O CASO MAIS ESTRANHO QUE ME ACONTECEU NO CAMINHO DE SANTIAGO

"A vida não vale nada se você não tem uma boa história para contar." (Pedro Bial)

Em 2016, completei 12 Caminhos diferentes percorridos em solo espanhol, sendo que em 10 deles segui em direção à cidade de Santiago de Compostela que, em contrapartida, me renderam 10 Certificados Compostelanos.

Nesses últimos 17 anos fiz o Caminho Francês em 3 oportunidades e, além desse, caminhei também pela Via de La Plata, Caminho do Norte, Caminho Primitivo, Caminho Aragonês, Caminho Português Central, Caminho Português Interior, Caminho Inglês, Caminho Jacobeu do Ebro, Caminho del Salvador e Caminho de Finisterra.

Em todos eles aconteceram cenas hilariantes, tive preocupações, me perdi algumas vezes, fiz inúmeras amizades, compartilhei alojamentos em diversos albergues, bolhas brotaram em meus pés, passei por vários “micos”, mas, foi no Caminho Jacobeu do Ebro, que me ocorreu a cena mais insólita, porque não dizer, a mais vexatória dentre tantas que já me sucederam.

Tudo, imagino, culpa do estresse provocado pelo “Jet Lag”, que corresponde ao distúrbio do sono, podendo afetar aqueles que viajam em curtos intervalos de tempo, para lugares com diferentes fusos horários.

O INÍCIO

"Meu destino não é mais um lugar, e sim, um novo modo de ver." Marcel Proust 

O Caminho do Ebro permanecera latente em meu íntimo, desde que eu retornara do Caminho Francês, em 2014.

Vez que, ainda em Santiago de Compostela, por indicação de uma peregrina espanhola, adquirira o guia desse roteiro e, já no Brasil, passara a estudá-lo em minúcias.

Assim, após uma noite tumultuosa e insone, acordei e me levantei às 3 h 30 min, na madrugada de uma terça-feira de abril, com a certeza de que teria muito tempo para descansar durante a longa viagem que faria, até aportar ao meu destino final: a cidade de Deltebre, situada junto à foz do rio Ebro, na Espanha.

Calmamente, após as orações matutinas, pela terceira vez naquela semana, cuidadosamente, reconferi os itens insertos em minha mochila e bagagem de mão, na certeza de que, uma pequena falha nesse basilar procedimento se transformaria, mais tarde, em uma grande dor de cabeça.

Tudo resolvido a bom termo, saí para caminhar 10 quilômetros e o fiz com extremo cuidado, posto que um simples escorregão ou uma queda, implicaria no abortamento de minha peregrinação.

Às 8 horas, beijei esposa, filha e neta, depois tomei um táxi em direção à Estação Rodoviária. 

Despedindo-me da filha, neta, cães, pássaros, etc...

Interessante que, no início de abril de 2016, mesmo antes iniciar minha viagem rumo à Espanha, apercebia que os preparativos, planejamentos, estudos sobre o roteiro, família, lentamente ficavam para trás, até porque, raríssimas pessoas sabiam de minha nova aventura.

Tanto que nem festa de partida houve e despedidas formais menos ainda, posto que, de certo modo, interiormente, eu já havia “viajado”.

Identificava, ainda, uma vontade estranha, urgente, de me sentir só, enfim, de ver o caminho correr debaixo de meus pés em direção a Compostela.

No momento do adeus, sentia o chão instável, distante, saudade daqueles que estavam presentes: a neta Teresa, filha, esposa, cães, pássaros, etc..

A VIAGEM

"Em algum lugar, alguma coisa incrível está esperando para ser descoberta." (Carl Sagan) 

O translado entre a cidade de Campinas e o Aeroporto de Guarulhos, cujo tempo estimado era de 3 horas, seria o momento ideal para uma soneca retemperadora.

Contudo, não logrei êxito nesse objetivo, vez que ao meu lado se sentou uma senhora extremamente obesa que, a todo momento, ao se movimentar, me tocava fisicamente.

Para piorar, ela utilizou seu aparelho celular durante todo o tempo de viagem para desabafar, com seus múltiplos contatos, sobre sua infelicidade e eu, mesmo com fones em ambos os ouvidos, tentando ouvir música para relaxar, não consegui dormitar em nenhum instante.

O coletivo encerrou sua jornada diante do Terminal 2 do aeroporto e eu precisei fazer longa jornada, a pé, dentro do edifício, até chegar ao terminal 4, onde está instalado o escritório da empresa Ibéria, pela qual viajaria.

Após embalar minha mochila, com o intuito de evitar seu extravio, fiz o competente “check-in” e, um pouco mais tarde, adentrei ao salão de embarque internacional.

No horário aprazado, circunspecto e tenso, embarquei num avião que, depois de 11 horas de voo, pousaria no aeroporto de Madri, na Espanha.

Logo ocupava minha cadeira, voltada para o corredor, assim como solicitara à simpática comissária que me atendeu no balcão da empresa aérea.

Mas, ocorreu algo inusitado, pois minha vizinha, uma jovem de aproximadamente 25 anos, me questionou se não gostaria de trocar de lugar com ela.

Explicou-me que havia agendado, há um mês, uma entrevista para emprego na França, e dois dias antes descobrira que estava com 3 pedras em um de seus rins, o da esquerda.

Para tentar expeli-las, tomava um medicamento a cada duas horas e ingeria água constantemente, como forma de auxiliar na expulsão dos cálculos. 

Hotel Rull, em Deltebre, onde me hospedei nesse dia.

Por conta disso necessitaria ir a toalete a cada hora, algo que, em princípio, não me afetaria, pois entendi que esse interregno seria o ideal para que eu movimentasse minhas pernas, como faço, de praxe, em viagens de longa duração.

Ocorre que por motivos desconhecidos, ela passou a me pedir passagem a cada 30 minutos para se dirigir ao banheiro e, “resumo da ópera”, não preguei o olho a viagem toda, posto que no momento em que eu iniciava meu cochilo, era importunado pela minha companheira de voo.

Quando o avião aterrizou no aeroporto de Madri, como de hábito, adentrei em franca ebulição interior, pois em 1 h 30 min precisaria superar todos os trâmites burocráticos que a chegada à Europa exige e depois ainda localizar o local de onde partiria o meu voo de conexão.

Com isso, só cheguei no portão de embarque do avião que tomaria para Barcelona, quase no final dos procedimentos de acesso à aeronave, por conta das dificuldades encontradas no trajeto até aquele local.

A distância entre Madri e Barcelona, via aérea, não excede 400 quilômetros, algo em torno de 1 h 30 min de voo, tempo compreendido entre taxiamentos e desembarque, um intervalo propício para um descanso relaxante.

Ocorre que enfrentamos forte turbulência no trajeto e quando pousamos, eu prosseguia desperto.

