11ª etapa: BORDA DA MATA à ESTIVA – 39 quilômetros

11ª etapa: BORDA DA MATA à ESTIVA – 39 quilômetros

"A felicidade não se resume na ausência de problemas, mas sim na sua capacidade de lidar com eles." (Albert Einstein)

    

Seria uma jornada longa e desafiadora, pois quando de minha peregrinação em 2.005, avaliei-a como mais difícil de todas.

Na verdade, nem tinha certeza se conseguiria concluí-la a bom termo, de forma que, em princípio, pensava pernoitar em Tócos de Mogi, mas deixei para melhor repensar quando lá chegasse: se ficava ou seguia em frente.

Eu havia pensado em sair às 5 h, e quando me levantei às 4 h, a chuva havia dado uma trégua, porém os trovões e relâmpagos ribombavam com grande intensidade, ao longe.

Certamente, outro temporal chegando, pensei, contudo, otimisticamente, persisti em meus afazeres matinais.

Entretanto, 5 minutos antes do horário previsto, a borrasca anunciada desabou com fragor e a chuva caiu copiosamente, forçando-me a abortar o plano inicial.

Em vista desse fortuito acontecimento, resolvi aguardar a intempérie serenar, para, então, dar início a aventura.

Às 5 h 30 min, finalmente, a água parou de cair, e eu deixei o local de pernoite, e segui à direita.

O ar parecia purificado pela chuva recente.

Logo eu saí na praça central, passei ao lado da igreja matriz e, mais acima, junto ao cemitério, virei à esquerda e adentrei em larga estrada de terra, bastante úmida e lisa.

Com a lanterna na mão, prossegui caminhando, em ritmo uniforme, por um longo planalto levemente ascendente, em meio a inúmeras chácaras.

Amanheceu, sem o habitual, mas, sempre maravilhoso nascer do sol, vez que pesadas nuvens cobriam o céu, prenunciando torrencial aguaceiro para breve.

Os relâmpagos incendiavam ainda o horizonte longínquo, sem que eu ouvisse o ribombo dos trovões.

Por volta das 6 h 30 min, no Bairro das Palmas, 8 quilômetros à frente, iniciou-se uma longa subida.

Quinhentos metros depois, a chuva que rondava desabou de uma vez.

Apesar da capa, meus pés ficaram encharcados em questão de minutos, e jatos de água escorriam pela nuca para dentro do casaco.

Por obra divina, cinco minutos depois, consegui buscar abrigo numa cobertura existente ao lado de uma casa localizada à beira da estrada, onde encontrei o portão aberto.

Não havia tempo para solicitar permissão, mas pouco depois uma senhora apareceu na janela da cozinha e pude lhe explicar o meu drama.

Ela não só concordou, como autorizou eu me esconder dentro de uma tulha que havia em frente.

Vinte minutos depois o aguaceiro cessou e, depois de agradecer minha hospedeira, prossegui em minha odisseia.

Após uns 2 quilômetros, numa casa desabitada, pertencente a família Xavier, visualizei uma tabuleta oferecendo água potável. 

Ante dádiva tentadora, não resisti e fiz uma pausa para me hidratar, aproveitando, também, para completar minha garrafa d’água.

Ao retornar à trilha, visualizei outra placa colocada defronte ao local, informando que restavam 9 quilômetros até Tócos do Mogi. 

Em seguida, após atravessar uma porteira, iniciou-se penosa e inclinada ladeira: estava eu escalando a escarpada Serra do Jacu.

E, às 7 h 30 min, 9 quilômetros percorridos, já no seu topo, a 1.188 metros de altitude, pude contemplar um mar de morros ao meu redor, conjuntamente, com uma visão extasiante de toda a região.

Naquele local privilegiado também se localiza a divisa dos municípios, de forma que estava deixando Borda da Mata para adentrar ao de Tócos de Mogi.

Fiz uma pausa restauradora para hidratação, ingerir uma banana e bater fotos, pois o local é de expressiva beleza.

Aproveitei, ainda, para desvestir minha capa, pois aparentemente a chuva daria trégua por um bom tempo.

Em seguida, bastante animado, literalmente, despenquei em direção a um riacho encachoeirado.

E o fiz pela estrada em ziguezague, feliz com o silêncio e a solidão.

Já no plano, parei diante da casa da família Rodrigues, onde também existe uma fonte de água potável, convidando o peregrino a saciar sua sede.

Acima da torneira, dentro de um nicho, existe uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, onde aproveitei para pedir proteção.

