Diário de Lourdes - 2004

De LOURDES (França)  a  SANTIAGO de COMPOSTELA (Espanha) - Ano 2.004 

CENAS INESQUECÍVEIS DE UMA PEREGRINAÇÃO

Viajar como turista pressupõe conhecer lugares novos, aculturar-se, visitar museus, monumentos, cidades deslumbrantes, hospedar-se em esplêndidos hotéis, alimentar-se em excelentes restaurantes, percorrendo grandes distâncias a bordo de confortáveis ônibus, sempre acompanhado de guias eficientes e prestativos.

Caminhar como peregrino em direção a Compostela é estar disposto a cooptar novos hábitos, enfrentar mais de trinta dias sob o sol, a chuva e o vento, sem a comodidade dos transportes, o conforto na hospedagem, nem a regularidade de lautas refeições. Tendo, ainda, sempre em mente que o sono, a fome, a sede e a dor são componentes indissociáveis da indumentária peregrina.

Então, para vivenciar condignamente essa aventura, é imprescindível ter paciência, respeitar o irmão, cultivar a humildade, manter o bom humor e, principalmente, estar sempre centrado no exercício da fé e no revigoramento da alma, numa intensa união espiritual com o Criador

Eu, como todo peregrino reincidente, senti uma urgência irresistível de voltar ao Caminho. Por isso, depois de muito estudo e preparação e, para coroar um sonho antigo, encetei minha peregrinação em Lourdes (França), de onde parti em direção a Santiago, numa jornada ímpar, rica de momentos marcantes e inesquecíveis.

Durante os 32 dias em que caminhei, nos quais venci aproximadamente 1.000 quilômetros, vi lindas paisagens, transitei por locais maravilhosos, visitei igrejas e monumentos colossais, conheci cidades fantásticas, observei o povo local e fiz novas amizades.

Entretanto, passei, também, por maus bocados e momentos difíceis, alguns deles dramáticos e outros cômicos, porém, todos de aprendizado.

Pequenas lições de vida e situações que, conscienciosamente, registrei em meu diário de viagem, algumas das quais, passo a declinar: 

1ª Jornada - PERDIDO – Partindo de Lourdes rumo a Santiago, havia programado para o primeiro dia de minha peregrinação um percurso bastante tranquilo, como forma de ir me adaptando, passo a passo, física e mentalmente, para a dura rotina que enfrentaria nos próximos 35 dias. Assim, para a jornada inaugural, programei caminhar apenas 19 quilômetros. Para tanto, deveria seguir na direção sul pela autoestrada D-152, utilizando o acostamento da rodovia, no sentido contrário ao fluxo de veículos.

Entretanto, por distração e, também, por confiar demais em informações alheias, acabei tomando rumo errado. Se tivesse olhado com mais cuidado para o mapa que portava, veria que estava caminhando de encontro a problemas. Quando percebi o engano em Pontacq, já havia percorrido 12 quilômetros pela D-940 e, o que é pior, no sentido norte, em direção a Paú, a capital da Província onde me encontrava.

Estrategicamente falando, talvez fosse melhor retornar a Lourdes, a pé ou de carona, e reiniciar a aventura. Todavia, por sorte, e com a ajuda de um solícito morador local, resolvi empreender uma rota alternativa cortando caminho na direção nordeste por estradas vicinais, tendo como meta a cidade de Montaut, que se situa a 2 quilômetros de Lestelle-Betharram, local que havia programado para o meu primeiro pernoite.

A estradinha asfaltada que trilhei atravessava locais ermos e desertos, entre sítios, pequenas vilas fantasmas e extensos bosques de eucaliptos e coníferas. Durante todo trajeto, encontrei apenas um ciclista solitário e um carro de coleta dos Correios Franceses.

Depois de 3 horas de intenso esforço estimei estar próximo de atingir meu alvo, porém, eis que após vencer dura ladeira, desemboquei, perpendicularmente, em outra estrada. Desesperado, procurei alguma placa que indicasse o meu destino, todavia, sem sucesso.

E agora? Perguntava-me apavorado, para que lado seguir? Os pensamentos turbilhonavam em minha cabeça como água descendo pelo ralo de uma banheira. E ali fiquei, por longos minutos, a matutar como sair do “imbróglio” em que havia me metido. Salvou-me da indecisão um idoso lavrador que caminhava lentamente com seu cão por aquela estrada.

Ao se aproximar, constatei que não era tão velho assim, talvez tivesse entre 50 e 60 anos, porém, tinha o rosto crestado de quem passara toda a vida exposto ao sol. A pele de aspecto coriáceo tornava sua aparência décadas mais idosa. Era alto e magro, de bigode e sobrancelhas espessas, e suas mãos combinavam com o conjunto: garras ossudas e secas. Havia, também, no jeito dele, qualquer coisa de melancólico que identifiquei em seu semblante.

Após cumprimentá-lo em meu parco francês, afoitamente, perguntei-lhe o caminho para Montaut. Ele segurou o queixo e entrou em profunda meditação. De vez em quando sacudia a cabeça:

- Montaut, pois não?

E cerrava as sobrancelhas com força, quase fazendo desaparecer os olhos. Sua concentração era tão intensa que cheguei a temer que tivesse uma comoção cerebral.

Viera caminhando até ali temeroso, num misto de ansiedade e preocupação pelo erro cometido, mas naquele local, vendo o hercúleo esforço mental do pobre homem à minha frente, comecei a ficar desarvorado, de tal sorte que baixou sobre minha cabeça um tijolo de estupidez, um tremendo vácuo mental, vez que a aflição do camponês era contagiante.

Será que eu havia tomado rumo errado em alguma parte do trajeto, e agora estava novamente perdido, perguntava-me, concentrado em minhas intelecções. Eu estava exausto e minha perna esquerda formigava numa dormência insuportável. Enquanto aguardava o desfecho do raciocínio do pobre homem, rezei com fé. E deixei a dor que sentia, alimentar minhas súplicas.

Por obra divina as circunstâncias me foram benfazejas, vez que ao final de longa meditação, ele suspirou fundo, descontraiu o rosto como se finalmente chegasse a uma conclusão:

- Siga pela esquerda (gauche), reto, e sempre em frente – disse apenas.

Já ia partindo apressadamente naquela direção quando ele recomendou, enfático:

- Em havendo curvas, faça-as, complementou, gesticulando as sinuosidades com a mão.

3ª Jornada – CANSAÇO – Em Lurbe St Crhistau encontrei, finalmente, a primeira flecha do Caminho, vez que naquela cidade passa a Rota de Arles. Chegara até aquela localidade caminhando sempre pelo asfalto, num ramerrão tépido, insosso e desenxabido, mas finalmente ali, meus passos foram direcionados para a terra. O que muito me alegrou. 

Trilhei, então, em meio a colinas ondulantes, adornadas por flores silvestres, pequenos bosques de pinheiros, lagos serenos e árvores florindo em cores incontáveis, vacas pastando em campos verdejantes, enormes pessegueiros carregados de frutos. E, apesar de tanta beleza ao meu redor, oprimia-me uma sensação de fatalidade diante de um perigo iminente, que me acompanhava desde a saída de Lourdes. A sensação era de que, pairava no ar aquela paz inquietante dos períodos de calmaria os quais ocorrem entre duas catástrofes.

Entretanto, a partir da cidade de Escot, devido à torrencial chuva da véspera, as trilhas se tornaram ásperas, penosas, impraticáveis até para alguém bem preparado fisicamente. Quase sempre à beira do caudaloso rio Aspe, em meio a bosques fechados, conduziram-me a subidas íngremes e ladeiras extremamente escorregadias e, em vários trechos, ladeando a borda de grandes precipícios. Em alguns locais, senti aquele arrepio moderado de pânico que vem da consciência de que eu poderia levar um tombo no abismo ou cair no curso d’água, e desaparecer sem deixar o menor vestígio.

Diante disso, optei por retornar ao asfalto, e assim segui novamente à beira da rodovia. Um pesadelo, pois não existia acostamento, e o movimento ali era intenso, pesadíssimo, onde trafegavam enormes caminhões e carretas de um lado e outro. Os veículos passavam em grande velocidade, e os ocupantes de alguns deles buzinavam como forma de incentivo, a maioria, todavia, me observava com uma bovina indiferença.

Felizmente, às 15 h avistei Sarrance, minha meta para aquele dia, e ainda assim, sentia uma repentina e inesperada apreensão. Que se intensificou ao encontrar o único hotel da cidade fechado e em obras. Decididamente, ponderei, a ordem das coisas já não fluía como no início da jornada, em que encontrei alojamentos em profusão.

Decepcionado, sentei na pracinha local e comi um sanduíche frio sem reconhecer o sabor. Todos os meus sentidos estavam parcialmente embotados, os pensamentos lentos e confusos pelo cansaço e frio que sentia. Já era primavera, no entanto, o céu permanecia de um cinza sombrio, e a temperatura quase ao ponto de congelamento, não me ajudava a coordenar as ideias.

Depois, sem alternativa para pernoite, prossegui até Bedous, uma aventura inesperada que, todavia, notabilizou-se posteriormente, por recordá-la como uma depauperante caminhada em meio a locais de esplendorosa beleza.