Depois de aguardar quase uma hora pela liberação de minha mochila, me dirigi ao setor de informações e turismo, pois necessitava tomar um trem em direção à cidade de Deltebre e não sabia em qual estação férrea me dirigir em Barcelona.

A senhorita que me atendeu foi muito solícita e prática, assim, na sequência, adentrei num táxi que me conduziu à Estación Sants de Ferrocarril, situada no coração da capital da Catalunha.

Ali adquiri minha passagem, pela qual paguei 20 Euros, e logo adentrei à plataforma de embarque, mas o trem demorou quase uma hora para ali aportar, já que provinha de outra cidade.

Eu sentei num banco para aguardar, mas o sono era avassalador e como forma de não perder minha condução, pois a outra somente partiria 4 horas mais tarde, passei a caminhar pela estação como um zumbi, mochila às costas.

Finalmente, a composição chegou, eu embarquei e me sentei em uma luxuosa poltrona, colocada de frente para uma janela lateral.

A distância a ser vencida era de 150 quilômetros, aproximadamente, 2 horas de viagem, sendo que o trem faria paradas em 7 estações antes de aportar na cidade de L'Ampolla, já na Província de Tarragona, onde eu desembarcaria.

O sono voltou a me açodar e passei a vagar pelos corredores para não me distrair, posto que se eu cochilasse, possivelmente, só despertaria em Sevilha, ponto final da viagem. 

Restaurante El Garxal, onde almocei em Deltebre.

Nesse meio tempo, fiz de tudo para não dormir, assim, conversei aleatoriamente com passageiros, procurei lavar o rosto várias vezes no toalete, fazer flexões com os braços, caminhar pelos corredores, enfim, passei um sufoco danado para não ser vencido pelo cansaço mas, finalmente, cheguei ao meu destino.

Na sequência, cansado e feliz, embarquei num táxi que, após 16 quilômetros, por 12 Euros, me deixou no Hotel Rull, em Deltebre, onde havia feito reserva.

Nele, por 50 Euros, em razão de não encontrar opção mais em conta, pude dispor de um quarto espaçoso e dotado de todos os confortos que um viajante moderno merece, como TV de tela plana, wi-fi, banheiros limpos, cama grande, lençóis cheirosos, calefação, etc...

Na recepção do estabelecimento, após finalizar os procedimentos de praxe, foi me disponibilizado um cartão magnetizado que, além de propiciar o destravamento da porta do meu apartamento, quando inserto num local específico, também acionava a rede elétrica.

Já passava das 14 horas e, então, me lembrei de que há muito tempo eu não ingeria uma refeição quente.

Dessa forma, após desfazer os pertences e tomar um banho, rapidamente, desci para almoçar e, para tanto, me dirigi ao Restaurante El Garxal onde, por 13 Euros, pude desfrutar de um maravilhoso “menu del dia”.

Retemperado, retornei ao local de pernoite e, face ao desconforto causado pelo fuso horário, ou seja, eu estava adiantado 5 horas em relação ao Brasil, deitei para descansar.

CAMINHANDO EM DIREÇÃO A SANTIAGO 

"Eu percebo que o mais especial e mágico da vida... o que gosto de fazer, é grátis. Como caminhar. Eu adoro caminhar." (Paulo Coelho)

Porém, debalde todos os esforços, não consegui relaxar, então, meia hora depois já estava em pé e, elétrico e acelerado, decidi ir até a Oficina de Turismo carimbar minha credencial, bem como tomar informações sobre a Rota que defrontaria no dia sequente.

Sobre o primeiro intento, houve sucesso, pois ali consegui meu primeiro “sello” desse novel caminho. 

Oficina de Turismo de Deltebre.

Contudo, para meu desapontamento, eles não detinham qualquer informe ou referências sobre o “Camiño Jacobeu del Ebro”, que eu iniciaria na manhã seguinte.

Então, calcei minhas botas novamente, tomei um táxi e fui conhecer o ponto inicial do roteiro, localizado no delta do rio Ebro, próximo ao local de sua desembocadura no mar Mediterrâneo.

Desci do veículo numa rotatória, passei próximo do Restaurante Galatos e, na sequência, ao lado do Camping L'aube.

Duzentos metros depois, cheguei ao mirador que marca o início da Ruta del Ebro, onde encontrei os sinais jacobeus. 

Escadarias que conduzem ao topo da duna.

Uma escadaria de madeira em ascendência me conduziu ao início do caminho, que se encontra a 10 quilômetros do núcleo urbano de Deltebre, mais especificamente, num local nominado como “Muntell de les Vereges” (Monte das Virgens).

Trata-se, na verdade, de uma pequena duna de 4 metros de altura, situada quase na ponta do delta do Ebro, onde encontrei um monumento recentemente reformado, correspondente à sete pedestais graníticos de uns dois metros de altura, onde foram inseridas as fotos das virgens padroeiras das províncias que são cortadas pelo curso desse rio.

São elas: Santa Maria La Real (Navarra), Virgem Arántzazu (País Vasco), Virgem Montesclaros (Cantábria), Virgem Valvanera (Rioja), Virgem de La Peña Francia (Castilla e León), Virgem del Pilar (Aragón), e Virgem de La Assunción (Catalunha) 

“Muntell de les Vereges” (Monte das Virgens).

Eu estava cansado pela longa viagem e também apressado, assim, feitas as necessárias fotos, eu desci as escadarias, retornei ao ponto inicial e prossegui meu périplo, pois, conforme planejara, iniciaria o Caminho a partir daquele local.

Quatrocentos metros depois, ao transpor outra rotatória, cheguei a um embarcador, que ultrapassei para acessar à rodovia T-340, pela qual segui caminhando em direção à cidade de Deltebre. 

Ao fundo, a foz do rio Ebro e seu encontro com o mar Mediterrâneo.

Dez quilômetros depois, sempre em bom ritmo, já que esse trecho é integralmente plano e arejado, adentrei em zona urbana, e logo estava de volta ao hotel onde me hospedara.

Depois de tomar outro banho, saí para verificar o local por onde deixaria a cidade na manhã sequente, visto que me baseava apenas nos mapas que dispunha, pois, como soubera anteriormente, eu não encontraria flechas sinalizadoras, nem placas indicativas nas cidades, mormente nas primeiras etapas.

Sabendo disso, estudara a fundo o roteiro, me munira de indicações e referências, além do que, utilizaria o GPS inserto em meu celular para rastrear meu trajeto.

Assim, embora integralmente solitário e em terras estranhas, me sentia abençoado, pois Deus, Nossa Senhora Aparecida e meu Anjo da Guarda estariam a me proteger.

Findas as providências de praxe, passei num supermercado e adquiri víveres visando ao lanche da noite e à etapa que envidaria na manhã seguinte.

De volta ao local de pernoite, ingeri singelo repasto, regado a uma garrafa de encorpado vinho riojano, enquanto ultimava os preparativos, tendo em vista minha iminente partida.

