19ª etapa: MOLINASECA à VILLAFRANCA DEL BIERZO – 33 quilômetros

19ª etapa: MOLINASECA à VILLAFRANCA DEL BIERZO – 33 quilômetros

Desta feita, a jornada prometia ser amena, pois não existiam grandes dificuldades altimétricas no percurso do dia, embora sua extensão fosse razoável.

Como a primeira parte do trajeto seria feita quase toda por rodovia, deixei o local de pernoite às 6 horas, atravessei a cidade de Molinaseca através de sua Calle Real e, no final dela, acessei uma larga calçada cimentada, que seguiu paralela à “carretera”.

Ainda estava escuro, mas eu portava minha potente lanterna “led”, e não tive problemas em encontrar o rumo a seguir.

O dia raiando à minha retaguarda.

Com o trânsito de veículos praticamente inexistente naquele horário, pude desfrutar do silêncio e introspecção enquanto os pássaros principiavam a trinar o seu canto matutino, eu seguia orando e pedindo proteção à família e amigos no Brasil.

Quatro quilômetros à frente, com o dia clareando, finalmente as flechas me direcionaram à esquerda, onde acessei larga e descendente estrada de terra.

Chegando ao povoado de Campo.

E por ela, logo passei por dentro da cidade de Campo, minúscula povoação, onde encontrei o comércio ainda fechado e, o restante, deserto e silencioso.

Ponferrada, já aparece à direita.

Mais adiante, eu acessei novamente uma estrada vicinal asfaltada e, depois de vencidos mais três quilômetros, atravessei o rio Boeza, por belíssima ponte medieval.

Ponte medieval sobre o rio Boeza.

Então, girei à esquerda e logo adentrei no “casco viejo” da belíssima cidade de Ponferrada.

 

Flores, caprichosamente dispostas, numa rua transversal, em Ponferrada.

Há sinais arqueológicos de que a região de Ponferrada era habitada desde a época pré-romana, porquanto o local havia sido um centro de mineração de ferro.

Porém, os primitivos aldeamentos haviam sido abandonados há muito tempo, quando em 1185, Fernando II, rei de León, repovoou a vila e a entregou à Ordem dos Templários.

Naquele tempo o local era ocupado apenas por uma secular floresta de carvalhos.

Nesta mesma época, em fins do século XII, o bispo Osmundo, de Astorga, construiu sobre o rio Sil a pons ferrata ou puente ferrada, isto é, a "ponte de ferro", que deu nome à cidade e substituiu a antiga ponte de madeira.

O famoso Castelo Templário de Ponferrada.

Talvez por isso, na região de Ponferrada, as cruzes que indicam a rota do peregrino, são todas feitas de ferro.

Os cavaleiros Templários e sua ordem militar foram banidos em 1312, porém a gigantesca fortaleza por eles construída permanece inalterada até hoje, e é um monumento imponente e impressionante, que domina a parte alta da cidade.

Suas muralhas com ameias, suas torres, a ponte levadiça, tudo recorda ao peregrino as antigas histórias dos cavaleiros andantes da Idade Média, aliás, o castelo é a própria imagem viva do modelo que imaginamos como corte do rei Arthur, com sua távola redonda.

Placa informativa numa rua de Ponferrada.

Em 1498, os reis católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, fundaram o famoso Hospital de la Reina, para acolher os peregrinos que chegavam a esta cidade.

Ponferrada é uma cidade que mantém a peculiaridade de ser uma localidade onde se mesclam sossego, história, tradições, paisagens, e gastronomia.

É, também, uma das grandes cidades do Caminho, com seus quase 70 mil habitantes, onde a modernidade se confunde com o medieval.

Há hotéis, hostais e restaurantes para todos os bolsos e gostos, mas, curiosamente, só tem um albergue que, por sinal, é muito bem administrado por uma entidade de amigos do Caminho de Santiago da Suíça.

A capital do Bierzo está localizada em um antigo claustro romano, e sofreu diferentes invasões e destruições.

Velha igreja, localizada no trajeto do Caminho de Santiago.

Durante a ocupação romana, ficaram famosas suas minas de ouro, fato que justifica em parte a presença dos Templários no local.

Em 1082, a ponte de madeira sobre o rio Síl foi reforçada com ferro, material muito abundante na região, dando o nome de “Pons Ferrata” à cidade.

O castelo dos Templários (sec XII/XIII), parcialmente reconstituído, é um dos melhores exemplos da arquitetura militar na Espanha, e se converteu na Meca dos amantes dos Templários e de seus ritos de iniciação.

A basílica de Nossa Senhora de La Encina merece uma visita, embora seja bem mais “moderna”, em seu estilo gótico-renascentista.