 

4ª Jornada - FEBRE - Distante 8 quilômetros da fronteira com a França, Canfranc-Estación é um “ayuntamento” com cerca de 500 habitantes, pertencente à Comarca de Jacetânia, Província de Aragon, e se situa numa altitude de 1.200 metros no Pirineo Aragonês. Foi a primeira cidade em terras espanholas que encontrei, depois de ultrapassar Somport e Candanchu, ambas estações de esqui, situadas a 1.630 metros de altitude, que criam vida intensa apenas nos finais de semana e datas festivas, mormente quando ocorrem nevascas.

Após uma duríssima jornada, ali cheguei no dia 09/04/2004, Sexta Feira da Paixão, por volta das 17 h, extenuado pelo longo percurso vencido e, imediatamente, me dirigi ao moderno albergue local. Como antevia, o mesmo se encontrava lotado, resultado do afluxo de turistas que estavam aproveitando o feriado prolongado, para trilhar algumas etapas do Caminho com um mínimo de gasto. 

O solícito hospitaleiro local, depois de se desculpar por não poder me abrigar, indicou uma Pensão próxima dali que cobrava preços especiais para aqueles que, como eu, demandavam à Compostela. Bem hospedado, após um banho reconfortante, e cumpridas as obrigações de praxe, por volta das 20 h, saí para jantar.

Num movimentado bar/restaurante me acomodei para tomar um aperitivo, enquanto aguardava o “Comedor” abrir. Sentia-me cansado, faminto e exaurido, fruto da estafante etapa que acabara de encerrar. Dúvidas assaltavam meu cérebro deixando meu semblante carregado, ou talvez a tristeza e preocupação estampada em meu rosto tenham impressionado um senhor de uns 40 anos, distinto e bem-vestido, que adentrou o ambiente, pois, certamente reconhecendo-me peregrino, pediu licença e se sentou à mesa.

Apresentou-se como o Sr. Raul, psicólogo de profissão, que estava passando os feriados da Páscoa naquela localidade. Relatou-me, em poucas palavras, que já fora caminhando até Santiago por três vezes em sua juventude, portanto, conhecia as agruras de um estrangeiro em terras alheias e, por instantes, ficamos os dois a cotejar nossas vivências peregrinas, e isso alavancou nossa relação. Depois, deixou-me à vontade para comentar o que me corroía por dentro.

Estimulado, sentindo receptividade e confiança no meu interlocutor, coração aberto e língua destravada por dois copos de vinho, iniciei a desaguar minhas mágoas no fluxo amargo das confidências, num processo retrospectivo de recordações. Contei-lhe, então, do meu infortúnio naqueles primeiros dias de jornada.

Para começar, havia me perdido logo na saída de Lourdes, tendo me desgastado bem mais do que o previsto para o primeiro dia de minha peregrinação. Na jornada seguinte chovera torrencialmente o tempo todo, encharcando meus pertences e solapando meu ânimo. Na terceira etapa fora surpreendido pela reforma do único hotel da cidade de Sarrance, local que previra pernoitar, um imprevisto que me obrigara a caminhar por mais 9 quilômetros até a cidade de Bedous, sob a tensão e o fragor de uma nevasca iminente.

Naquele dia amassara barro e neve, quase em toda a extensão dos 40 quilômetros que trilhara. Conforme lhe confessei, as coisas não estavam acontecendo da forma que eu previra, de tal sorte que, desde a partida, estava me sentindo inseguro e temeroso quanto ao sucesso de minha empreitada. A viagem, inesperadamente, afigurava-se carregada de maus presságios. Parecia-me, que as forças celestiais conspiravam em desfavor de tudo o que sonhara em relação àquela aventura.

Para encerrar, disse-lhe que, de repente, estava achando tudo sem graça e sem sentido, vez que, após tantos meses de preparação, descobria afinal, que mentalmente não estava preparado para enfrentar tal desafio. De tudo que havia lido ou ouvido dizer sobre o sul da França, não me ocorrera nada que me parecesse interessante ao verificar com meus próprios olhos. Enfim, eu era um homem combalido física e espiritualmente.

Estava até decidido a procurar no dia seguinte um Cura (padre) para me aconselhar, para tentar sair da depressão em que me havia afundado, decisão temerária que, segundo os entendidos, só se devia tomar em desespero de causa.

O meu interlocutor, olhando-me fixamente, vaticinou: - Você foi contaminado pela “Febre de Andarilho”. Ante meu espanto, emendou: - É uma síndrome que costuma apanhar peregrinos incautos, feita de expectativa, ansiedade, decepção. Culminando, numa confusão de sentimentos de quem se vê de repente vivendo uma experiência cuja excitação não tem condições de assimilar.

Na verdade, sob a ótica analítica, explicou-me, tratava-se de um fenômeno típico de adaptação do ser humano frente ao incerto e ao desconhecido, fomentado pelo medo de não conseguir cumprir aquilo que fora adredemente planejado.

Sua infelicidade e agitação interna, completou, pode ser traduzida pela palavra inglesa “restlessness”: o estado em que estamos permanentemente sem descanso, com pensamentos obtusos a nos assaltar o espírito.

Segundo ele, os que estavam mais propensos a contraírem tal vírus no Caminho eram os malemolentes que utilizavam de tal expediente para desistir ante a primeira dificuldade. Um subterfúgio, também, utilizado pelos sonhadores, não afeitos à dura liça diária do peregrino, a imaginar que Santiago os carregaria nos braços durante a jornada.

Para dissipar minhas dúvidas quanto ao mal que me afligia, e para descontrair, disse-me que seu pai havia sido comerciante em Pamplona por longos anos ao lado do albergue municipal. De tal sorte, que ele possuía um extenso corolário de histórias sobre o problema em debate, algumas das quais, para me animar, expôs sob sua ótica hilária. 

E, qual a cura para minha doença, indaguei-lhe, com uma curiosidade sobejante.

- Uma radical mudança de atitude, é de basilar importância, respondeu-me prontamente. Passe uma borracha em tudo o que lhe aconteceu até aqui. A partir de amanhã pratique uma nova postura, consentânea ao teu objetivo. Sobretudo, esqueça as preocupações, evite reflexões negativas e, especialmente, tenha fé que tudo dará certo, pois ela é a luz que vai iluminar o caminho a trilhar e a resposta para todas as suas objeções, a força para as provações e o bálsamo que suavizará suas dores.

Complementando, enfatizou: - Caminhe, de agora em diante, sempre olhando para cima e para os lados, jamais para o chão. Com isso seu pensamento estará colado ao corpo e, assim, interagindo com as coisas que o rodeiam, como as árvores, os pássaros, o céu, a relva. Seguindo esse simples preceito, você não terá tempo para forjar raciocínios contraproducentes ou mesmo, desanimar perante alguma desdita que possa obstaculizar seus ideais.

Eram palavras sensatas e eu tinha intenção de segui-las. Assim, agradeci-lhe pelos sábios conselhos e, em seguida, fomos jantar.

No dia seguinte caminhei por 40 quilômetros, atento em cumprir as instruções recebidas, e à tarde, ao chegar em Santa Maria de la Serós, constatei surpreso que minha dilaceração interior desaparecera totalmente, exorcizada pelo fervor que impusera nos propósitos de reverter meu desalento.

Como um milagre, a “febre” se fora definitivamente, sentia-me completamente curado! E jamais tive recaída!

7ª Jornada – INSENSATEZ ETÍLICA – Adentrei em Ruesta debaixo de uma garoa fina. No firmamento, nuvens escuras encobriam o céu e corriam levadas por um vento impetuoso que descia dos Pirineus e sua força era tanta que na entrada da vila, do lado esquerdo, um velho pinheiro torcia e rangia como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento açoitava um pomar de macieiras próximo e o barulho parecia-me como ondas que se quebravam.

Era muito cedo ainda, todavia, para fugir do frio, acabei me refugiando por alguns instantes num bar local, pensando em tomar um café para me aquecer. O desconforto térmico que sentia era tão intenso que, inopinadamente, resolvi subverter minha arraigada e ferrenha convicção peregrina, qual seja, não ingerir bebida alcoólica na trilha, enquanto não chegasse ao meu destino final. 

Então, ousadamente, pedi uma dose de Brandy Fundador, o endeusado conhaque espanhol. O dono do bar me olhou espantado, não sei se por não ser bebida para estrangeiro ou porque era de manhã – mas me serviu generosa dose, e ficou a observar-me, meio de lado, com o canto dos olhos.

Para desafiá-lo, virei o cálice de uma só vez, e quase expeli a alma pela boca. Tive de me segurar ao sair trocando as pernas, e fingindo não ver o sorriso irônico estampado no rosto do sarcástico “barman”. 

7ª Jornada – ESPANHÓIS – Sanguesa, uma cidade com 5.000 habitantes, que se situa próxima à margem esquerda do rio Aragón, me surpreendeu por sua significativa beleza e franco progresso. Ali cheguei por volta das 16 h, e à tardezinha fui visitar a Igreja de Santa Maria la Real (século XII), Monumento Nacional Espanhol desde 1.889, que tem uma das fachadas esculpidas mais encantadoras do país.

