2ª etapa: RONCESVALLES à PAMPLONA – 42 quilômetros

2ª etapa: RONCESVALLES à PAMPLONA – 42 quilômetros

Não tinha certeza de como me comportaria nessa jornada, pois, ainda, estava viva em minha memória a dificuldade sentida ao transpor o Alto do Erro, em 2001, antes do aporte à cidade de Zubiri.

Assim, optei por decidir se prolongaria a jornada desse dia, somente após chegar à essa cidade.

Dessa forma, calmamente me levantei às 5 h 30 min, e uma hora depois desci ao saguão do bar para tomar meu desjejum que, simpaticamente, o proprietário me ofereceu gratuitamente.

Placa relativa ao famoso bosque de Sorginaritzaga

Bem disposto, iniciei a jornada às 6 h 45 min, quando o dia principiava a clarear e muitos peregrinos já partiam apressadamente.

Uns cem metros após deixar a local de pernoite,  deparei-me com a “Cruz dos Peregrinos”, plantada à esquerda da estrada.

Monumento gótico do século XIV, chamado de “Cruz Velha”, foi transladada para esse local em 1880, embutida de um capitel renascentista, representando os reis navarros Sancho, o Forte, e sua esposa Clemência.

Ali, em respeitoso silêncio, prestei minhas homenagens a todos os meus irmãos caminhantes.

Placa que está fincada defronte à Colegiata de Roncesvalles e serve de ânimo (ou não) a muitos peregrinos.

Na sequência, após transpor a mística placa que indica restarem “apenas” 790 quilômetros até Santiago de Compostela, me embrenhei em um cerrado bosque de coníferas e robles, onde pássaros cantavam maviosamente, anunciando o amanhecer.

Eu estava percorrendo o famoso bosque de Sorginaritzaga, cujo significado é “robledal das bruxas”, que foi um dos lugares onde se realizaram algumas das mais conhecidas reuniões de bruxas do século XVI, as quais motivaram uma sonora repressão e levaram à fogueira 9 pessoas daquela zona.

Adentrando à cidade de Burguete

Nesse trecho também está fincada a Cruz Branca, símbolo de proteção divina nesse caminho, que até 1880 era a principal via de ligação entre Roncesvalles e Burguete.

Por sinal, três quilômetros percorridos em bom ritmo, passei pela cidadezinha de Burguete, uma graciosa vila, cujas pequenas casas ostentam brasões nas portas e o ano em que foram construídas.

 

Igreja matriz de Burguete

Burguete (Auritz em basco) situa-se no "território mais perversamente selvagem dos Pirineus", de acordo com Ernest Hemingway.

É o primeiro “povoado” para aquele peregrino que vem de Roncesvalles depois de caminhar uns 2.500 metros rumo ao alto do Erro.

O escritor americano passava suas férias nessa localidade, para descansar, depois das festividades de San Fermin, em Pamplona.

A origem do Auritz/Burguete remonta ao século XII, quando começou como "aldeia" do hospital em Roncesvalles.

Caso o peregrino resolva pernoitar ou fica nesta cidade, deve aproveitar as trutas típicas com presunto, ou qualquer das delícias oferecidas pela cozinha de Navarra.

Auritz/Burguete preserva velhas tradições, como as fogueiras de São João, presentes em toda Navarra, e que tem nesta cidade uma grande raiz, assim como a feira de alimentos, realizadas no mês de setembro, desde o século XIV.

 

O caminho logo depois de Burguete

O caminho logo girou à direita, onde acessei outra larga estrada de terra, situada entre bosques e verdes gramados, e logo alcancei um casal de australianos que caminhava sem mochila, pois as despachava todos os dias, via táxi.

Andamos um pequeno trecho conversando, depois segui adiante solitário.

Igreja matriz de Viscarett.

Mais alguns quilômetros vencidos, passei por Espinal e, na sequência, por Viscarett, onde o caminho voltou a ser campestre e extremamente interessante.

Paisagem logo depois de Viscarett

Iniciou-se, então, uma penosa, mas curta aclividade.

Ascendendo em direção ao Alto de Mezkiritz, ponto de maior altimetria dessa etapa.

E logo cheguei ao Alto do Mezkiritz, o ponto de maior altimetria dessa etapa, com a sensação de que havia valido a pena ascender cada metro vencido, pois fui presentado com uma vista estupenda de prados entre densos carvalhais e faiais.

Homenagem à Virgem de Roncesvalles.

E depois passei a descender, sempre entre bosques silenciosos e arejados.

Bosques arejados e silenciosos.

Nesse trecho específico, onde existem alguns desníveis complicados, foram construídas passarelas em cimento, para conforto e inibir possíveis acidentes aos peregrinos.

Passarelas cimentadas, visando dar segurança ao peregrino.