Além dela, outros monumentos merecem ser vistos, como o Convento das Concepcionistas, o prédio do Ayuntamiento, ao qual se chega cruzando o arco da torre del Reloj.

E, nunca é demais lembrar que em Ponferrada se pode visitar a igreja mozárabe de Santiago de Peñalba, é uma joia da arquitetura pré-românica espanhola.

Uma dica: Na primeira lua cheia do verão é celebrada no interior do castelo a Noite Templária, um acontecimento medieval único e fantástico.

 

O portentoso e soberbo Castelo dos Templários.

Seguindo as flechas amarelas, mais acima, eu fleti à esquerda e logo parei diante da entrada do Castelo de Ponferrada,  um dos locais mais belos e emblemáticos do Caminho.

Muitos peregrinos caminhavam pelas suas imediações fazendo fotos e, como eu, admiravam o soberbo monumento, impressionante por sua envergadura e solidez.

As flechas indicavam que eu deveria ladear o estupendo monumento pela direita, contudo notei inúmeros peregrinos seguindo à esquerda e, entre curioso e preocupado, indaguei a um comerciante qual a direção correta a seguir.

Ele então me confirmou que o certo era aquele sinalizado pelas flechas amarelas, à direita, no entanto, era possível seguir um ramal alternativo pela esquerda, o que encurtava bastante o trajeto, mas me alertou que não estava sinalizado e deveria ser guiado por GPS, para não incorrer em enganos e me perder.

Sendo certo, que normalmente quem utilizava aquele roteiro menos extenso eram os espanhóis, já afeitos aos atalhos que o Caminho proporciona.

Transitando por zona urbana, ainda em Ponferrada.

Diante disso, e por segurança, me mantive no percurso sinalizado e, mais adiante, depois de brusco descenso feito por extensas escadarias, atravessei movimentada avenida e, em seguida, acessei um trecho do caminho em terra, que seguiu margeando o rio Sil e atravessou vários parques da cidade.

Adentrando em Columbrianos.

Mais à frente, já no final da zona urbana, fleti bruscamente à esquerda, atravessei o campus da universidade e, por asfalto, adentrei em Columbrianos, outro pequeno povoado que o Caminho atravessa por sua avenida principal.

A rua principal de Columbrianos.

Prosseguindo, três quilômetros depois, transitei por Fuentes Novas, outra povoação que oferece pouquíssimos serviços aos peregrinos.

Chegando em Fuentes Nuevas.

Ultrapassada mais essa minúscula vila, eu acessei um “andadero” em terra, paralelo à rodovia, e logo aportava em Camponaraya, uma cidade de razoáveis proporções, que se atravessa por sua avenida principal.

 

No caminho para Camponaraya.

Ao sair de Ponferrada, o peregrino atravessa quase sem perceber dois povoados que estão praticamente juntos: Columbrianos e Fuentes Nuevas.

Velho cruzeiro existente na saída de Fuentes Nuevas

Ambos, muito pouco tem a oferecer ao peregrino, vez que não dispõem de albergues ou hostais, mas, em caso de necessidade, há pequenas “tiendas”, onde se pode adquirir mantimentos.

Igreja matriz de Fuentes Nuevas.

Em seguida vem Camponaraya.

Os peregrinos, ao cruzarem esta zona do Bierzo, vão poder apreciar grandes extensões de terreno com cultivo de uvas, e embora esteja na rota jacobeia, há sinais de identidade diferenciados da maioria dos povoados, face a sua florescente indústria.

Caso seja necessário, há um albergue paroquial com modestas acomodações, mas com comércio farto, na principal e movimentada rua, por onde o caminhante tem que inevitavelmente seguir.

Na época de maior esplendor do Caminho, esta localidade possuiu dois hospitais para receber peregrinos: o de la Soledad e o de San Juan de Jabreros.

Igreja matriz de Camponaraya.

Sua igreja principal, moderna demais para os padrões do Caminho, está situada às margens do rio Naraya, e é dedicada a San Ildefonso.

 

O Caminho atravessa Camponaraya por sua principal avenida.

Eu atravessei toda a cidade, fazendo pequenas pausas para fotos, enquanto ia ultrapassando vários peregrinos, a maioria caminhando lentamente e com alguma dificuldade.

No caminho, em direção à Cacabelos.

Depois de transpor a Autovia Nacional, através de uma ponte metálica, finalmente acessei uma larga e bem cuidada estrada de terra, situada entre imensos vinhedos, e por ela segui tranquilo e solitário, num trajeto arejado, entre verdejante natureza.

Muitos vinhedos nesse trecho.

Caminho agradável e silencioso em direção à Cacabelos.

