MINHA VIAGEM

MINHA VIAGEM

"E num determinado momento de sua existência, o peregrino reconhece, em si mesmo, que além do efêmero mundo exterior, onde vivencia as suas experiências na matéria, há também um mundo interior.

Como que despertando de um sono profundo, após longa peregrinação no mundo da matéria, o mundo interior, revela-se paulatinamente, como o suave alvorecer de uma nova manhã.

O orvalho do verdadeiro Amor, como um bálsamo, banha a alma recém-chegada e cura todas as feridas. 

O peregrino, em êxtase, contempla diante de si o plano de criação divina, a rota que lhe reconduzirá à Casa do Pai." (Mestre Anônimo)

O Caminho do Ebro estivera latente em meu íntimo, desde que eu retornara do Caminho Francês, em 2014.

Vez que, ainda em Santiago de Compostela, por indicação de uma peregrina espanhola, adquirira o guia desse roteiro e, já no Brasil, passara a estudá-lo em minúcias.

Assim, nesse abril de 2016, ao iniciar minha viagem rumo à Espanha, apercebia que os preparativos, planejamentos, estudos sobre o roteiro, família, lentamente ficavam para trás, até porque, raríssimas pessoas sabiam de minha nova aventura.

Nem festa de partida houve e despedidas menos ainda, posto que, de certo modo, interiormente, eu já havia “viajado”. 

Despedindo-me da filha, neta, cães, pássaros, etc...

No momento do adeus, sentia o chão instável, distante, saudade daqueles que estavam presentes: a neta Teresa, filha, esposa, cães, pássaros, etc..

Identificava, ainda, uma vontade estranha, urgente, de me sentir só, enfim, de ver o chão correr debaixo de meus pés em direção à Compostela.

Assim, compenetrado, circunspecto, embarquei em São Paulo e, depois de 12 horas de voo, pós breve translado pelo aeroporto de Madri, outro avião, depois de 90 minutos no ar, me levou em Barcelona.

Ali, adentrei num táxi que me conduziu até a Estación Sants de Ferrocarril, situada no coração da capital da Catalunha, onde um trem, ao custo de 12 Euros, me deixou, 2 horas mais tarde, na cidade de L'Ampolla, já na Província de Tarragona.

Hotel Rull, em Deltebre, onde me hospedei nesse dia.

Ali, cansado e feliz, embarquei num táxi que, após 16 quilômetros, por 12 Euros, me deixou no Hotel Rull, em Deltebre, onde havia feito reserva.

Nele, por 50 Euros, em razão de não existir opção mais em conta, pude dispor de um quarto espaçoso e dotado de todos os confortos que um viajante moderno merece, como TV de tela plana, wi-fi, banheiros limpos, cama grande, lençóis cheirosos,

calefação, etc...

Já passava das 15 horas e, então, me lembrei que há muito tempo eu não ingeria uma refeição quente.

Restaurante El Garxal, onde almocei em Deltebre.

Dessa forma, após desfazer os pertences e tomar um banho, rapidamente, desci para almoçar e, para tanto, me dirigi ao Restaurante El Garxal onde, por 13 Euros, pude desfrutar de um maravilhoso “menu del dia”.

Retemperado, retornei ao local de pernoite e, face ao desconforto causado pelo fuso horário, ou seja, adiantado 5 horas em relação ao Brasil, deitei para descansar.

Porém, debalde os esforços para relaxar, 30 minutos depois já estava em pé e, elétrico e acelerado, decidi ir até a Oficina de Turismo carimbar minha credencial, bem como tomar informações sobre a Rota que defrontaria na manhã seguinte.

Oficina de Turismo de Deltebre.

Sobre o primeiro intento, houve sucesso, pois ali consegui meu primeiro “sello” desse novel caminho.

Contudo, para meu desapontamento, eles não detinham qualquer informe ou referências sobre o “Camiño Jacobeu del Ebro”, que eu iniciaria na manhã seguinte.

Então, calcei minhas botas novamente, tomei um táxi e fui conhecer o ponto inicial do roteiro, localizado no delta do rio Ebro, próximo ao local de sua desembocadura no mar Mediterrâneo.

Desci do veículo numa rotatória, passei próximo do Restaurante Galatos e, na sequência, ao lado do Camping L'aube.

Duzentos metros depois, cheguei ao mirador que marca o início da Ruta del Ebro, onde encontrei os sinais jacobeus.

Escadarias que conduzem ao topo da duna.

Uma escadaria de madeira em ascendência, me conduziu ao início do caminho, que está a 10 quilômetros antes do núcleo urbano de Deltebre, mais especificamente, num local nominado como “Muntell de les Vereges” (Monte das Virgens).

Trata-se, na verdade, de uma pequena duna de 4 metros de altura, situada quase na ponta do delta do Ebro, onde encontrei um monumento recentemente reformado, correspondente à sete pedestais graníticos de uns dois metros de altura, onde

foram inseridas as fotos das virgens padroeiras das províncias que são cortadas pelo curso desse rio.

“Muntell de les Vereges” (Monte das Virgens).