Descontando-se o fuso horário, eu estava praticamente a quase 40 horas sem dormir, no entanto, contrariando todas as expectativas, ainda me sentia bem e voltei a rever os mapas que dispunha concernentes à primeira etapa, aquela que enfrentaria na manhã sequente. 

Camiño Jacobeo del Ebro, roteiro que eu iniciaria no dia seguinte.

Um novo Caminho se abria a minha frente, e com isso repensava nos desafios a enfrentar e me sentia privilegiado, posto que estava com boa saúde, dispunha de tempo e condições físicas adequadas, enfim, era um ser abençoado por estar no local certo e vivenciar um momento consentâneo.

Claro, sabia que muitas provações me aguardavam, como o sol, a chuva, o vento, a poeira, o embaraço do idioma, a saudade dos familiares e a solidão, dentre outros desconfortos.

Mas, tinha certeza, minha força de vontade, fé, disciplina, persistência e intrepidez me auxiliariam a sobrepujar tais entraves, além, por óbvio, de contar com a proteção imorredoura de “Tiago Maior” a me aguardar em sua majestosa Catedral, para o abraço amigo.

Enquanto anotava minhas rememorações desde a partida, bocejei várias vezes, afinal, o dia fora longo, era hora de dormir.

Porém, antes de me deitar, meditei sobre o grande desafio que me propusera, bem como externei pleitos de auxílio a Santiago, meu protetor, a quem esperava encontrar, baseado em meu cronograma de viagem, dentro de 21 dias.

Na televisão estava se iniciando um duelo futebolístico válido pela Liga dos Campeões, e resolvi assistir, ao menos, uma parte daquele importante prélio, entre o Real Madri e o PSG, da França.

Ato contínuo, deixei apenas uma luz acesa no banheiro, baixei a zero o som da TV, depois me recostei calmamente sobre 3 travesseiros e me concentrei no jogo.

Dois segundos mais tarde eu apaguei, literalmente, mas logo passei a sonhar com visos de uma límpida realidade.

O caso estranho que comigo aconteceu naquela data, tem seu início nesse ponto.

UM SONHO ESTRANHO 

"Às vezes, a vida vai testá-lo, mas lembre-se disso: quando você sobe uma montanha, suas pernas ficam mais fortes!

No sonho, uma senhora adentrou no quarto e me convidou para segui-la, pois queria me mostrar algo importante no apartamento vizinho.

Interessante, foi que acedi prontamente ao seu convite, porque seu rosto me pareceu familiar.

No dia seguinte, quando recordei o acontecido, pareceu que era minha mãe, já falecida há mais de 6 anos.

Pois bem, juntos, deixamos o meu quarto, o qual cuidadosamente fechei, depois, mistério, mesmo sem possuir cartão magnético, adentramos no apartamento ao lado, o de número 102.

Estava escuro e seguimos em direção a sala de estar, localizada no final do ambiente, no entanto, quando lá chegamos, a pessoa que estava me guiando simplesmente desapareceu, qual seja, desvaneceu-se no ar.

Confuso, retornei ao corredor, fiz uma atenta inspeção nos arredores e nada vi ou encontrei.

Frustrado, tentei retornar ao meu quarto mas, como de se esperar, encontrei a porta trancada. 

Sonhos... ou simples quimeras?

Eu estava sonhando mas meu raciocínio prosseguia perfeito, porque resolvi ir até a portaria do hotel solicitar auxílio.

Antes, porém, olhando num espelho existente numa parede frondente constatei horrorizado que estava trajando apenas uma camiseta, qual seja, eu estava nu da cintura para baixo.

Depois de intenso raciocínio, encontrei a solução: retornei ao interior do quarto 102, retirei a toalha vermelha que cobria a mesa e fiz dela um sarongue, cingindo-o ao redor de minha cintura.

Em seguida, desci as escadarias e falei com a atendente sobre o meu problema, explicando-lhe que, sem saber como, ficara preso do lado de fora do meu quarto, em trajes de dormir.

Ela levou um susto com a minha presença e com razão, pois eu devia estar com os cabelos revoltos, feições transtornadas, vestindo apenas uma camiseta e enrolado em uma tolha de plástico.

Mas logo se refez, providenciou a magnetização de outro cartão, que prontamente me entregou.

Enquanto ela realizava tais procedimentos, lembro perfeitamente de ter observado que o relógio fixado na parede existente detrás do balcão, marcava 23 h 50 min.

De posse do novo cartão de acesso, destravei a porta do meu quarto e, em seguida, voltei a dormir.

Tudo não passara de um devaneio onírico e quando me levantei bem cedo na manhã seguinte, nem me lembrava mais do ocorrido.

Na verdade, na noite anterior não dormira, desmaiara. 

Sonhos... ou simples quimeras?

Posto que, para mim fora um interlúdio passado em branco, sem sonhos, sem medos e sem sobressaltos, bem, era assim que eu pensava.

Não podia classificar as últimas horas como uma realidade que tivesse acontecido.

Para o resto da vida no planeta, tinha se passado uma noite.

Mas para mim, no meu mundo particular, deu-se apenas um pequeno movimento, uma quebra no tempo, perdido entre o deitar na cama e o levantar-me horas depois.

Sem pressa, fiz minhas abluções matinais, tomei o desjejum que havia adquirido no dia anterior, depois comecei a compor a minha mochila, recolocando tudo o que dela havia retirado.

Em determinado momento, ao apanhar o estojo de medicamentos que havia deixado sobre a mesa, notei um cartão magnético, ali deixado ao acaso.

Era estranho, porque o original, aquele que eu recebera no dia anterior, quando de minha chegada, se encontrava no local apropriado, irradiando energia para todo o ambiente.

Aquela descoberta surpreendente me deixou um tanto confuso e, quase na sequência, me lembrei com extrema nitidez e detalhes da fantasia vivenciada naquela noite.

Porém, tudo não passara de quimeras, sofismei, e possivelmente fora o hóspede anterior que esquecera ali seu cartão de acesso.

Prossegui em minhas arrumações sem dar muita importância ao fato, contudo, ao afastar uma cadeira colocada junto à mesa, estarrecido, vi que sobre ela estava a toalha vermelha que utilizara para ir à portaria do hotel.

Aquele achado me impactou internamente, posto que não conseguia entender como tudo acontecera;

Eu teria sido abduzido, por exemplo, enquanto dormia, ou uma panaceia de ocorrências durante o trajeto Brasil/Espanha teriam balizado meu comportamento durante a noite?

Interrogações que permeavam meu intelecto, já abalado pelo “jet lag” desde o dia anterior, por falta de dormir (em português: descompensação horária; em medicina, dissincronose) é uma fadiga de viagem, qual seja, uma condição fisiológica consequência de alterações no ritmo circadiano.