No retorno, ao procurar um Supermercado no “casco viejo” da urbe, me perdi entre a similaridade de suas ruas tortas. Solicitei, então, informação a um velhinho que cuidava de um jardim, de como retornar ao albergue.

- Não posso dar informação não – se escusou o ancião numa vozinha delicada. - Estou muito velho, faz tempo que não saio de casa, não sou confiável, por isso, não vou lhe ensinar nada.

Embora decepcionado com a evasiva resposta, fiquei, também, agradavelmente surpreso pela honestidade e franqueza do meu interlocutor.

Mais tarde, indaguei a outro senhor elegantemente vestido, que usava, também, chapéu e guarda-chuva, onde se localizava o Posto Telefônico local, pois tencionava navegar na Internet.

Ele pensou um pouco, coçou a cabeça, depois me disse, educadamente:

- Para ser franco, receio que meu conhecimento de endereços aqui não seja dos mais exatos, vez que venho pouco a esta parte da cidade, de modo que não posso me responsabilizar por algum inconveniente que acaso decorra de minha informação.

Felizmente, o local para onde ele me remeteu, estava corretíssimo. 

8ª Jornada – O MELRO – Após deixar Foz do Lumbier, as flechas amarelas me conduziram por uma estrada larga e reta que corta campos ceifados, num bonito planalto. Nesse local caminhei lento, contemplativo, sossegado, por subidas longas e suaves; ao meu lado, muito verde rasteiro, como se fosse um tapete formado pelas flores do campo. Tudo isso encheu meus olhos de paz e minha alma teceu louvores ao Criador pelo carinho que teve, em aliviar o cansaço dos meus pés com visão tão bela.

Uma hora depois cheguei à cidade de Nardués e, logo à frente, após ultrapassar a pequena vila de Aldunate, ouvi pela primeira vez o canto do Melro no Caminho. Era um final de manhã de abril, primavera europeia, e um vento suave soprava do norte, resfriando o ar.

Atravessava eu um extenso bosque de pinheiros em direção ao Alto de Loiti, quando sua voz ecoou maviosa e altaneira pela mata fechada. De imediato, como que em respeito à aquele som, todos na floresta se aquietaram, certamente, em homenagem ao seu melodioso e refinado gorjeio, que se propagava docemente pelo espaço.

Instantaneamente, sustei meus passos e permaneci silencioso, ouvidos atentos, extasiado. Aqueles trinados perfeitos reconduziram-me à infância já distante e, repentinamente, me senti novamente um menino, e essa lembrança inundou meu espírito de alegria e paz.

O pássaro entoava com entusiasmo seu sobranceiro e tardio hino matinal, provavelmente à procura de uma companheira com o fito de se acasalarem, perpetuar a espécie. Por inesquecíveis minutos, permaneci estático, escutando a melodia, fascinado, sem sentir o tempo passar, envolvido por uma atmosfera irreal, feita de sonho e eternidade.

De repente, uma brisa passou por mim, farfalhante, trazendo em seu bojo o perfume de flores recém-desabrochadas, fazendo-me retornar à realidade.

Então, segui em frente, mas o coração ia leve, agradecendo a Deus pelo momento único vivido naquelas distantes paragens. 

8ª Jornada - DOENTE – Desde alguns dias vinha sentindo um certo desconforto estomacal conjugado com uma forte dor do lado esquerdo do peito, que aguçava, notadamente, após as refeições. Aportei em Monreal, final da minha 8ª etapa no Caminho, por volta das 15 h 30 min e não encontrei vivalma no albergue. Um aviso na parede escrito pela hospitaleira, dava conta de que ela retornaria em aproximadamente 40 minutos. Extremamente faminto, deixei ali meus pertences e me dirigi ao único restaurante da cidade para comer.

Após a refeição retornei ao refúgio e, quase de imediato, comecei a passar mal, com sintomas de tontura, cabeça pesada, náuseas, taquicardia, leve dor no peito e intensa sudorese. Dois jovens peregrinos espanhóis que haviam chegado preparavam saborosa macarronada, e me convidaram alegremente para compartilhar do vinho que bebiam, o qual prudentemente recusei. Da hospitaleira mesmo, nem sinal.

Extremamente debilitado e sem forças, deitei-me num beliche e aguardei melhoras. Entrementes, com o passar do tempo, a dor foi-se acentuando e, percebi que lentamente estava perdendo a noção das coisas. Preocupado, pensando ser algo relacionado com o coração, e já com alguma dificuldade em me locomover, resolvi buscar ajuda no Hostal onde havia almoçado.

Ali, a gerente do estabelecimento recomendou-me uma farmácia próxima, que reabriria às 17 h, portanto, dali a 10 minutos. No entanto, meu estado de saúde era precário, e lhe disse que possivelmente não conseguiria chegar lá caminhando, vez que pressentia indícios de desmaio iminente.

Preocupada, ao ver o estado lamentável em que me encontrava, rapidamente colocou-me em seu carro e seguiu para lá, onde apavorada, chamou com espalhafato pela responsável que residia no andar superior do estabelecimento. Durante o trajeto, deitado no banco traseiro do automóvel, pensava nas peças que o destino nos prega: um absurdo, raciocinava, partir saudável e esperançoso do Brasil, para fenecer em terras estrangeiras, solitário e distante da família e dos amigos.

A farmacêutica que me atendeu, muito competente e atenciosa, fez-me um breve exame e depois de medir a pressão por algumas vezes e constatá-la dentro dos parâmetros de normalidade, disse-me que meu mal nada tinha a ver com o coração, o que deixou-me aliviado. Não me receitou medicamentos de espécie alguma, apenas sugeriu que deveria guardar repouso absoluto até obter melhoras. Se isso não ocorresse num prazo de duas horas, ela chamaria um médico em Pamplona, já que nenhum profissional dessa área residia naquela localidade.

Mais calmo, e verificando que a hospitaleira ainda não havia retornado ao albergue, apanhei meus pertences e me mudei definitivamente para o Hostal onde aluguei um quarto a preço acessível. Melhor instalado, fiz um inventário dos remédios que tinha comigo, separei uns 7 comprimidos, desde analgésico até calmante, um para cada sintoma que sentia, e fui ingerindo-os lentamente, acompanhados por 2 litros de água. Uma hora depois já me sentia bem melhor e pude retomar à vida de peregrino.

Durante o tempo restante que passei na Europa, fui surpreendido com algumas recidivas desse mal inexplicável. Ao retornar para o Brasil, após alguns exames complementares, detectou-se que eu estava com “Intolerância à Lactose”, doença que não suspeitava enquanto me encontrava no exterior. E como cuidava para não ingerir carne de espécie alguma, usava e abusava de queijos e derivados, razão precípua da agravância de minha enfermidade.

Considero relevante, ao divulgar este episódio, enfatizar uma situação a que todos estamos sujeitos quando em outras plagas e, é importante ressaltar dois aspectos desse fato: primeiro, a solidariedade daqueles que residem à beira da Rota, no meu caso específico, clarificado pela atenção e cuidado que recebi de pessoas que, não me conheciam, e que, gratuitamente, de tudo fizeram para que eu me recuperasse. Depois, a necessidade de se levar do Brasil uma pequena, mas variada farmácia, vez que na Espanha dificilmente se adquire algum medicamento sem receita médica. 

10ª Jornada – JUAN – Parti de Puente la Reina ainda no escuro, vez que tencionava pernoitar em Los Arcos, 45 quilômetros à frente. Exatamente às 12 h cheguei à belíssima cidade de Estella, e fiz uma pausa, então, para ir até a agência dos Correios e Telégrafos despachar alguns pertences, para posterior retirada em Santiago, como forma de aliviar o peso de minha mochila. Na fila do guichê, conheci um peregrino espanhol que ali se encontrava com o mesmo objetivo.

 

Enquanto aguardávamos atendimento, ficamos a conversar. Juan tinha aproximadamente 50 anos, era esbelto, porte atlético, com uma fala macia, genuína e sofisticada. Ele era professor universitário em Valência, e os muitos anos dedicados ao ensino de jovens, tinham levado à perfeição sua capacidade oratória. Além de sua dicção perfeita, sua noção de momento oportuno e seu tom de voz eram cativantes.

Contou-me, consternado, que sua esposa falecera, repentinamente, em 05 de abril passado, portanto, há 10 dias. Por orientação médica, ele ficara 48 horas sob efeitos de calmante, entretanto, quando retornara à realidade, adentrara a um profundo estado depressivo.

Tentava afastar os pensamentos sombrios que lhe tumultuavam o cérebro e as questões por ele suscitadas, contou-me, mas não pudera esconder inteiramente de si mesmo a conclusão essencial que havia algo errado com ele, de que alguma coisa estava a lhe faltar. Talvez a fé.

Assim, por sugestão de amigos e, também, do padre de sua paróquia, solicitara licença do trabalho e resolvera percorrer o Caminho para colocar as ideias em ordem. Porque, como confidenciou-me, cada alma tem sua alvorada e seu crepúsculo, e o esforço de polir suas arestas é só nosso.

Uma de suas maiores dificuldades, conforme revelou-me, era o fato de que não conseguir dormir em albergues. Depois de passar a primeira noite insone em Roncesvalles, local onde iniciara sua peregrinação, decidira, a partir de então, pernoitar sempre em pensões ou hostais. 