São elas: Santa Maria La Real (Navarra), Virgem Arántzazu (País Vasco), Virgem Montesclaros (Cantábria), Virgem Valvanera (Rioja), Virgem de La Peña Francia (Castilla e León), Virgem del Pilar (Aragón), e Virgem de La Assunción

(Catalunha).

Ao fundo, a foz do rio Ebro e seu encontro com o mar Mediterrâneo.

Eu estava cansado pela longa viagem e com um pouco de pressa, assim feitas as necessárias fotos, eu desci as escadarias, retornei ao ponto inicial e prossegui meu périplo, pois, conforme planejara, iniciaria o Caminho a partir daquele local.

A primeira flecha amarela do Caminho Jacobeu do Ebro.

Quatrocentos metros depois, ao transpor outra rotatória, cheguei a um embarcador, que ultrapassei para acessar a rodovia T-340, pela qual segui caminhando em direção à cidade de Deltebre.

Dez quilômetros depois, sempre em bom ritmo, já que esse trecho é integralmente plano e arejado, adentrei em zona urbana, e logo estava de volta ao hotel onde me hospedara.

Prédio onde funciona a Prefeitura de Deltebre.

Deltebre é um município da Catalunha, pertencente a província de Tarragona, estando situado na comarca do Baixo Ebro.

Encravada numa paisagem natural, invadida pela desembocadura do rio Ebro, seu delta e o mar Mediterrâneo, ela é a primeira localidade do Caminho do Ebro.

O topônimo Deltebre provem do local em que ela se encontra, posto que a foz do Ebro se introduz quase 25 quilômetros, mar a dentro.

Pouco se conhece sobre história, e segundo a tradição, foram os mouriscos os primeiros que se instalaram em sua zona.

Em 1818 se construiu a igreja de San Miguel de la Cava e a população se agregou ao seu redor, porém o município só foi implementado em 1977, com a unidão das localidades de Jesus e Maria com La Cava.

Ao final do século XIX, após a construção do canal situado à direita da foz do rio Ebro, o cultivo do arroz se converteu em sua principal atividade agrícola, praticamente, uma monocultura.

Sua população atual monta em 12 mil habitantes.

Uma das praças de Deltebre.

Depois de tomar outro banho, saí para verificar o local por onde deixaria a cidade na manhã sequente, visto que me baseava apenas nos mapas que dispunha, pois, como soubera anteriormente, eu não encontraria flechas sinalizadoras, nem

indicações nas cidades, mormente nas primeiras etapas,

Sabendo disso, estudara a fundo o roteiro, me munira de indicações e referências, além do que, utilizaria o GPS inserto em meu celular para rastrear meu trajeto.

Assim, embora integralmente solitário e em terras estranhas, me sentia abençoado, pois Deus, Nossa Senhora Aparecida e meu Anjo da Guarda estariam a me proteger.

Findas as providências de praxe, passei num supermercado e adquiri víveres visando ao lanche da noite e à etapa que envidaria na manhã seguinte.

De volta ao hotel, ingeri singelo repasto, regado a um encorpado vinho riojano, enquanto ultimava os preparativos, tendo em vista minha iminente partida.

Flores para colorir o ambiente..

Um novo Caminho se abria a minha frente, e com isso repensava nos desafios a enfrentar e me sentia privilegiado, posto que estava com boa saúde, dispunha de tempo e condições físicas adequadas, enfim, era um ser abençoado por estar no local

certo e vivenciar um momento consentâneo.

Claro, sabia que muitas provações me aguardavam, como o sol, a chuva, o vento, a poeira, o embaraço do idioma, a saudade dos familiares e a solidão, dentre outros desconfortos.

Mas, tinha certeza, minha força de vontade, fé, disciplina, persistência e intrepidez me auxiliariam a sobrepujar tais entraves, além, por óbvio, de contar com a proteção imorredoura de “Tiago Maior” a me aguardar em sua majestosa Catedral, para

o abraço amigo.

Enquanto anotava minhas rememorações desde a partida, bocejei várias vezes, afinal, o dia fora longo, era hora de dormir.

Porém, antes de me deitar, meditei sobre o grande desafio que me propusera, bem como externei pleitos de auxílio a Santiago, meu protetor, a quem esperava encontrar, baseado em meu cronograma de viagem, dentro de 21 dias.

O altar de Santiago, localizado no interior da Catedral Compostelana.

Em sequência, recitei a “Oração pelos Peregrinos”, pedindo luz e proteção:

Para os montes levanto os olhos: 

De onde me virá o socorro? 

O meu socorro virá do Senhor, 

Criador do céu e da terra 

Ele fará com que meus pés sejam firmes; 

Há de zelar e vigiar-me. 

Não dormirá aquele que me guarda. 

O Senhor é meu abrigo, sempre a meu lado. 

De dia, o sol me fará bem, 

À noite o sono me reconfortará. 

O Senhor me resguardará de todo o mal. 

Ele velará sobre minha alma, 

Guardará meus passos 

Agora e sempre. 

Amém!

