesse despedidas ...

Alguns chegam a pensar em trancar em gaiolas aqueles a quem amam. 

Para que sejam deles, para sempre ...

Para que não haja mais partidas ...

Poucos sabem, entretanto, que é uma saudade que torna encantada as pessoas. 

A saudade faz crescer o desejo. 

E quando o desejo cresce, preparam-se os abraços. " 

(Ruben Alves)

 Quem sabe, algum dia os reencontro! Se eu voltarei a revê-los? Só Santiago pode responder!

 Por segurança, arquivei-os definitivamente em minha memória!

 Por gratidão, os guardarei eternamente no coração!

 Bom Caminho a todos!

 Outubro / Novembro / 2.002