2013-Uma Homenagem a Santiago de Compostela

A cidade de Santiago de Compostela é um dos lugares mais mágicos e repletos de encantamentos da Espanha, sendo declarada como Patrimônio Mundial pela UNESCO em 1985.

Devido à beleza e valor dos seus monumentos, além de ser uma referência no campo da peregrinação, penso que esse título é muito bem merecido.

Por sinal, 8 anos depois, em 1993, o Caminho de Santiago também foi reconhecido como Património da Humanidade pela UNESCO.

Santiago de Compostela, cidade da província de A Corunha, é desde os anos 80 a capital da Galiza, porquanto ali se encontram as instalações e a sede da Xunta da Galiza e do Parlamento.

Como se vê, trata-se de um importante centro de peregrinação cristã, considerando que é a Capital Galega, e agrega a sua Catedral mais importante, construída em homenagem ao Apostolo Santiago “El Maior”.

Visitar a Basílica, passeando pela “Plaza del Obradoiro”, é uma tarefa obrigatória para todo aquele que vem a essa milenar cidade.

Outro dos monumentos que a faz importante é a sua Universidade, que conta com mais de 500 anos de história, e proporciona a essa urbe o ambiente universitário que se respira nas ruas e nos bares, pelas suas tradições.

O Concelho Internacional de Monumentos e Lugares ofereceu e entregou por escrito a seguinte memória para incluir a cidade de Santiago de Compostela na lista de cidades reconhecidas como Património da Humanidade:

"Por ser um extraordinário conjunto de monumentos construídos junto ao túmulo do Apóstolo São Tiago, e destino das maiores peregrinações cristãs durante os séculos XI e XVIII, Santiago de Compostela é sem dúvida alguma e indiscutivelmente um bem de Património Mundial. Esta cidade devido à sua integridade monumental reúne valores específicos e universais. Ao caráter único das suas obras maestras românicas e barrocas, somando a transcendental contribuição estética que usa elementos diacrónicos e dispares para construir uma cidade ideal que transborda por um lado história e intemporalidade. A natureza modelo desta cidade de peregrinação cristão com a riqueza das conotações ideológicas da Reconquista têm um eco importante e um enorme significado espiritual que poucos lugares tiveram impregnados de fé para ser convertidos em Sagrados para toda a Humanidade. (ICOMOS, 1985)". 

HISTÓRIA

Santiago foi fundada pelos suevos em inícios do século V, após o colapso do Império Romano. Em 584, a cidade, juntamente com o resto do que é atualmente a Galiza e o norte de Portugal, foi incorporada por Leovigildo no Reino Visigótico.

Invadida, entre 711 e 739, pelos árabes foi finalmente conquistada pelo Rei Visigodo das Astúrias em 835. Alguns anos depois da identificação dos restos mortais como sendo o de São Tiago o Maior, e do reconhecimento como tal pelo Papa e por Carlos Magno durante o reinado de Afonso II das Astúrias.

O corpo foi encontrado na pequena vila vizinha de Iria Flavia, mas foi transportado para Santiago devido a razões políticas e religiosas.

No território que atualmente ocupa a Catedral havia um povoado romano, que se tende a identificar como a mansão romana de Aseconia, que existiu entre a segunda metade do século I e o século V. A povoação desapareceu, mas permaneceu uma necrópole que esteve em uso, provavelmente, até o século VII.

O nascimento de Santiago, como se conhece hoje, está ligado à descoberta (presumível) dos despojos mortais do Apóstolo Santiago entre 810 e 835. Depois houve sua elevação a nível religioso dos restos, bem como à Universidade e, mais recente, à capitalidade da Galiza.

Segundo a tradição medieval, como aparece pela primeira vez na Concórdia de Antealtares (1077), o eremita Paio alertado por luzes noturnas, que se produziam no bosque de Libredão, avisou o bispo de Iria Flavia, Teodomiro, que descobriu os restos de Santiago Maior e de dois dos seus discípulos.

Nesse lugar, posteriormente se levantaria Compostela, topônimo que poderia vir de Campus Stellae, isto é "campo de estrelas", ou mais provavelmente de Composita Tella, "terras bem ajeitadas", eufemismo de cemitério; ou mesmo "[Ja]Com[e A]postol[u]").

A descoberta propiciou que Afonso II das Astúrias, necessitado de coesão interna e apoio externo para o seu reino, fizesse uma peregrinação para anunciar no interior do seu reino e no exterior, um novo lugar de peregrinação da cristandade, num momento em que a importância de  Roma decaíra e  Jerusalém não era acessível por estar em poder dos muçulmanos.