De qualquer forma, deduzi, o sonho fora realidade e, possivelmente, eu seria motivo de chacotas e gargalhadas naquele dia, quando a funcionária que me atendera comentasse o fato com seus colegas.

Certamente, ela diria que um velho peregrino brasileiro aparecera na recepção do hotel, tarde da noite, em trajes sumários e inadequados, sem conseguir explicar como conseguira se trancar do lado externo do quarto.

Para fugir de possíveis olhares dúbios por parte da atendente, arrumei todos os meus pertencentes rapidamente, deixei o local de pernoite ainda no escuro, e segui observando atentamente ao GPS.

Durante a jornada daquele dia marchei preocupado, pois, raciocinava: será que inadvertidamente eu havia desenvolvido o sonambulismo?

Se isso fosse verdade, precisaria tomar muito cuidado à noite, pois viajaria o tempo todo solitário.

 

Caminhando pelo Parque Natural do Delta do Ebro. Em direção à Sant Carles de La Rápita.

Em determinado local do caminho, encontrei “wifi” grátis num bar e, curioso, pesquisei no site de busca “google” sobre esse distúrbio, e o que li me deixou um tanto inquieto.

Dizia lá que o sonambulismo é um transtorno do sono que consiste, basicamente, em levantar-se da cama, andar ou praticar algum tipo de atividade enquanto ainda está dormindo, porquanto, as funções motoras da pessoa despertam, mas sua consciência permanece inativa.

O que me deixou um tanto aliviado foi saber da estimativa de que cerca de 1 a 15% da população mundial tenha tido pelo menos um episódio desse tipo.

Por ser muito comum, o sonambulismo é identificado principalmente pelo vai e vem pela casa, pode incluir ainda conversas e acontece na primeira metade da noite.

E seu tempo de duração varia de 5 até 40 minutos, podendo se repetir ao longo da madrugada.

Durante essas perturbações, a pessoa apresenta uma redução do estado de alerta, olhar vazio e uma relativa ausência de resposta à comunicação com outras pessoas.

As causas exatas dessa disfunção ainda não foram totalmente esclarecidas, no entanto, os médicos apontam para uma série de fatores que podem aumentar as chances de uma pessoa vir a desenvolver tal patologia.

Em linhas gerais, seriam: ficar sem dormir por longos períodos, fadiga, estresse, mudanças súbitas na rotina de sono, causadas pela mudança de fuso horário, etc...

Na verdade, os fatores elencados pareciam explicar, à larga, o que ocorrera comigo, e entendi que aquele fora um incidente extemporâneo, posto que nunca antes eu havia passado por algo semelhante. 

Adentrando em Sant Carles de La Rápita.

Na cidade de Sant Carles de la Rápita, final da 1ª etapa, quando na chegada, eu me hospedei na Pensão Casa Albert, onde paguei 22 Euros a diária, por um excelente apartamento individual.

De imediato, constatei que o travamento da porta do meu quarto seguia o sistema usual, qual seja, pelo binômio chave e fechadura, o que me tranquilizou.

Ainda assim, à noite, antes de deitar, conferi detalhadamente o sistema de fechamento da porta, dei dois giros no êmbolo, depois, subi numa cadeira e coloquei a chave sobre o guarda-roupa, num local de difícil acesso.

Em seguida, utilizando uma mesa e meu cajado, montei uma barricada diante da porta, de modo a dificultar sobremaneira qualquer tentativa de me evadir à noite quando, eventualmente, principiasse a sonambular.

Afinal, como bem diz o ditado: “o seguro morreu de velho”, cujo significado, em termos pontuais, as pessoas precavidas morrem de velhice e não por acidentes.

Vez que eu teria de envidar vários procedimentos para abrir a porta e nessa faina, com certeza, acabaria por acordar. 

Hostal onde fiquei hospedado em Tortosa. Recomendo!

Mas, graças a Deus nada de mal aconteceu e acordei muito bem-disposto no dia seguinte para enfrentar minha segunda etapa no Caminho do Ebro, quando pernoitei na cidade Tortosa.

Naquele dia, me lembro bem, eu repeti os procedimentos de segurança e tudo correu normalmente, com um profícua noite de sono.

Sinal evidente de que certamente o que ocorrera em Deltebre fora resultado do imenso cansaço, motivado pela absoluta falta de descanso, que certamente provocara alucinações em minha consciência.

Na terceira etapa resolvi ousar e fiz jornada dupla, quando caminhei 43 quilômetros.

Eu aportei em Gandesa, minha meta para aquele dia, extremamente exaurido e deveria pernoitar num hotel localizado num bairro situado a um quilômetro de distância do centro urbano.

Eu não suportava dar mais um passo sequer quando cheguei à cidade, de forma que cancelei a reserva feita e me hospedei na Funda Serres onde, por 22 Euros, pude dispor de um quarto e banheiro bastante confortáveis.

Mas, interessante, esse local também me reservaria outra surpresa naquela noite. 

Porta da igreja matriz da cidade de Gandesa.

Como sempre faço quando viajo sozinho, reconfiro tudo antes de dormir, checando o trancamento das portas e janelas, pois nessas ocasiões, a minha segurança é prioridade absoluta.

No entanto, em minha memória, isto também foi feito naquela noite, contudo, outro fato estranho aconteceu na madrugada.

Por volta da 1 hora, eu acordei em face de um tiro disparado e, então, permaneci imóvel na cama, concentrado nos sons, pensando que outras detonações ocorreriam, mas tudo permanecia estranhamente silencioso.

Resolvi levantar para ir ao banheiro e, para minha surpresa, verifiquei que a porta do meu quarto estava aberta.

O som que eu ouvira fora, provavelmente, causado pelo trinco ao se desprender do batente, provocando um estampido, cujo som, em face da quietude reinante, acabou por me despertar.

Rapidamente fechei a porta e me pus a tergiversar sobre o acontecido, até porque, pelo que sabia, eu era o único hóspede do estabelecimento naquela noite.

Eu tinha a mais absoluta certeza de que cerrara tudo, mas certamente eu não havia girado a lingueta da fechadura, senão tal fato não teria ocorrido.

A explicação do fenômeno talvez fosse mais técnica do que mística, já que eu poderia pensar que uma alma penada ou um fantasma causara tudo aquilo somente para me assustar.

Ocorre que o dia anterior fora extremamente quente, o sol invadira os aposentos de frente a tarde toda e, provavelmente, acabara por dilatar a madeira com o seu calor.

À noite esfriara bastante e naquele momento a temperatura externa estava em 6 ºC.

Eu não devia ter fechado a porta com cuidado e, por certo, o batente ao regredir ao seu estado normal, liberara o trinco, fazendo com que a porta abrisse.

Como não acredito em assombrações, essa explicação me convenceu e voltei a dormir em seguida. 