Sua cátedra acadêmica, propiciava-lhe obter generosos descontos na hora de acertar as contas. Assim, estava ali para despachar seu saco de dormir e outros acessórios, já que não iria utilizá-los mais durante a jornada.

Despedimos-nos na ponte sobre o rio Égea que corta a cidade, porém, como ele entremeava longas caminhadas, com outras de pequena extensão, e eu fazia uma média razoável por dia, acabamos nos encontrando e conversando outras vezes durante a jornada.

A derradeira, em Palas de Palas, quando confessou-me que no dia seguinte pretendia seguir, sem descanso, até Santiago, assim, fiz com que refletisse e considerasse a impossibilidade de tal façanha, vez que a distância representava quase 80 quilômetros.

Ele, no entanto, estava inflexível em seu ideal e, então, naquele dia, nos despedimos definitivamente. Mas, quis o destino que nos encontrássemos, ainda, mais uma vez, já em Compostela.

Surpresa agradabilíssima, porque foi uma das personalidades mais marcantes e emblemáticas que encontrei no Caminho.

11ª Jornada - PONTUALIDADE – Depois de resolvidas as obrigações de praxe no albergue de Logroño, por volta das 17 h, resolvi ir a uma farmácia comprar esparadrapo e bandagens. Para minha decepção, havia um cartaz à porta dizendo: “Volto dentro de uma hora”.

Mais à noite retornei ao estabelecimento e depois de cumprimentar o farmacêutico, sem mais delongas, interroguei-o sobre o aviso deixado na porta, dizendo: - O senhor anotou que voltaria ao fim de uma hora, mas não informou a horas que saiu. Como é que eu poderia adivinhar a que horas iria voltar?

Ele não se abalou: - Perdoe-me, mas o aviso não dizia que eu voltaria ao fim de uma hora e sim dentro de uma hora. Se o senhor chegasse logo depois que eu saí, esperaria no máximo uma hora. Na realidade o senhor teria esperado menos, pois voltei em trinta minutos. Em que lhe posso ser útil?

Inobstante nossa pequena divergência inicial, atendeu-me com extrema gentileza e prestatividade, e ao observar que eu claudicava levemente na perna direita, ofertou-me um medicamento para massagem que, segundo ele, operava milagres no combate às dores.

Quando fui acertar as contas, ele gentilmente se “esqueceu” de cobrar a pomada, e disse-me que era uma oferta da casa para auxiliar em meus propósitos. Apenas pediu-me, que desse um abraço no Santo Apóstolo, em seu nome, quando aportasse à Compostela.

Coisas inexplicáveis de um Ano Santo... 

13ª Jornada - UM ENCONTRO INESPERADO – Aportei à cidade de Nájera num sábado à tarde, debaixo de muita chuva, e me hospedei no confortável albergue local que se localiza no lado oposto de quem adentra a cidade, capitaneado à época, pela conterrânea Ester.

Na manhã seguinte, ainda no escuro, por volta das 6 h, retornei, seguindo as flechas amarelas, indo parar no outro lado da cidade, em direção a uma lanchonete que não fechava à noite, local agradável que escolhi para fazer meu desjejum. O dia ainda estava escuro, e em alguns bares os garçons já carregavam sacos de lixo para o meio-fio.

Bem alimentado, iniciei minha jornada com bastante ímpeto, pois, era domingo, e pretendia assistir à missa das 12 h na Igreja Matriz de Santo Domingo de la Calzada. Todavia, ao atravessar novamente sobre o rio Najerilla, notei um grupo de jovens encostados na guarda lateral da ponte, conversando animadamente.

Ao passar por eles, um garoto aparentando ter uns 15 anos, alto, magro e espigado, com cigarro numa mão e copo na outra, separou-se do grupo, acercou-se de mim e, chamando-me de “tio”, tentou convencer-me a tomar um gole da bebida que portava.

Educadamente recusei, explicando-lhe que não costumava beber àquela hora e, também, porque tinha um longo percurso a vencer pela frente. E, enquanto falava, fui me desviando para o lado e seguindo em frente, de maneira firme e obstinada.

Isso não arrefeceu o ímpeto de sua investida, porque, não satisfeito, começou a caminhar ao meu lado, entretanto, repentinamente, reconhecendo-me peregrino, de maneira respeitosa, perguntou minha procedência e a razão de minha caminhada.

Caia uma fina garoa, e sob a luz difusa da iluminação urbana, expliquei-lhe meus princípios, crenças, razões e o porquê de estar ali naquele momento. Contei-lhe, também, sucintamente, de minha vida e hábitos.

De sua parte, disse ser filho de uma família proeminente e de bom nível social na cidade, como pude observar pelo seu traje e modo de se expressar, pois, segundo confidenciou-me, seu pai era um empresário de sucesso e sua mãe professora.

Seguimos, vagarosamente, guiando-nos pelas flechas, conversando sobre nossas experiências pessoais. Tentei dissuadi-lo, explicando que a habitualidade dos nefastos vícios de fumar e beber, poderia conduzi-lo a resultados funestos no futuro. E, ainda, estimulei-o a praticar esportes, enfatizando a propriedade do dueto: “corpo são, mente sã”

Nesse diapasão, quando dei por mim, estava novamente defronte ao albergue. Fiz ali uma parada providencial para vestir minha capa, eis que a chuva apertara de vez. Enquanto eu reafivelava minha mochila, o jovem depôs seu copo no parapeito de uma janela, atirou o cigarro longe e disse-me: - “tio”, me dá um abraço de despedida?

Dei-lhe um demorado e forte amplexo e senti correr nas veias uma terna letargia agradável. Por alguns instantes senti uma intensa troca de energia. Naquele momento as palavras deixaram de ter importância. O silêncio foi o mensageiro da luz.

Concomitantemente, senti um nó na garganta e a emoção transbordou em meu peito. Chorei silenciosamente. Eu que não me comovia facilmente, havia sucumbido diante de mais um dos tantos milagres do Caminho.

Foi, possivelmente, um dos momentos mais tocantes de toda minha jornada, um instante único que não se esquece, vez que fica indelével nas porções mais profundas do nosso subconsciente.

Depois daquele gesto, segui em frente gratificado pelo ocorrido, na esperança de ter transmitido um pouco de hombridade e educação àquele jovem, aparentemente tão carente de atenção e conselhos.

14ª Jornada – CARRINHOS - Estava eu sentado na porta do albergue de Santo Domingo de la Calzada, à tarde, tomando sol e descansando, quando ali chegou um peregrino velho e compenetrado, literalmente, arrastando as pernas e as ideias. E o mais interessante, e que me chamou vivamente a atenção, foi que estava puxando uma engenhoca de duas rodas, onde levava seus pertences.

O “trombolho” ficou estacionado do lado de fora, em pé, e eu com uma curiosidade latente, pude inspecioná-lo melhor. O artefato nada tinha de sofisticado, vez que se tratava simplesmente de uma “carrocinha” de metal, contendo uma divisória interna, chapa da aço no fundo, reforço nas laterais, e rodas altas de ferro.

Na verdade, o dono dele estava de passagem, e sua entrada no refúgio fora apenas para carimbar a credencial. Depois, sentou-se a meu lado e ficou a aguardar seus outros dois companheiros que, logo, chegaram, e que, coincidentemente, também se utilizavam do mesmo tipo de equipamento para transportar a bagagem.

Formavam uma “troupe” engraçada, todos na mesma faixa etária. Enquanto os outros dois eram altos e magros, com cabelos brancos e revoltos, o Sr. Carlos, que se autoproclamava chefe do grupo, era atarracado, calvo, pescoço taurino, cabeça poderosa.

Disse-me que residiam todos na Província de Extremadura, sul da Espanha. Particularmente, contou-me, que fazia essa peregrinação todos os Anos Santos, desde que se lembrava por gente.

Agora, já perto dos 80 anos, confessou-me que suas costas não aguentavam o peso da mochila. Assim, resolvera inovar e tivera a brilhante ideia de adaptar o carrinho de feira da mulher, para tal finalidade. No que fora, imediatamente, imitado por seus leais amigos.

Como pretendiam pernoitar em Granón, sete quilômetros à frente, partiram rapidamente. No dia seguinte alcancei-os próximo da cidade de Redecilla del Caminho, e seguimos por um bom tempo conversando. Caminhavam lentamente, com olhos inquiridores no céu plúmbeo que nos cobria.

A chuva da véspera deixara a trilha extremamente enlameada, comprometendo o bom desempenho dos carrinhos. Quando um deles sucumbia sob o espesso e grudento barro, lá vinham os demais companheiros, solícitos com seus cajados, ajudar o dono no desencalhe.

Logo depois de ultrapassarmos Castildelgado, fizeram uma pausa para descanso e, acreditem, coar café. Sim, porque além da mala de viagem, um banquinho dobrável para descanso, e um enorme guarda-chuva, o Sr. Carlos levava consigo, também, um pequeno fogareiro e o indispensável botijãozinho de gás.

Eu, após calorosas despedidas, segui em frente e nunca mais tive notícias deles. Espero, com sinceridade, que tenham conseguido chegar a Santiago, pondo bom termo à peregrinação.