Mais alguns quilômetros percorridos, e depois de prosseguir por uma estrada asfaltada, em brusco descenso, eu virei à esquerda e adentrei em Cacabelos.

 

A cidade de Cacabelos à frente.

Povoado reconstruído às margens do rio Cúa, no século XII, pelo bispado de Santiago, onde na época existia um hospital de peregrinos, construído junto à ermita de San Roque.

Sob a jurisdição de Astorga, Cacabelos renasceu das cinzas e se converteu em parte do Caminho de Santiago.

Daí terem sido erguidas algumas igrejas e hospitais para acolhida de peregrinos e, também, chegou a ser construído o monastério de San Guillermo, já desaparecido.

Seu brasão conta com um leão e a cruz de Santiago, e no século XV passou a fazer parte do marquesado de Villafranca del Bierzo.

Já no século XIX, mais precisamente, em 03/01/1809, Cacabelos foi cenário de uma batalha pela guerra da Independência. 

Igreja de San Roque, em Cacabelos.

Embora, atualmente, possua mais de cinco mil habitantes, conta somente com um albergue paroquial, localizado ao lado da igreja de las Angustias, templo que possui uma imagem inusitada: o menino Jesus jogando cartas com Santo Antônio de Pádua.

É um albergue com característica única ao longo do Caminho Francês, uma vez que dispõe de diversos de quartos em volta da igreja, cada qual com apenas duas camas (sem beliche).

A cidade possui uma boa quantidade de restaurantes, mercados e hostais, oferecendo conforto ao peregrino.

Destaque para o restaurante Moncloa de San Lazaro, onde também há um elegante hostal.

Dizem que a parrillada (na brasa) à moda berciana é imperdível.

A igreja matriz de Cacabelos.

O município tem ainda uma importância estratégica no setor vinícola, com numerosas adegas, que produzem vinhos com Denominação de Origem (Del Bierzo).

Conta atualmente com um museu, que contém diversos materiais de origem celta e romana, encontrados ao longo do tempo em seu território.

Merecem ser apreciados: a Puente Mayor sobre o rio Cúa, com seus seis arcos de construção mais recente (século XVI), já que a anterior não suportava o tráfego intenso; a igreja de Santa Maria, erigida originalmente em 1108, da qual só restou a abside românica, mas que foi reconstruída em 1904; o santuário de las Angustias (onde está o albergue); a ermita de San Roque, de 1590.

Por derradeiro, tem ainda o Monastério de San Salvador de Carracedo, cuja fundação foi atribuída ao rei Bermudo II, em 990, e que desde o século XII, ficou sob a obediência da Ordem cisterciense.

Mas seu esplendor durou até o século XIX, com a desamortização dos bens eclesiásticos promulgado por Mendizábal.

Destaque para a sala capitular do monastério, que ficou conhecida como “Mirador de La Reina” e, segundo os moradores locais, trata-se de conjunto imperdível, que o peregrino não deve deixar de visitar.

 

Rua principal de Cacabelos, por onde se atravessa a cidade.

Na rua principal da cidade, encontrei vários peregrinos sentados à mesa em bares, bebendo vinho ou comendo “bocadillos”.

Havia um grupo de espanhóis, com quem eu me encontrara diariamente no Caminho, a lanchar numa mesa, situada defronte a um grande restaurante e, ao me avistarem, me convidaram para uma pausa, mas agradeci, vez que me sentia bem disposto, e com o sol já abrasador, preferi seguir adiante.

No caminho, em direção à Pieros.

Então, atravessei o rio Cúa, depois prossegui à beira do asfalto até o pequeno povoado de Pieros, onde enfrentei duro e pedregoso ascenso, para ali aportar.

Já no topo, meu guia mostrava que eu teria duas opções: seguir mais dois quilômetros por asfalto, para depois adentrar à direita, numa estradinha de terra, roteiro que faz parte do antigo trajeto por onde segui em 2001 e 2004.

Novo ramal de acesso à Valtuília de Arriba.

Porém, atualmente, a sinalização manda o peregrino seguir à direita, para depois transitar pela minúscula vila de Valtuília de Arriba.

Como não conhecia esse roteiro, segui a sinalização, e depois de um trajeto feito entre imensos vinhedos e muito verde, o que me custou andar 2,5 quilômetros a mais, e vencer algumas elevações bruscas e sem sombra.

Caminho sem sombra, à beira de extensos vinhedos.

Sinceramente, não recomendo esse desvio, porque não acrescenta grandes novidades ao roteiro, mormente porque a diminuta vila de Valtuilla, nada oferece ao peregrino.

Puerta del Perdón, em Villafranca del Bierzo.

