FINAL

EPÍLOGO

Peregrinar é um ato de fé, e percorrer um Caminho pressupõe seguir um itinerário pré-estabelecido, mas que não se esgota tão somente nesse escopo.

Assim, se faz necessário lhe associar uma intenção e um objetivo, que alimentem a motivação e despertem a busca interior, promovendo assim o enriquecimento espiritual e cultural de cada indivíduo.

Entre nós, cristãos, as peregrinações mergulham as suas raízes no Antigo Testamento, no Êxodo do povo eleito para a Terra Prometida, sendo que Jesus Cristo também peregrinou à Jerusalém.

E a Igreja Católica, desde os primeiros tempos, promove o culto dos lugares santos, enquanto fomenta essa prática milenar.

Jerusalém, Roma e Santiago foram os grandes centros da cristandade que mobilizaram inúmeras gerações de peregrinos, como ainda hoje acontece com Lourdes, Fátima ou Czestochowa.

Jerusalém e Roma foram os grandes pólos de difusão do cristianismo, o primeiro, por ser a Cidade Santa onde o Filho de Deus se entregou para redimir a Humanidade, e o segundo, pela sua distinção como Solo Pontifício.

No entanto, a Santiago de Compostela cabe o privilégio de ter sido, ao longo de todo o segundo milénio, a grande confluência da rede viária europeia por onde disseminou a pregação do Evangelho, que é a base civilizacional deste velho continente.

Por isso, podemos afirmar: Os Caminhos que se dirigem à Santiago são um denominador comum da cultura europeia.

Como se vê, num Continente que quer ser forte e coeso, falando uníssono em todas as línguas, estes itinerários são espaços públicos de convergência e harmonia, devendo ser respeitados e promovidos.

Neles, qualquer caminhante se sente um cidadão do mundo, o que lhe dá a oportunidade de referendar suas convicções num sentido ecumênico de amor e tolerância.

É nesta intrincada rede de itinerários jacobeus, provenientes de todos os cantos da Europa, que se enleiam aqueles que têm sua origem em Portugal, e tantos são eles quantas as possibilidades reais de acesso de cada lugar ao túmulo do Apóstolo.

Contudo, entre todos, assume particular relevo a estrada real Lisboa - Porto – Barcelos – Valença do Minho, para onde confluem quase todos os demais roteiros lusitanos, reforçando este percurso como a espinha dorsal dos Caminhos Portugueses à Santiago.

Por sinal, este foi o itinerário escolhido pela maior parte dos caminhantes que demandaram à Compostela, a partir do início do século XIV, o que está demonstrado pelos inúmeros relatos conservados nos arquivos compostelanos e nas referências conhecidas.

Tendo como seus peregrinos mais ilustres a Rainha Santa Isabel, Leão de Rotzmithal, Jerônimo Münzer, el-Rei Dom Manuel, Confalonieri, Albani, e muito provavelmente São Francisco de Assis e o Beato Francisco Pacheco, além de tantos outros egrégios romeiros que a memória não registou.

Com efeito, com a conclusão da ponte de Barcelos, em 1325, e a remodelação, na mesma época, daquela existente em Ponte de Lima, foi possível criar um percurso retilíneo que evitava a inflexão por Braga, e a travessia a vau ou em barca, dos rios mais perigosos.

Rates, Barcelos, Ponte de Lima, Valença, Tui, Redondela, Pontevedra e Caldas de Reis definiram o novo itinerário medieval do Porto a Santiago, tendo em comum a velha via militar romana, um ou outro trecho urbano, e as pontes ainda em uso, para vencer as ribeiras mais perigosas.

Foi também este percurso comumente utilizado pela população que se movimentava de sul a norte, pelas Províncias de Entre-Douro e Minho, e que não se descurava da rapidez, segurança e comodidade.

Por esse roteiro passaram multidões de gente anônima, caminheiros, viajantes, almocreves, mercadores, feirantes e romeiros.

Foi também percorrido pelas forças regulares, Campanhas de Ordenanças, tropa-fandanga e chusmas de aventureiros, bandidos e contrabandistas.

Ainda, foi palco de escaramuças, assaltos e emboscadas, viu passar toda a sorte de gente e testemunhou cinco séculos de agitado relacionamento entre dois povos irmãos que o destino não quis unir.