Caminho com muita brita, para evitar atoleiros em dias de chuva.

Mais adiante eu transitei por Linzoain e, na sequência, iniciou-se íngreme ascenso, o início do famigerado “Alto do Erro”.

Início do aclive em direção ao Alto do Erro.

Num determinado trecho eu alcancei o casal de portugueses com quem havia conversado no dia anterior, e seguimos um tempo trocando informações.

Eles haviam pernoitado em Espinal, pediram dicas da jornada seguinte, e manifestaram intenção de seguir até Pamplona naquele dia.

Bosques frescos e silenciosos.

Num local arborizado eles fizeram uma pausa para fumar um cigarro e eu, após despedidas efusivas ao simpático casal, segui adiante, e nunca mais os encontrei, no entanto, torço que tenham tido êxito em sua peregrinação.

Em determinado local eu encontrei uma pequena lápide homenageando um peregrino, onde pude ler:

Homenagem ao peregrino Shingo Yamaschita.

"Em memória de Shingo Yamashita. Peregrino japonês falecido em Agosto de 2002 aos 64 anos. Teus amigos do Caminho: Nekane e Jose Mari".

Para mim, este foi o momento mais comovente do dia, porque os memoriais geram um turbilhão de pensamentos, medos, incertezas, e fica impossível não nos questionarmos sobre o que se passou e o porquê.

O caminho no cimo do Alto do Erro.

E assim tem sido ao longo de tantos séculos, pois aqui já transitaram milhares de peregrinos, todos com suas dúvidas, sonhos, angústias, esperanças e fé.

Respeitosamente, fiz uma pausa no local para fazer breve oração em memória da alma desse peregrino, falecido prematuramente, depois prossegui meu roteiro.

Esse trecho se mostrou exuberante, sempre em meio a extenso e verde bosque, por onde segui tranquilo, feliz, aspirando a pleno pulmões, o ar fresco da floresta.

Dois peregrinos alemães seguem à minha frente.

Mais adiante, passei a caminhar a uma determinada distância de dois peregrinos alemães, que seguiam em bom ritmo.

Vistas preciosas de ambos os lados do Caminho.

Calmamente, ajustei minhas passadas às deles, e seguimos pelo alto do morro, com vistas preciosas de ambos os lados, até que principiamos a descender violentamente e, logo abaixo, cheguei diante do local por onde se adentra à cidade de Zubiri.

"Puente de la Rábia", na entrada de Zubiri.

Para tanto, bastava ultrapassar a famosa “Puente de la Rábia”, por onde rapidamente os alemães seguiram em frente.

 

Zubiri significa "povo da ponte".

Zubiri é a primeira localidade após o peregrino atravessar as subidas e descidas do Alto do Erro. Encontra-se a 20 quilômetros de Pamplona, e dentro do seu município fica a indústria de Magnesita da Navarra, a qual o peregrino precisa contornar.

Contava em 2008 com 423 habitantes.

O nome do povoado está associado a Ponte de la Rabia (ponte da raiva) sobre o rio Arga, uma vez que em basco, Zubiri significa “povo da ponte”.

Sua construção segue o estilo românico, do século XII, e segundo a lenda, ao passar por debaixo de seus arcos, os animais infectados por doenças, ficavam milagrosamente curados. 

Há também uma fonte, de nome “batueco”, que segundo dizem, tem propriedades curativas. 

Durante a idade média, ela teve em suas terras um monastério beneditino, que dependeu de Leyre, por uma doação efetuada em 1040, pelo rei Garcia de Nájera. 

Na pequena vila o peregrino encontra boa acomodação nos albergues existentes, e algumas facilidades para se alimentar.

 

Ainda me restam 22,8 quilômetros até Pamplona.

Eu parei diante da ponte, fiz uma pausa em minha caminhada e, conscientemente, avaliei minhas condições físicas, vez que até aquele local eu já havia vencido 21 quilômetros.

Na realidade, ainda era bastante cedo, eu estava muito bem disposto e o sol ainda não crestava com violência, de maneira que resolvi seguir por mais 6 quilômetros, até o povoado de Larrasoana, para uma nova avaliação.

Dessa forma, ao invés de adentrar na cidade, segui à esquerda, por onde discorre o caminho.

Uma peregrina segue apressada à minha frente.

Uma peregrina iniciava naquele instante seu percurso e eu segui seus passos, evitando assim estar atento à sinalização, pois ela faria isso por nós dois, embora caminhasse bastante apressada.

Na sequência, adentrei por um caminho adaptado, isto em relação ao que vivenciei no ano 2004, para voltear uma enorme fábrica de cimento, que teve sua capacidade de trabalho mais que triplicada e, por conta disso, estendeu seus limites em vários quilômetros.