Depois desse fato, ainda pernoitei mais 22 dias na Espanha e nenhum outro fato de realce me aconteceu.

Na praça principal de Gandesa. Após o dia cansativo, ainda vivo e animado...

OUTRAS EXPERIÊNCIAS INEXPLICÁVEIS

"Quantos anos eu tenho? Minha idade é algo entre tarde demais para recomeçar e muito cedo para desistir."

No entanto, os inúmeros Caminhos que seguem em direção à cidade de Santiago estão recheados de relatos impactantes, diferenciados, místicos, enfim, algo existe de misterioso na longa estrada que leva o peregrino à catedral de Compostela.

Para citar apenas três dos quais me lembro no momento, transcrevo um fato interessante ocorrido com o famoso médico e peregrino Áureo Lúcio Silva, relatado em seu espetacular livro “O Caminho das Pedras”, às páginas 88/92, onde ele conta o que de estranho lhe aconteceu no dia 25/05/1999, quando pernoitou no albergue da cidade de Grañon: 

“... Depois de um pequeno lanche, ficamos nós, Siqueira, Rescala e eu, conversando sobre a vida. Sobre qualquer vida e sobre qualquer coisa.

Soltei meu corpo no colchonete, antecipando uma noite serena e repousante. O dia seguinte me acenava com a possibilidade de uma jornada longa, talvez chegar a San Juan de Ortega, mais de quarenta quilômetros à frente; com essa perspectiva, uma boa noite de sono me parecia fundamental.

Talvez a culpada tenha sido a sesta que tirei à tarde, ao pôr-do-sol, ou os ruídos do refúgio, ou sei lá o quê: o fato é que fiquei rolando dentro do saco de dormir, o corpo não encontrando posição de conforto no pequeno, mas confortável colchão que eu ocupava. Quem já sentiu os chamados espinhos na cama sabe do que estou falando.

Durmo um pouco, acordo. Duas da manhã. Outro cochilo... Duas e quarenta ainda! E assim vou, até que o momento em que o meu relógio marca quatro e meia da manha!

- Agora chega! Se o sono não vem, declaro a noite encerrada! Vamos ao novo dia!

Arrumo todo o meu material em silêncio e o levo ao banheiro que fica no meio da escada; lá, sem medo de incomodar os que dormem, tomo um banho calmo e prazeroso. Planejo sair em seguida para o caminho, pois a rota não apresenta possibilidade de erro: basta seguir a reta que continua a partir da rua principal de Grañon, ir caminhando pela única estradinha, daqui a pouco o dia amanhece e pronto!

Cinco da manhã, mochila às costas, desço pé ante pé os degraus da escada circular que leva à saída. A única luz é da minilanterna iluminando meus pés e as pedras onde piso. Desço dois andares e estou em frente a grossa porta de madeira. Apesar de estar com blusa, luvas e gorro de lá, o frio parece sair diretamente das pedras geladas dessa parte do prédio, onde nunca chega a luz e o calor do sol.

Ilumino a maçaneta da porta, puxo o trinco e... Está trancada! O ferrolho está travado por um mecanismo forte e estranho para mim. Aparentemente basta girar ou pressionar um botão metálico que existe no mecanismo e a porta deve se abrir. E o que serão essas ligações elétricas bem ao lado, um quadro cheio de misteriosos botões?

- Ih, deve ser um sistema de alarme! Se eu abrir a porta, vai soar alguma sirene de mil decibéis e toda Grañon vai se jogar pelas janelas ou vir correndo para cá!

Sento-me no primeiro degrau da escada para organizar os pensamentos: posso acordar a hospitaleira e pedir ajuda. Ou esperar que alguém mais se levante, e divida comigo o ônus do crime de acordar toda a aldeia com a sirene. E agora, José?

Depois de cinco minutos, sinto algo maior que o frio subindo pelos meus ossos: um desconforto diferente, um tipo de aperto no peito que faz a respiração ficar mais curta e difícil.

- O que é isso, agora? Um ataque de claustrofobia?

Fico em pé, giro a lanterna ao meu redor, e constato que as paredes continuam lá, fritas e impessoais, a uma razoável distância do meu corpo. Não é isso, então.

Melhor é subir rapidamente as escadas e voltar ao salão... Mas, espere aí! Estou fugindo do que? Calma, vamos raciocinar como adultos que somos.

Apago a luz da lanterna e fecho os olhos. Encosto o corpo na parede de pedra, aumentam o frio e aquela sensação ruim.

O sentimento que tenho, depois de algum tempo aqui parado, é de desamparo e solidão. O corpo chega a doer por causa da tensão muscular causada pelo frio, e estou tremendo. Bastaria ficar em pé, subir os degraus tudo voltaria ao normal, mas quero saber aonde isso vai dar.

Não tenho ideia de quanto tempo se passou, continuo no escuro, e agora começo a me sentir em outro lugar, uma espécie de sonho nítido e com sensações reais no corpo. Sinto-me em um cubículo de pedras, gelado e fedido, sem roupa alguma no corpo. O frio é pior, extremamente pior do que tudo que jamais imaginei; não existe tipo algum de luminosidade ou corrente de ar, e estou com fome, muita fome! Tudo o que desejo é que alguém abra aquela porta, do lado de fora, e deixe entrar um pouco de ar fresco... Mas nada acontece, e eu sei que nada vai acontecer! Vou ficando aqui até o fim, é isso que está acontecendo; algum Conselho assim decidiu e eu conheço o sistema: nada, nem ninguém, tem o poder de mudar uma decisão dessa. Não estou ferido, mas não consigo me colocar em pé. O corpo pesa, os músculos praticamente desapareceram, acho que estou aqui há meses!

Peço desesperadamente que alguma coisa aconteça, que alguém venha e me tire daqui ou acabe logo com isso tudo... E ao mesmo tempo reconheço que minha condenação foi justa! Dentro da lógica desse tempo em que vivo, meu destino foi escolhido por mim e agora sei como vai terminar.

Morrer abandonado, com frio e fome, os ossos parecem explodir de dor... O melhor é liberar minha vontade, soltar o corpo no chão e parar de lutar. Essa batalha está perdida. Tudo o que quero é uma nova chance. Morro.

Abro os olhos, tremendo e chorando. Acendo a lanterninha e fungando subo os degraus em direção ao banheiro. Rosto lavado, nariz assoado e a dor no corpo ainda permanece. Vou para a frente da lareira descansar; às cinco e meio percebo alguém se arrumando no mezanino e começo a me espreguiçar devagar. Aos poucos me sinto outra vez aqui, de corpo e alma. Uma fresta de luz vai entrando pelos cantos das janelas fechadas, estou livre!

Daqui a pouco vou seguir o Caminho, descendo pelos degraus da igreja de Grañon, saindo pela pequena praça que existe na frente da porta de madeira, deixando para trás a mais nítida, sufocante e terrível experiência por que passei em minha vida: a sensação de desespero e dor no momento da morte, e a compensadora certeza de que tenho a obrigação de aproveitar cada instante desta minha vida para continuar algum trabalho interrompido de modo tão bruto e doloroso.

