UMA ABORDAGEM PESSOAL SOBRE OS MITOS DO CAMINHO DE SANTIAGO

Ao deixar Brasil no dia 08.04.2001, sozinho e ansioso, pelo voo 846 da Ibéria rumo à Madri/Pamplona/ San Jean, libertava-me naquele momento de uma série de preocupações que ficavam aqui em terra, como trabalho, família, contas a pagar, etc... No entanto, inúmeras incertezas povoavam a minha mente: O tênis que calçava, seria o mais adequado? Como se comportariam os seres: homens e animais que encontraria no Caminho? Utilizar-me-ia de um cajado ou não?

Como seria a Espanha, país onde viveria meus próximos 33 dias? Viajava com apenas uma certeza: dispunha de 31 dias para fazer o Caminho, pois tinha passagem de retorno ao Brasil, marcada para o dia 11.05.2001. Quanto ao retorno posso lhes adiantar que obtive o sucesso almejado, posto que saí de San Jean (Fr) dia 10.04.2001 e cheguei a Santiago em 07.05.2001, fazendo o percurso todo em 28 dias.     

Durante esse período, minhas dúvidas foram sendo paulatinamente esclarecidas, fruto de observações e dados coletados ao longo do trajeto, que minuciosamente compilei, e que tentarei explanar a seguir, como forma de ajudar àqueles que pensam em fazer o Caminho um dia, e talvez, servir de tema e discussão aos que como eu, já trilharam a Rota.

01 – O CAMINHO DE SANTIAGO (A TRILHA)

Muitas pessoas me perguntam o grau de dificuldade que o Caminho apresenta. Sou franco: a trilha é duríssima. Preparei-me durante quatro meses para enfrentar algo difícil, porém achei o Caminho bem mais árduo do que esperava. Na realidade passamos todo o tempo a subir e a descer montanhas, despenhadeiros, precipícios, ribanceiras, ou então, a caminhar em estradas pedregosas, por horas a fio, em retas sem fim, onde a não muda, uma provação para o nosso corpo e nosso espírito.

Em muitos locais caminhamos por trilhas extremamente estreitas e íngremes, por onde passam só o homem e animais selvagens. Bicicletas ou motos, por exemplo, jamais. Assim, afirmo com sinceridade: não é possível realizar a caminhada, sem ter um condicionamento físico adequado. Pessoas que nunca fazem alguma atividade física ou têm hábitos extremamente sedentários, muita dificuldade em conseguir vencer o Caminho.

02 - A IDADE

Tinha receio de que meus 50 anos eram empecilho para se fazer o Caminho. No entanto, logo no primeiro dia vi que estava completamente enganado. Existem muitas pessoas com idade acima de 60 anos fazendo a Trilha, com muito fôlego, disposição e energia. Tais informações, obtive, por curiosidade, pondere registros que ficam à disposição dos peregrinos nos albergues.

É praxe na entrada, preenchermos uma ficha de cadastramento, onde consta um campo específico para colocação da idade atual. Assim, pude verificar e confirmar estatisticamente que a maioria dos que estavam no Caminho à minha época, superavam a faixa etária dos 60 anos. Alguns com mais de 70.

Conheci uma alemão, Sr. Werner, que estava com 74 anos, e já tinha feito no Caminho anteriormente, em 1995, no mesmo mês de abril. Para comprovar, exibe uma Credencial de Peregrino daquele ano, com todos os carimbos. Andava acompanhado de um amigo, Sr. Willian, que tinha 68 anos, e ambos moravam em Munique. Andavam tanto quanto eu, e distribuições muitas etapas juntos.

Porém, tinham o hábito de só se hospedar em Hostais, pois diziam que os Albergues eram para gente jovem acostumada ainda a enfrentar as agruras da vida, e que este tipo de acomodação nos infringe muitos incômodos: como a falta de privacidade, barulhos, ruídos noturnos, camas conjugadas em beliche, etc.

Tive informações nos albergues, de outro alemão atualmente com 86 anos, o qual faz o Caminho anualmente, desde 1985, quando completou 70 anos, sempre alcançando o final com sucesso. E, detalhe: não usa nem bota, nem tênis, apenas uma espécie de calçado mocassim.

Existem também casos extremos. Em Roncesvalles conheci um senhor de 65 anos, português, que segue o Caminho Santiago / Roma, num percurso total de 3.000 milhas. Tinha percorrido 750 km em 30 dias, e calculava gastar mais 4 meses no trajeto. Em Molinaseca conheci um italiano de 60 anos que fez o Caminho, e que já tinha feito o trajeto Santiago / Roma.