16ª Jornada – METADE DA JORNADA – Havia programado ficar um dia inteiro em Burgos para compensar o que me ocorrera em 2001, quando ali passei ao entardecer e debaixo de forte chuva. Assim, ao término de minha 15ª jornada dormi em Villafria, e na etapa posterior, caminhei apenas 10 quilômetros e me dirigi a um Hostal localizado no centro velho da cidade, onde havia reservado um quarto. A recepção do estabelecimento ficava no 9º andar, e perguntei ao porteiro do edifício como chegar até lá.

Ele, gentilmente, com um sorriso maroto nos lábios, me explicou: “Tome o elevador ali à sua direita, aperte o botão número nove, espere que suba e a porta se abra, que então o senhor terá chegado ao nono andar.” Até hoje não sei se ele falava sério ou estava me gozando.

Depois de demorada e prazerosa visita à soberba Catedral da cidade, verifiquei em minha planilha de viagem que naquele dia praticamente cumpria a metade de minha jornada no Caminho. Animado, como forma de me reenergizar, entrei numa barbearia para cortar o cabelo. Ao chegar a minha vez, o “peluqueiro” me conduziu à cadeira, deu uma volta demorada ao meu redor e, sem a menor cerimônia, me levou até a porta, e me disse que eu ainda não estava precisando fazer tal limpeza. Ato contínuo, chamou o próximo da fila e deu seguimento ao seu trabalho. 

Senti dentro de mim uma reação de desapontamento. Continuei calmo e com o controle dos meus sentimentos, sem externá-los. Por dentro eu estava abespinhado. Assim, para me distrair, caminhei a esmo pelas ruas, observando o comércio e, uma centena de metros à frente, adentrei corajosamente em outro salão.

Um senhor alto e magro, solene como um magistrado espanhol, ao contrário do outro, me atendeu e executou todo o ritual: tesoura picando o ar, o contorno atrás das orelhas feito à navalha; pente com algodão para tirar os cabelinhos cortados; escova de talco no rosto; escova de roupa no meu “anorak”. Ao fim, uma reverência de mestre diante de sua obra-prima, o que lhe valeu razoável gorjeta, recebida com ar de quem coloca sua arte muito acima de qualquer interesse.

No hostal, após demorado banho, olhei-me detidamente no espelho: preocupado, vi um rosto maltratado pelo frio, com novas rugas aparecendo, a barba grisalha repontando, lábios empolados e ressequidos, testa vincada, olhar afadigado.

E aí, também, pude perceber com mais propriedade o que o garboso barbeiro havia feito com meu cabelo: minha cabeça parecia um espanador velho e desgrenhado.

17ª Jornada – UM CAFÉ ESPECIAL – Em Hornillos del Caminho (Forninhos do Caminho), parei durante a manhã, num bar, para lanchar e tomar um café, no mesmo estabelecimento onde também o fizera em 2001. Atendeu-me uma senhora de nome Lúcia que após servir-me, desculpou-se pela ausência de seu pai, por quem indaguei, pois fora ele que me provera na viagem anterior.

Quanto fui acertar a conta ela cobrou-me apenas o lanche, o café, disse-me, era sempre cortesia para os peregrinos brasileiros. Quando insisti em pagar tudo, ela encerrou o assunto, contrapondo: se quer mesmo retribuir minha oferenda, lembre-se de fazer uma oração por mim e minha família quando estiver abraçando o Santo Apóstolo em Compostela.

Saí dali, emocionado e refortalecido por mais essa demonstração de força ao peregrino e devoção a Santiago. 

18ª Jornada – EXEMPLO DE VIDA – Após deixar a pequena vila de Ítero de La Vega o percurso envereda por estradas retas e largas, agradáveis de se trilhar. Até onde minha vista alcançava, observei enormes campos verdes de agricultura. O traçado, farto em leves ondulações, permeia por extensas áreas de trigais, entremeando-se de quando em quando, por olivais e vinhedos milimetricamente alinhados.

Uma hora depois, encontrei caminhando, em sentido contrário, um senhor lépido e falante, que me cumprimentou efusivamente. Com mais de setenta anos, era baixo e cheio de corpo, mas ainda desempenado. Vestia uma roupa simples, um chapéu típico e tinha um brilho molhado nos olhos claros, como costumam ser os de certos velhos, mas um sorriso vago dava-lhe, também, um inesperado ar de jovem, com a fisionomia de alguém que acaba de ter uma ideia feliz.

Apresentou-se como Alejandro Sandoval Ortega, natural e morador em Boadilla del Caminho (pântanos do caminho), a cidadezinha que já se descortinava no horizonte próximo. Contou-me que diariamente fazia aquele roteiro não só para se exercitar, mas, principalmente, para conversar com peregrinos, fazer amizades, enfim, conhecer pessoas. Era uma forma, também, enfatizou, de divulgar sua terra de nascença.

Simpaticamente, entregou-me um cartão com seus dados, bem como ofereceu seu endereço para uma visita e um lanche, ao mesmo tempo relatava, com orgulho e resumidamente, um pouco da história de sua cidade natal. Todavia, intrinsecamente à população local, traçou-me um perfil nada animador concernente àqueles de sua idade:

- Nós estamos esquecidos pelos nossos governantes, somos ridicularizados pelo mais jovens e, não raro, discriminados pela própria família, disse-me ele. Na verdade, para alguns, não passamos de tristes e inúteis velhos. Algum dia, e não muito distante, morreremos e não sei se muita coisa restará de nossa vila. Talvez, somente a história.

Contou-me que quando chegava em Ítero de la Vega, por volta das 11 horas, ia direto a um bar de onde telefonava para casa e prontamente um carro ia buscá-lo.

Despedi-me dele com um aperto de mão e um adeus.

Ao passar pela cidadezinha, não resisti à propaganda feita por seu insigne filho e fui conhecer a igreja matriz, que por sinal está localizada ao largo do percurso demarcado pelas flechas amarelas. Do lado externo, bem próximo ao templo, contemplei com curiosidade o símbolo da cidade, um monumento “sui generis”, um “Rollo Jurisdicional” do século XII, o de melhor conservação em toda a Espanha.

É uma linda coluna talhada em estilo romano-bizantino, encimada por uma agulha gótica. Ele simbolizava o poder jurídico na comarca e era ainda usado para prender os réus ou ministrar-lhes a pena capital. Mede uns oito metros de altura. Infelizmente, de maneira lenta, mas, implacável, vai sendo desgastado pelo tempo.

Deixei a povoação em direção à Frómista, a conjecturar sobre as palavras do Sr. Alejandro. Afinal, as estatísticas dão conta que a velha Europa é habitada na maior parte de seu território, por pessoas idosas. Também a Espanha parece ter o ventre já seco e incapaz de gerar nascituros, e a vida moderna e o egoísmo dos casais estão transformando o país num grande asilo, vez que morre mais gente do que nasce. 

19ª Jornada – CALIFÓRNIA - No “andadero” entre Frómista e Carrion de Los Condes, observei à minha frente, um peregrino solitário que se portava de um modo, no mínimo, estranho. Ele caminhava normalmente por centenas de metros, depois, repentinamente, virava-se e continuava a caminhar por bom tempo, porém, desta vez de costas, num comportamento aleatório e irracional.

Cumprimentamo-nos na passagem e trocamos algumas palavras. Ele era alto, forte, canhestro, barba cerrada, e não falava usando sentenças, mas, frases rápidas, curtas, monossilábicas. Sua expressão era séria, triste até, todavia, ao saber minha procedência, seu rosto assumiu uma expressão condescendente. Não me disse seu nome, apenas, laconicamente, me contou que era americano, especificamente, do estado da Califórnia. E, dali em diante, eu passei a tratá-lo por esse epíteto.

Encontrei-o em algumas cidades em que pernoitei, andado pela rua, calado, olhar perdido, sempre sozinho. Eu invariavelmente o chamava pelo “apelido” e recebia em troca, apenas, um acanhado aceno de mão.

Outros peregrinos com quem conversei depois, confirmaram tê-lo visto na trilha, agir sempre da maneira como descrevi. Todos foram unânimes em concordar que essa sua forma inusitada de se portar poderia estar ligada a algum ritual de seita esotérica. Talvez um mantra cabalístico ou, simplesmente, uma forma inusual de alongar os músculos de suas panturrilhas. O motivo correto, nunca fiquei sabendo.

Entretanto, na minha opinião, um procedimento insensato e temerário, vez que poderia levá-lo a sofrer um tombo, torcer o pé ou tornozelo, e ver encerrada de forma trágica sua caminhada. Seria implausível, pensei, que agindo dessa forma, conseguisse chegar ileso ao final de sua peregrinação.

Contrariando minhas expectativas, em Santiago, após a chegada, revi-o numa rua, barba feita, bem trajado, sorridente, ao lado de outro peregrino, defronte a uma loja de souvenirs. Ao passar por ele, não resisti e gritei: “Califórnia!”

Um tanto assustado, ele deu ares de não se lembrar de mim. Com a face crispada, pareceu mergulhar, siderado, numa angustiosa busca pelos abismos do esquecimento.