Pouco a pouco foi-se desenvolvendo a cidade. Primeiro estabeleceu-se uma comunidade eclesiástica permanente para guarda dos restos mortais do Santo, formada pelo bispo de Iria e os monges de San Paio de Antealtares. Espontaneamente assentou-se uma população heterogênea, ainda que fundamentalmente formada por emigrantes procedentes das aldeias próximas, que foi aumentando à medida que se desenvolvia a peregrinação religiosa por todo o ocidente peninsular. Tudo isso, reforçado pelo privilégio concedido por Ordonho II no ano 915, que estabelecia que quem permanecesse quarenta dias sem ser reclamado como servo, passava a ser considerado como um homem livre, com direito a residir em Compostela.

A cidade foi destruída por Almançor, em 10 de Agosto do ano 997, que só respeitou a sepultura do apóstolo. Depois disso, aos poucos os habitantes retornaram e teve inicio a  reconstrução da cidade, e o bispo Cresconio, em meados do século XI, dotou a cidade dum cinturão de fossas e uma muralha como medida defensiva.

No ano 1075 deu-se início à construção da catedral românica, refletindo, de imediato, no aumento da peregrinação à Compostela, definindo-a como um lugar de referência religiosa na Europa.

Com esse acréscimo, sua importância, se vê recompensada também politicamente, tornando-a, na época do Arcebispo Xelmírez, à categoria de metropolitana compostelana (1120).  Entre os séculos XII e XIII foi-se ampliando a rede de ruas dentro do recinto amuralhado. Desde esse momento, a povoação já não era uma simples localidade como as outras, mas uma Cidade Santa, e um dos principais pontos de peregrinação dos cristãos.

Durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), Santiago foi controlada pelos fascistas desde o início, e sofreu uma brutal repressão durante os primeiros anos e na Ditadura em geral.

Após a Transição Espanhola, quando a democracia foi restaurada, Santiago foi declarada capital da Galiza.

Atualmente, com uma população de cerca de 100 000 habitantes, é uma das mais importantes cidades galegas e a mais turística de todas, recebendo milhões de visitantes todos os anos, muitos atraídos pela história e tradição religiosa da cidade.

Foi declarada Patrimônio Mundial da UNESCO por causa da sua Catedral e do seu Centro Histórico em 1985. A Universidade de Santiago de Compostela (USC) é uma das mais antigas da Espanha e tem mais de 40.000 estudantes, tornando a cidade num dos centros universitários em Espanha, juntamente com Salamanca e Granada.

O clima de Santiago é típico da costa atlântica espanhola: invernos úmidos com chuva frequente que ocorre de Setembro a Junho. Os Verões são ligeiramente menos chuvosos que o resto da costa cantábrica. As temperaturas permanecem amenas durante o ano inteiro, com uma média de 19º C. Elas descem para 8º C em Janeiro, o mês mais frio do ano.

MINHA HOMENAGEM A SANTIAGO DE COMPOSTELA

Por essa extraordinária cidade, em diferentes épocas, passaram milhares de brasileiros, bem como autores nacionais a descreveram em seus livros, cujo teor de alguns eu pretendo, com esse singelo artigo realçar. 

Assim, abaixo listo quatro textos, inclusive, um de minha autoria, para dar uma ideia de como cada um viu e se sentiu ao visitar essa milenar localidade.

1 - SANTIAGO, PADRÓN DE ESPAÑA! - (ANO 1953)

Texto de Francisco da Silveira Bueno (Atibaia, 1898 — São Paulo, 2 de agosto de 1989) foi um cronista, poeta, jornalista, lexicógrafo, filólogo, ensaísta e tradutor brasileiro. Iniciou na carreira eclesiástica (estudando filosofia, teologia, direito canônico, exegese em bíblica e línguas, especializando-se em linguística e pesquisa filológicas), da qual desistiu para dedicar-se ao  magistério, lecionando História, Português, Latim, Califasia e Literatura Portuguesa. Foi professor catedrático da Universidade de São Paulo, redator de vários jornais e colaborador em quase todos os órgãos da imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo. Atualmente, seus dicionários têm Dinorah da Silveira Campos Percoraro, doutora em filologia portuguesa pela USP, como responsável pela revisão e ampliação. Em sua primeira fase como escritor, assinava com o pseudônimo de Frei Francisco da Simplicidade.) - Fonte:  Wikipédia.