Para comprovar exibia uma enorme Credencial, com mais de 300 carimbos dos lugares diferentes por onde tinha passado, fruto dos 150 dias de caminhada gastos para vencer tal distância, feito também em tempos remotos pelo apóstolo Tiago por volta do ano 38, quando veio pregar na Galícia, partindo de Roma. Assim, conforme mencionei, a idade não é arrastada para se fazer o Caminho. Desde que sopesadas as distâncias a serem percorridas diariamente, e o condicionamento físico adequado, pode o peregrino tranquilamente chegar a Santiago sem percalços.

03 - O CAJADO

É sem dúvida um dos atributos do peregrino. Como tem-se que subir e descer pedras, enfrentar desníveis de solo e ao mesmo tempo carregar todo o peso da bagagem, o cajado facilita a nossa locomoção e nosso equilíbrio em terrenos acidentados, evitando pequenos saltos. Já em terrenos planos e regulares, o cajado ajuda a determinar o ritmo da caminhada, tornando-a mais agradável.

No meu caso específico, utilizei sempre dois cajados, feitos de nogueira, madeira leve e resistente, adquiridos em Sain Jean (França), por 38 Francos Franceses cada (aproximadamente R $ 7,00). No entanto, em todo Caminho encontram-se-lo-emos à venda em bares, lojas, albergues, etc.

Serviram-me também para cães espantar na Rota, e foram elevados e inseparáveis ​​na caminhada, tanto que um deixei na Catedral de Santiago, em agradecimento, e trouxe o outro para minha casa, como recordação.

04 - BOTA OU TÊNIS

Após ampla leitura sobre o assunto, fiz testes com os dois tipos de calçado, alguns meses antes da caminhada. Porém, um mês antes de partir, resolvi testar um tênis abotinado, que recomendo: é o Tundra Higth (Montana / Smoke) da Reebock. Não tiva, nenhum tipo de problema nos pés, como torção, tendinites, e também nenhuma bolha. Além da vantagem de custar barato: por volta de R $ 90,00.

Sei como são terríveis como bolhas, e nos Albergues diariamente éramos testemunhas do sofrimento daqueles companheiros acometidos por esses dissabores. Em Burgos acompanhei um peregrino Francês, até o Hospital Militar da cidade, que oferece atendimento gratuito aos peregrinos. Seus pés foram tantas ulcerações que foi terminantemente proibido de continuar a caminhada, e ficou lá internado por uma semana, tamanha eram como sequelas produzidas pelo calçado matado.

Assim, digo que, como os pés são certamente os melhores amigos do peregrino, recomendo que cada um escolha aquilo que considera ideal para caminhar, seja bota ou tênis. Fica no entanto, registada a minha bem local experiência.

05 - A ESPANHA

Antes de mais nada, como curiosidade, alguns dados geográficos sobre esse País localizado na famosa e conhecida Península Ibérica. Possui atualmente 40 milhões de habitantes, vivendo numa área de 505.000 km2. Fazendo um paralelo: O Estado de São Paulo possui 32 milhões de habitantes, e uma área total de 250.000 km2. Sua religião oficial é o catolicismo, a moeda corrente é a peseta espanhola, seu crescimento demográfico é de 0,5%, e seu estatuto político atual é a Monarquia Constitucional.

Uma grande dificuldade encontrada no Caminho é o horário praticado na Espanha. Tudo lá começa a funcionar somente após às 9:00 horas da manhã, sejam lojas, bares, escolas, bancos. Durante o dia fazem uma pausa para o almoço, a tal da “siesta”, quando novamente tudo “cerra”, geralmente entre 14:00 e 16:00 horas.

O horário de almoço nos restaurantes é das 13:00 às 16:00 horas, e o jantar, das 20:30 às 23:00 horas. E nos domingos e feriados, entre 21:00 e 23:30 horas. Como geralmente os Albergues fecham suas portas às 22:00 horas, precisamos ficar atentos a esses horários terrivelmente diferentes dos nossos. Até porque, quando lá estive, início da primavera, o sol nascia por volta das 7:00 da manhã, e só se escondia após às 21:30 horas.

Outro problema, foi cambiar dinheiro, já que levei dinheiro em espécie. Os bancos disponíveis para o público entre 9:00 e 14:00 horas. Quando necessário trocar meus dólares por dinheiro espanhol, programava-me com bastante antecedência, já que, quase sempre, nesse horário, ainda estava caminhando no campo.