Finalmente, ao me reconhecer, sua face sombria iluminou-se. Imediatamente, afastou-se de seu par, veio em minha direção e me deu um forte e caloroso abraço.

Foi o primeiro e único gesto de carinho e amizade sincera que vi emanar daquele rude brutamontes, para mim, no entanto, de gratificante memória. 

20ª Jornada - ORGULHO DE SER BRASILEIRO – Sempre ouvi falar, porém nunca entendi o que o brasileiro tem de tão especial para o europeu em geral.

Em Sahagun, tomava vinho no balcão de um bar com outro peregrino, e quando este se afastou para telefonar, puxei conversa com um freguês que estava sentado numa mesa ao lado. Ao saber minha procedência, passou a enaltecer-me, bem como ao nosso país. E seus elogios se espalhavam torrencialmente como água em uma torneira aberta.

Perguntei-lhe, então, o que havia em nós de tão extraordinário assim? Ele disse-me que, dentre nosso talento natural para o futebol, música e outras coisas, éramos, também, capazes de conversar com um desconhecido como eu fazia naquele instante. Depois apontou outro freguês ao fundo: havia três anos que ambos frequentavam diariamente aquele bar, cada um na sua mesa, sem jamais trocar uma só palavra.

- Não seja por isso. Venha comigo, disse-lhe. 

No impulso de quem havia tomado mais um copo de vinho, levei-o até a mesa próxima. Disse, então, ao outro que gostaria que ele conhecesse um amigo. Feitas as apresentações, o outro o convidou a se sentar. Mais tarde quando deixei o estabelecimento, os dois ainda estavam lá, bebendo juntos e conversando animadamente.

O que me deixou extremamente alegre. A tergiversar o que não somos capazes de fazer após alguns tragos de bebida.

Saí dali, literalmente, pisando em nuvens. Porque não há maior felicidade do que aquela que sentimos quando proporcionamos alegria a alguém. 

22ª Jornada – MISTÉRIO – Enquanto jantava num restaurante em Mansilla de las Mulas, observei, de soslaio, um casal de meia idade numa mesa próxima. Viviam um momento terno de sorrisos e afagos, e percebi pelo linguajar serem espanhóis. Era a primeira vez que os avistava no Caminho, e o que mais avivou minha atenção foram seus trajes em cores chamativas: ele com um blusão amarelo “gema-de-ovo”, ela toda em azul-turquesa.

Villadangos del Páramo era meu alvo na etapa seguinte, assim, às 6 h, com a manhã ainda escura, de lanterna na mão, iniciei minha jornada. No céu, estimuladas por uma lua nova, algumas estrelas madrugadoras brilhavam insolentes. Às 8 h, já em Puente de Villarente, tomei café com torradas num bar ao lado da rodovia. Ao prosseguir, visualizei uns 100 metros à minha frente, caminhando em ritmo acelerado, o casal que me marcara na véspera.

Na entrada de León, próximo ao rio Tório, eu ainda os tinha à vista, com suas indumentárias em cor berrante a evidenciá-los a uns 300 metros de distância. Como eles, segui por ruas largas e barulhentas em direção ao refúgio localizado no Monastério Beneditino. Ao dobrar uma esquina, de forma inesperada, encontrei-os com um comprido mapa desdobrado na mão, a buscar informações junto a pessoas do local.

Após ter minha credencial carimbada pelas Irmãs Carbajalas, segui por ruas sinuosas e antigas, até a estupenda Catedral de Santa Maria de la Regla (sec. XIII), considerada a joia gótica da Espanha, chamada, também, de “Pulchra leonina”, pela pureza de suas formas. Além da exótica beleza dos seus 1.800 m2 de vitrais coloridos que lhe valeram o título de catedral de pedra e cristal, vale ressaltar, ainda, que ela, curiosamente, tem seu pórtico orientado para Jerusalém, centro do Mundo e da Redenção.

Alguns dias antes o Presidente da Espanha José Luis Rodríguez Zapatero havia sido eleito. Embora nascido circunstancialmente em Valladollid, fora criado e se alçara à vida pública em León e, assim, a população local ainda vivia um clima de festa em que comemorava a feliz proeza. Havia faixas e cartazes espalhados por toda a urbe, saudando o feito de seu ilustre filho. E o binômio euforia e ufanismo acabou por me contaminar, vez que invadiu-me uma vontade avassaladora de permanecer na cidade. Então, face à impropriedade da hora para se albergar, acabei me alojando numa pensão próxima à praça central.

Principescamente instalado, resolvi aliviar um pouco do peso que carregava, assim, fui em direção ao prédio dos Correios e Telégrafos despachar mais alguns pertences para posterior retirada em Santiago. No trajeto, próximo ao centro velho, surpreendentemente, avistei o “casal colorido” numa esquina, ainda vestidos a caráter e de mochila nas costas, com o enorme mapa na mão, tentando identificar o nome das ruas, verificando direções e discutindo em altos brados, numa cena burlesca e caricata.

Fiquei a observá-los com curiosidade latente sobre o que diligenciavam, porquanto, embora nativos da terra, demonstravam dificuldade e confusão mental perante o emaranhado de avenidas e possibilidades que se desenhavam à sua frente. Cautelosamente, não quis me ingerir em seus problemas, e segui em frente. 

Mais tarde, quando ia almoçar encontrei-os novamente, envolvidos em sua busca frenética. Haviam desdobrado o imenso mapa sobre um banco numa praça e perquiriam afobadamente os transeuntes, demonstrando já certa irritação pela demora em localizar seu objetivo. A cena era patética, e faltou-me coragem para averiguar sobre o que efetivamente procuravam.

Após a refeição fui até o Locutório “La Rua”, dar notícias pela Internet. Depois, por volta das 15 h, segui rumo a um supermercado com o intuito de adquirir provisões. No retorno, numa rua movimentada, visualizei novamente o peregrino “gema-de-ovo”, desta vez sozinho, ainda de mochila e com o “bendito” mapa na mão! Procurava, ainda, placas indicativas. De sua mulher, nem sinal.

Ele revelava indícios evidentes de intolerância e raiva. Tinha os cabelos em desalinho, e percebia-se em seus gestos bruscos uma inegável exasperação. A cena era burlesca e, à distância, quedei-me a espreitá-lo, condoído pela ostensiva impaciência com que indagava passantes. Infelizmente, faltou-me, novamente, desprendimento para abordá-lo, na tentativa de auxiliar seu intento, quiçá, minimizar seu desconforto.

Naquele instante, desastradamente, meus sentimentos de fraternidade e companheirismo foram sobrepujados pelo peso das sacolas que carregava e, com tibieza, marchei rumo à pensão onde me hospedara. Mais tarde, o remorso fez com que eu retornasse ao local do último encontro, todavia, ali não mais logrei localizar os “peregrinos matizados”.

Mas, afinal, o que eles se esforçavam por encontrar, de forma tão obsessiva? Uma inferência plausível para sua desenfreada pesquisa era que estivessem tentando localizar o endereço de algum hostal, loja, ou até mesmo, a casa de algum parente. Isso nunca ficarei sabendo pois, jamais os reencontrei pelo Caminho.

Na manhã seguinte, ao deixar León, amargamente, refletia sobre o erro que conscientemente acabara cometendo. Existe um ditado que diz: “Nós atravessamos a vida carregando as feridas do passado”. Contundentemente, essa chaga me acompanharia até Santiago.

23ª Jornada – CÃES – Em Hospital de Órbigos fui até uma “tienda” comprar mantimentos e na volta tentei cortar caminho por uma viela estreita, entretanto, um enorme cão deitado no meio da ruela obstou meu trânsito.

Estava sem o cajado e, assim, aproximei-me cuidadosamente para enxotá-lo, mas fui recebido hostilmente. Pêlos eriçados, colmilhos à mostra, resistiu valentemente às minhas investidas e insultos. Por fim deixei-o em paz e volvi sobre meus passos, perfazendo enorme trajeto para retornar ao albergue.

Foi, na verdade, o único incidente com esse tipo de animal que tive em toda a jornada, até porque a maioria dos cães de guarda vive presa no interior das casas, e os vira latas soltos quase sempre mostraram, à minha passagem, mais curiosidade do que agressividade. 

24ª Jornada – SARA – Cheguei à Astorga por volta das 11 h e depois de uma demorada visita à belíssima Catedral de Santa Maria, aproveitei a oportunidade e, retornei ao Museu dos Caminhos que conheci em minha viagem anterior. Está localizado no interior do Palácio Episcopal, sendo que este monumental castelo foi projetado por Antoni Gaudi, o genial arquiteto modernista espanhol.

Ali, em meio a estatuetas, livros raros e obras de arte, conheci uma jovem peregrina brasileira, de descendência japonesa. Com desenvoltura apresentou-me seu marido, um alemão alto e magro, cabelos castanhos e raros numa cabeça ossuda. Contou-me que residiam em Genebra, Suíça, e que vinham caminhando desde a França. Para comprovar, exibiu-me sua credencial peregrina pejada de carimbos, o primeiro deles, aposto em Le Puy.