 

Eram duas horas da manhã e o inverno envolvia em gaze as montanhas de Vigo. Dormitavam, nas sombras dessa madrugada brumosa, as lâmpadas frouxas da cidade. Apenas resfolegava o rebocador que devia arrastar-nos ao pôrto. Assim amanhecíamos em Espanha, assim Espanha amanhecia para os nossos olhos, que vinham abertos desde o Brasil, para se encherem das belezas da terra del Cid, o Campeador. Quando o sol delicado da Galiza repontou, surgindo das ondas, Vigo rompeu pelas ruas, trepou pela montanha, desceu até o mar, guizalhante e buliçosa como uma espanhola, rica de côres, de sons, cantando na voz sonora dos sinos que nos chamavam à missa de domingo. Recebia-nos o catolicismo, impondo-nos os seus deveres, e desde essa entrada até o último dia dos meses passados em Espanha, nunca nos largaria a religião, um dos fenômenos mais profundos e mais vitais dêste país. O catolicismo, na terra de Franco não é um mero sentimentalismo, um adôrno romantico, uma tradição simplesmente bela, mas é a mesma razão de ser da terra, do povo, da civilização espanhola. O catolicismo, na Espanha, é o próprio sangue, a própria vitalidade, a razão da formação histórica dêste povo, a grande fôrça da coesão que tem impedido, através dos séculos, a destruição do país, o desfacelamento da nacionalidade. É certo que Pedro, que Paulo pregaram em Roma, que aí penetrou o catolicismo e aí também foi a grande fôrça criadora da Itália moderna como o foi da Itália antiga. Mas o catolicismo da Espanha veio da África e trouxe consigo aquela energia de lutas e só de lutas tem vivido. Foi no solo da Espanha que os bárbaros se tornaram cristãos. Foi aí que os arianos se voltaram ao catolicismo. Mas foi especialmente aí que a religião de Cristo travou a mais árdua, a mais renhida luta contra o mais poderoso inimigo do tempo: o islamismo. Durou sete séculos esta luta e a cruz, refugiada numas grutas do norte, veio vindo, palmo a palmo, veio descendo, passo a passo, de combate em combate, de sangue a sangue, até expulsar definitivamente, arremessando-os de novo por cima das montanhas do Calpe, a êsses invasores que de lá tinham vindo para transformar o solo de Espanha em sementeira de cristãos. Não fôsse o catolicismo e Espanha seria outra, outra seria a civilização espanhola, outro país, talvez, com outro nome, com outra língua, com outros costumes. Eis o que representa para o povo espanhol a religião de Cristo: a razão mesma da sua sobrevivência histórica! Por isto, não há ato algum nesta terra que não seja acompanhado de um ritual católico. Por isto, não há espanhol algum, verdadeiramente espanhol, que não seja católico: êle poderá ser, e muitos o são, anticlerical, inimigo dos frades, etc., mas inimigo da religião, inimigo de Deus, nenhum! 