Mais abaixo, eu fleti à esquerda, seguindo a beira de um riacho, em meio à belíssima paisagem.

Ali está localizado o Bairro Capinzal, onde as propriedades rurais se dedicam, basicamente, à produção de morangos e criação de gado.

Num determinado sítio, sempre subindo, me encontrei com um senhor que estava colhendo morangos em sua plantação e me ofereceu alguns.

Eu escolhi apenas cinco frutas, porque não queria abusar de sua boa vontade, afinal aquele era seu meio de vida, no entanto, deixei para ingeri-las mais tarde, porque necessitava lavá-las.

Porquanto, juntamente com o tomate, o pepino e as uvas, o morango é uma das culturas que mais sofre pulverização tóxica, visando proteção das pragas que infestam essas lavouras.

Prossegui subindo, agora em meio a frondoso bosque de eucaliptos, até que no ápice do morro, alcancei a altitude de 1.210 metros, o ponto culminante dessa primeira jornada.

Então, iniciou-se brusco e acentuado declive, que perdurou por uns 2 quilômetros.

Já no plano, eu atravessei uma porteira e logo passei defronte à capelinha dedicada à São Judas Tadeu, que também está situada no Bairro Capinzal.

A partir daí, iniciou-se outra série de elevações e descensos, até que num cruzamento ultrapassei uma placa anunciando que eu estava distante 200 quilômetros da Basílica de Aparecida, o que muito me alegrou.

O caminho prosseguiu inconstante, às vezes subindo, outras descendo, minando qualquer tentativa de manter um ritmo.

Numa bifurcação abaixo, seguindo as flechas, fleti à esquerda e enfrentei mais uma vigorosa ascensão. 

Após atingir seu apogeu, iniciou-se rápido e, mais à frente, gradual descenso, culminando com a transposição do Rio Mogi-Guaçu e chegada a Tócos do Moji, exatamente, às 9 h da manhã.

 

O núcleo inicial dessa cidade surgiu aproximadamente no ano de 1.870, com a chegada dos primeiros habitantes. 

A esta localidade deram o nome de Mogy dos Tócos numa singela referência ao rio Mogi-Guaçu que a banha.

Em 1.917 foi erguida a primeira capela a N. Sra. Aparecida, e em 1.995 criou-se o município de Tócos do Moji.

Situado numa altitude de 1.050 metros, conta atualmente com 3.830 habitantes.

 

Fiz um breve descanso na pracinha da cidade, bastante movimentada àquela hora, e aproveitei a pausa para me hidratar e repensar o futuro.

Depois, fui até o bar do “Zé Bastião”, estabelecimento famoso pelos seus pastéis com massa de milho, onde experimentei a especialidade da casa, além de comprar água e duas barras de chocolate.

Animado e refortalecido, preparei-me para seguir em frente, embora soubesse que me aguardava outra duríssima etapa.

Ocorre que o dia mantinha-se nublado, a temperatura estava fresca e eu não me sentia cansado, ao revés, estava animado para enfrentar as dificuldades que por certo adviriam.

Prosseguindo, depois de vencer rápido aclive, passei diante da igreja dedicada a Nossa Senhora Aparecida que, por sorte, estava aberta.

Então, pude adentrar e externar minhas preces.

Logo acima, acabou o piso em cimento e eu acessei uma larga estrada de terra, bastante úmida e escorregadia, por onde segui alegre e escoteiro.

Dois quilômetros de caminhada, iniciou-se uma longa e escarpada ladeira, e no seu ápice, a 1.323 m, encontrava-me na 5ª maior altitude de todo o Caminho.

Depois, a estrada seguiu em incessante descenso, em meio a muitas árvores e campos de pastagens.

Mais abaixo eu encontrei uma bifurcação e, obedecendo a sinalização, prossegui à direita por uns 500 metros, quando encontrei um abrigo num ponto de ônibus, onde fiz uma parada técnica, pois estava sentido uma preocupante ardência na sola do pé.

Porém, já era tarde, pois constatei abatido, o aparecimento de duas imensas bolhas sob a planta do pé esquerdo, fato que evidentemente me causaria problemas mais adiante.

Para minorizar o mal, fiz curativos no local, bem como protegi a lesão com algodão e esparadrapos, utilizando, para tanto, o material inserto no estojo de pequenos socorros que sempre carrego comigo.

Depois segui adiante, um tanto abatido e decepcionado comigo mesmo, porquanto não me dera conta do aparecimento das “ampolas”, a tempo de resguardar o local, como forma de evitá-las, e sabia que inúmeros obstáculos ainda me aguardavam.