Naquele dia, segundo ela, haviam saído de Santibañez de Valdeiglesias, 12 quilômetros atrás. Observei-a, cuidadosamente: cabelos hidratados, maquiagem perfeita, perfume ostensivo, roupas irrepreensíveis, botas novas. Olhando todos esses detalhes, foi-me difícil crer em sua afirmação. Entretanto, abstive-me de julgar por antecipação, o eventual exagero nas façanhas, por ela, relatadas.

Meus planos para aquele dia incluíam o pernoite na cidade, a fim de me desforrar de 2.001, quando ali não logrei guarida. Mas, curiosamente, não me senti atraído pelo ambiente, algo me apoquentava internamente, então, resolvi partir. Assim, após, educadamente, recusar convite para almoçar com o dinâmico casal, segui sem pressa até Rabanal del Camiño. Faminto e cansado, deixei meus pertencentes no albergue e fui a um Hostal/Restaurante lanchar.

Para minha surpresa, encontrei Sara, a minha conterrânea, já de banho tomado, roupas limpas, pintura retocada, numa mesa, bebericando vinho. Disse-me que vinham caminhado quando próximo ao entroncamento para Rabanal Viejo, distante uns três quilômetros dali, seu marido sentiu-se mal. Então, dado ao infortúnio, resolveram tomar um táxi que os trouxera até aquele estabelecimento, onde estavam hospedados. Seu consorte ficara no quarto descansando, enquanto ela descera para espairecer um pouco.

Fiz os cálculos mentalmente da distância que cada de nós havia percorrido, conjugado com o tempo gasto individualmente nesse mister, e mesmo inferindo generosos descontos pelas pausas que eu efetuara em Santa Catalina e em El Ganso, as contas não fechavam. Mais uma vez refreei meu impulso de prejulgar e inquirir detalhes. 

No dia seguinte saí de madrugada, enfrentei fortíssima nevasca na subida de Foncebadón e, também, durante a descida, após o Manjarin. Entrei num café em El Acebo e, surpreendentemente, encontrei o casal “binacional” numa mesa, devidamente paramentado, ingerindo seu desjejum. Como isso seria possível, comentei com meus botões. 

Contaram-me que haviam chegado até a Cruz de Ferro caminhando, mas, face o mau tempo e o piso escorregadio, optaram por aceitar uma carona que lhes fora oferecida. Enquanto descreviam a aventura, com riqueza de detalhes, obliquamente, fiz-lhes uma devassa minuciosa com os olhos: botas engraxadas, roupas impecáveis, cabelos alinhados, luvas imaculadas, cajado seco e lustroso. 

Com um sorriso amarelo, não pude conter um muxoxo de incredulidade e descrença ante o despautério que relatavam, ao tempo que reprimia meus impulsos, para não extravasar publicamente aquilo que estava pensando. Sem demora se despediram, e partiram apressados. 

Segui pouco depois, caminhei num ritmo uniforme, e não mais os encontrei no trajeto, seja até Molinaseca ou mais à frente. Na manhã seguinte, acendeu-se em minha cabeça um pequeno foco de luz, iluminando os desvãos da ignorância onde se refugia, como um troglodita em sua caverna, o analfabeto que existe em mim.

Lembrei-me, então, que os tinha visto em Logroño, quatrocentos quilômetros atrás, num restaurante onde fora almoçar. Depois dali, nunca mais os avistara. Como eu fizera diariamente jornadas largas, e somente agora os reencontrava, era de todo improvável que estivessem caminhando. 

É prática comum no Caminho utilizar-se de carro de apoio ou saltar algumas etapas. Normalmente, incorrem em tal situação, pessoas com dificuldade de locomoção, pela idade avançada ou por escassez de tempo. Mas o casal a que me referi era relativamente jovem, e por possuir carimbo em suas credenciais de todas as principais cidades da Rota, certamente distorcia, de forma excruciante, a verdade dos fatos.

Dessa forma, concluí o que era notório, faziam o Caminho sim, não a pé da forma convencional, mas, seguramente, dentro de um carro.

26ª Jornada – FEIRA – Deixei Molinaseca bem cedo, debaixo de uma desconfortável garoa fina. Caminhava taciturno e silencioso, porque a escuridão reinante e a chuva persistente, realçavam o sentimento de melancolia que comumente me assalta nessas horas.

Em Ponferrada o chuvisqueiro arrefeceu, porém, logo após, a cidadezinha de Columbrianos tornou a intensificar. À minha frente, de maneira preocupante, o rufar de uma trovoada soou no céu sobre a cidade de Camponaraya, onde nuvens negras se aglomeravam ameaçadoramente. 

A leste, raios riscavam o firmamento, prenúncio certo de procela iminente, forçando-me a estugar os passos. Cacabelos, atualmente, a capital vinícola da região do Bierzo, já estava à vista, quando o temporal desabou.

A capa de chuva comprada a “peso de ouro” vinha resistindo bravamente, entretanto, alguns minutos sob a colossal intempérie deixaram-me completamente ensopado, o que me forçou buscar abrigo num bar próximo.

Aproveitei a pausa forçada para tomar um café com conhaque, o que me reanimou, enquanto lá fora os relâmpagos cruzavam o céu, a chuva batia forte na janela e a tempestade persistia sem nenhum sinal de amainar. Todavia, vinte minutos depois a borrasca perdeu seu ímpeto e pude seguir meu destino.

Avancei, então, calmamente pela “calle de los peregrinos”, com suas seculares casas enfileiradas, e após ultrapassar a Igreja de Nossa Senhora de La Plaza (século XVI), prossegui por um grande pátio asfaltado. Ali acontecia uma enorme feira agrícola industrial que, infelizmente, tivera seu brilho empanado pelo mau tempo reinante.

Centenas de barracas, das mais variadas cores, tamanhos e formas, ofereciam mercadorias de todos os tipos, desde gêneros alimentícios e bebidas, até maquinários e implementos agrícolas. Segui adiante desviando-me dos passantes que, às centenas, e mesmo de capa ou guarda-chuva, afluíam à concorrida festa. Ao mesmo tempo, observava atentamente, vetustas e singulares construções localizadas à minha direita.

Ao vislumbrarmos lugares antigos, temos a sensação, em certos momentos, que indícios de uma velha presença tomam conta de nós, como fantasmas, em plena luz do dia. Ela apoderou-se de mim quando mais à frente, após transpor o rio Cúa, parei diante de uma igrejinha, com suas portas azuis assombradas por lembranças que não me pertenciam.

Fui irresistivelmente atraído para seu interior, capturado por um estranho sentimento de “déja vu”, e ali pude contemplar pensativo, uma curiosa talha na porta da sacristia, que representa o Menino Jesus jogando cartas com Santo Antônio de Pádua. Na cena o Menino Deus está tirando um quatro de copas da mão do Santo e lhe entregando um cinco de ouros. Segundo os místicos há um significado simbólico: o quatro simboliza os valores mundanos e o cinco o alcance do conhecimento superior.

O ambiente pareceu-me, de repente, inquietantemente familiar. Descobri, então, que me encontrava no Santuário de La Quinta Angústia (século XVII) que, com sua fachada ornamentada, é um belíssimo exemplar do barroco espanhol.

Sentado num banco da capela, observando o Jesus Menino no secular entalhe, fui invadido por recordações sutis, e vaguei sem pressa em direção às lembranças mais puras de minha infância. Era, assim, como se “algo” invisível, superior, benéfico e tênue tivesse se derramado em minha alma. “Algo” que, obviamente, naquele instante, não soube definir. Naturalmente, que já havia lido a respeito desse local santo, no entanto, foi difícil entender o porquê eu fora tão ardentemente cativado a adentrar naquele tabernáculo. É meridiano supor, que forças cósmicas tenham me compelido àquela visita inesperada, indubitavelmente, uma manifestação clarividente da força incorpórea que vivenciamos no Caminho.

Ao deixar o templo, meu coração foi convulsionado por sentimentos adormecidos, numa explosão de prazer e de gratidão. E, vivificado por esse combustível espiritual, caminhei até Villafranca del Bierzo, final de minha etapa naquele dia.

Sem dúvida, um 1º de maio pontificado por surpresas e sentimentos tão distintos quanto opostos: o manto de morbidez e tristeza que me acompanhara pela manhã transfigurara-se, radicalmente, à tarde, quando eu fora recompensado por outra espécie de emoção, em mais um dos intrigantes mistérios que a Rota nos propicia. 

28ª Jornada - RESERVAS – Solicitei reserva num Hotel, que me fora recomendado, uns 4 dias antes de chegar à Sarriá. Por precaução, em se tratando de uma cidade localizada em ponto estratégico do Caminho e, por isso mesmo, de onde muitos peregrinos iniciam sua jornada, dois dias antes telefonei novamente para confirmar o pedido.

Quando lá cheguei, o gerente na recepção confirmou ambas as reservações. E, para meu espanto, revelando que o comportamento do povo espanhol se pauta também por uma racionalidade extremada ao apogeu, perguntou qual das duas eu preferia.

30ª Jornada – DÚVIDAS – Em Palas de Rei, após almoçar, pedi de sobremesa, um sorvete. Solicitei, então, ao garçom que me enumerasse os sabores disponíveis.

- Chocolate, morango, amêndoas, baunilha e café – informou-me ele.

- E de fruta, perguntei?

- Morango é fruta, respondeu-me ele.