Caminho próximo de Larrasoana, silencioso e arborizado.

Vencido esse desagradável atropelo, finalmente o roteiro voltou ao seu leito antigo, junto ao rio Arga, e então se tornou novamente agradável, pois embora o sol brilhasse forte, havia sombras proporcionadas pelos bosques que ladeavam o curso d’água.

Ainda caminhando em bom ritmo, uma hora depois cheguei diante da cidade de Larrasoana e para acessá-la, bastaria ultrapassar a mítica “Puente de los Bandidos.”

 

Entrada para Larrasoana, defronte à ponte dos bandidos.

Larrasoana é um típico povoado jacobeu, que chegou a contar com três hospitais de peregrinos e devido a sua importância, à época, teve assento na corte real.

A disposição dos casarios é uma característica das aldeias por onde atravessa o Caminho de Santiago, vez que possui várias casas blasonadas, que confirmam sua origem medieval.

Tem como monumento marcante uma ponte gótica – ponte dos bandidos –, ainda sobre o rio Arga, local em que salteadores, no passado, aproveitavam para rapinar peregrinos incautos e desprotegidos.

O albergue fica dentro do próprio “ayuntamento” (prefeitura) e é um dos menores e mal aparelhados do Caminho.

Tinha um simpático hospitaleiro no passado – Sr. Santiago Zubiri, que foi também o alcaide do povoado, e que atendia muito bem os brasileiros.

Tem ainda na localidade o Café e Bar Larrasoaña, de propriedade de Alfonso Sangalo, um típico navarrês (basco), figura controversa e lendária do Caminho, onde pode-se fazer uma boa refeição.

 

O caminho à beira do rio Arga.

Fiz outra pausa para hidratação e ingestão de uma barra de cereal, enquanto reavaliava meu atual estado físico e mental.

Constatei que não me encontrava cansado e persistia animado em vencer o restante da jornada, de forma que sem mais delongas, afivelei a mochila e prossegui meu périplo.

O roteiro prosseguiu silencioso, interessante, sombreado, sempre à margem do rumoroso rio Arga, até que em determinado local, eu o atravessei pela ponte de Iturgáiz, localizada um pouco antes da cidade de Zibaldica.

Ponte de Iturgáiz, sobre o rio Arga.

Esta sim, uma maravilha arquitetônica construída de acordo com o padrão que se desenvolveu na Europa Ocidental durante os séculos XI e XII, adaptação das formas romanas e bizantinas e que se convencionou chamar de Estilo Românico. 

 

 'Andadero" em meio a muito verde.

E, já do outro lado, passei a caminhar próximo de uma rodovia, mas por um bem demarcado “andadeiro” em terra.

E logo passei diante de uma cruz, local em que faleceu, em 2006, a peregrina italiana Rosane di Verona, o que me fez questionar se as pessoas estão realmente preparadas para enfrentar o imenso desafio imposto pelo Caminho.

Cruz em homenagem à peregrina italiana, falecida em 2006.

Na verdade, uma avaliação física criteriosa e extensa feita antes da viagem, é benéfica e necessária, para se evitar que surpresas desse tipo aconteçam.

Aclive difícil e cansativo, situado quase no final da jornada.

Em determinado trecho, eu atravessei a rodovia, e precisei “escalar” um grande rochedo, ainda que por uma escada de pedras.

Depois, prossegui caminhando por um imenso bosque de faias e pinheiros.

Infelizmente, em face do horário adiantado, o calor se fazia bastante forte, pois embora estivéssemos no início da primavera, a Espanha toda vivia um extemporâneo “veranico”, bom para seus habitantes, mas péssimo para os caminhantes que, como eu, preferem o frio para vencer seus desafios.

Finalmente, bastante exausto, após transpor o vale de Esteribar e atravessar a ponte medieval de seis arcos sobre o rio Ulzama, adentrei em Trinidad de Arre e Villava, onde há um albergue administrado pelos padres maristas e uma ermita românica do século XI.

"..bastante exausto, após transpor o vale de Esteribar e atravessar a ponte medieval de seis arcos sobre o rio Ulzama.."

Ela é praticamente quase uma extensão de Pamplona, primeira grande cidade do Caminho.

Quem já ficou neste albergue garante que é um dos melhores do Caminho, porém, não dispõe bares ou restaurantes próximos do local.

A partir dali, o caminho tornou-se integralmente urbano e ainda precisei vencer mais 5 quilômetros por ruas e avenidas movimentadas, para finalmente aportar ao centro de Pamplona, onde me hospedei numa pensão.

 

"...atravessar a ponte medieval de seis arcos sobre o rio Ulzama, adentrei em Trinidad de Arre e Villava.."