E por falar em lavouras, uma coisa também curiosa que notei, é que não existem habitações nos campos. Todos moram nas povoações e se deslocam para o seu local de trabalho rural, através de tratores, motos, carros, etc. Também não existem cercas separando os terrenos e as plantações. Os limites são definidos por pequenos fossos, por onde correm as águas utilizadas na irrigação.

É interessante observar como cegonhas que vi ao longo do Caminho. Elas vivem em lugares frios, situados ao norte da Europa, e no início da primavera procuram os países próximos do equador, como a Espanha e Portugal, para procriar. Vi-as em quantidade a partir de Burgos (km 300), porém depois de Leão (km 500) encontrava-as em todos os locais. Nidificam em lugares altos e inacessíveis, como postes de iluminação, cumeeiras de casas, árvores centenárias, e, principalmente, nas torres das igrejas.

Seus ninhos são enormes e compactos, geralmente construídos em lugares abertos, expostos ao sol, frio e chuva. Em abril quando lá estive, estava chocando ou ainda se acasalando. Creio que passaram pelo Caminho a partir de Junho, tiveram a oportunidade de vê-las já com seus filhotes, pois o período de incubação é de 37 dias.

Meus parcos conhecimentos do idioma castelhano, forçaram-me a passar momentos inusitados na Espanha, alguns até hilariantes. Como em Lasarroana, no meu segundo dia de caminhada, quando fui jantar no Bar do Sr. Sangallo. Após a refeição, ele me ofereceu a sobremesa, que como de praxe já estava inclusa no preço. As alternativas eram: flan (pudim), gelato (sorvete), orange (laranja), iogur (iogurte), e plátano de las canárias. Curioso, optei pela última. Surpreso fiquei, quando ele serviu-me uma prosaica banana, então percebi que o pomposo “plátano de las canárias” era na tradução literal, banana procedente das Ilhas Canárias, já que a Espanha não produz tal fruto.

O espírito de solidariedade dos que moram às margens das trilhas é inexplicável. Guy Veloso conta em seu livro que, no início da caminhada, um agricultor de aspecto rude passou por ele transferido um trator, em alta velocidade. Alguns minutos depois o homem retrocedeu, e sem nada falar-lhe, entregou-lhe um cajado e amarrou a mochila corretamente em suas costas. Da mesma forma, por três vezes errei o caminho, e imediatamente, fui alertado pelas pessoas de que não estava no rumo certo.

Para finalizar abordo um tema crítico em todo mundo: o fumo. Não tenho dados exatos sobre o assunto, porém a grande maioria do povo espanhol é fumante. E, sentimos na pele esse incômodo, por exemplo, quando vamos a restaurantes ou a bares. Num país tão civilizado onde existe uma coleta seletiva de lixo até nos campos, parece-me um contra-senso o hábito de fumar em recintos fechados. Como sou alérgico à essa fumaça nociva, enfrentei muitas dificuldades quando ia almoçar / jantar nos restaurantes existentes na Rota.

Não raras vezes, já sentado à mesa, fumante passivo desesperado, percebendo ser impossível a permanência no local, visto que devido ao frio as janelas e portas ficavam fechadas impedindo a circulação de ar no ambiente, abandonava o recinto e ia preparar minha própria refeição no O Albergue onde estava hospedado.

06 - OS CÃES

Na Espanha se chama “perros”, estão em todos os lugares. A imensa maioria, presos ou amarrados. De todos os tamanhos e raças, desde os graciosos “bassets”, até os enormes “São Bernardos”, uns amigáveis, outros mal-humorados. Alguns soltos, porém mansos. Desses, quase todos adoram os peregrinos, possivelmente sentem ser esse um ser tão carente quanto eles.

Muitos deles mal nos avistam correm ao nosso encontro, fazem-nos festas, não raro nos acompanham por centenas de metros até certo ponto em troca de um agrado. Ali estacam e ficam a nos olhar até desaparecermos no horizonte. Então voltam ao ponto inicial à espera de novos peregrinos.

Existem alguns cães famosos na Rota. Um deles já viveu seus momentos de glória, pois apareceu em várias reportagens, chama-se Calixto e mora em San Juan Ortega. É um vira-lata branco, que transborda simpatia em sua feição canina. Costuma acompanhar determinados peregrinos que escolhe, às vezes por muitos dias, e depois quando se cansa, não raro a mais de 100 kms de casa, então, é devolvido por conhecidos, por via rodoviária, visto que todos na região o conhece.