O contato que acabo de ter com esse episódio, com meu próprio fim físico em outro tempo e lugar, deixa em mim uma daquelas certezas absolutas que o Ser pode conseguir: qualquer ação gera reação, e cada vida que vivemos (e cada momento em cada vida) é uma nova oportunidade para corrigir erros e caminhar em direção a outros níveis da nossa existência. As janelas entre os diversos planos do universo abrem-se de repente para nós, sem aviso prévio. É tudo uma questão de estar atento e não ter medo: afinal, trata-se da minha vida! Com a mesma rapidez com que se abrem, esses portais desaparecem; voltamos, por meio do nosso corpo e nossa mente, à peregrinação de cada vida, do mesmo modo como retomo minha caminhada de hoje em direção a Santiago de Compostela.

Ao sair da sala de estar do refúgio, passo ao lado da prateleira onde estão alguns documentos para nossa leitura, livro de recados dos peregrinos e a caixinha para os donativos. Deixo minha contribuição e registro em meu gravador o que está escrito no pequeno cartaz fixado acima da caixa de madeira: “peregrino, dê o quanto puder ou pegue o quanto precisar”. Para mim, isso representa a manutenção do espírito peregrino ancestral da peregrinação, onde aprendemos a partilhar o que temos e, com o mesmo espírito de humildade, aceitar caridade e ajuda quando dela necessitamos.

O suíço grandão desceu a escada antes de mim, abriu o ferrolho da porta (era mesmo questão de apenas apertar aquele pequeno pino de metal) e ligou as turbinas em direção à saída da cidade. E eu vou atrás, fechando carinhosamente a grossa porta de madeira atrás de mim. Faço uma última carícia nos símbolos peregrinos que servem como aldrava e contorno a igreja em direção à saída da cidade. Levo comigo uma experiência fantástica, um presente inesperado que a pequena Grañon me deu: ter trocado o medo e o pânico advindos da sensação de morte pela certeza de que a vida não se encerra de modo tão simples como costumamos imaginar. A responsabilidade pelos nossos menores atos é unicamente nossa, e, de alguma forma, sempre teremos a oportunidade de continuar a busca do crescimento espiritual pela prática do perdão, da humildade e do reconhecimento de nossas faltas...”

Já no hilariante e muito bem escrito livro “No Caminho de Santiago”, seus autores Edison e Denise Martins, às páginas 129/131, mencionam uma experiência mística vivida no pequeno povoado de O Manjarín, que é capitaneado até hoje pelo hospitaleiro e templário Thomaz: 

“.. A maioria dos peregrinos já havia retomado o caminho, quando decidimos prosseguir, em meia à ventania, até Manjarín, mais um pequeno aglomerado de destroços de habitações vazias e sítio de Thomás, a última e bondosa alma templária no caminho.

O lugar tem um aspecto horroroso, com coisas velhas espalhadas, sujo e enegrecido pela fuligem que brota da tosca lareira e do fogão a lenha. É um albergue paupérrimo, de colchões rasgados, sem energia elétrica e sem banheiro, onde mal cabem os utensílios lá existentes. Mesmo assim, a atmosfera de tranquilidade e de paz que o envolve é impressionantemente atraente, reforçada pelo clima espiritual da música sacra que se ouve de um pequeno aparelho de som, único bem de valor visível. Muita gente opta por pernoitar ali, só para poder conversar tranquilamente com o místico hospitaleiro e conhecer suas incríveis histórias. Thomás não recebe nenhum subsídio do governo nem grandes doações. Vive da caridade dos peregrinos, que lhe deixam algumas pesetas numa velha lata de marmelada sobre a mesa confusa, repleta de papéis, carimbos e livros amarelecidos. Faz seu trabalho com dedicação e por diletantismo. Ainda hoje é um revolucionário, embora a época da ditadura francista na Espanha, quando esteve preso, tenha acabado há mais de duas décadas. Certamente, não é louco, apesar de compor uma figura esquisita, vestido em incondizente uniforme militar camuflado, com boina preta, que nada tem a ver com a natureza do seu mundo esotérico. Tampouco se pode dizer que seja totalmente são, vivendo naquelas precárias condições. Na realidade, faz um tipo único, estranho, ao mesmo tempo meio rude e gentil, mas com o incrível poder de sensibilizar até os mais céticos.

Chegamos com chuva e baixíssima temperatura. O termômetro abrigado indicava seis graus, mas o vento forte levava a sensação térmica para abaixo de zero naquele começo do outono. Fiquei imaginando como seria estar ali, no inverno. Enregelados, entramos na pequena sala da cabana de pedra, ainda apinhada de gente. A francesa Anne-Marie, com sua câmara de vídeo em punho, contando com a tradução da maiorquina, procurava entrevistar o Thomás, que, por sua vez, se via envolvido com o atendimento a vários peregrinos curiosos e com a profusão de perguntas saídas simultaneamente de uma dúzia de bocas. Fomos para o único canto livre, enquanto alguém nos oferecia um café amargo e cheio de pó boiando, num copo que, havia muito, não era bem lavado. Pelo menos estava quente e desceu macio, tirando-nos da iminente hipotermia de minutos antes.

Não durou muito tempo e o povaréu foi indo embora, alarmado com a perspectiva de tanto chão pela frente. A entrevista continuava e dois ou três remanescentes da horda invasora preocupavam-se em obter carimbos nas credenciais com o auxiliar do hospitaleiro, não absorvendo tanto a atenção do Thomás. Foi aí que nos aproximamos e pudemos ouvir parte dos relatos das misteriosas aparições que acontecem por lá – a última delas em julho de 99, nas horas tardias de um anoitecer enevoado, quando uma moça muito branca e de olhar penetrante, posteriormente “identificada” no desenho do rosto de uma santa (que não deu para sabermos qual era exatamente), deixou-lhe um lenço de gaze roxa que exibiu como precioso troféu. Não acreditamos muito na narrativa e nos entreolhamos como sinal para ir embora. A casa estava quase vazia, restando apenas nós, as entrevistadoras e outra pessoa de quem não me recordo. Despedi-me do Thomás, elogiando sua disposição e acolhida e me emocionei um pouco pelo modo como ele me olhou.

Com a Denise, entretanto, o choque foi bem maior. Ao tocar a mão do Thomás, por algum forte motivo que ela não entendeu, caiu em choro profuso, daqueles de soluçar, que perdurou por mais de um quarto de hora no quilômetro seguinte, uma vez que saímos batidos de Manjarín, confusos e sem olhar para trás. Até hoje não conseguimos compreender tudo aquilo, pois duvidamos do homem e de sua história e o achamos, de certa forma, até ridículo na encenação. É fato, no entanto, que possui algum estranho poder, já que até o contato próximo com ele, estávamos perfeitamente conscientes e seguros de nossas faculdades mentais, o que nos fez relembrar o ditado “Yo no creo em brujas, pero que las hay, hay-las!”...