Foi a estabilidade que começou a desenhar com a Regeneração, e determinou o fim da velha estrada real.

Pois, o fomento de uma nova rede de acessibilidades alterou profundamente seu “status quo” e fez disparar um esforço de desenvolvimento que não se compadecia das relíquias de um passado arcaico e obsoleto, desconforme integralmente com o novo ideário.

O manifesto desinteresse da ligação Barcelos-Ponte de Lima-Valença, preterida por outros acessos mais francos à fronteira, valeu-lhe, assim, alguma preservação, já que os outros percursos que justificavam benfeitorias, conservam hoje pouco do original ou um vago traçado.

No remanso duma paisagem que se tem mantido incólume com o correr do tempo, o caminho foi-se apagando, lentamente, nos lameiros das veigas e nas encostas esqueléticas da Labruja, onde até o mato mal resiste à erosão.

Mas o traçado estava lá, razoavelmente conservado, adivinhando-se num cruzeiro, em capelinhas ou restos de calçada trilhada, por profundos sulcos e, quase sempre, bem registado na memória da população local.

Quando no início dos anos sessenta, o Pároco de O Cebreiro, Dom Elías Valiña Sampedro, apregoava o Milagre Eucarístico na sua Igreja de Santa Maria la Real, estava a dar novo alento às antigas peregrinações jacobeias que celebrizaram aquela intervenção divina.

Tomou, então, este encargo como uma missão, organizou congressos, promoveu associações, reconheceu o Caminho e sinalizou-o, pintando setas amarelas, que ainda hoje se tem como a mais conhecida e segura identificação de um itinerário jacobeu.

Faz mais de dez séculos que multidões de devotos a Santiago peregrinavam para visitar o seu túmulo e só nos anos mais recentes esta prática esmorecera e quase se extinguiu.

Com a sinalização do Caminho Francês o fenômeno se ampliou, dilatando-se progressivamente, mês após mês, ano após ano, o número de peregrinos vindos de todo o mundo e, principalmente da Europa, que aportavam à Santiago de Compostela, calcorreando os velhos caminhos sugeridos em estudos e guias.

Reabriram-se, então, antigos e novos albergues, editaram-se roteiros e mapas, organizaram-se congressos e seminários, constituíram-se Associações de Amigos, especializando-se, inclusive, a oferta turística das cidades históricas servidas por este itinerário.

E o sucesso foi de tal dimensão, que em 1987, o Conselho da Europa classificou-o como Primeiro Itinerário Cultural Europeu e, em 1993, a UNESCO como Patrimônio da Humanidade.

A “Xunta de Galicia” consciente da dimensão universal desse entusiasmo e da sua ação catalizadora da integração europeia, decide explorar outros itinerários jacobeus de reconhecido sentido histórico, e promover igualmente a sua reutilização.

Iniciam-se, então, as diligências com o velho Caminho Português, indiscutivelmente considerado o mais importante das chamadas rotas secundárias, abrindo concurso público para a sua identificação, caracterização e valorização.

E no Ano Santo de 1993, foi pela primeira vez divulgado o itinerário entre Tui e Santiago, que os Peregrinos preferencialmente utilizavam quando provinham de Portugal.

Atualmente, podemos considerar este itinerário definido e fixado entre o Porto e Santiago e em curso um conjunto de atividades que têm em vista a sua recuperação, sinalização e divulgação, promovidas pela Associação dos Amigos do Caminho Português de Santiago, cuja sede fica em Ponte de Lima.

A recuperação não envolveu ainda, e de uma forma programada, a totalidade do percurso, como sucede no “tramo” galego, por iniciativa da Xunta.

São as respectivas Câmaras Municipais e as Juntas de Freguesia que, por solicitação da Associação, realizam ações pontuais de limpeza e redobram cautelas no licenciamento de intervenções públicas e privadas.

A promoção é também um dos aspectos fundamentais, para garantir a continuidade das peregrinações e perpetuar a devoção jacobeia, efetivando-se com a publicitação do crescente movimento que tem se verificado nos últimos anos, apoiando as iniciativas que vão surgindo, e participando em todos os eventos em que este tema se enquadra.