Então, não sei exatamente por qual razão, lembrei-me de um texto que havia lido algum tempo atrás, afirmando que o viajante sensato é aquele que viaja apenas na imaginação, pois assim não se machuca e, ainda, não se desilude.

Para deleite, transcrevo-o abaixo, lembrando que seu autor é William Somerset Maugham, famoso dramaturgo inglês: 

“...O viajante sensato só viaja com a imaginação. Um antigo francês (era na realidade um saboiano) escreveu certa vez um livro chamado Viagem à Roda do meu Quarto. Eu não o li, nem sei do que trata, mas o título me estimula a fantasia. Eu poderia fazer desse modo a circunavegação do globo. Um ícone junto à chaminé me transportaria à Rússia dos zimbórios brancos e das grandes florestas de bétulas. O Volga é largo e, numa taberna nos confins das espalhadas aldeias, homens barbudos, metidos em toscos casacões de pele de carneiro, estão sentado a beber. Subo ao topo da pequena colina de onde Napoleão avistou Moscou pela primeira vez, e contemplo a vasta cidade. Vou descer, para conversar com homens e mulheres que conheço mais intimamente do que tantos amigos meus: Aliocha, Vronski, e uma dúzia de outros mais. Mas os meus olhos topam com uma taça de porcelana, e eu sinto os aromas da China. Estou sendo transportado em liteira sobre uma estreita calçada, entre os campos de “padi”, ou então contorno uma montanha coberta de arvoredo. Os leiteiros palram alegremente na manhã clara, e de quando em quando ouço, distante e misterioso, o repique profundo de um sino de mosteiro. Nas ruas de Pequim há uma turba heterogênea, que se abre para dar passo a uma feira de camelos que, pisando delicadamente, trazem peles e drogas estranhas dos desertos da Mongólia. Há em Londres certas tardes de inverno em que as nuvens pairam baixas e pesadas, e a luz é tão lúgubre que nos enche o coração de angústia. Mas, basta-nos então olharmos para fora da janela e vermos os coqueiros comprimirem-se na praia de uma ilha de coral. A areia é prateada, e quando se caminha nela ao sol, a reverberação é tão intensa que não se pode olhá-la. Nas folhagens, os mainás fazem grande algazarra, e as ondas rebentam incessantemente nos recifes. São estas as mais deliciosas viagens, as que fazemos ao pé da lareira, pois elas não nos destroem nenhuma ilusão.

Mas há certa gente que põe sal no café. Dizem eles que isso dá à bebida um sabor singular e fascinante. Do mesmo modo, existem lugares cercados de uma auréola romântica, aos quais a inevitável desilusão que se sente, ao vê-los, ajunta um condimento especial.  Esperávamos alguma coisa de simplesmente belo, e recebemos uma impressão infinitamente mais complexa do que as que nos pode dar a beleza. É como o defeito do caráter de um grande homem, que, se o torna menos admirável, não deixa também de o tornar mais interessante.....”

 

Bem, mas, retornando ao Caminho, alguns minutos mais tarde, exatamente às 10 h 30 min, cruzei o distrito de Fazenda Velha, que embora esteja situado a, apenas, 8 quilômetros de Tócos, pertence ao município de Estiva.

A pequena povoação possui 2 igrejas, conta com alguns bares e armazéns, e estava bastante movimentada e barulhenta naquela hora do dia.

Por todo o caminho eu avistei imensas plantações de morango, sendo que a maioria delas estava distribuída por toda a região montanhosa, o que exige um excelente preparo físico dos agricultores.

Numa pequena propriedade eu fiz uma pausa para experimentar o fruto, e o sabor era delicioso, pois estava doce e macio.

Agradeci a generosidade do sitiante, e pude perceber novamente, que essas pessoas simples e humildes que vivem no campo, à beira do caminho, estão sempre dispostas a auxiliar de alguma forma os peregrinos que por ali transitam.

Mais à frente, numa bifurcação, prossegui por uma via secundária à esquerda, e após vencer aguda ladeira, no topo, a 1.300 m de altitude, pude apreciar extasiado um lindo e profundo vale desenhado a minha frente.

O verde-gaio dos campos, aliado ao azul escuro das montanhas projetadas ao longe, encantavam a vista e repousavam meus olhos.

Talvez, pela perfeição e harmonia das formas que se delineavam no horizonte, essa foi uma das lembranças visuais mais imorredouras de todo o Caminho, a qual guardo em minha mente.