Por derradeiro, citaria o livro “Os Guardiões do Caminho de Santiago”, de autoria do peregrino Tarcísio Valeriano dos Passos onde, nas 430 páginas impressas, ele discorre sobre um caminho paralelo, habitado por almas errantes, de peregrinos que ali faleceram e dos múltiplos soldados romanos e templários que perderam a vida no Caminho ou em defesa dele.

Trata-se de um livro místico e intrigante, que muito me impressionou e exigiu três atentas leituras para que eu tentasse entender, sem sucesso, tudo ali narrado, com detalhes e sucintas descrições de encontros e desencontros com almas perturbadas que insertas em peregrinos, também percorriam corporalmente o Caminho de Santiago.

Com direito, dentro outros importantes acontecimentos, a um voo noturno sobre o Cebreiro, onde o autor podia visualizar seu corpo no albergue, metido num saco de dormir.

A apresentação do livro pelo autor, já antecipa as emoções que ali serão narradas: 

“Durante vários anos o Caminho de Santiago de Compostela permaneceu impregnado na minha mente. Sabia de antemão que não se tratava de uma caminhada fácil. Percorrer oitocentos quilômetros a pé, atravessando o norte da Espanha, era algo que me fazia tremer e ao mesmo tempo trazia fascinação. Até que chegou o dia e eu parti em busca do desconhecido. Pretendia, entre inúmeras coisas, o descanso mental. Acontece que no curso da caminhada surgiram vários percalços que quase me tiraram do caminho. Tive que ajudar vários peregrinos doentes, inclusive um que conheci no albergue que terminei a minha primeira etapa. Gradativamente no caminho o adotei como filho e ele me adotou como pai, a ponto de assim ser tratado por ele. A trajetória foi emociante e cheia de lágrimas. Tive momentos de muita alegria e de extremas tristezas. A incursão no Caminho paralelo que se leva a Santiago é algo fantástico que mereceu apontamentos especiais. Este livro foi escrito despretensiosamente É apenas o relato do meu caminho. Naturalmente que cada leitor está livre para tirar suas próprias conclusões. Espero que gosta da leitura e que o livro possa lhe ser útil. O autor.

Para encerrar e, como consolo, mencionaria outros “micos” vivenciados no Caminho e relatados no site da AACS-Rio (http://www.caminhodesantiago.org.br), posto que não há como escapar: na maioria das vezes, é só uma questão de tempo, uma distração, um pensamento mais comprido, é lá vem mico! 

Cadmo: O maior mico: dizer besteira em português, achando que as peregrinas eram estrangeiras (e eram brasileiras). Que vexame!...

Césare: O último deles foi ter detonado o albergue de Pontevedra. Estávamos eu e uma amiga somente. Antes de os hospitaleiros partirem, o homem me chamou no canto e disse: - Olha só, peregrino, esse albergue é enorme, por isso, para evitar bagunça, usem o mesmo quarto (?!) e NÃO use o banheiro dos homens, vale?

Ah, tá. Bom, eles (era um casal) foram embora e na hora da gente tomar banho, minha amiga foi prá um lado e eu, claro, fui tomar banho no banheiro dos hombres. Justamente o que ele falou para eu NÃO fazer, né? Eis que o ridículo aqui vai usar a privada e na hora de dar a descarga, o troço entra e não sai, e a água não pára de cair, feito louca! Bom, eu saio da cabine e entro em outra, faço a mesma coisa, dou descarga e o troço emperra também, aquela água toda disparando um jato fortíssimo...

Aí eu penso assim (jeca): será que os chuveiros também estão com defeito? Vou lá, aperto o botão de um deles e a água começa a cair e não pára mais! Digo, Meu Deus, e agora? Cadê o negócio de desligar a água do banheiro (hidrante?!)? Vou correndo ao banheiro da minha amiga, e nisso o banheiro dos homens está todo alagado, claro.

- Ana Rê, pelo amor de Santiago, vem me ajudar aqui!

Ela sai de toalha e tudo e quando chegamos na porta do banheiro a água já estava começando a entrar na sala! Pânico total.

- Césare, vc é louco? O cara disse prá não usar o banheiro! Vamos desligar o hidrante!

E quem disse que havia hidrante no banheiro? Será que na Europa é diferente? A gente olhou a casa inteira e nada de hidrante! Bom, o lance era fazer com que a água não entrasse para a sala e quartos, né? Por sorte os ralos eram daqueles que abrem e fecham, e quando nós os abrimos a água escoou, mas o banheiro continuou uma piscina.

O barulho era ensurdecedor, fomos dormir com a impressão de estarmos em Niágara Falls. De madruga, para piorar, as luzes do albergue se acendem sozinhas, eu acordo assustado, chamo a Ana Rê e quando ela abre os olhos as luzes fazem Fiiiizzzzzzzz e se apagam repentinamente; os avisos de emergência se acendem e começam a piscar. Bom, só sei que a gente ficou morrendo de medo, eram umas quatro e pouco da manhã, eu achei que era um lance de Poltergeist tudo aquilo, só poderia ser! Demos no pé. Até hoje daria tudo prá ver a cara do hospitaleiro quando de sua chegada ao refúgio e vendo toda aquela zona...

Ps: deixei uma cartinha me desculpando e um donativo melhor prá tentar aliviar o desperdício da água perdida...

Leon: Um grande mico foi quando fui pro matinho e me deram o maior flagra.

Lillian: Chegar no albergue de Astorga de carro por causa das bolhas e levar uma vaia. Só depois os peregrinos entenderam o porque. O que você mais fez durante o caminho? Chorei muito, ri muito, cantei e rezei. Fora que eu conheci todos os matinhos também.

Manoel Brasília: Sem dúvida foi a tentativa de, no ano santo 99, tentar fotografar o cachorro de mochila da peregrina francesa. A hora não era apropriada e foi a maior saia justa.

Gisa: Tá bom, tá bom, eu conto. Como disse antes, o meu mico já é público, pois contei para todo mundo ainda lá da Espanha e já está no site (Direto do Caminho). Então, só vou acrescentar os detalhes sórdidos. Foi assim:

Em Villadangos del Páramo, saí atrasada, depois de fazer o alongamento matinal. Estava sozinha e sem mapa, pois meus planos originais eram pular de Logroño até Astorga e caminhar o restante até Santiago. Então eu só tinha os mapas de Astorga em diante. Mas, como sempre tinha visto o Caminho bem sinalizado, não me preocupei.