Num país assim católico, a cidade de Santiago de Compostela exerce a mesma influência que o coração exerce no corpo humano. Quem quiser conhecer bem Espanha, tem de partir daqui, porque daqui partiu a energia que transformou a terra e o povo. Santiago de Compostela, que exerceu enorme influência na formação da cultura medieval, principalmente, trovadoresca, foi o berço da língua portuguêsa, o grande entreposto entre a cultura provençal e a peninsular. Da Galiza desprendeu-se Portugal, da Galiza levou os temas da sua inspiração literária e o veiculo desta inspiração: o idioma. No campo religioso, o santuário de Santiago rivalizou com Roma e Jerusalém e o arcebispo desta cátedra tinha tanta importância que se poderia denominar o Papa espanhol. E o célebre Gelmirez, governou como verdadeiro príncipe temporal. Pequena é a cidade, medieval ainda e por isto mesma cheia de encantos: dois edifícios mantêm o máximo interêsse dos visitantes: a catedral e a universidade. A catedral, em estilo barroco, é única em tôda a Espanha cujas igrejas só encontram similares na Itália e na França. Com as suas numerosas tôrres, com tôda a inimitável floração de carátulas que representam santos, fidalgos, peregrinos, anjos, flores, animais, dragões, esta enorme construção pode abrigar tôda a população de uma cidade mediana. Entra-se pelo famoso “portal da glória” e é da praxe que o visitante, à semelhança dos peregrinos de outrora, vá direito ao altar-mor, dar a Santiago o seu abraço de chegada. Lá está, assentado muna cadeira riquíssima, a riquíssima e enorme imagem do valoroso apóstolo: só a capa, que o reveste fundida em prata maciça, pesa duas arrôbas. Sobe-se pela escada lateral e “familiarmente” dá-se ao santo um abraço. Depois, quando se deve deixar a cidade, requer a praxe que se volte ao templo para o “abraço da partida”. Numa capela subterrânea, dia e noite, iluminada, visitam-se as relíquias do apóstolo, encontradas em Padrón, não muito longe da cidade. Descrever o monumento seria impossível porque são tantas suas maravilhas que somente num grosso volume caberiam. Para nós, brasileiros, lá está o túmulo de Dona Urraca, de Dona Teresa, de Henrique de Borgonha, os fundadores de Portugal. Uma enorme pia d'água benta mantém-se à parte, isolada, cercada de correntes: nessa pia, o invasor muçulmano, Almanzor, deu de beber a seu cavalo quando invadiu Santiago e entrou no templo famoso com tôda a sua horda profanadora e ainda roubou as portas de bronze finamente trabalhadas. A Universidade é pequena, mas passa por completa remodelação, criando-se ai uma cidade universitária, com internato para os alunos. Recebeu-nos o prof. Moralejo, decano de letras e ai tivemos a oportunidade de ouvir preciosa dissertação sôbre a velha língua da Galiza, predecessora do nosso idioma. Visitamos o instituto “Padre Sarmiento”, que trata de publicar todos os originais da língua galega, de tôda a formidável história da Galiza. Lá estava o nosso amável padre Jesus Carro, o homem que conhece as lendas da cidade, a história de cada pedra, de cada carátula do templo. A nosso pedido, leu-nos, com vera pronúncia galega, várias cantigas dos mais antigos trovadores. A cidade inteira está cheia de enormes conventos, hoje vazios de monges, convertidos em museus, obras pias: San Domingos del Pinar com as suas famosas escadas tríplices, que giram paralelamente, todas de pedra, construídas sem visível apoio externo, verdadeira maravilha da arquitetura medieval. A nota mais curiosa sem que deixe de ser muitíssimo aborrecida para os turistas é a chuva quase eterna em Santiago: chove dia e noite e chove tanto que alguns, menos respeitosos, apelidaram a cidade: o urinol da Galiza! Chove tanto em Santiago que foram necessários os famosos “suportales”, grandes galerias cobertas por onde passa o povo e onde se faz todo o comércio. As ruas ficaram para os veículos e muares: tôda a população caminha debaixo dêsses “suportales”, desses arcos cobertos. Foi em Santiago que vimos, pela primeira vez, essa medieval instituição dos “serenos”: são os guardas-noturnos que ficam à disposição de todos para pequenos recados, pequenas compras, para chamar o médico, mas sobretudo, para abrir as portas. É curioso que, nas grandes casas de cômodos, de apartamentos como hoje se diz, somente o “sereno” tem a chave da entrada: quando se volta do teatro, de uma visita, é necessário bater palmas na rua até que o “sereno” apareça para abrir porta. A princípio não sabíamos porque tanta gente estava a bater palmas no meio das ruas e só depois viemos a conhecer tão estranho costume. Durante a noite, com voz cantada, anuncia as horas ou qualquer fato que se esteja sucedendo: “Son las dos de la mañana... todo tranquilo. . . pero llueve! Son las quatro de la mañana. . . pasa un caballero!” Assim é em Santiago: em Madri, nos arrabaldes, não: apenas abrem as portas e deixam que a gente durma “un poco más tranquilo. . .” Visitamos ainda a casa onde residiu a célebre poetisa Rosália de Castro e vimos o seu riquíssimo túmulo, oferta dos galegos de Cuba. No excelente “Hotel de Compostela” entramos em contacto com a deliciosa cozinha espanhola, com o singularíssimo vinho branco “Ribera”, com o fino prato que se chama “La Paella” que outros pronunciam “La Paeja”, de arroz e mariscos, com o celestial “Mil Hojas”, digno dos anjos, na côrte divina! Em muitos outros lugares experimentamos êste finíssimo doce, mas como as “Mil Hojas” de Santiago, nem em Madri! Na Galiza fizemos o primeiro encontro com essa outra bebida, que faz parte da vida mesmo de Espanha: la Manzanilla, vinho branco, sêco, o aperitivo nacional por excelência. A mim, particularmente, não me agradou: mas éramos quatro brasileiros e por isto falo quase sempre na primeira pessoa do plural. 

