20ª Jornada - CUDILLERO a CADAVENO

20ª Jornada – Cudillero a Cadaveno - 36 quilômetros: “Uma jornada dolorida!” 

O percurso seria longo e complicado, acresça-se, ainda, que era um sábado, dia em que nas cidades menores o comércio cerra suas portas às 14 h, de maneira que necessitava chegar antes desse horário para me prover de mantimentos que utilizaria na jornada subsequente.

Havia estudado os mapas com carinho no dia anterior, e tinha duas opções a seguir: a primeira era retornar até El Pito e ali acessar o roteiro principal, seguindo em direção à cidade de Soto de Luiña.

Contudo, teria a dificuldade inicial de escalar um morro por dois íngremes quilômetros, até acessar o percurso oficial da Rota.

Dessa forma, preferi seguir o conselho de um taxista com quem havia conversado longamente no dia anterior, de maneira que optei pelo segundo, seguir o “Caminho de Ballota”, um itinerário, em asfalto, que segue até certa altura, beirando a costa, depois enlaça, mais adiante, com o roteiro oficial de Santiago.

E como havia previsão de chuva para aquela data, resolvi sair o mais cedo possível.

Assim, levantei às 5 h, e às 5 h 30 min, sob um vento cortante e com a temperatura beirando 5ºC, deixei o local de pernoite e acessei uma estrada vicinal asfaltada, e por ela segui, tendo o mar sempre à minha direita.

O percurso, quase todo plano e bem sinalizado, me levou depois de 1 h e 40 min a uma caminhada prazerosa, durante o qual percorri 9 quilômetros, até a cidade de Soto de Luiña, onde encontrei tudo fechado e em silêncio, pois ainda era muito cedo.

Ali passei defronte à igreja de Santa Maria, que possui um anexo, onde na atualidade está instalada a Casa da Cultura desse simpático município.

Sua fundação data do século XVI, sendo que ali funcionou um hospital de peregrinos, entre 1.713 a 1.811, conforme atestam registros dessa época, ainda preservados.

Atualmente, ela continua acolhendo aos caminhantes, em um albergue, situado num amplo edifício, onde antes funcionava uma escola municipal, que fechou por conta da baixa natalidade local, e a emigração empreendida pelos jovens para povoados com mais recursos.

Neste local, reencontrei a rodovia N-632, minha velha conhecida, e por ela segui uns 500 metros, se tanto, depois adentrei à direita, numa estrada de terra com muitas pedras, toda cercada por imponentes eucaliptos.

Porém, depois de vencer empinada e pedregosa ladeira, que me fez transpirar em profusão, eu acabei saindo numa grande rotatória, já próximo ao cemitério da cidade.

Nesse local, existe a bifurcação dos caminhos, sendo que ao peregrino é oferecida a alternativa de seguir, à esquerda, pela “Sierra de las Palancas”, um roteiro íngreme e bastante longo, porém não recomendável, posto que desativado por falta de manutenção, e atualmente, apesar de reabilitado, ele não se acha sinalizado em sua totalidade.

Assim, prossegui adiante, e a partir desse local, resolvi seguir sempre pelo acostamento da “carretera”, pois segundo o guia que eu portava, os caminhos em terra, oferecidos aos caminhantes, estavam em péssimo estado de conservação.

Dessa forma, na sequência, passei pelos povoados de Albuerne e Novellana, pequeníssimas “aldeias” situadas à beira da “carretera”, uma rodovia vicinal de escasso tráfego, pois o trânsito pesado opta pela Autovia Nacional, uma construção moderna e imponente que segue em paralelo.

Sobre Novellana, interessante comentar que existe uma placa na entrada da vila, informando que ela foi eleita em 1.961, o “Pueblo” mais bonito das Astúrias”, e em 1.992, recebeu o Prêmio Príncipe das Astúrias, como o “Pueblo Exemplar” daquela região.

Apesar de toda essa fama, com sinceridade, não visualizei atrativos nessa localidade, que pudessem enaltecê-la de maneira tão enfática, qual seja, um diferencial a clarificar os adjetivos apostos no pomposo cartaz, título que me pareceu um tanto excessivo, já que havia transitado por dezenas de “pueblos” com mais encanto, nessa bonita Província.