Um caso interessante ocorre com um brasileiro que faz o caminho comigo, o Vânio de Florianópolis. Contou-me que tomava café da manhã num bar em Castrojeriz. Um senhor com um enorme pastor alemão que também se encontrava no bar, ofereceu-lhe o cão como companhia para aquele dia (era domingo). Ele aceitou, o dono conversou com o cão e este o seguiu e o guiou o dia todo. Conforme combinado, ao chegar em Frómista à tarde, 25 milhas adiante, ganho o cão num bar determinado, pois o dono iria buscá-lo à noite. Na hora da despedida, não resistiu e abraçou o amigo por diversas vezes.

Há pessoas que fazem o Caminho todo com seu cachorro. Tive a oportunidade de encontrar no Caminho um holandês que caminhava com seu cão Bop, um lindo huski siberiano amarelo, que inclusive carregava em seu dorso a própria mochila, onde levava ração e sua vasilha de água. Presenciei a chegada deles em Santiago, uma simbiose perfeita entre o homem e o animal.

Apenas em três ocasiões os cães do Caminho tentaram me atacar. Nessa hora o cajado é de grande valia e impõe respeito. O simples fato de levantar o bastão fez com que eles desistissem do seu intento. Há, é verdade, histórias de peregrinos que foram atacados por cães, e alguns que precisaram correr. Porém, pelo que ouvi, são casos raros, e mais raro ainda são os casos em que o viajante foi realmente mordido por algum cão feroz. Em resumo, melhor não dar ouvidos para sensacionalismos, mas fique atento e tome cuidado.

07 - O DIA MAIS MÍSTICO

Sem dúvida para mim, foi uma etapa entre Rabanal del Caminho a Molinaseca, num total de 25 kms, percorridos no dia 28.04.2001. Saí do albergue às 6:45 hs e caminhei, sempre pelo asfalto, em forte alive, por 6 kms. Depois de andar por 1,30 horas, eis que surge Foncebadón com suas casas de pedra, abandonadas e em ruínas. A maioria das casas serve de curral para o gado, ou de refúgio para animais silvestres.

Curioso e solitário, deixei o asfalto e resolvi passar por dentro da cidade. E quando ainda transpunha a primeira casa, o sol que brilhava opacamente, desapareceu encoberto por nuvens espessas. E foi com o peito opresso que atravessei a vila deserta e silenciosa por uma rua de terra batida, num silêncio sepucral, com o cajado na mão e o coração batendo descompassadamente.

O tempo parecia não transcorrer, estagnado, e toda hora tinha uma impressão nítida que algum cão iria aparecer para mim atacar, tal qual o episódio descrito no livro de Paulo Coelho, “O Diário de Um Mago”. O local traz-nos uma sensação de tristeza e depressão, e foi com imensa alegria que contornei a última casa, e enveredei em direção aos escombros de uma antiga igrejinha, para finalmente deixar aquele lugar lúgubre, com seus fantasmas e mistérios que se perdem num passado distante, onde outrora for importante centro urbano.

Saindo da cidade subi por uma trilha íngreme e de difícil acesso, normalmente apenas pelo gado. Depois de meia hora fatigante sempre subindo, surgiu a Cruz de Ferro perdida no meio de uma montanha de pedras, um dos monumentos mais simples e antigos do Caminho, fincado por Gaucelmo, um ermitão que ali viveu no século XI, no ponto mais alto da rota (1514 metros), à época, para ajudar os caminhantes que se perdiam na neblina.

Como todo peregrino, levei uma pedra retirada do quintal de minha casa, e a depositei ali, num gesto simples de emoção, pois se percebe que todas as pedras que ali estão incluídas de alguma parte do mundo. Tirei fotos, concentrei-me alguns minutos em respeitosa e solitária reflexão, e segui adiante.

Após meia hora de caminhada, 2200 metros à frente, cheguei ao Manjarin, cidade com uma única casa que também serve de albergue para peregrinos, e é residência de Tomás, o mais famoso templário da Rota. Após fotografar e observar a simplicidade do lugar, adentrei a casa. O local estava mergulhado na penumbra e ouvia-se, na quietude do recinto, uma música clássica. Imediatamente um peregrino ofereceu-me gentilmente café.

Fazia um frio terrível, por isso sorver aquele líquido quentíssimo me trouxe um novo ânimo. Saindo de um dos quartos, aparece Tomás vestindo mais um casaco por cima dos que já usava, e foi com enorme satisfação que o cumprimentei. Disse-me que a previsão do tempo indicava nevasca para aquele dia em locais acima de 1200 metros.

E nós desejamos a 1450. Dialoguei alegremente com ele, tivo minha credencial carimbada e parti, não sem antes sentir um arrepio que me percorreu o corpo todo, desejo de satisfação e medo, pois sentia ser ali o local mais emblemático de todo o Caminho.