Quando os árabes invadiram o sul de Espanha, mandaram buscar na Galiza as suas espôsas: eram famosas pelos dotes físicos de saúde, beleza robusta, e sobretudo, pelos dons artísticos, exímias no canto e na dança. Desta mistura de galegas e árabes surgiu a geração artística, por excelência, que hoje domina Sevilha, Córdova e Granada. Canta-se e dança-se em tôda a Galiza e desde os serviços do campo até as cerimônias do culto, tudo é feito ao som de música, de belas vozes. A formosura das mulheres é proverbial: claras, altas, fortes, descendência direta dos antigos suevos, de cabelo louro se não ruivo. Dança-se tanto na Galiza que desde os tempos dos romanos já se dizia que até para entrar em combate primeiro dançavam e cantavam. Terra de poetas, só nos Cancioneiros Medievais encontramos mais de trezentos, e os talentos continuam a florescer nesta ubérrima província espanhola, considerada o celeiro de Espanha. Outrora dançavam até nos funerais: durante o velório, havia o famoso “abejón", cantado e dançado em tôrno do defunto. Os outeiros poéticos, os certames de poesia e canto, nasceram na Galiza: os compositores lançavam as suas “cantigas” e o povo, reunido, julgava. A canção vencedora era entoada pelas moças. O poeta vencedor podia escolher duas dentre as mais formosas e, abrigando-as debaixo das amplas dobras da sua capa, saía cantando e dançando com elas: era famosa “dança do capote”. A igreja não gostava muito dêstes recursos poéticos e acabou por exterminar tal costume. Outra dança, já extinta era a “das espadas": o exímio esgrimista trazia, de pé, em seus ombros, duas moças que deviam executar, lá em cima, os mesmos golpes de espada que o robusto galego executava cá em baixo. A igreja interveio: substituiu as moças por meninos... então morreu a “dança das espadas". Assim é Galiza: heróica, vibrante, alegre, robusta, mas sobretudo, religiosa. Lá está “Santiago, padrón de España", o santo a cujo grito, que se contrapunha ao horríssono bradar dos mouriscos “Por Allah!", se incendiavam as tropas que desde Covadonga desceram, ferro a ferro, escudo a escudo, livrando o mundo ocidental da praga muçulmana, pondo fim a essa efêmera florescência árabe em solo espanhol. O trem corria para Madri e nós com êle, atravessando, de norte a sul, a bela e inolvidável terra de Espanha. 

(Transcrito do livro PELOS CAMINHOS DO MUNDO, Editora Saraiva, ano 1957, páginas 81/86)

2 - SANTIAGO DE COMPOSTELA - (ANO 1961)

Texto de Odorico Montenegro Tavares da Silva (Timbaúba, 1912Salvador, 1980) foi um jornalista, poeta e colecionador de arte brasileiro. Fixou-se em Salvador em 1942, onde foi diretor do Diário de Notícias e de O Estado da Bahia. Foi eleito para a Academia Baiana de Letras em 1971. Era pernambucano e em 1942 radicou-se na Bahia, onde a convite de Assis Chateaubriand veio dirigir as empresas do conglomerado Diários e Emissoras Associados que na Bahia possuía os jornais Diário de Notícias, Estado da Bahia e a Rádio Sociedade da Bahia e, mais tarde, a TV Itapoan. Em Salvador ele logo se integrou entre os escritores, artistas e intelectuais baianos. Em 1944, organiza, com o escritor Jorge Amado (1912 - 2001) e o gravador paulista Manoel Martins (1911 - 1979), a primeira exposição de arte moderna brasileira na Bahia, promovida pela seção da Bahia da Associação Brasileira de Escritores, na Biblioteca Pública de Salvador. Em 1947, faz diversas reportagens para a revista O Cruzeiro, depois reunidas no livro Bahia, Imagens da Terra e do Povo, de 1951. Ilustrado por Carybé (1911 - 1997), o livro é premiado com a medalha de ouro na 1ª Bienal Internacional do Livro e Artes Gráficas de São Paulo, em 1961. Para a reportagem, escrita por ocasião do cinqüentenário da Guerra de Canudos, Tavares viajou pela região percorrida pelo escritor Euclides da Cunha (1866 - 1909) na Bahia, acompanhado pelo fotógrafo francês Pierre Verger (1902 - 1996). - Fonte: Wikipédia

A partida de Vigo num ônibus: um pouco da gente galega ao meu lado, nesta viagem de oitenta quilômetros, em mais de cinco horas, através dos seus campos, ao lado de suas rias, o verde da terra e o verde das águas. As paradas a cada momento, o veículo pesado a receber cargas e pessoas, num milagre de equilíbrio. As aldeias de pedra, as casas de pedra, os Cristos de pedra e a pedra amarela a dominar, a impor a sua força e a sua presença. A cada parada, reclamações, gritos, imprecações, risadas, ditos, gaiatices, o bom humor tudo resolvendo. Vai indo o ônibus, vai a Galícia se mostrando, mostrando a sua beleza, a sua pobreza, a sua intimidade. E quando chego a Santiago de Compostela, cansado, recolho-me porque já é noite, noite fria e de chuva. Olho ainda a praça, o quadrado firme, e, somente na manhã seguinte, a visita à Catedral, que, à noite me parecera uma pesada massa sombria. A visão do Pórtico da Glória. O túmulo do Apóstolo que a lenda assevera estar ali sepultado, padroeiro da Espanha, que trouxe de todas as partes da Europa, através dos séculos, não somente os milhões de peregrinos, mas tudo que eles representavam para enriquecer o complexo espanhol. Confirmo, lá dentro, as palavras de Unamuno que este templo, esta nave sugere mais um sepulcro que uma casa de oração: quase uma catacumba. A imaginação se solta ante a visão soturna, é o mesmo mestre que me lembra que, na catedral de Santiago, hay que rezar de um modo y de outro; no cabe hacer literatura.

