25ª etapa: ARZÚA à SANTIAGO DE COMPOSTELA – 42 quilômetros

25ª etapa: ARZÚA à SANTIAGO DE COMPOSTELA – 42 quilômetros

 

Seria, novamente, uma jornada de larga extensão, porém eu a conhecia em detalhes, porquanto a percorrera em 2001, 2004, e em 2012, quando viera pelo Caminho Primitivo e pernoitara em Melide.

Sabia, também, que nos primeiros 17 quilômetros eu não encontraria albergues e nem bares, mas eu estava tranquilo e confiante, pois meu lema para esse dia era: chegar ou chegar!

Assim, o primeiro largo e plano “tramo” seria cumprido com grande confiança e muito silêncio, pois saindo cedo, eu conseguiria me livrar da "muvuca" que imperava no roteiro após as 9 horas da manhã.

Ainda no escuro, 5 horas da manhã, eu passei diante do albergue de peregrinos de Arzúa.

Então, me preparei adequadamente de madrugada e, animado e bem disposto, deixei o local de pernoite às 5 horas, e com minha potente lanterna fui seguindo sem medo ou maiores dificuldades.

Placa que homenageia um peregrino falecido no Caminho, em 1996.

Na verdade, como bem disse um filósofo: “Se busco a mim mesmo, devo permanecer a maior parte do tempo sozinho”.

Confesso jamais ter apreciado minha solidão como naquele momento do caminho.

Lembrei-me de que Picasso já dissera “não se pode fazer nada sem a solidão”.

Com o dia claro, enfrentando frio e neblina.

Pouco a pouco aprendera o que a civilização não me permitira, ou seja, durante quase o caminho todo, eu apreciei a arte de viver comigo mesmo, e havia gostado da companhia.

Posto que, pelo menos por 5 horas diárias, passava eu sem dizer ou escutar palavra, e isto deixava-me mais tranquilo e fraternal.

Chegando em Salceda.

E depois de 11 quilômetros percorridos em bom ritmo, pois fazia frio, excelente para caminhar, cheguei em Salceda, povoado de passagem, e que possui apenas um bar-tienda, mas tem de tudo um pouco.

Campa homenageando o peregrino Guillermo Watt, falecido neste local.

Ali, pude fotografar novamente um monumento simples, dedicado a Guillermo Watt, peregrino que faleceu neste ponto em 1993, aos 69 anos de idade, quando somente lhe faltava cumprir apenas uma etapa, ou seja, 25 quilômetros até Santiago.

As sapatilhas que ele usava, também foram aí eternizadas.

Já deixando essa minúscula povoação, pude ver ao longe, um peregrino marchando forte, o primeiro que avistava nesse dia.

O primeiro peregrino que avistei nesse dia.

Sem maiores problemas, passei por Santa Irene, outra pequena vila, que não deixa de ser uma opção para o peregrino, já que dispõe de estrutura mínima para pernoitar, pois, disponibiliza albergue, hostal e lugar para alimentação.

O Caminho segue à beira de uma modesta, mas encantadora capela rústica, dedicada à Santa Irene, logo após atravessar o túnel sob a rodovia, onde existe uma fonte “santa”, pois sua água é recomendada para a pele e para curar as conhecidas bolhas que brotam nos pés dos peregrinos.

Descenso em direção à Santa Irene.

Mais abaixo, transitei por Rua, que possui somente uma casa rural para atender aos peregrinos.

Nada há ali a ser apreciado, a não ser um casarão bastante deteriorado, que pertenceu à nobreza rural, e em sua portada principal, sobre o dintel, ainda ostenta um brasão.

Numa fonte próxima, parei para me hidratar e ingerir uma barra de chocolates, depois voltei à luta.

Pausa para fotos, descanso e hidratação.

Então já descendendo forte, adentrei em frondoso e fresco bosque de eucaliptos que me levou, mais acima, à Pedrouzo de Arca, lugar a apenas 20 quilômetros de Santiago, que constitui para muitos a última etapa das rotas jacobeias do Caminho do Norte, Primitivo, Francês, dentre outros.

O monjón que assinala os derradeiros 20 quilômetros até Santiago.

Ali são oferecidos os serviços essenciais dois quais o peregrino necessita, e conta como principal ponto de interesse a igreja de Santa Eulália, cujo altar tem o formato de uma enorme concha, em homenagem a Santiago.

