26 - CAMINHO VASCO INTERIOR: O TÚNEL DE SAN ADRIÁN! 

Nas várias vezes que caminhei pela Espanha utilizando roteiros intermediários do Caminho de Santiago, representados por aqueles que não se dirigem diretamente à Casa do Santo Apóstolo, eu transitei por lugares espetaculares e pouco conhecidos, onde o silêncio, a ermosidade e a história se fazem presentes, e, em alguns trechos mais agudos, preocupam pelo risco envolvido quando se anda sozinho.


Cito, por exemplo, o acesso e, principalmente, o descenso após o Monastério de San Juan de la Peña, no Caminho Catalão, a transposição do “Puerto de la Fuenfría”, no Caminho de Madrid, a escalada de “Las Forcadas de San Antón” no Caminho de San Salvador, e a superação da imensa “Via Verde”, no Caminho Jacobeu do Ebro, dentre tantos outros.


Contudo, um dos “hitos” que mais me impressionou em todas essas Rotas que já percorri, situa-se no Caminho Vasco Interior, que conecta Irún a Santo Domingo de La Calçada ou Burgos, já no Caminho Francês, e que em sua 4ª jornada, discorre entre as cidades de Zegama e Salvatierra, num total de 23 quilômetros, um trajeto árduo e surpreendente, com passagem pelo âmago do fantástico “Túnel de San Adrián”.


Trata-se de um dos pontos mais belos do Parque Natural de Aizkorri-Aratz, surgido após uma cárstica erosão causada pela água, que abriu um passadiço entre ambas as vertentes, sendo utilizado inicialmente e desde tempos imemoriais por pastores nômades para levar seus rebanhos pastar em ambos os lados da montanha.

Sinalização do Caminho Vasco Interior.

É também um lugar histórico, pois por ele transitaram ao longo dos séculos reis, comerciantes e, dentre tantos outros, peregrinos que se dirigiam a Santiago de Compostela, sendo utilizado como rota de comércio já na antiguidade por possibilitar a transposição dos Montes Vascos, proporcionando uma economia de 200 quilômetros em relação aos demais traçados.


Em 1290, o Papa Nicolau IV concedeu indulgências aos peregrinos, transeuntes e mendigos que visitassem a ermida de San Adrián, dentro do túnel, no dia da sua festa, no entanto, as melhorias nas vias de comunicação durante o século XVIII reduziram o tráfego do Túnel, que seria abandonado em 1851, quando foi inaugurada a estrada que atravessava o maciço pelo passo de Etxegarate e hoje representa, apenas, um recurso turístico natural de primeira ordem.


Em 2018, eu percorri o Caminho Vasco Interior e depois de pernoitar em Hernani e Tolosa, ao final da terceira jornada eu cheguei a Zegama, belíssima cidade situada no extremo da província de Guipúzcoa, onde residem 1.500 almas, um lugar que foi periodicamente visitado por rei e dignitários que percorriam o Caminho Real e que atravessariam o histórico Túnel de San Adrián.


À tarde, passeando pela pequena vila, ainda tive tempo de observar os últimos raios de sol agarrados ao céu violeta, sinal auspicioso de que no dia seguinte não haveria chuvas, o que me deixou bem mais confiante; assim, após uma profícua noite de sono, acordei bem cedo e me preparei adequadamente para a aventura.


Pelo que havia lido, teria naquele dia uma jornada de superação, a mais difícil dentre todas que caminharia nesse roteiro, então, meu desjejum foi consistente, porque eu estava a 300 m de altitude e ascenderia a 1135 metros, em 8 quilômetros, um desnível importante.

Caminhando em direção à Serra de Aizkorri.

O céu estava limpo, pintado de um intenso azul-quase-cobalto, pesado e metálico quando deixei a cidade por uma rodovia, porém, logo enveredei por uma trilha situada junto ao rio Oria, embora nesse local, o curso d’água ainda seja incipiente, por estar muito próximo de sua nascente.


Logo adiante passei a caminhar sobre uma pista de cimento que foi empinando, pronunciadamente, e pela inclinada ladeira de Aizkorri ascendi até topar com a discreta ermida da Virgem das Neves, cuja imagem data do século II, porém, em seu altar se encontra uma estátua que é uma cópia, pois a original está atualmente na igreja de San Martín de Tours de Zegama, que eu pudera venerar no dia anterior.


Alguns metros depois, encontrei a casa de Buenavista e ali o caminho se divide em duas partes, porém, ambas se encontram mais acima; segui pela esquerda, que é o roteiro oficial, e a subida se tornou espetacular, podendo eu observar tudo à minha retaguarda, inclusive, avistar os prados que eu havia atravessado mais abaixo.