Que fascínio não exerceu pelo mundo a fora a história de Santiago retornando à Espanha não mais vivo, mas seu cadáver trazido pelo mar, recebido pelo rebanho que já apascentara e levantara, em seu louvor, a Catedral que agora o acolhe! Vejo sua efígie de ouro, seu templo de pedra, o pórtico de Maese Pedro, ando sob as abóbodas dos passeios das ruas, visito as tendas dos ourives, e é a presença dos peregrinos, atravessando países para atingir a Espanha, e pedir ao santo pela solução de seus males. É a Espanha absorvendo o melhor dos romeiros e dando corpo e alma à sua poesia popular e revigorando, nesta gente e nestes povos, a fé católica. Aqui, no coração da Galícia, o mundo muitas vezes não curando as doenças do corpo, mas se abrasando na luminosidade dos caminhos de Santiago, os caminhos que levam da terra para os céus.

Subo até o Paseio de la Herradura e vou ver a cidade como viu Unamuno bosque oscuro de piedra destacando-se sobre la verdura riente de la campina. E à tardinha, quando regresso ao hotel, o antigo hospital dos Reis Católicos que abrigava os peregrinos doentes e famintos, é que sinto a beleza desta praça de pedra. Pedra das ruas, pedras das fachadas, pedras da Catedral, do Hostal, de São Jerônimo, de São Bartolomeu. Pois nenhum verde, nenhuma árvore, neste despojamento que a pedra conduz. Deixa de chover, e a lua fria, timidamente surge, para depois, clara e forte, iluminar a praça, atenuar a severidade dar-lhe um toque de doçura. Está deserta a praça, um ou outro garoto ainda a tentar vender lembranças. Umak menina oferece flores, flores para o túmulo de Santiago: cravos vermelhos, sob a luz da lua. E o rostinho cansado se abre num sorriso quando compro os cravos todos e lhes dou de presente. Ela diz, então, que vai leva-los ao padroeiro, em minha intenção. E sai correndo, pequenina e feliz, e sobe os degraus da fachada do Obradoiro e atravessa o portal da Glória e leva ao Santo os claveles, em nome de um peregrino meio sem crença e meio sem ventura.

Foi a mais vela visão de Santiago de Compostela. 

(Transcrito do livro “OS CAMINHOS DE CASA”, Editora Civilização Brasileira S.A., ano 1963, páginas 33 a 35.)

3 - SANTIAGO DE COMPOSTELA - (ANO 1990)

“Por último Compostela, a excelentíssima cidade do Apóstolo, que possui toda a classe de encantos e tem em custódia os preciosos restos mortais de Santiago, pelo que é considerada justamente a mais feliz e excelsa de todas as cidades da Espanha.” (Aymeric Picaud, autor do Códice Calixtino) 

 

Santiago de Compostela é uma das melhores cidades que eu conheço e não disso influenciado pela minha condição de peregrino. Passei três dias percorrendo as velhas ruas de pedra, examinando as imagens, as igrejas e, naturalmente, a catedral. Visitei inúmeras vezes a tumba do Apóstolo sob o altar, os museus e os monastérios. Além de todos esses símbolos de fé, Santiago tem uma força viva e moderna, que você pode ver nos grupos de música celta que se apresentam nas praças, nos artistas que retratam os monumentos, nos restaurantes e nas janelas das casas.

Não é uma cena rara um quarteto de cordas a se apresentar sob os arcos de pedra, fazendo a música roçar nas paredes e mexer com seu espírito. Não é impossível você encontrar, numa esquina, um estudante – que parece ter vindo de Woodstock a pé – extrair, de um velho saxofone, emoção pura e concentrada. Ou ainda, um pai de família ganhando a vida na praça soprando uma flauta por horas e horas, sem perder a alegria de estar ouvindo a própria música. Vale a pena ficar sentado na escadaria da catedral, assistindo à chegada emocionante de outros peregrinos, vendo aquele gente suja, corada, ofegante, aqueles que começaram a caminhar por inúmeras razões particulares e que chegam sempre com o mesmo brilho, a mesma luz, muito além de qualquer motivo pessoal.

Poucos dias me senti tão feliz quanto nos dias em que saía e andava pela cidade, de mãos nos bolsos, tomando água das fontes, comendo pão e queijo, olhando a vida sentado numa pedra talhada séculos antes de o Brasil ser descoberto. Santiago vai lhe receber bem, pode estar certo.