Pedrouzo, à esquerda. Porém, eu prossegui em frente.

Se eu fosse pernoitar em Pedrouzo, deveria seguir à esquerda para acessar seu comércio, porém  minha meta era aportar em Santiago, assim, observando a sinalização, transpus a rodovia e, já do outro lado, prossegui por um frondoso bosque de carvalhos e castanheiros.

Mais um exuberante bosque galego.

Nesse trecho, encontrei inúmeros peregrinos, muitos iniciando sua jornada naquele instante, bastante tardio a meu ver, pois não chegariam a tempo de assistir à Missa dos Peregrinos celebrada naquele dia.

Muitos peregrinos à minha frente.

Mais acima, eu transpus novamente a rodovia e, após vencer pequeno ascenso, transitei ao lado do aeroporto de Santiago e, por caminhos muito bem sinalizados, aportei em Labacolla, outro povoado de passagem.

Um peregrino solitário caminha próximo do aeroporto de Santiago.

No entanto, o povoado teve grande importância histórica, pois o riacho que passa pelo local e que dá nome ao lugar era onde, pela última vez, os peregrinos lavavam suas roupas e se banhavam para se apresentar dignamente na missa do peregrino em Santiago, segundo conta Aymeric Picaud.

Igreja de Santiago em Labacolla.

Então, iniciou-se talvez o trecho mais duro do dia, pois enfrentei forte ascenso antes de, finalmente, aportar em San Marcos, que é praticamente um bairro de Santiago.

Nesse “tramo” final, eu ultrapassei uma legião de caminhantes, a grande maioria de pessoas idosas, que caminhavam lentamente.

Havia um grupo composto por umas 30 mulheres, marchando sob a coordenação de dois monitores, que sempre atentos não descuidavam dos pupilos, a todo instante, ora na vanguarda ora na retaguarda e, vice e versa, aceleravam os passos com o fito de incentivar os caminhantes.

Finalmente, no Monte do Gozo!

E, eu extremamente cansado, com muitas dores nos pés, cheguei ao Monte do Gozo – também chamado de Montjoy, Montxoi ou Monte de San Marcos.

Desde o alto de sua colina, é possível avistar pela primeira vez as torres da catedral, porém após várias tentativas, e mesmo com o dia claro, não consegui realizar esse intento.

Historicamente, sabe-se que na antiguidade os peregrinos se prostravam de joelhos nesse local, em êxtase, por haver alcançado seu objetivo, um privilégio de poucos.

Atualmente, muitos pernoitam no albergue ali existente, que tem a capacidade para receber quase mil pessoas por dia.

Um referencial nesse lugar, localizado no topo da colina, é um monumento em homenagem ao peregrino, cuja obra é atribuída a uma artista plástica brasileira.

Escultura localizada onde João Paulo II rezou missa.

Fiz ali uma pausa para fotos e hidratação, depois, novamente animado, iniciei o trecho derradeiro, todo urbano.

A chegada à catedral de Santiago se dá pela Avenida de los Concheiros, onde antigamente os concheiros ou artesãos, que fabricavam conchas de prata ou de latão, vendiam suas mercadorias aos peregrinos.

O trajeto continua até a Puerta del Camino ou Porta Francigena, que tem este nome por causa dos peregrinos franceses, e chega ao Crucero de Bonaval, local em que um peregrino medieval, que deveria ser enforcado por seus delitos, invocou Nossa Senhora, suplicando-lhe morte rápida e sem sofrimentos.

Imediatamente ele caiu morto, escapando assim do enforcamento.

Porta Santa, localizada na Catedral de Santiago.

Chega-se finalmente à Puerta Santa, localizada no fundo da Catedral, datada de 1611, e que só é aberta no Ano Santo.

Ela é uma das sete portas menores da catedral, e era chamada antigamente de Puerta de San Paio, depois Puerta de los Perdones, e atualmente Puerta Santa, sendo a única que mantém sua originária função.

Abre-se no dia 31 de Dezembro que antecede o Ano Santo e permanece aberta até o próximo dia 31 de Dezembro que encerra, e embora não seja necessário transpô-la para obter a indulgência, este é um antigo costume que se mantém até hoje.

No altar maior da catedral, o peregrino encontra, lado a lado, três imagens de São Tiago, que ilustram as três facetas do culto ao apóstolo: Tiago, o Mestre; Tiago, o Peregrino e Tiago, o Cavaleiro.