A chegada em Pamplona se dá pelo “passeo de Magdalena” e sobre a ponte do mesmo nome, sobre o rio Arga, velho conhecido dos peregrinos.

Puente de Magdalena, em Pamplona, século XII.

A Porta de Francia fica na entrada da cidade antiga.

Trata-se de uma ponte elevadiça, construída em 1553, sendo passagem obrigatória de todos os peregrinos.

Neste local já havia um antiquíssimo povoado quando os romanos aí construíram uma aldeia fortificada, no ano 75 de nossa era.

A cidade foi fundada durante uma campanha militar, por Pompeu, o rival de Júlio César, e denominada Pompeiopolis ou Pompaelo.

Foi quase abandonada após as invasões mouras, e foi invadida pelas tropas de Carlos Magno em 778.

Puente de Magdalena, em Pamplona, século XII.

No início da Idade Média, a povoação havia se dividido em três burgos, cercados por muralhas independentes: Navarreria, onde residia a população local, San Cernín e San Nicolás, ambos habitados por francos e outros imigrantes.

Em 1423, o rei Carlos III, o Nobre, rei de Navarra, demoliu seus muros e unificou os três no interior de uma só grande muralha.

Em 1512, Pamplona foi invadida e incorporada ao reino de Castela, pelo rei Fernando II, o Católico.

Numa das avenidas de Pamplona.

A cidade foi cristianizada por San Cernín ou São Saturnino de Tolosa.

Sua catedral, românica, do século XII, foi reconstruída no século XV no estilo gótico e domina o centro histórico da cidade.

Pamplona foi transformada em capital do reino de Navarra no início do século XI, pelo rei Sancho III, e é hoje a capital da província de Navarra, na região basca da Espanha, sendo que sua denominação no idioma basco é Iruña.

Embora a cidade tenha sofrido grande influência do Caminho de Santiago, sua festividade mais importante e famosa nada tem a ver com o apóstolo.

Monumento aos bravos que enfrentam os touros na festa de San Fermín.

É a festa de San Fermín (o primeiro bispo de Pamplona), em que touros bravos (da raça Miúra ou Santa Matilde) são soltos nas ruas, e a população corre na frente dos animais tentando com grande habilidade escapar de seus perigosos chifres.

As comemorações duram uma semana, de 6 a 14 de Julho, e é uma concorrida atração turística.

A cidade tem uma fortificação (cidadela em forma de estrela) bem próxima da saída da cidade.

No prédio central, em vermelho, localizado na Praça del Castillo, está o Café Iruña, onde o escritor Ernest Hemingway tomava seu café, diariamente.

Era a cidade favorita do escritor Ernest Hemingway, que se hospedava no Hotel La Perla (na esquina da Praça del Castillo), e bebia seu café sob as marquise do Café Iruña, na mesma praça, onde também apreciava um dos pratos típicos do país basco (gaspacho).

O albergue LOCAL dispõe de ampla estrutura para o peregrino, fica na saída da cidade, onde está alocada a Universidade da Navarra, uma das mais respeitadas da Espanha e, para quem não sabe, é administrada pela Opus Dei.

Destaca-se a catedral de Pamplona (Santa Maria la Real), a Plaza del Castillo, e a Cidadela - uma magnífica fortificação medieval - que poderá ser vista ou atravessada, pois é passagem para o peregrino que vai rumo à Cizur menor.

 

Pamplona tem inúmeras praças e jardins, todos muito bem cuidados.

Ao retirar as botas no quarto, constatei preocupado, que duas enormes bolhas haviam se formado no solado de ambos os pés e, com certeza, iriam me atrapalhar bastante nas etapas sequentes.

No entanto, após um refrescante banho e uma vigorosa massagem nas pernas, me senti novo e, em face do horário adiantado, quase 17 horas, saí para ingerir um lanche num bar próximo.

Posteriormente, me dirigi à Catedral de Pamplona para uma visita e, na volta, aproveitei para conferir o local por onde eu deixaria a cidade na manhã seguinte.

Catedral de Santa Maria la Real, do século XII.

Depois, fiz algumas fotos na Praça del Castilho, a principal dessa urbe e, na sequência, me dirigi a um supermercado onde me provi de víveres para o lanche da noite e a jornada seguinte.

Mais tarde, já no quarto, tratei das “ampolas”, enfaixei os pés e pedi proteção à Santiago, para que a etapa seguinte fosse menos traumática, pois me sentia extremamente fatigado, em face do calor reinante e da longa distância vencida.

E, por sorte, a metereologia indicava que o tempo iria “cambiar” nos próximos dias, quando se previa uma queda brusca na temperatura, exatamente o que eu ansiava.

Paisagem fotografada próximo de Zabaldika: muito trigo e canola.

03ª etapa: PAMPLONA à PUENTE LA REINA: 25 quilômetros