No escritório da catedral, você vai apresentar o seu passaporte carimbado e vão lhe dar uma “Compostelana”, uma espécie de diploma que, além de ser uma recordação histórica, vai lhe dar direito a três refeições gratuitas no “Reis Católicos”, o melhor restaurante da cidade. Mas para que você não se esqueça da condição de peregrino, comerá na cozinha com os empregados. Gente boa, educada, trabalhadora. Você estará em muito boa companhia.

Para muitos, esse é o final da peregrinação. O passado e o presente juntos. Mais do que isso, uma lição de que o futuro vale a pena. Se você sentir que Santiago é o final dessa fase da sua vida, dessa etapa que você tão valorosamente cumpriu, aproveite e saboreie essa sensação pelo tempo que quiser. Compre um presente e dê a você mesmo como uma lembrança concreta da sua coragem, do seu esforço e da sua fé. Para o resto da sua vida, você estará sob a proteção do Apóstolo.

Eu estava muito feliz, mas, para mim, faltava alguma coisa. Aparentemente, talvez apenas saudades do Caminho, mas havia uma razão maior. Por mais feliz que eu estivesse me sentindo, não podia deixar de admitir que restavam ainda algumas tarefas e que meu coração pedia que eu seguisse adiante. Consultei os mapas, despedi-me de Lízia e segui para Padrón, 20 quilômetros adiante. 

(Transcrito do livro GUIA DO PEREGRINO DO CAMINHO DE SANTIAGO, Autor Máqui Sander, Editora Ground, ano 1990, páginas 190/192)

4 - MINHA EXPERIÊNCIA PEREGRINA - (ANO 2001)

(Autor: Oswaldo Buzzo) 

 “HÁ MUITOS CAMINHOS. CADA PESSOA TEM UMA PERSPECTIVA DIFERENTE. AS EXPERIÊNCIAS DIVERGEM. DE CERTO SÓ O QUE EXISTE SÃO AS PEDRAS, OS CAMPOS, AS MONTANHAS, AS IGREJAS MEDIEVAIS, AS FASCINANTES PESSOAS DE CADA VILAREJO ESPANHOL. O RESTO VARIA DE ACORDO COM A SENSIBILIDADE DE CADA UM” – Santiago de Tejada (Peregrino Francês). 

No 28º dia de caminhada, 07.05.2001, parti de Arzúa com destino à Santiago de Compostela, distante 40 quilômetros.

Porém, minha intenção era percorrer apenas ¾ dessa extensão, deixando o restante para o dia seguinte, no intuito de chegar a tempo para assistir à famosa “Missa dos Peregrinos”, que se realiza na Catedral de Santiago diariamente às 12 horas.

Eu aportei à cidade de Lavacola às 14 h, e sentei-me numa escadaria para lanchar, visto que o albergue local somente abriria suas portas bem mais tarde.

E enquanto me alimentava, sentindo Santiago tão perto, apenas 10 quilômetros de distância, conjecturava, porque não chegar naquele mesmo dia.

Contudo, o cansaço era grande e a vontade de pernoitar ali ainda maior.

Então, lembrei-me do peregrino alemão que morreu em 1999 a apenas 33 quilômetros de Santiago, cuja sepultura eu havia visto de manhã.

Imediatamente, senti um terrível e profundo calafrio na alma.

Ocorreu-me, então, um pensamento tétrico: e se eu morresse naquela noite e não chegasse à Santiago, minha meta maior?

Enquanto absorto decidia, volvi minha cabeça em direção ao sul e vislumbrei nuvens escuras aproximando-se lentamente.

Era sinal de que dentro em pouco poderia chover forte, e ante mais essa ameaça, resolvi rapidamente o impasse: iria ver Santiago, naquele mesmo dia.

Levantei-me com rapidez, apanhei meus pertences, e praticamente disparei em direção à Compostela.

Após uma breve passagem pelo Morro do Gozo, para conhecer suas estupendas instalações e carimbar minha credencial, demandei à Catedral da Cidade em ritmo acelerado.

Exatamente às 17 h 15 min chegava à imensa Basílica e ignorando todas as tradições peregrinas, eu entrei na igreja pela porta lateral, a primeira que avistei.

O templo estava quase deserto, e instintivamente me encaminhei em direção ao altar do Santo, subi alguns lances de uma pequena escada, e, literalmente, abraçei-me a estátua de Santiago.

E ali permaneci imóvel a chorar copiosamente por longos minutos, extravasando toda minha emoção pelo aporte, são e salvo.

Meu sonho havia se realizado, e sentia-me extremamente gratificado.

Ao me desprender da imagem do Santo, observei uma pequena fila de pessoas que aguardavam a vez de também abraçar o Apóstolo, mas respeitosamente e em silêncio, esperavam o fim do meu efusivo gesto.