Depois disso, precipitei-me, literalmente, ladeira abaixo.

A descida é extremamente inclinada e abrupta, sucedendo que os dedos dos pés tocavam a ponta das botas, magoando sensivelmente minhas doloridas unhas.

Em algumas curvas, o traçado é tão obtuso que, para melhor prover a segurança dos motoristas, o terreno foi calçado com bloquetes de cimento, evitando-se assim, que em épocas de chuvas os veículos derrapem ou resvalem.

Já embaixo, no bairro conhecido como Pântano dos Teodoros, encontrei um barzinho aberto, onde comprei suco e água, quando eu ainda estava distante 8 quilômetros de meu destino.

Quando reiniciei meu trajeto, a chuva voltou a cair, de forma persistente, o que me obrigou a vestir rapidamente a capa de chuva para me proteger.

Porquanto, o céu cor-de-chumbo novamente abriu as comportas, castigando-me com uma fria e dardejante garoa.

A subida para travessia de outra serra, levou-me a mudar de 900 m, onde eu me achava, a alcançar a altitude de 1.200 m, escalando violenta rampa.

Foi, possivelmente, em face do adiantado da hora, bem como pelo cansaço acumulado durante aquela etapa, o trecho de maior dificuldade que enfrentei em toda essa etapa.

Enquanto transpirava em abundância, já próximo à cabeceira da serra, notei que a chuva cessara de vez.

Eu, no entanto, suava em bicas, fruto da capa que estava utilizando e pelo excessivo esforço físico dispendido nesse trecho derradeiro.

No cume do morro pude, enfim, avistar a cidade de Estiva, ao longe, a uma distância de 6 quilômetros.

Mergulhei novamente em tresloucado declive até atingir, no planalto, o Bairro da Olaria.

Depois de transitar um bom tempo numa planície, precisei vencer outra longa e acentuada ladeira, para, finalmente, às 14 h, adentrar o perímetro urbano.

 

Localizado na zona sul do Estado de Minas Gerais, numa altitude de 965 metros, o Município de Estiva apresenta uma topografia predominantemente montanhosa.

Seu nome provém da palavra estivado, que é um conjunto de varas ou paus lavrados ou roliços, com que se reveste um trecho acidentado de terreno, formando um leito ou esteira por onde passam as pessoas, os carros e os animais.

Ela é conhecida, também, como a “Terra do Morango”, pois é a maior produtora deste fruto em todo o país. 

Conta atualmente com 11.000 habitantes, situando-se a 965 m de altitude.

O Pico do Carapuça, símbolo marcante da cidade, possui um visual especial de toda a região, sendo local de lazer da comunidade que o visita para acampar.

 

Na cidade, fiquei hospedado na Pousada do Poka, onde os apartamentos são novos e bem equipados. 

O estabelecimento situa-se defronte à praça central, sobre uma padaria. 

Para fazer minhas refeições, utilizei os serviços do Restaurante Esquina de Minas, um ambiente bastante simples, mas onde a comida é farta e por um bom preço.

Depois de reparadora “siesta”, fui até uma “lan house”, para saber das novidades e dar notícias à família.

Quando deixava o local, quase às 18 horas, me encontrei com o Flávio, de Cuiabá, que estava chegando naquele momento e, claro, tremendamente estafado.

Convidei-o para seguirmos juntos até Paraisópolis na jornada seguinte, porém ele me disse que estava muito desgastado e iria pernoitar em Consolação.

Infelizmente, nunca mais o vi, nem tive notícias, mas espero que tenha encerrado à bom termo sua peregrinação.

Depois, fui a um supermercado e quando desci para lanchar na Padaria localizada abaixo da Pousada, conheci outros dois peregrinos, Vitor e Celso, ambos de São Paulo, que iniciariam sua caminhada no dia seguinte.

 

AVALIAÇÃO PESSOAL – Apesar das dificuldades enfrentadas em várias outras jornadas, considero esta a etapa mais difícil que vivenciei no Caminho. Não tanto pela primeira travessia, mas, principalmente, pelo fascinante e temido trecho entre Tócos e Estiva. Recomendo aos que pretendem desafiá-lo, que seja trilhado em separado, pela rudeza do percurso a ser enfrentado, em razão da necessidade de se transpor quatro duríssimas serras, em sequência. Há que se ressaltar, entretanto, a beleza incomum das paisagens com que somos brindados durante todo o trajeto em comento.

12ª etapa: ESTIVA à PARAISÓPOLIS – 42 quilômetros