A descida até El Acebo é terrivelmente inclinada, exigindo sobremaneira de nossos pés e joelhos. Na cidadezinha, após um lanche e um bom copo de vinho, segui em frente e às 15 horas cheguei em Molinaseca, distante ainda 8 kms de minha meta que era a cidade de Ponferrada. Molinaseca tem uma altitude de 600 metros, e observando como montanhas de onde eu tinha vindo, percebia estarem escuras, sinal de que já nevava por lá. Enquanto eu comia um lanche num bar começou a chover, então resolvi pernoitar naquela cidade.

Era domingo, alberguei-me, e antes de dormir, aguardar, experimentava uma satisfação sem igual, pois seria aquele, um dia inesquecível, cheio de mistérios e surpresas que tentarei decifrar e do qual também, jamais olvidarei.

08 – OS BRASILEIROS NO CAMINHO

Somos um povo estimado e muito bem conceituado ao longo do Caminho, possivelmente, fruto do comportamento dos conterrâneos que nos antecederam, aos quais sou grato. Nosso jeito alegre e descontraído cativa os sisudos habitantes das cidades por onde passamos, nada afeitos a brincadeiras com estranhos. Até porque, o europeu por tradição é um povo frio e fechado.

E nossa maneira de ser alegre e descompromissada faz, por vezes, muitas barreiras ruírem. Em alguns locais somos festejados, também, porque o povo espanhol adora futebol, e conhece nosso potencial nesse mister. Dois dos maiores ídolos atualmente em atividade nos campos espanhóis são brasileiros: Roberto Carlos e Rivaldo, e um pouco dessa fama acaba sobrando positivamente para nós peregrinos do Brasil.

Segundo os dados que colhi no Caminho, somos atualmente o terceiro país a enviar peregrinos para a Rota, atrás apenas dos espanhóis, é claro, e dos franceses. Aliás, todos os europeus que normalmente residem em países limítrofes à Espanha, têm dificuldade em entender a razão de abandonarmos nossas casas, nosso conforto, e voar mais de 10.000 quilômetros para fazer o Caminho.

Apenas para ilustrar, transcrevo dados que copiei de uma estatística que estava afixada no Albergue em que me hospedei em Rabanal del Caminho (na cidade existem três). De 1991 até o ano de 2000, haviam pernoitado naquele albergue, dentre outros, 31.556 espanhóis, 1618 franceses, 1599 brasileiros, 1502 alemães, 1401 holandeses, etc. Sinal que nossa presença é constante e expressiva na Rota.

09 – AS MULHERES

À época que lá estive, eram a maioria fazendo o Caminho. Algumas bastante jovens ainda, e outras já com idade avançada. Várias, assim como eu, caminhando sozinhas, enfrentando com galhardia e sem medo, os obstáculos do dia a dia.

Em todo o tempo que permaneci na Espanha, não tive notícia de qualquer tipo de ameaça à integridade física das mulheres que faziam a caminhada, como assédio, roubo ou estupro, sinal de que o Caminho oferece segurança e tranquilidade..

Tenho conhecimento de casos felizes ocorridos na Rota, como por exemplo, uma brasileira aqui da região de Campinas, que fazendo o Caminho em junho de 2000 conheceu um peregrino francês em Nájera. Iniciaram então um romance, e após rápido namoro, casaram-se em maio último. Atualmente eles moram em Antibes, sul da França, e são muito felizes.

10 – REFLEXÕES FINAIS

A peregrinação como prática de vida foi acima de tudo um reencontro com a simplicidade, com o despojamento. Ao me dedicar exclusivamente à caminhada, percebi que corpo, alma e mente descansados, pertences essenciais na mochila, companheiros e amigos para compartilhar experiências, um local seco e aconchegante para matar a fome e passar a noite, eram o bastante para me sentir realmente bem. Que pouco, bem pouco, era necessário para se sentir completo.

Que a vida muitas vezes se resume apenas, em vaidade e arrogância. Para além de qualquer entendimento religioso ou místico e de qualquer deleite turístico, proporcionado pelas paisagens deslumbrantes, ou pelos palácios e catedrais monumentais, o Caminho de Santiago foi para mim, acima de tudo, uma oportunidade de parar e refletir sobre certas questões essenciais da vida, mas que, no entanto, quase sempre se fazem esquecidas em meio ao tumulto do dia-a-dia.

Parar para sentir e pensar sobre os “caminhos”, que podem fazer de nós melhores pessoas, na família, no trabalho, e na sociedade.

    Ultreya e Bom Caminho a todos!

 Novembro/2001