O caminho está bem sinalizado e prossegui ascendendo entre magníficos bosques, sempre avistando à minha frente o paredão da serra de Aizkorri e junto à ermida “del Sancti Spiritu”, onde existiu um antigo hospital de peregrinos, parei para respirar e, prosseguindo, segui até a “boca” norte do túnel de San Adrián.

A porta "norte" do Túnel de San Adrián.

Por essa passagem natural, que une as províncias de Guipúzcoa y Álava, discorria a antiga “calzada romana”, ligação entre Astorga e Burdeos, que no século XI alcançou seu apogeu, depois de anexar Castilla a ambas as províncias anteriores e utilizar esse “passo natural” como rota comercial, ante a impossibilidade de transitar pelo reino inimigo da Navarra.


Por aqui passaram reis, imperadores, príncipes, soldados, mercadores, peregrinos, etc... e na sua época de maior auge estava fortificado e dispunha de infraestruturas como cavalariça, taberna, pousada, igreja, assim como um corpo de guarda permanente, num local em que a neve caía com abundância no inverno e a temperatura se mantinha negativa por longos períodos.


Atualmente, se conserva apenas a arcada da porta principal, restos da muralha e uma capela que não é a original.


Depois de permanecer um bom tempo admirando esse entorno, deixei o local pela boca sul que é tão baixa, algo em torno de 1 m 70 cm, que se conta, historicamente, que foi aqui a única vez em sua vida que o imperador Carlos V baixou sua cabeça, pois ele media mais de 2 m de altura, usava chapéu e estava a cavalo.


Do outro lado da montanha, um céu plúmbeo, mais parecendo uma laje de concreto, me recebeu com vento e garoa, que logo cessou.


Caminhei, em sequência, por um trecho da antiga “calzada” e, depois, por trilhas florestais, sempre em forte declive, num percurso silencioso e deserto, pois eu estava sozinho do Caminho e não há construções nesse trecho.

Caminhando pela "calzada romana" logo após transpor o túnel.

Para piorar, havia muita neve no entorno, que estava em franco degelo, assim, precisei de muita atenção nesse descenso, pois corria o iminente risco de levar um tombo espetacular, e mesmo sendo previdente me ocorreram inúmeros escorregões, porém, sem quedas, graças a Deus.


Em determinado local, depois de percorrer 15 quilômetros, cruzei com um alegre e bem-disposto casal que subia a serra com roupas de trekking, as primeiras e únicas pessoas que avistei nesse trecho montanhoso, o que demonstra a ermosidade dos locais por onde transitei nesse dia.


Seguindo adiante, sempre em pronunciado declive, agora por uma rodovia vicinal asfaltada de escasso tráfico, passei por Zalduondo, um pequeno povoado, onde vi apenas um bar aberto, porém sua arquitetura, com vários palácios e uma igreja do século XVI, recordam de sua antiga situação no caminho principal de Castella.


Restavam 6 quilômetros, por rodovia, para aportar ao meu destino do dia, e o cumpri sem pressa e com calma, visto que o clima persistia fresco e nublado, assim, sem maiores dificuldades adentrei em Salvatierra e me dirigi ao Hostal onde havia feito reserva.

À noite, festejando no bar...

À noite, num animado bar, brindei com muito vinho o final dessa difícil etapa, uma das mais interessantes que já conheci em minha vida peregrina, depois, já em meu quarto, anotei minhas impressões sobre a difícil transposição montanhosa que balizou meu itinerário desse dia:


Trata-se da jornada “Rainha-Mãe” desse Caminho, a mais dura e espetacular, da qual não me esquecerei jamais. Na verdade, eu poderia dividi-la em 3 partes: a primeira, um duro e belo ascenso pela serra de Aizkorri, o maciço de maior altitude do País Vasco, com 840 metros de desnível, estando os trechos mais pronunciados em seu início; a segunda, um largo descenso, com 533 metros de desnível, até Zalduondo; a terceira, um monótono trânsito por rodovias secundárias. A beleza dessa jornada se une a uma experiência singular: cruzar o túnel de San Adrián, um passadiço natural entre ambas as vertentes da serra de Aizkorri. No global, enfrentei um trajeto duríssimo, tanto no ascenso quanto no descenso, porque encontrei muita lama no caminho, fruto do derretimento da neve, que estava em pleno curso. Ademais, não avistei nenhuma pessoa no trecho de serra e se algo me ocorresse, eu estaria em maus lençóis, porque um resgate ali, creio ser muito difícil, face à topografia do local.


E são essas inesquecíveis rememorações que nos acompanham vida afora.


Bom Caminho a todos!