A Associação dos Amigos do Caminho Português tem contado sempre nessas iniciativas com a colaboração e empenho do Corpo de Voluntários da Ordem de Malta, que garante um acompanhamento contínuo dos peregrinos ao longo de todo o trajeto.

Possa, assim, este esforço conjunto do Corpo de Voluntários e da Associação jacobeia contribuir, para dar corpo à exortação de Sua Santidade o Papa João Paulo II, quando, em 1992, peregrinou pela primeira vez a Santiago de Compostela:

“Eu, Bispo de Roma e Pastor da Igreja Universal, daqui, de Santiago, te lanço, velha Europa, um grito de amor - Volta a encontrar-te! Sê tu mesma, descobre as tuas origens, aviva a tuas raízes, revive aqueles valores autênticos que fizeram gloriosa a tua História e abençoada a tua presença nos outros Continentes!”

Santiago de Compostela, 9 de Novembro de 1982

João Paulo II

(extraído e adaptado do site: www.caminhoportuguesdesantiago.com/pt)

 

 Queimando roupas e exorcizando os maus espíritos, em Finiterre

CONSIDERAÇÕES SOBRE O ROTEIRO

Um Caminho, que nesta versão se chama Caminho Português, é bonito e provido de cenários maravilhosos, embora em alguns trechos se torne pesado, monótono e cansativo.

Desenhado em quase a sua totalidade, ao menos na sua passagem pela Galícia, sobre a antiga via XIX dos romanos, não deixa dúvida que seu itinerário histórico, assistiu à peregrinação, em outras épocas, de reis, plebeus, santos e guerreiros.

Porém, hoje essa história esta enterrada ao longo de quase todo o trajeto, sob o asfalto com que os novos tempos cobriram essa Rota.

E, se não é a Via XIX, são as pistas e as trilhas que atravessam montes e aldeias.

Ontem eram caminhos rurais, e se transformaram em rodovias, ainda que algumas de inexpressivo tráfego de veículos, porém com um pavimento mais apropriado para os automóveis do que para as botas peregrinas.

Nesse sentido, entendo que não seria uma má ideia lembrar um pouco da história e oferecer aos caminhantes um itinerário imaginativo e ecológico, por onde se poderia transitar sobre o brando soalho das ancestrais sendas em terra.

Assim, o Caminho seria desenhado para que o peregrino tivesse a oportunidade de contemplar as paisagens que, juntamente com o mar, montes, rios e vales, embelezam os inesquecíveis lugares por onde eu transitei.

Pretendo encerrar este diário, comentando que a partir da cidade do Porto, eu desfrutei intensamente da companhia de meu dileto amigo Demétrius, porquanto praticamente fizemos todo esse roteiro final, juntos, lado a lado.

Ainda, necessário ressaltar e agradecer ao povo lusitano e espanhol por sua bondade e intensa amabilidade com os caminhantes, mormente os brasileiros.

Porquanto, a hospitalidade das pessoas é proverbial e a acolhida aos peregrinos é uma de suas características mais marcantes.

Iniciada na Idade Média por monges e clérigos, nos hospitais fundados por reis e nobres, são os hospitaleiros dos albergues e os habitantes de povoados seculares que mantêm esta bela e antiga tradição.

 

FINAL 

Uma vez conhecido o Caminho, só há uma coisa a fazer: seguir em frente.

Se será fácil ou difícil, claro ou escuro, pequena vereda ou larga estrada, isso não importa.

Temos que dar o primeiro passo, que é sempre o mais difícil. E por menor que seja seu tamanho, é sempre uma conquista.

No Caminho que cada um escolheu, têm-se uma missão a ser cumprida.

Haverá momentos nos quais as forças diminuirão, a energia faltará e acharemos que é peso demais para os nossos ombros... Mas suportaremos. Venceremos.

Haverá sempre uma energia guardada que nem nós supúnhamos possuir.

O importante é não desanimar, não parar.

Dar sempre um passo a frente.

Não importa o tempo que se leva... E nem é preciso correr.

O que importa é o esforço feito, o passo que se deu, os amigos conquistados, e o quanto se aprendeu.

(Colaboração de Marilise Fogaça Pereira, peregrina gaúcha)

 

Adeus Santiago e, se Deus permitir, até breve!

Bom Caminho a todos!

Julho/2013