Na sequência, ainda por asfalto, passei por Castañeras e Santa Maria, e no entremeio desses povoados, em alguns locais, eu arrisquei seguir pequenos atalhos em terra, embora tenha os encontrado úmidos e com muito barro, porquanto nos dias anteriores chovera naquela região com relativa intensidade.

Finalmente, às 10 h 15 min, eu adentrei em Ballota, outro pequeno povoado que, como os demais que deixara para trás, não possui grande interesse arquitetônico e nem oferece qualquer tipo de serviço ao peregrino, como por exemplo, “tienda” ou bar.

O céu estivera azul e com um sol incipiente, apesar do frio reinante, mas estava em mudança drástica, pois grossas nuvens se formavam na direção do mar, o que entendi como iminência de chuva.

Bem, a partir desse marco, meu guia dizia que eu poderia seguir por terra, já que nesse trecho eu encontraria boas condições de trânsito e, ainda, seria importante ir beirando o mar por motivos históricos.

            Após deixar a povoação, entrei à direita, seguindo por um largo caminho cascalhado, em grande declividade na direção da orla, contudo, pouco antes de alcançar a praia, obedecendo a sinalização, eu fleti à esquerda, e depois de uns 500 m, encontrei uma velha ponte de pedra sobre o rio Cabo.

Ela seria, segundo os historiadores: Uría, Lacarra e Vazquez de Parga, a mítica “puente que tiembla”, ao que se referia uma canção de peregrinos impressa na França em 1.616, e conforme dados colhidos, ela estava a uns 80 m do mar e naquela época era feita de madeira.

O local, hoje, rodeado por uma intensa aura medieval, serve de referência para determinar o lugar por onde passava o velho caminho real, que unia a cidade de Cudillero à Luarca.

Prossegui adiante, por um caminho bastante ermo e sujo, situado em meio a uma grande floresta e com péssima sinalização, tendo o mar à minha direita.

Nesse trecho, passei sobre vários riachos.

Em determinado ponto, o trilho foi se estreitando, o capinzal invadiu a senda e, num local com mato alto encontrei uma bifurcação, mas cadê a flecha indicativa, que me clarificasse para qual lado eu deveria seguir?

Bem, não tive alternativa, utilizei minha intuição e, aos tropeços, fui seguindo adiante, enquanto trovões e relâmpagos riscavam o céu.

Na sequência, uma grande pancada de chuva principiou a cair.

Rapidamente, tudo ensombreceu e quase se fez noite dentro da mata, e eu, bastante apavorado, estuguei meus passos, pois pretendia sair o mais rápido possível daquele lugar, com medo dos raios que triscavam ao meu redor.

Vivi momentos de pânico e muita tensão, ante o perigo iminente, sendo que não encontrei um espaço livre nessa estranha vereda, onde eu pudesse parar e vestir minha capa de chuva.

Por sorte, o centro da tromba d'água estava mais à frente, porém, mesmo assim, me molhei bastante.

Para piorar meu estado de ânimo, sentia meu pé esquerdo extremamente dolorido.

Embora caminhasse com rapidez, não encontrava a saída daquele imenso bosque.


Numa grande e íngreme ascensão, quando já estava exaurido, ouvi um forte assobio à minha retaguarda, que pelo som melífluo e harmonioso, inferi ser de algum pássaro raro que habitasse aquela região.

Mais acima, novamente o som se repetiu, agora mais próximo, então, comecei a ficar aterrorizado, pois contava estar sozinho na mataria, quando ouvi uma voz chamando, bem atrás de mim.

Assustado, coração a palpitar, parei para verificar o que ocorria, e avistei um senhor correndo pela trilha que eu vencera, trazendo uma potente máquina fotográfica nos ombros, bem como um grande tripé na mão.

Sob as bençãos divinas, novamente Santiago enviava um anjo para me ajudar.