HISTÓRIA DA “RUTA DEL EBRO”

Placa indicativa, fincada no início do Caminho Jacobeu do Ebro.

PRÓLOGO

Toda conquista começa com a decisão de tentar.

No global, todos os trajetos procedentes da região do Levante, somados ao vale do Ebro, são considerados rotas tardias, pois a dominação árabe nessas regiões impedia o trânsito de peregrinos por esses locais, que seriam utilizáveis apenas a partir de

meados do século XII, após a conquista de Zaragoza, em 1118, de Barbastro, em 1148, Lérida e Tortosa, em 1149, e de Valência, no tempo de Jaime I “El Conquistador”.

Sabe-se, no entanto, que as mutáveis relações entre os reinos cristãos e muçulmanos, permitiam a passagem, mediante oportunos salvo-condutos, de certas comitivas, porém esse privilégio estava vedado as massas.

O escritor árabe Mussudi, em sua obra “Praderas de Oro”, assinala, segundo aponta Luciano Huidobro Serna, que, desde muito tempo, era por essa via que seguiam os etíopes, núbios e sírios, ao se dirigirem a Compostela.

Obviamente, se presumirá que outros povos procedentes do Mediterrâneo, igualmente transitavam por essa rota.

"....correspondente à sete pedestais graníticos de uns dois metros de altura, onde..."

Com o tempo, e para proteção dos peregrinos, foram criadas em diversos locais do caminho as Juntas ou Irmandades, que se situaram em cidades como Bujaraloz, Zaragoza e Mallén.

No início do ano de 1068, Ramón Berenguer II, em os ”Utsages”, declarou que:

… os caminhos são do Príncipe, que põe sob a paz e a trégua todos os dias e todas as noites, para que os viajantes possam ir e vir seguros e tranquilos com suas coisas, livres de todo o temor.

Se conservam no Arquivo História de La Corona de Aragón, numerosos documentos concedendo salvo-condutos em favor dos ingleses, holandeses, alemães e húngaros.

Madame Viellar publicou um trabalho nominado “Peregrinos de España a final de la Edad Media”, em que faz um pormenorizado estudo dos salvo-condutos concedidos pela Cancillería Real de la Corona de Aragón (entre 1379 e 1422), em sua

maioria, para gente de condição nobre e pessoas de grande influência social.

O CAMINHO JACOBEU DO EBRO

O rio Ebro em sua desembocadura..

“La Ruta del Ebro” ou “Caminho Jacobeu do Ebro”, é o Caminho de Santiago que tem como início o delta do rio Ebro e segue até a cidade Logroño, onde se une ao Caminho Francês, proveniente de Roncesvalles.

Trinta quilômetros antes de Zaragoza, entre as cidades de Pina de Ebro e Fuentes de Ebro, o Caminho do Ebro conflui com o Caminho Catalão, procedente do Monastério de Montserrat, e, portanto, a partir desse ponto é denominado de Caminho

Catalão ou Caminho do Ebro.

Painel indicativo, composto por fotos aéreas do delta.

Percorrer a “Rota Jacobeia do Ebro” é empreender um caminho com a inseparável companhia de um grande rio como é, sem dúvida, o Ebro.

Esse detalhe, por si só, merece toda a nossa atenção e admiração, porém, nesse atrativo roteiro o peregrino poderá descobrir também locais com forte tradição jacobeia, sem esquecer os numerosos vestígios romanos, que são consequência dos

inúmeros assentamentos que o vale desse grande rio acolheu durante a época da Roma Imperial, rincões com um encanto especial, moldados ao longo do tempo.

Sua origem histórica remonta ao século XII, depois que houve as reconquistas cristãs das principais cidade do vale do Ebro, quando devotos franceses, italianos e de muitas outras procedências chegavam de barco a Sant Carles de la Ràpita para

empreender a peregrinação ao sepulcro do Santo Apóstolo.

Finalmente, no início do Caminho do Ebro, pronto para a partida.

O mesmo Santiago, segundo a tradição, que em seu trabalho apostólico, percorreu esse caminho desde Tarragona.

E existem inúmeras lendas sobre o assunto, a mais conhecida aquela que fala da aparição da Virgem Maria sobre um pilar em Saragoza.

Seu ponto de partida oficial é a localidade de Deltebre, porém o local histórico de seu marco inicial, conforme dito anteriormente, seria mesmo Sant Carles de la Ràpita.

A coluna mestra desse caminho é naturalmente o vale do rio Ebro, o curso d'água mais caudaloso da Península Ibérica, o segundo em comprimento (910 quilômetros) depois do rio Tejo, e seu leito se estende por um sexto do território espanhol, além

de Andorra e uma pequena parte do sudeste da França.

O Caminho Jacobeu do Ebro passa por quatro comunidades autônomas e quatro províncias: Catalunha (Tarragona), Aragón (Zaragoza), Navarra (Navarra) e La Rioja (La Rioja).

VOLTAR    -     01ª etapa – FOZ DO RIO EBRO (DELTEBRE) à SANT CARLES DE LA RÀPITA – 33 quilômetros