Lentamente me apartei da estátua, e saí do templo pela mesma porta por onde havia entrado.

2001 - Na Praça do Obradoiro, defronte à Catedral de Santiago

Calmamente, então, desci pela rua lateral da igreja e alcancei finalmente a Praça do Obradoiro onde, estupefato contemplei a magnífica Catedral de Santiago de Compostela pela face externa.

Após a apoteótica visão, cumprindo a tradição peregrina, subi a escadaria com 33 degraus, adentrei pela porta principal, toquei a coluna central do “Pórtico da Glória”, onde a fé peregrina “cavou” o mármore em um formato similar ao de cinco dedos.

Depois, novamente me dirigi ao altar de Santiago, desta vez para visitar a cripta que guarda seus ossos em uma urna de prata.

Agradecido por aquele momento singular, sentei-me num dos bancos da Catedral e experimentei o gosto da vitória e da felicidade plena.

Aquela que todos nós algumas poucas vezes vivenciamos e, naquele momento fugaz, imaginamos que irá durar para sempre.

Minha chegada prematura ao final do Caminho propiciou-me ficar por três dias na cidade, durante os quais aproveitei para conhecer, em detalhes, todo o “casco viejo” e seus monumentos.

Finisterre, ao fundo e abaixo.

Também pude ir até Finisterre, bem como visitar à Corunha, a bela Capital da Província homônima.

A sempre imperdível cerimônia do Botafumeiro.

Tive tempo para assistir a duas “Missas do Peregrino”, com direito de observar a secular cerimônia do Botafumeiro.

Também visitei o majestoso templo várias vezes à tarde, e pude observar o encontro dos peregrinos que diariamente chegavam da longa caminhada.

E foi conversando com aqueles com os quais eu havia compartilhado o Caminho que fiquei sabendo o quanto meu sacrifício, ao adiantar minha jornada, não havia sido feito em vão.

Isto porque, os peregrinos que subiram a serra do Cebreiro no dia dois de maio e seguinte, tiveram problemas e atrasos, uma vez que a forte nevasca tornou a trilha intransitável, obstaculizando o acesso por aquela via, obrigando os peregrinos a chegar ao topo utilizando a estrada de rodagem, empecilho que aumentou sobremaneira aquela etapa.

Como dispunha de 31 dias para fazer o Caminho todo, possivelmente não conseguiria terminá-lo a tempo, não fossem as duas jornadas extras vividas, uma feita quase por acaso, e a outra que honrei pela minha disciplina.

Mais uma vez, então, tive a certeza de que fui abençoado por Santiago, não só em todo Caminho, como também no meu propósito maior, que era chegar até sua Catedral, ileso, a caminhar pelas minhas próprias pernas. 

Gerard, Louiz e Anete, meus amigos franceses.

Transcorridos alguns meses de minha chegada a Santiago, completo um ano dos meus sonhos premonitórios, confesso que o Caminho ainda permanece indelevelmente impregnado em minha memória.

O eco das emoções lá vividas persistem a reverberar em meu espírito.

Bem sei, nem tudo no Caminho foram flores.

Para superar as dificuldades e suportar as dores físicas, precisei de muita fé e firmeza em meus propósitos, e senti inúmeras vezes a presença do Santo a me amparar e proteger, atendendo-me sempre, quando por vezes lancei meu grito silencioso de socorro.

Foi também um período de intenso aprendizado interior, onde compartilhar foi o verbo mais conjugado, e solidariedade, a palavra que reputo como a mais indicada para resumir o que de melhor vivi na Rota.

Além de experimentar o êxtase da fé, exercitei a humildade, a tolerância, o desapego, e reaprendi a perseverar em meus propósitos.

O verdadeiro Caminho de cada um começa realmente quando retornamos ao lar. Voltei mais forte com razão, porque quem se propôs vencer 830 quilômetros sob tantas dificuldades, pode superar com tranquilidade os obstáculos que nos são impostos no dia a dia.

Com Robert, um peregrino holandês, grande companheiro no Caminho

Voltei também mais próximo de Deus, e mais otimista em relação ao “Caminho da Vida”.

No fundo, o Caminho acaba sendo um pretexto para mudanças, para uma grande virada de rumos, sonhos e aspirações, sacudindo a poeira do tédio e da rotina sufocante do nosso cotidiano, que tanto nos angustia, sufoca e limita.

Por isso, mais do que nunca, tenho a certeza de que fazer o Caminho foi a decisão mais acertada que tomei na minha vida.

 

Minha 1ª Compostela. Ano 2001.

Ultreya e Suseya!

(escrito em outubro/2001) 

Bom Caminho a todos! 

Fevereiro/2013