Ele se identificou como Sr. Pablo, um morador de uma cidade próxima, era fotógrafo amador e estava captando instantâneos daquela bela região costeira, para publicação numa revista especializada.

Disse-me que, como eu, ficara com medo da tempestade e não quisera se arriscar, mais ainda porque não levara capa e seu material de trabalho era caríssimo, assim, estava retornando ao seu carro, e transferindo o trabalho para outra data.

Depois das apresentações, mais aliviado, subimos o restante do percurso trocando informações.

Ele ficou bastante interessado em minha aventura e contou ser funcionário de uma empresa portuguesa, embora trabalhasse na própria Espanha, já que o sistema eletrônico facilitava a comunicação.

Foi um papo proveitoso e animado, até que no final da elevação, encontramos a entrada de Ribón, uma pequeníssima vila, bem ainda o automóvel do meu amigo, onde ele rapidamente guardou seus equipamentos.

Em seguida, me ofereceu água e perguntou se eu necessitava de alguma coisa, pois estava indo à Cadaveno, próximo dali, buscar sua esposa, que aguardava numa cafeteria, enquanto ele fotografava.

Vendo o estado lastimável em que eu me encontrava, com a perna esquerda claudicante, ele me ofereceu carona, e ao saber que eu ainda não reservara acomodação em hotel, se prontificou a intentar tal mister.

Agradeci o convite para seguirmos juntos, pois pretendia prosseguir caminhando os três quilômetros restantes, porém permiti que ele levasse minha mochila, com a promessa de que a deixaria num grande e movimentado bar, localizado na entrada da povoação.

Assim, mais aliviado, prossegui por asfalto e depois de 30 minutos adentrava em zona urbana e logo cheguei à praça principal de Cadaveno, uma agradável cidade rural, com urbanismo um tanto disperso, pois as casas foram construídas a grande distância uma das outras.

Conforme combinamos, encontrei minha mochila guardada no bar El Castilho, onde além da reserva feita para a minha hospedagem, também fui agraciado com um café e uma dose de Blandy, pagos pelo meu dileto amigo.

São atitudes e exemplos como este que realmente me emocionaram e me deram força ao longo de meu périplo.

Na cidade, fiquei hospedado no Hotel AR, e utilizei o restaurante do estabelecimento para fazer minha principal refeição, o almoço.

O tempo que estivera nublado novamente se abriu.

Depois de fazer demorada assepsia no ferimento causado por uma bolha, pude expor o solado de meus pés na janela por mais de uma hora, sob o cálido sol primaveril, fator que muito contribuiu para a secagem e o início de uma profícua cicatrização no local lesionado.

Após um bom descanso, segui por um caminho asfaltado em direção ao mar, mais especificamente, à praia de La Regalina, onde pude visitar a ermida de la “Virgen de Riégala”, que se ergue solitária numa colina, de onde se tem uma vista privilegiada da costa asturiana.

Desde 1.931, se celebra naquele local, sempre no último domingo de agosto, uma concorrida festa em homenagem à santa que, na verdade, é uma grande manifestação de folclore e exibição dos trajes regionais, com direito a desfile de carros típicos, puxados por animais engalanados e conduzidos por romeiros ataviados, numa das festividades de maior encanto de toda a Espanha.

Por sorte, encontrei nas imediações do local de pernoite uma “tienda” que só fechava à noite, onde pude adquirir víveres para o lanche da noite, bem ainda para a jornada seguinte.

Ao redor das 20 h, voltou a chover forte e eu logo fui dormir, pois me sentia bastante estafado, fruto das intensas emoções vivenciadas naquele dia.                                  

IMPRESSÃO PESSOAL – Uma etapa bastante longa e praticamente toda feita em asfalto. Apenas os derradeiros quilômetros foram por um caminho de terra e, ainda assim, por veredas matosas e sem sinalização. No entanto, em meio a muito verde, tendo o mar a curta distância. No geral, foi o dia em que mais sofri com minha bolha, chegando a passar por estágios críticos e tendo sido tão afetado pelas dores que, em alguns momentos, pensei em desistir de minha peregrinação.

 21ª Jornada - CADAVENO a LUARCA