Já no final da jornada, sob as bênçãos celestes, adentrei em zona urbana e, mais abaixo, passei diante da igreja de Santiago, onde se localiza a porta del Perdón.

Sempre em descenso, transitei diante do albergue municipal e do refúgio Ave Fênix, pertencente a um dos maiores ícones do Caminho, o famoso Jesus Jato.

Albergue Ave Fenix, de Jesus Jato, em Villafranca del Biezo.

Fiz ali breve visita, porém seu proprietário e estrela maior daquele local, se encontrava no Brasil, participando de um Congresso de Peregrinos, que se realizava em Maceió, Alagoas.

Assim, após ter minha credencial “selada”, e sem maiores novidades, prossegui até o centro da urbe e me hospedei num hotel onde havia feito reserva.

 

Escultura que homenageia os peregrinos.

Villafranca del Bierzo é a última localidade importante das terras leonesas, e oferece muito para ser visto pelo peregrino.

A Praça Mayor, o Ayuntamento, a Calle Del Água, com belas casas e seus brasões, o convento das Augustinas Recoletas, a igreja de Santiago (românica do séc. XII), onde os peregrinos enfermos, que não podem seguir viagem, recebem o mesmo jubileu oferecido em Santiago de Compostela, aos que se postam diante da porta do perdão.

Há, ainda, a Colegiata de Santa Maria, a igreja de San Francisco, o convento de La Anunciata, o palácio dos marqueses (família Osório), e o museu de ciências naturais, que são visitas obrigatórias.

Belíssimo rio Burbia, que corta a cidade de Villafranca del Bierzo.

A igreja de Santiago, em pleno Caminho, fica um pouco antes de se entrar na cidade, quase ao lado do albergue Ave Fênix, onde, na época medieval, recebiam as indulgências, um privilégio concedido pelo Papa Calixto II.

Ou seja, o peregrino que por motivo de saúde não conseguisse prosseguir a peregrinação até Santiago, podia passar pela porta do Perdão, obtendo os mesmos privilégios auferidos pelos demais ao cruzar a Porta Santa, em Santiago de Compostela.

A cidade deve a sua fundação a um assentamento dos Francos, por volta do século XI, nos tempos de Alfonso VI, onde nasceu e cresceu às margens do rio Burbia, na confluência com o Rio Valcarce, graças ao Caminho de Santiago.

Uma das ruas do "casco viejo" de Villafranca del Bierzo.

O castelo/palácio dos marqueses de Villafranca foi construído no século XIV, em que pese os danos sofridos na guerra da Independência.

O impressionante edifício da Colegiata de Santa María foi reconstruído sobre a velha igreja da ordem cluniciacense, em 1533, por ordem do Marquês de Villafranca del Bierzo e do vice-rei de Nápoles, Don Pedro de Toledo.

Sua beleza e grandiosidade se deve ao mestre Rodrigo Gil de Hontañón.

A cidade oferece três bons albergues, com destaque para o moderno albergue de la Piedra, que tem duas simpáticas hospitaleiras.

A hospedagem fora dos refúgios também não é problema, já que há fartura de hostais, além de um parador turístico.

Colegiata de Santa Maria, onde fui "sellar" minha credencial.

A cidade dispõe de todos os serviços necessários aos peregrinos, e é uma boa oportunidade de descanso, antes de enfrentar o forte aclive a ser superado até o Cebreiro.

Mais tarde, para matar saudades, dei um grande giro pela cidade, depois fui visitar e carimbar minha credencial novamente, na Colegiata de Santa Maria, uma construção do ano 1120.

Na sequência, fui verificar o local por onde deixaria a cidade na manhã seguinte, pois pretendia partir ainda no escuro.

Local onde se processa a bifurcação dos roteiros, na jornada seguinte.

Em determinado local, pude verificar o lugar exato em que existe a bifurcação dos roteiros, sendo que se o peregrino seguir à direita, enfrenta íngreme ascenso, para depois transitar sobre o cimo de uma cadeia de montanhas, com preciosas vistas da região.

Rio Valcarce próximo de verter suas águas no rio Burbia.

Pude, ainda, apreciar a foz do rio Valcarce, quando ele verte suas águas no rio Burbia, um belíssimo curso d’água, que corta a cidade em toda a sua extensão.

Ao retornar, já na Plaza Mayor, reencontrei um simpático casal de peregrinos franceses, que se expressavam muito bem no idioma castelhano, e passei um bom tempo na companhia deles num bar, trocando experiências e bebericando vinho.

Na praça principal de Villafranca del Bierzo.

Depois, me recolhi, já me preparando para outra emocionante etapa que vivenciaria no dia seguinte.

 

20ª etapa: VILLAFRANCA DEL BIERZO à O CEBREIRO – 28 quilômetros