Adentrando na zona urbana de Santiago de Compostela.

Caso a Puerta Santa esteja fechada, pode-se entrar pela frente, pelo Pórtico de la Gloria, verdadeira obra-prima da arte românica, esculpida pelo Maestro Matteo (1168 - 1188).

Segundo uma tradição, cujas origens perderam-se no tempo, o peregrino que chega à Santiago deve colocar a mão direita no pilar central do Pórtico da Glória, para agradecer o sucesso da longa viagem.

O milenar e venerado Pórtico da Glória.

Este pilar traz esculpido em sua superfície a árvore genealógica de Cristo, o símbolo da origem humana de Jesus.

Sobre seu capitel, há uma imagem de São Tiago e, em sua base, existe um rosto humano esculpido, que se acredita ser um "autorretrato" do próprio Maestro Matteo.

Tradicionalmente, o peregrino deve aí encostar sua cabeça, para assim iluminar seus pensamentos.

Neste pilar, local em que milhões de mãos peregrinas tocaram a coluna expressando sua fé, ao longo dos séculos formou-se a impressão de uma mão, onde se encaixam perfeitamente os dedos do peregrino.

Estes infinitos andarilhos, que com seus pés esculpiram o Caminho, com o suor cinzelaram a História de todo o norte da Espanha, com seus dedos e força de seu espírito, até hoje, prosseguem escavando a forma de uma mão na rocha deste pilar.

 

Catedral Compostela, visão na chegada à Praça do Obradorio.

Efetivamente, eu me encontrava exaurido, assim, a passos lentos e doloridos, fui vencendo o trecho final e, enquanto eu percorria a rua da Acibechería, que dá acesso à Plaza da Immaculada e à fachada norte da Catedral, já podia ouvir as melodiosas notas da gaita-de-foles, que há anos dá as boas vindas aos peregrinos do Caminho Francês.

A música embala o ouvido, como um prelúdio prepara os sentidos, a mente e o coração naquele instante inesquecível para qualquer peregrino: a entrada na Praça do Obradoiro.

A. Vagamundos, escreve: “É praticamente impossível transpor para palavras a infinidade de sentimentos, sensações e pensamentos que nos dominam naquele momento. As emoções atropelam-se. Numa questão de segundos, somos capazes de passar do júbilo extasiante ao choro incontrolável, da perplexidade perante o impossível à celebração da conquista, do desassossego da mente à serenidade da alma!

Vitória! Deus seja Louvado! Após vencer 819 quilômetros em 25 dias, finalmente, defronte à Catedral de Santiago! Momento de glória e intenso prazer!

Os 800 e tantos quilômetros de imagens gravadas na memória transformam-se num filme em formato “fast-forward”, revemos paisagens bucólicas, a inigualável beleza da Criação, os rostos de companheiros de caminhada, os sorrisos repartidos, as lágrimas pisadas; revemos a família que espera o nosso regresso a casa e a família do Caminho que se prepara para nos deixar partir. Na exultação da chegada, tomamos consciência da singularidade dos dias no Caminho...”

Alberto S. Santos escreve: “Um peregrino não esgota a viagem no primeiro destino”.

O botafumeiro em ação, na missa dos peregrinos.

Grande verdade, vez que chegar a Santiago está longe de ser o fim, na realidade, é um ponto de partida, não o desígnio fatal.

Finda a comoção da chegada, pedi a um amigo que me fotografasse, como forma de eternizar esse instante sublime.

Momento de glória e intenso prazer!

Atualmente, não se permite a entrada na Catedral Compostelana de peregrinos com mochila, de forma que, primeiramente, me dirigi ao Centro de Apoio ao Peregrino, onde recebi meu 7º Diploma.

Em seguida, me hospedei numa pensão e, mais tarde, após tomar banho, barba feita, roupa limpa e perfumada, fui almoçar no bar Manolo.

O busto de Santiago, local de abraçar o Santo e agradecer pela jornada concluída com sucesso!

No retorno, passei novamente pela Catedral, e aí sim, pude abraçar demoradamente o busto do Santo Apóstolo, bem como orar diante de seu túmulo.

Túmulo do Santo Apóstolo, onde passei vários minutos em oração.

No dia seguinte, às 12 horas, assisti à Missa dos Peregrinos, e no dia posterior, jubiloso e integralmente realizado, retornei ao Brasil.

Celebração da Missa dos Peregrinos!