A saída de Villadangos não foi difícil, lá estavam as setas amarelas, e tal, tudo bem. Mas, depois de atravessar uma carretera e passar por um camping, cadê as setas amarelas? Andei de um lado para o outro, sentei, esperei por outros peregrinos (nenhum apareceu). Por fim, resolvi continuar e cheguei na (mal)dita autopista em construção.

E andei, andei, andei, andei (não sei até hoje, o Caminho de quem que eu percorri, porque não tinha uma flechinha que fosse, para mostrar que eu estava no Caminho de Santiago). No começo, eu estava confiante, afinal, em algum lugar eu teria que chegar. Mas depois de um tempo caminhando sem ver setas ou peregrinos, não tem fé que resista...

Aí, encontrei os homens que trabalhavam na autopista. Procurei fazer uma cara alegre e perguntei, no meu precário castelhano, onde estava o Caminho de Santiago. Um deles me disse que a autopista havia cortado o Caminho, que o caminho passava por sei eu lá aonde (não entendi bulhufas) e que o remédio era eu seguir a autopista até encontrar uma ponte e que à direita tinha uma seta e eu estaria no Caminho.

- É quantos km até a ponte? - eu perguntei.

- Uns dois.

Ótimo. Perfeito. Melhor impossível. Até já avistava a ponte. E fui. Andei, andei, andei. E descobri que a tal ponte, não era a primeira ponte que eu encontrasse, mas uma das muuuuitas pontes pelas quais passei. Lembro-me de ter contado umas cinco "pontes" que passavam por cima da autopista e mais duas pontes na própria autopista.

Os dois km eram, na verdade, dez km!

Os meus nervos estavam meio abalados. E estava eu andando, quando encontrei dois "cachorrinhos" (não sei os outros peregrinos, mas a maioria dos cachorros que eu vi na Espanha eram criados a Tody). Nem dei bola, fui em frente. Mas os "cachorrinhos" não foram com a minha lata e levantaram e vieram na minha direção de orelha baixa e latindo.

Pensei: se fosse um eu enfrentava, mas dois... Olhei para trás, pois havia passado há pouco por mais gente trabalhando na autopista. Estavam há poucos metros e eu não tive dúvidas. Saí correndo e gritando (em português mesmo, porque na hora, esqueci tudo do meu espanhol): "Socorro, alguém me ajude!" E já fui subindo no primeiro trator que vi na minha frente.

Aí, os dois homens que estavam ali, vieram e me disseram que eu não precisava ter medo, mas que, mesmo assim, o Raul (Santiago o abençoe) foi comigo, enxotando os cachorros, até que eu passasse por eles.

Ou seja, fiasco dos fiascos! Uma vergonha. E foi isso. Viu? Nada de muito engraçado.

Morta a curiosidade?

Paulo Bastos: A saída de Pamplona, em direção à Cizur Menor. Estava caminhando com dois brasileiros de São Paulo. Exausto, parei numa calçada e fui acompanhado pelos outros dois peregrinos. Um deles, o Caio, tirou uma pomada da sua mochila e começou a fazer uma massagem em suas pernas. Com o olho comprido, pedi um pouco da pomada para meus ombros, que doíam pelo peso da mochila.

A resposta do Caio foi tiro e queda: O castigo vem a cavalo, heim Paulo? Ontem à noite eu te pedi um pouco da sua pomada (arnica) e você disse que estava difícil de apanhar...

Foi mais que um mico, senti-me envergonhado.

Solange: Ser chamada à razão pelo fato de eu estar sempre roubando as rosas das casas, e bem assim as cerejas suculentas das árvores (continuei roubando do mesmo jeito).

Tilara: Fazer xixi no balde de uma velhinha no meio da rua.

Clotilde Pavanelli: O primeiro mico do caminho foi logo no primeiro dia, estava eu e um português que conheci em Roncesvalles, fazendo o caminho de bicicleta pela trilha, passamos em Larasoaña, onde visitamos Zubiri, que nos aconselhou que dormíssemos em Trinidad Arre, devido às bicicletas, pois o albergue de Pamplona não tinha como guardá-las no térreo.

Seguimos então e ele tinha me dito que numa bifurcação próximo a Irotz encontraríamos um bar para um refresco. Lá fomos nós margeando o rio, naquele sobe e desce quando vi Irotz, ouvi vozes e risos e uma bifurcação. Parei minha bici e entrei com tudo, passei por um jardim com mesa e gente, nem olhei muito e fui logo abrindo aquela cortina anti-mosca, já estava com o pé lá dentro quando ouço uma voz:

- Onde vai? - não respondi.

- É um bar?

- Não, é minha casa.

- Aiiiiiii... Mil desculpas!

E já fui me retirando quando olho e vejo que era um almoço em família e tinha umas 10 pessoas me olhando... Mas a dona da casa me salvou dizendo:

- Bem, já que entrou não aceita um vinho?

Chamei meu amigo e ficamos lá comendo e bebendo um tempão. Ele era fotografo profissional fez fotos da família, enfim acabou sendo uma festa para todos.

Quando alguém passar por Irotz, naquela subidinha à esquerda tem um jardim com cipreste é a casa de Alberto, um hospitaleiro do caminho. Deixe um abraço da brasileira que invadiu sua casa.

FINAL

"Que a gente nunca perca essa vontade de recomeçar. De dar a volta por cima do mundo e dar a volta por dentro da gente." (Bibiana Benites) 

Momentos de intensa emoção, defronte à Catedral de Santiago de Compostela.

O Caminho de Santiago, destino universal de peregrinos das mais variadas nacionalidades, é um repositório diário de casos e ocorrências, quase sempre, alegres e extrovertidas.

Contudo, em determinadas ocasiões, graças a Deus, raras, também proporciona passagens tristes como, por exemplo, o assassinato em Astorga da peregrina americana Denise Pikka Thiem, de 41 anos, em abril de 2014 quando, por acaso, eu também me encontrava na Espanha, percorrendo o Caminho Francês, em seu início.

Com relação a minha pessoa, já havia experienciado inúmeras situações de risco e desafiadoras, porém, nenhuma na forma de sonambulismo.

Por sorte, diria que o fato extemporâneo ocorrido em Deltebre nunca havia acontecido anteriormente àquela data e, posteriormente, jamais tornou a suceder.

Foi mesmo, um susto, um aviso, talvez, e que, por obra do destino, me serviu de alerta.

Posto que, após esse “massacre” cerebral, passei a relaxar obrigatoriamente após as longas viagens, ainda que através da ingestão de medicamentos homeopáticos. 

O cartão causador do imbróglio...

Sobre o acontecido, sobrou uma recordação única, que me lembrará para sempre do ocorrido: o cartão magnetizado recebido naquela noite para reentrar ao quarto, que veio comigo para o Brasil. 

O cartão causador do imbróglio daquela noite...

E será, com certeza e para sempre, a única e eterna testemunha de minha confusão mental naquela memorável noite.

Bom Caminho a todos! 

Dezembro/2016