Levei um susto, vez que pensava brasileiramente em abacaxi, limão, uva, manga e outras possibilidades. Boquiaberto, diante daquela inelutável verdade, constatei, admirado, que ele tinha razão, embora entendesse que o ingrediente principal utilizado na confecção do picolé em questão fosse, na verdade, uma essência.

E fiquei a refletir, levando a extremos a frutividade dos “helados” oferecidos. Afinal, raciocinei, o café também não é uma fruta? E o cacau de que se faz o chocolate... Amêndoas, por acaso, é de origem animal? Baunilha, é hortaliça?

Bem, para encerrar a contenda, dispensei o sorvete e pedi um café. 

32ª Jornada – SANTIAGO-1 – Parti de Arzúa às 5 h da manhã sob muita chuva e, depois de caminhar 44 quilômetros, cheguei à tarde, na Praça do Obradoiro, defronte à Catedral me sentindo completamente estropiado, botas pesadas de barro. Vagarosamente, subi os degraus derradeiros e, finalmente, às 16 h 47 m, dei o último passo do Caminho ao pisar a soleira da porta santa da Basílica do Apóstolo, era sexta-feira, 07 de maio de 2004.

Adentrando à Casa do Senhor, encontrei vários peregrinos com que eu já havia perdido o contato, inclusive, Juan, o espanhol. Alguns já sem a mochila e em trajes sociais. Eu ainda com roupa de briga, suado, extenuado. E foi uma festa o reencontro! Depois das orações e abraço no Santo Apóstolo, fui até a “Oficina de Turismo” buscar minha tão festejada “Compostelana”.

À noite, após reconfortante repouso, voltei novamente à Catedral. Tudo estava calmo, poucas pessoas se encontravam no Santuário, pude, então, tranquilamente abraçar, novamente, a acolhedora imagem dourada de Santiago e rezar em seu túmulo.

Depois, fiquei muito tempo orando e contemplando, quieto, o esplendor interno da Casa Maior de Tiago. Recordei-me, então, de minha família, amigos, e de todos aqueles a quem eu prometera levar lembranças ao Santo. E enquanto o interior do templo foi-se escurecendo, me deixei ficar, esquecido, olhando o Apóstolo, e me senti imensamente feliz por estarmos novamente juntos, com uma ponta de melancolia que me fez muito bem.

No dia seguinte, sábado, retornei para assistir à Santa Missa a ser ministrada às 12 h e, embora, me adiantasse quase uma hora antes da celebração, encontrei a igreja completamente congestionada de pessoas. Muitos eram turistas que haviam vindo de ônibus e ocupavam tranquilamente todos os lugares disponíveis nos bancos, enquanto, num anacronismo pungente, os peregrinos que haviam chegado a pé eram obrigados, por força das circunstâncias, a permanecer em pé.

À custa de enorme esforço consegui me posicionar junto a uma coluna, e ali permaneci imóvel, pois me preocupava em não tirar o pé do chão, sob risco de não encontrar lugar para recolocá-lo de volta. A Missa Solene começou pontualmente no horário marcado e logo no início saboreei um prazer incomensurável, quase explodi de alegria, quando o Padre comentarista, ao fazer a acolhida, mencionou, dentre outros “...um peregrino brasileiro que veio a pé desde Lourdes..”.

A homilia foi bonita e participativa, e depois da comunhão fiquei a observar o semblante dos demais peregrinos, e vi refletidas em suas fisionomias uma felicidade absoluta e sem limites. Após assistir o show do “botafumeiro”, entendi que naquele momento encerrava, definitivamente, minha peregrinação e, no mesmo instante, senti meu coração rejuvenescido de emoção e júbilo pela façanha realizada.

Tinha conquistado mais uma vitória pessoal, vencera o cansaço, as dores, o sofrimento e até as dúvidas e incertezas interiores.

Nesse instante, uma imensa alegria me invadiu, por ter o privilégio de, novamente, poder abraçar o Santo Apóstolo. Sim, porque ir a Santiago é, antes de tudo, um ato religioso.

É, também, um exercício de fé, é vivenciar nossa saída de Deus... “E Deus soprou sobre o barro e o barro-Adamah tornou-se vida” (Gênesis 2,7). E “Peregrinando-Per El Agri”, peregrinando pelos dias de sua existência terrena, voltar novamente à Fonte de seu sopro, ao coração de Deus, por ora concretizado no Santuário de Compostela. 

SANTIAGO-2 – À noite fui jantar no Manolo’s. No trajeto passei por um restaurante típico da Galícia, que me chamou a atenção pela variedade de “frutos” oferecidos. Fiz questão de copiar o cardápio, por ser um verdadeiro time de bichos do mar: “salmonetes”, “vieiras”, “carabineiros”, “cigallas”, “percebes”, “angulas”, “cantollos”, “merluzas”, “gambas”, “necoras”, “lagostinos”, “truchas”, “lubrigantes” e, ainda, “bocadillos” e “tapas” variados.

E, fiquei a sofismar, mesmo que eu estivesse ingerindo carne, seria homem de me arriscar a comer uma coisa dessas chamada “trucha” ou “lubrigante”? 

SANTIAGO-3 – No domingo à tarde fui ao cinema assistir a um filme épico. Ao adentrar no salão, verifiquei que no centro da plateia havia quatro filas lotadas, e o resto do ambiente estava vazio. Porque será que os espectadores não se espalhavam, perguntei? Porque eram cadeiras numeradas, e a venda de ingressos obedece rigorosamente à ordem da numeração, explicou-me, um jovem simpático.

Mesmo assim, sentei numa poltrona afastada, e logo fui abordado pelo vigilante “lanterninha”, que ao conferir o número do meu ingresso, disse que meu lugar estava reservado junto ao grupo. E lá fiquei, mesmo a contragosto, até o final da exibição. Embora saiba que tais peculiaridades decorrem de hábitos e costumes seculares, arraigados pelo povo nativo. Naturalmente, de difícil assimilação ou entendimento, de pronto, por nós brasileiros.

Aliás, se pararmos um pouco para pensar, o que nem sempre acontece, verificaremos que em alguns assuntos, os espanhóis, embora em alguns momentos sejam um tanto rudes e teimosos, são os reis da objetividade, os mestres do pensamento racional e conclusivo. Até em pequenos hábitos são cartesianos e, sem querer fazer média, sempre me acolheram com fidalguia. 

SANTIAGO-4 – À noite, saí e vagarosamente caminhei pelas ruas, mãos nos bolsos e sem destino. E uma excitação esquisita me invadiu, na véspera da partida daquele lugar, de onde três anos antes eu tinha me despedido, sem saber se um dia ali voltaria, uma sensação estranha a me corroer, algo que sentimos quando a gente nem se foi e já está com saudade de voltar.

Fiz, então, um rápido balanço de minha aventura, e pude constatar que mais uma vez o destino fora benevolente comigo. Isto porque, em minha memória acorriam, também, a imagem das pessoas com quem tivera a honra, o prazer e a dádiva celeste de dividir uma fatia do meu tempo aqui no planeta, que tanto me legaram alegria, felicidade e satisfação. E, me sentia extremamente gratificado por isso.

Mais tarde, ao arrumar meus pertences na mochila, preparando-me para o retorno inadiável, pensava em Santiago, sua imagem já difusa numa aura de saudade, e ao lembrar dos dias alegres vividos no Caminho, senti um nó no estômago, um terrível vazio dentro de mim. Porque, na lembrança restavam sensações sutis, como uma nostalgia antecipada dos instantes indeléveis que lá vivera. 

FINAL

Enquanto caminhava em direção à Compostela, um aforismo diariamente norteava meus ideais: “O peregrino vê o que vê. Já o turista vê o que foi ver, eis a diferença fundamental. Assim, ao peregrinar, observe os detalhes!”

E foi calcado nessa máxima que pude não só “curtir” intensamente os momentos inolvidáveis que vivi no Caminho, como, também, cuidadosamente catalogá-los. Foi, ainda, uma oportunidade única para perseverar vigorosamente em busca de minhas metas, bem assim para reavaliar meus limites e, inclusive, superá-los.

Impossível não reconhecer que o Caminho deixa-nos marcas profundas, não somente de ordem física, mas, principalmente, no plano espiritual, consubstanciado pelos sentimentos de solidariedade, amor ao próximo, respeito mútuo e cordialidade, que tanto exercitamos quando estamos em movimento. 

Inexoravelmente, os dias que passei na Rota, escoaram-se na ampulheta do tempo, como um sonho, e ao regressar à realidade das pugnas pela existência, sentia-me enriquecido pelas benesses incorpóreas e emocionais colhidas ao longo de minha peregrinação.

Particularmente, creio que encontrei o que procurava, meu equilíbrio, além de poder mensurar, também, o fervor que habita meu ser. Como saldo positivo trouxe comigo o conhecimento dos meus extremos, a certeza de que posso viver com muito pouco e, portanto, o que tenho é muito.

Para finalizar, um pensamento que creio, espelha com fidelidade o que vi, vivi e descrevi:

“O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, situações inexplicáveis e pessoas incomparáveis.” (Fernando Pessoa).

Bom Caminho a todos! 

Nov/Dez -2004